Resumo: A revolução digital impacta a administração pública e transforma gradualmente as atividades prestadas pelo Estado. Ela vem acompanhada de desafios e de necessidades que surgem à medida que as tecnologias se aprimoram. O artigo propõe percorrer o percurso do uso das TICS no âmbito organizacional estatal, examinando desde a concepção inicial de governo eletrônico, chegando até os trabalhos mais recentes que aludem ao governo digital. O trabalho é descritivo e lógico-dedutivo. Primeiro, examina-se as fundações do governo eletrônico, com suas classificações, identificações e tipos de interação. Em segundo, são trabalhadas as ideias e propostas do governo aberto. Após, o conceito de governo digital é explorado com suas questões-chave. Finalmente, são traçados o processo evolutivo da transformação digital na administração pública.
Palavras-chave:governo eletrônicogoverno eletrônico,governo digitalgoverno digital,governo 2.0governo 2.0,governo abertogoverno aberto,governo aberto de dadosgoverno aberto de dados.
Abstract: The digital revolution impacts public administration and gradually transforms the activities provided by the State. It comes unattended by challenges and new needs that arise as these technologies improve. The article proposes to go through the path of insertion of ICTs in the state organizational sphere, examining from the initial conception of e-Government to the most recent work that advocates digital government. The work is descriptive and logical deductive. First, it examines the foundations of e-Government, with their classifications and identifications, types of interaction. Second, the ideas and proposals of open government are worked on. Third, the concept of digital government is explored, and its key issues. Finally, comparative traces of the evolutionary process of digital transformation in public administration are drawn.
Keywords: e-government, digital government, government 2.0, open government, open data government.
Dossier temático
Transformação digital na administração pública: do governo eletrônico ao governo digital
Digital transformation in public administration: from e-government to digital government
Recepción: 25 Febrero 2021
Aprobación: 07 Mayo 2021
1. Introdução; 2. O Governo eletrônico e suas fundações; 2.1. Definindo governo eletrônico; 2.2. Tipos de interações; 2.3. Áreas de intervenção; 2.4. Etapas ou fases; 2.5. Governança eletrônica; 2.6. Governo 2.0; 3. Governo aberto; 4. Governo digital; 4.1. As novas tecnologias; 4.2. Uma nova racionalidade; 4.5. Traços evolutivos; 6. Considerações finais. Referências.
Governo eletrônico, administração digital, governo aberto, governo 2.0, governança digital. Mas afinal, que termos são esses? São equivalentes? É importante, ou mesmo necessário, os diferenciar? Assim como nos demais domínios da sociedade, a revolução digital impacta a administração pública e transforma gradualmente as atividades prestadas pelo Estado. A administração, que foi erigida sob o império do papel, hoje se digitaliza. Governos buscam ofertar serviços com maior eficácia e agilidade.1
A sociedade, ao seu turno, busca utilizar essas tecnologias para alcançar os seus direitos. Com a transição do mundo analógico para digital, o uso de plataformas, aplicativos e páginas virtuais tornam-se atos cotidianos. O emprego de tais dispositivos no dia-a-dia faz com que haja uma relação do seu uso também no âmbito dos serviços prestados pelo governo. O Estado, por sua vez, busca se amoldar e propõe uma simplificação de acesso e promoção de seus serviços.2
A transformação digital, contudo, vem acompanhada de desafios. Questões relativas à concepção, limites e modo de utilização das Tecnologias da Informação- TICS surgem, como também as desigualdades no acesso ao universo digital se evidenciam. Além disso, a falta de estrutura, a ineficiência na prestação de serviços online e desconexão entre eles emergem como problemas.3 No Brasil, por exemplo, embora exista uma Estratégia de Governança Digital (EGD) proposta pelo governo,4 índices5 apontam para dificuldades no processo de inserção de tais estratégias.
Nesse imbróglio, diversas expressões referentes aos usos das TICS no âmbito governamental passam a ser empregadas. O governo eletrônico se transforma num “camaleão”6 e locuções são utilizadas a depender do que se pretende argumentar. Essa miscelânea conceitual, para além da imprecisão terminológica, traz confusões sobre o alcance e conteúdo de cada conceito. Isso pode, em última análise, corroborar na existência de lacunas na instrumentalização destes dispositivos.
Por isso, entende-se necessário um esclarecimento sobre as expressões tratadas no âmbito da transformação digital na administração pública, para o fim de auxiliar a compreensão, alcance e debate sobre o tema. O trabalho utiliza uma metodologia descritiva, por meio de exame da doutrina sobre o tema, e da compreensão dos termos por agências nacionais e internacionais.
O artigo percorre o percurso do emprego das TICS no âmbito organizacional estatal, examinando desde a concepção inicial de governo eletrônico, chegando até os trabalhos mais recentes que aludem ao governo digital. Primeiro, examina-se as fundações do governo eletrônico, com suas classificações, identificações e tipos de interação. Em segundo, são trabalhadas as ideias e propostas do Governo Aberto. Em terceiro, o conceito de governo digital é explorado, e suas questões-chave. Finalmente, são traçados traços comparativos do processo evolutivo da transformação digital na administração pública.
Os primeiros serviços eletrônicos pelas administrações públicas datam do fim da década de 1980. Como políticas públicas dos governos, a inserção das TICS se deu a partir da década de 90, de modo gradual e em um aspecto global. De todo modo, a literatura relata que foi a disseminação do comércio eletrônico que impulsionou o desenvolvimento da concepção do governo eletrônico,7 que se referira ao uso das tecnologias pelos governos.8
Inicialmente, portanto, o governo eletrônico foi concebido sob duas perspectivas, uma mais restrita, e outra mais geral. Daí foram sendo desenvolvidos modos de interação e áreas de intervenção. Além disso, etapas e fases de implementação foram delimitadas a fim de facilitar a compreensão da extensão do uso. Finalmente, conceitos mais específicos como Governo 2.0 e governança eletrônica foram criados.
