Resumo: Este trabalho tem o escopo de analisar a relação ontológica entre o direito à educação e o princípio da dignidade da pessoa humana, com vistas à demonstração de que o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) se constitui em instrumento de concreção dos elementos essenciais a uma existência digna. Mediante o emprego dos métodos analítico e dedutivo, procede-se à pesquisa do referencial teórico aplicável aos direitos fundamentais, ao direito à educação, ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao Fundeb, com suporte na normatividade das respectivas disposições. Demonstra-se a imprescindibilidade do fundo para a manutenção e o desenvolvimento da educação no Brasil, alertando para os riscos inerentes a eventuais retrocessos para esse direito fundamental.
Palavras-chave:FundebFundeb,educaçãoeducação,direitos fundamentaisdireitos fundamentais,dignidade humanadignidade humana,BrasilBrasil.
Abstract: This work aims to analyze the ontological relationship between the right to education and the human dignity principle, in order to demonstrate that the new Fund for the Maintenance and Development of Basic Education (Fundeb) constitutes an instrument of concretization of the essential elements for a dignified life. With analytical and deductive methods, a research is made over the theoretical framework applicable to fundamental rights, the right to education, the human dignity principle and the Fundeb, supported by the norms of the respective provisions. The present study demonstrates the indispensability of the new Fundeb for the maintenance and development of education in Brazil, signaling risks inherent to eventual setbacks for this fundamental right.
Keywords: Fundeb, education, fundamental rights, human dignity, Brazil.
O novo Fundeb e o direito fundamental à educação
The new Fundeb and the fundamental right to education
Recepción: 30 Enero 2020
Aprobación: 28 Noviembre 2020
1. Introdução; 2. Dignidade da pessoa humana, direitos do homem e direitos fundamentais; 3. O novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica como elemento de concreção do princípio da dignidade da pessoa humana; 4. Considerações finais. Referências.
O modelo constitucional brasileiro contemporâneo foi desenhado segundo as linhas históricas de desenvolvimento dos direitos fundamentais, acolhendo-os em todas as suas dimensões. Quanto a tais direitos, subsiste uma irretorquível vinculação ontológica com o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se apresenta como um valor antecedente e supraconstitucional. Nessa esteira, a realização de todas as potencialidades do ser humano subjaz como valor-fonte de todo o edifício constitucional, o qual concebe um modelo de Estado aderente à ideia de que se trata de um ente criado para servir e não para ser servido.
Desse modo, vislumbrando a necessidade de conferir concreção à dignidade da pessoa humana, cuida a Carta Constitucional em conferir especial atenção a um direito cuja fundamentalidade se assenta em características específicas, propiciadoras do desenvolvimento intelectual dos indivíduos, conferindo-lhes meios para alcançar uma existência plena e satisfatória. Trata-se do acesso à educação, considerada pela Constituição Federal um direito de todos e um dever do Estado.
Em atenção a esse direito, visando exatamente ao estabelecimento de meios suficientes à sua plena realização, ao legislador constituinte brasileiro aprouve criar mecanismos a serem utilizados em todas as esferas da federação. Diante disso, estabeleceu o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Para esse fim, o texto constitucional estabeleceu que o ensino deve ser ministrado com base nos seguintes princípios: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; gestão democrática do ensino público, na forma da lei; garantia de padrão de qualidade; e piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
Percebe-se, assim, a clara opção do legislador constituinte em conferir eficácia a esse direito fundamental, de modo que a todas as crianças e adolescentes seja garantida igualdade de condições para seu completo desenvolvimento intelectual, cultural e social. Ao lado disso, somente mediante a plena liberdade de cátedra e a valorização dos profissionais da educação será possível ensejar a plena efetividade e o adequado padrão de qualidade do ensino oferecido.
A isso se adiciona a importantíssima disposição contida no artigo 212, da Constituição Federal, cujo caput estabelece que a União tem o dever de aplicar na manutenção e desenvolvimento do ensino, anualmente, o mínimo de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, o mínimo de vinte e cinco por cento da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências. Essa determinação visa assegurar o direcionamento de recursos suficientes à viabilização desse direito fundamental, garantindo a devida priorização por ocasião do emprego das disponibilidades financeiras de cada um dos entes federados.
É assim que a distribuição dos recursos públicos deve assegurar prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, em especial quanto à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, valendo-se, para tanto, das disposições contidas no plano nacional de educação. De outro lado, o não atendimento ao percentual mínimo de aplicação em manutenção e desenvolvimento do ensino enseja a reprovação das contas do gestor público, gerando sua responsabilização e inelegibilidade, além de obstar a transferência voluntária de recursos ao ente recalcitrante.
Nessa seara, dentre os diversos instrumentos de ação destinados a permitir que o Estado realize prestações adequadas, destaca-se o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), cujo desiderato se volta à disponibilização de recursos públicos à subsistência e ao aprimoramento do sistema. O fundo foi criado pela Emenda Constitucional n. 53, de 19 de dezembro de 2006, que, em seu artigo 60, estipulou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem destinar parte dos recursos a que se refere o caput do artigo 212 da Constituição Federal à manutenção e ao desenvolvimento da educação básica, bem como à remuneração condigna dos trabalhadores da educação. Para tanto, a criação do fundo, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, visa exatamente a subsidiar a distribuição dos recursos e das responsabilidades entre referidos entes.
Concebido como uma solução temporária, o fundo se mostrou um importante instrumento para as políticas públicas de educação, em especial por minimizar o problema crônico da escassez de recursos para essa área. Assim, diante da preocupação com o exaurimento dessa importante fonte de receita, procedeu-se à propositura de alteração constitucional visando à construção de um fundo perene e aprimorado. Trata-se daquilo que se convencionou qualificar como o novo FUNDEB, o qual passa a integrar o bojo da Constituição brasileira em caráter definitivo.
Com essa perspectiva, o presente trabalho tem o escopo de analisar o novo FUNDEB como elemento de concreção do princípio da dignidade da pessoa humana. Procede-se, assim, a uma análise do referencial teórico aplicável às temáticas do direito à educação e da dignidade humana, visando evidenciar a necessária comunicação entre esses conceitos. Busca-se, desse modo, investigar até que ponto a manutenção do FUNDEB em nosso ordenamento jurídica atua em benefício da efetiva realização do princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma análise que tem amparo no referencial inerente à própria conformação do Estado Democrático de Direito, o qual, como será demonstrado, tem sua legitimação estreitamente relacionada à centralidade do ser humano.
O ser humano é a razão de existir do Estado. Nenhuma outra finalidade justifica a construção desse ente imaterial, senão a de atender às necessidades dos indivíduos que o compõem. Para além disso, mais do que destinatário, o ser humano representa a própria fonte do Estado, uma vez que apenas o exercício de sua inteligência criativa poderia conceber a ideia referente a uma estrutura de poder que pudesse congregar a sociedade em torno de objetivos comuns.
Se o Estado existe em função do ser humano, resta patente que a utilização de seu aparato se destina a servir às pessoas e não o contrário. É por essa razão que se mostra equivocado afirmar que os cidadãos são súditos do Estado. É fato que essa expressão correspondeu à realidade em tempos passados, especialmente no âmbito de experiências monárquicas e ditatoriais. Contudo, no momento atual, a experiência de valorização do ser humano, alçando-o à categoria de elemento central da vida, coloca por terra qualquer ideologia voltada a transformá-lo em súdito daquilo que ele mesmo criou para servi-lo. Nessa linha, sem ignorar a existência de posicionamentos contrários, defende-se que o Estado é meio e não fim, existindo em função dos homens e não o contrário, constituindo-se em meio natural a ser utilizado para a realização de suas necessidades. Não pode, desse modo, sobrepor-se aos valores das pessoas, de modo que “tudo quanto interessar a uma vida melhor, à ordem social e à civilização dos indivíduos, implicando o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, tudo isso constitui bem público, consubstanciando (...) o conjunto dos fins estatais”.1
Nesse mesmo passo, é de se notar que a centralidade do ser humano é reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução n. 217A, de sua Assembleia Geral. A casuística dos direitos inerentes à condição humana, ali delineada, atua como elemento indutor da consideração da pessoa natural como agente central da existência, levando ao reconhecimento do Estado como instrumento propiciador de meios para uma vida plena e satisfatória. O próprio preâmbulo daquele documento internacional estabelece o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, com fundamento na liberdade, na justiça e na paz.
Nessa linha, é de se reconhecer que, como instrumento de atendimento às necessidades da população, o Estado somente cumprirá seu desiderato se proporcionar os meios indispensáveis a esse mister. Assim, é imprescindível o emprego de toda sua potência para a realização de prestações que satisfaçam as demandas das pessoas, destacando-se, entre elas, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a assistência aos desamparados e a proteção à maternidade e à infância, consoante a enumeração dos direitos sociais levada a efeito pelo artigo 6º, da Constituição Federal de 1988. A essência dos direitos sociais se agrega, por óbvio, à própria concepção dos direitos fundamentais, os quais, voltados a ensejar elementos mínimos de respeito à condição humana, também encontram respaldo na estrutura constitucional, revelando-se, desse modo, essenciais ao cumprimento das finalidades últimas do Estado.
É por essa razão que o princípio da dignidade da pessoa humana foi alçado à condição de fundamento da República, conforme disposto no artigo 1º, inciso III, da Carta Constitucional. Como todo fundamento, a dignidade da pessoa humana se constitui, assim, em base, em alicerce sobre o qual deve ser edificada a construção do Estado. A essência desse conceito é evidenciada na afirmação de que toda pessoa é única, nela habitando o todo universal. E esse conceito de todo universal insere cada uma delas no ampla concepção da existência humana. Assim, “embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência”.2
O princípio da dignidade da pessoa humana se consubstancia, assim, em um valor jurídico fundamental, o qual encontra assento em bases ético-filosóficas inerentes à própria condição humana, servindo como critério de orientação ao intérprete da Constituição.3 E, embora alguns assinalem que seu conceito pode variar entre os povos,4 é irretorquível que, em sua essência, esse princípio possui natureza fundante, constituindo-se em valor supraconstitucional, que antecede a própria formação da Constituição.
A dignidade humana, dessarte, em conjunto com os direitos humanos e a democracia, compõe um dos eixos estruturantes do Estado Constitucional, configurando “um dos esteios nos quais se assenta tanto o direito constitucional quanto o direito internacional dos direitos humanos”.5 Afinal, ao conferir concreção aos direitos humanos, a Constituição e o sistema internacional de direitos humanos nada mais fazem do que reconhecer a dignidade da pessoa humana como um valor anterior, fundante e supranacional.
Diante disso, verifica-se que a dignidade da pessoa humana configura um princípio estruturante do próprio Estado Democrático de Direito, constituindo-se em valor-fonte indutor do reconhecimento da centralidade do ser humano no âmbito da existência. É por tal razão que se afirma que se trata de “um valor fundamental que se viu convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma expressa seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema”,6 atuando, a um só tempo, como justificação moral e como fundamento normativo dos direitos fundamentais.
Assim, além de elemento basilar, o princípio da dignidade da pessoa atua como elemento de justificação moral para o fundamento normativo dos direitos fundamentais. Diante disso, reafirma-se a necessidade de direcionar todo o aparato estatal ao atendimento das necessidades elementares inerentes à condição humana. Quanto a isso, bastante elucidativa é a seguinte lição: “Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (...) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República”.7 Daí afirmar-se que não deve o homem servir à República, mas sim o contrário, constituindo-se esta em uma organização política concebida para servi-lo.
Resta evidente, desse modo, que o princípio da dignidade da pessoa humana encontra suas raízes na tradição humanista, para a qual “o ser humano era o elemento natural último, e (...) a base da coletividade consistia em um conceito de vida que podia admitir em si a qualificação de boa vida”.8 Segundo essa concepção, o atendimento das necessidades mínimas para assegurar uma existência digna, compatível com a condição humana, é o que se pode conceituar como a “boa vida”. Dessa propiciação dos elementos necessários a uma vida satisfatória decorre o caráter subjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, uma vez que induz a um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos.9 Por se tratar de um ser social, vive o ser humano em comunidade. E é exatamente no âmbito dessa comunidade que suas necessidades elementares devem ser contempladas, possibilitando, assim, a plena realização de suas potencialidades, de modo a alcançar uma existência minimamente satisfatória.
Diante disso, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa se encontra estreitamente relacionado ao conceito do mínimo existencial, uma vez que é necessário assegurar as condições imprescindíveis para se garantir uma existência digna.10 Desse modo, o mencionado rol de direitos fundamentais contemplado pela Constituição, acrescido dos direitos sociais, encontra-se direcionado exatamente à consecução dos elementos necessários à dignidade das pessoas. Disso decorre a menção expressa dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, ao transporte, à segurança, à educação, ao trabalho, ao lazer e à moradia. Essa casuística atende ao ideal de valorização das pessoas naturais, pois visa à consecução de tudo quanto é indispensável à existência do ser humano,11 impedindo a prática de atos tendentes a privá-lo dos meios necessários à preservação da vida.12
Nessa linha, resta claro que os direitos fundamentais atuam para a explicitação e a densificação da dignidade da pessoa humana, visando proporcionar sua efetiva concreção. É por essa razão que se afirma que, adotado o pensamento kantiano de que a dignidade é uma qualidade congênita e inalienável de todos os seres humanos, decorre que os direitos humanos são concebidos como “um conjunto de valores éticos, positivados ou não, que tem por objeto proteger e realizar a dignidade humana em suas dimensões”.13
Assim, resta cristalino o vínculo ontológico existente entre a dignidade da pessoa humana, os direitos do homem e os direitos fundamentais. Quanto aos dois últimos, vale observar, existe verdadeira identidade, subsistindo sua distinção apenas quanto à esfera espaço temporal. É por essa razão que se afirma a sinonímia entre as expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais”, sendo os primeiros válidos para todos os povos e em todos os tempos, em uma dimensão jusnaturalista-universalista, enquanto os segundos são aqueles garantidos juridicamente segundo uma limitação de tempo e de espaço. Nessa linha, “os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”.14
Esses apontamentos nos levam a perceber a inequívoca ligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à educação, estampado no assinalado rol dos direitos sociais. Afinal, o acesso à educação é imprescindível para que o ser humano obtenha a compreensão da existência e do mundo à sua volta, permitindo uma vivência plena e satisfatória. Somente com um nível pelo menos razoável de desenvolvimento intelectual e cognitivo é possível que as pessoas estabeleçam uma interação consciente com o meio em que vivem, alcançando a realização das potencialidades inerentes à sua condição humana.
Diante disso, resta patente que o acesso à educação ostenta a condição de direito fundamental e, como tal, situa-se no ápice da estrutura do ordenamento jurídico, vinculando diretamente os poderes do Estado,15 os quais são incumbidos da responsabilidade de direcionar recursos à sua plena efetivação.
Tendo em vista sua fundamentalidade, o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 estabelece que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Para isso, o ensino deve ser ministrado com base nos seguintes princípios: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, com a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; gestão democrática do ensino público; garantia de padrão de qualidade; e piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública.
Essas disposições mostram-se alinhadas com a concepção de que o direito à educação é peça fundamental para a concretização dos fundamentos da República, encontrando-se intrinsecamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana. A universalidade desse direito, saliente-se, demonstra sua inequívoca vinculação à dignidade humana. Afinal, a plena realização de todas as potencialidades do ser humano está diretamente correlacionada ao seu desenvolvimento intelectual.
Afirma-se, nessa linha, que a educação vai além de simples formação, constituindo-se em verdadeiro pressuposto do desenvolvimento natural. Isso “implica afirmar que o indivíduo não poderia adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem uma contribuição anterior, a exigir um certo meio social de formação, e que em todos os níveis (desde os mais elementares até os mais altos) o fator social ou educativo constitui uma condição do desenvolvimento”.16
Pode-se afirmar, assim, que possibilitar meios à efetivação do direito à educação importa em relevante etapa da tarefa de conferir concreção ao princípio da dignidade da pessoa humana. É por tal razão que incumbe ao Estado assegurar os meios necessários à efetivação desse direito, contendo o artigo 205 da Constituição Federal brasileira uma declaração basilar, a qual interage com o artigo 6º, conduzindo a educação à condição de direito fundamental. Por isso se defende que “a educação é direito de todos, com o que esse direito é informado pelo princípio da universalidade. (...) As normas, têm, ainda, o significado jurídico de elevar a educação à categoria de serviço público essencial que ao Poder Público impende possibilitar a todos”.17
Sob essa ótica, um importante instrumento para o incremento da qualidade da educação é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), concebido em substituição ao antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF).
O FUNDEB foi criado pela Emenda Constitucional n. 53, de 19 de dezembro de 2006, que, em seu artigo 60, estipulou que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem destinar parte dos recursos a que se refere o caput do artigo 212 da Constituição Federal à manutenção e ao desenvolvimento da educação básica, bem como à remuneração condigna dos trabalhadores da educação. Para tanto, a criação do fundo, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, visa exatamente a subsidiar a distribuição dos recursos e das responsabilidades entre referidos entes.
Regulamentado pela Medida Provisória n. 339, de 28 de dezembro de 2006, posteriormente convertida na Lei n. 11.494, de 20 de junho de 2007, o FUNDEB é um fundo especial, de natureza contábil e de âmbito estadual, formado, na quase totalidade, por recursos provenientes dos impostos e transferências dos Estados, Distrito Federal e Municípios, obrigatoriamente vinculados à educação. De observar-se que seu valor é determinado segundo o número de alunos existentes em cada ente da Federação, de modo que, quando o cálculo não alcança o valor mínimo definido nacionalmente, é tarefa da União proceder à respectiva complementação.
Nos termos da legislação mencionada, os recursos são distribuídos tendo em vista as matrículas realizadas em escolas públicas e conveniadas, conforme os dados obtidos no censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), o qual deve alcançar os estudantes atendidos na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio. Levam-se em conta, também, os alunos atendidos nas modalidades de ensino regular, educação especial, educação de jovens e adultos e ensino profissional integrado, nas escolas localizadas nas zonas urbana e rural e nos turnos com regime de atendimento em tempo integral ou parcial.
Dada a histórica insuficiência financeira dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para fazer frente às despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino, a complementação levada a efeito pela União se mostra imprescindível para assegurar um nível mínimo de qualidade. Basta ver que, um ano depois de sua implementação, os aportes federais orbitaram na casa dos 2 bilhões de reais, saltando a 3 bilhões em 2008 e 5 em 2009. Em 2010, estabeleceu-se que esse aporte deveria corresponder a 10% da contribuição total dos Estados e dos Municípios. A conta do FUNDEB, segundo os cálculos do Ministério da Educação, foi de 166 bilhões de reais em 2019, sendo que, destes, pelos menos 15 bilhões tiveram origem na União. Diante disso, é irretorquível a essencialidade do FUNDEB para a realização de investimentos em educação básica, sendo também indispensável, para esse fim, a contribuição que incumbe à União.
Ao lado disso, ao permitir a repartição de receitas, o FUNDEB funciona como indutor da redução das desigualdades regionais. A esse respeito, é digno de nota o importante estudo realizado pelo Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (TCM/GO), tendo por objeto o levantamento de informações sobre a participação dos municípios goianos na composição do FUNDEB e sobre a dinâmica de redistribuição dos recursos por meio das transferências realizadas. Referido estudo aponta que, no exercício de 2018, o FUNDEB beneficiou concretamente os municípios goianos, uma vez que a transferência de recursos para a rede municipal de ensino foi superior à transferência para a rede estadual. Naquele período, as transferências do FUNDEB para os municípios alcançaram 2,6 bilhões de reais, enquanto as destinadas ao Estado foram de 1,9 bilhão de reais. Isso demonstra, como foi salientado por referida Corte, que o FUNDEB atua como uma forma de verdadeira redistribuição de receitas entre os entes, intenção essa que “se amolda aos objetivos fundamentais da república, pois visa reduzir as desigualdades regionais, permitindo que os recursos sejam divididos entre os entes de acordo com a proporção de alunos”.18
Sem embargo disso, é necessário notar que a Emenda Constitucional n. 53 estabeleceu a vigência do Fundo até o décimo quarto ano a partir de sua promulgação. Desse modo, nos moldes em que concebido, o FUNDEB deveria expirar em 31 de dezembro de 2020, extinguindo-se, assim, essa importante receita da educação.
Isso levou a uma movimentação no âmbito do Congresso Nacional, de modo que foi proposta a alteração da Constituição Federal, desta feita com o propósito de dotar o fundo de perenidade. Foi assim concebida a Emenda do novo FUNDEB, com sua inserção em definitivo no bojo do texto constitucional e, de conseguinte, no arcabouço jurídico do país.
Nos moldes em que concebida essa alteração, estipula-se que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do artigo 212 da Constituição à manutenção e ao desenvolvimento do ensino na educação básica e à remuneração condigna de seus profissionais, mediante distribuição a ser assegurada pela instituição do mencionado fundo, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal. A par disso, o novo regime estabelece que a União deve proceder à complementação, quando necessário, na ordem de 23%, ao invés de apenas 10%.
Tal alteração constitucional traveste-se de considerável relevo, uma vez que se mostra em consonância com a responsabilidade do Estado em assegurar as condições necessárias ao implemento da dignidade da pessoa humana. Afinal, como demonstrado, o direito à educação se encontra umbilicalmente vinculado a esse princípio, uma vez que possibilita a cada indivíduo uma formação ensejadora da compreensão do mundo à sua volta, permitindo-lhe o desenvolvimento de suas potencialidades. O FUNDEB, ao proporcionar o direcionamento de recursos ao ensino básico, fortalecendo o sistema, constitui-se em importante elemento de concreção do direito à educação e, de conseguinte, ao próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Por certo, sua extinção importaria em um indesejado e danoso retrocesso, uma vez que retiraria recursos indispensáveis ao funcionamento do sistema, o que não se poderia admitir em um país cuja educação enfrenta percalços de toda ordem. E, para além disso, quando se está a tratar de direitos fundamentais, não se admite que sejam dados passos para trás. Nessa linha, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, adrede mencionada, declara, em seu artigo 30, que nenhuma de suas disposições pode ser interpretada como o reconhecimento do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades nela estabelecidos. Trata-se da proibição do retrocesso. É assim que, uma vez atribuído determinado direito fundamental, qualquer alteração posterior estará sujeita à análise de seu impacto sobre o respectivo núcleo essencial, de modo a se aferir se eventuais restrições importarão em diminuição de sua extensão e alcance.19
Obviamente, a utilização responsável e adequada da regra da proibição de retrocesso não deve visar à tutela de privilégios indevidos, não se constituindo, também, no único meio de proteção dos direitos fundamentais. De outro lado, “não restam dúvidas de que se trata de uma importante conquista da dogmática jurídico-constitucional (...) para assegurar (...) a proteção dos direitos sociais contra a sua supressão e erosão pelos poderes constituídos, ainda mais num ambiente marcado por acentuada instabilidade social e econômica”.20
Portanto, admitir a extinção do FUNDEB importaria em evidente retrocesso, haja vista o impacto deletério produzido sobre o direito constitucional à educação. Essa extinção, desse modo, aviltaria o próprio princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista sua estreita vinculação com o direito à educação, como demonstrado. A adequada valorização do ser humano, como destinatário final das prestações a cargo do Estado, perpassa, necessariamente, pela adoção das medidas necessárias a assegurar uma educação de qualidade e universalmente acessível.
Diante disso, verifica-se que a Emenda Constitucional do novo FUNDEB, ao travestir esse instituto da necessária perenidade, ampliando, ainda, o nível de contribuição federal, atua como importante elemento de concreção do princípio da dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal de 1988 delineou com muita clareza os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Consubstanciam-se eles na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na realização do desenvolvimento nacional, na erradicação da pobreza e da marginalização, na redução das desigualdades e na promoção do bem todos, sem preconceitos de qualquer espécie.
Afirma-se, sem medo de errar, que todos esses objetivos somente poderão ser alcançados em um ambiente onde a educação seja realmente valorizada. Sem uma educação de qualidade não se mostra possível promover o bem de todos, erradicar a pobreza e garantir a construção de uma sociedade nos moldes idealizados.
Educação é, portanto, fundamental. E não apenas isso. Educação é, também, um direito fundamental. Como tal, comunica-se claramente com o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que confere aos indivíduos a possibilidade de desenvolvimento de suas potencialidades pessoais.
Como restou demonstrado neste trabalho, o poder constituinte reformador, com os olhos voltados à fundamentalidade desse direito, foi colocado em movimento com o fito de perenizar e aprimorar um importantíssimo instrumento para assegurar recursos de todo indispensáveis. É assim que o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica reúne todas as condições para minimizar o problema crônico da escassez de recursos do sistema educacional.
Dada a essencialidade da educação para o aprimoramento intelectual da população, de modo a propiciar meios suficientes ao desenvolvimento de todas as potencialidades inerentes à existência pessoal, demonstrou-se que o novo FUNDEB se constitui em um importante elemento de concreção do princípio da dignidade da pessoa humana. A análise do referencial teórico aplicável às temáticas do direito à educação e da dignidade humana evidenciou, de forma cristalina, a relação ontológica entre tais conceitos. Valorizar a educação, portanto, é valorizar o ser humano. Espera-se que o bom senso que permeou a propositura do novo FUNDEB venha a fluir de modo contínuo, permitindo que o Estado faça bom uso dos recursos a serem destinados a essa rubrica tão cara à sociedade brasileira.
Como citar este artículo | How to cite this article: MOTTA, Fabrício; MESQUITA, Saulo. O novo Fundeb e o direito fundamental à educação Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 7, n. 2, p. 163-176, jul./dic. 2020. DOI 10.14409/redoeda.v7i2.9518