No seu sentido mais restrito, o governo eletrônico reside no uso das Tecnologias da Informação – TICS pelos governos.
Em uma perspectiva mais ampla, governo eletrônico pode ser definido como o uso de tecnologias da informação – TICS para: i) garantir acesso e entrega por parte do governo aos indivíduos de informações e uso de serviços; ii) possibilitar e implementar eficiência mediante a aplicação destes serviços no âmbito do governo; iii) cobrir larga escala de serviços; iv) transformar governos.9
Tradicionalmente, portanto, o governo eletrônico é compreendido como “o uso das TIC para melhorar a eficiência das agências governamentais e fornecer serviços governamentais on-line”.10
Como característica substancial, as políticas públicas do governo eletrônico residem no aprimoramento dos processos internos de trabalho. Não há aqui, contudo, um enfoque na alteração da lógica burocrática ou mesmo na mudança de valores no âmbito da gestão pública, na relação com cidadãos e no papel destes.11
A literatura aponta para diversificados tipos de interações no governo eletrônicos. O governo-a-governo (G2G), designa o compartilhamento e dados e a troca de informações electrónicas entre atores do setor público.12
O governo-a-negócio (G2B), se refere às transações comerciais e as compras do Estado, bem como as aquisições de serviços pelos governos. Aqui também estão incluídas as interações que decorrem de obrigações legais a que estão sujeitas organizações.13 A concepção de gestão business to businnes (B2B) trata das relações entre empresas marcadas liberdade contratual e a autonomia da vontade.14
O governo-a-cidadão (G2C), trata das iniciativas desenvolvidas para promover a interação das pessoas com a Administração Pública, enquanto consumidores e cidadãos.15 Decorre da concepção business to consumer (B2C) que trata das relações entre profissionais e consumidores em que a principal responsabilidade é assegurar a proteção dos consumidores.16
Ainda, adiciona-se um quarto tipo de interação, chamado de governo-a-empregado (G2E), proposto em analogia conceito de e-business. Trata-se de uma busca de interação entre os dois lados.17
O governo eletrônico também pode ser observado por meio das suas áreas de intervenção. São três grupos: i) e-administração, que designa o incremento dos processos relacionados ao funcionamento do poder político e da Administração Pública; ii) e-cidadãos e e-serviços: que reside na interligação entre cidadãos e empresas, mediante oferta de prestação de serviços; iii) e- sociedade: focado no desenvolvimento e arquitetura de interações externas ao Estado. Aqui são as questões relativas à participação pública e cidadania.18
A transformação para uma administração que usa das TICS, bem como o oferecimento de serviços, ocorre de maneira gradual. Assim, o governo eletrônico é dividido por fases ou etapas. A primeira, a Presencial ou informacional, corresponde na mais básica. É quando uma determinada instituição cria uma página na internet e traz algumas informações. Aqui, os serviços são restritos na presença online. Assim, não há uma necessidade de reengenharia de processos administrativos, pois trata apenas digitalizar as informações disponíveis e fornecê-las em uma página própria.19
A segunda fase é a da interação, em que serviços passam a ser prestados. Há ferramentas de busca, downloads de arquivos e formulários. Esta etapa inclui capacidades informativas e apresenta formas simples de navegação, exploração e interação com dados. São utilizadas informações via e-Mail, download de formulários ou bancos de dados governamentais, permitindo aos cidadãos realizar perguntas, fazer reclamações e/ou realizar pesquisas.20
A terceira etapa, a de transação, corresponde na interação entre governo e cidadão. Aqui, as capacidades transacionais conduzem transações online completas por meio de comunicação segura, e muitas vezes em tempo real, de duas vias com os clientes, tais como solicitação de permissões e licenças, declarações e pagamento de impostos, respostas a licitações públicas, e votação eletrônica.21 Aqui, pode-se exemplificar com a disposição online do imposto de renda brasileiro.
Finalmente, a quarta etapa, chamada de transformação, traz uma conexão substancial entre cidadãos e governo, que ocorre quando há uma integração completa dos sistemas. Isto é, há uma troca de informações entre as diversas entidades governamentais.22 Distintamente da fase de transação em que se tem um único sistema, na etapa da transformação os sistemas estão interligados. Denota-se uma conexão rápida entre órgãos, instituições e atores, correspondendo numa configuração “holística” da administração que se coloca inteiramente digitalizada e interconectada.
Em resumo, o gráfico abaixo sintetiza as etapas da transformação digital no governo eletrônico:
Essas fases são por vezes identificadas de acordo com o grau de avanço de um determinado governo na implementação do governo eletrônico. Elas podem também se referir à década de surgimento das tecnologias. De um modo ou de outro, são úteis e servem para identificar o estágio de evolução de um governo eletrônico.23
As Nações Unidas empregam essas etapas como modo de identificação do avanço no desenvolvimento da transformação digital de um dado país. Por meio de um indexador próprio, - o EGDI (Índice de desenvolvimento de governo eletrônico), é feita uma base de comparação e avaliação pela entidade, as quais são acomodadas em três eixos, TII- infraestrutura de telecomunicação; OSI - serviços online e HCI - capital humano. Todos esses elementos são examinados pela entidade.24
A primeira etapa na identificação de um governo eletrônico em um país corresponde na implementação de uma “administração eletrônica”. Esta fase começou a se desenvolver em meados dos anos 90. Esta etapa corresponde também aos países que se encontram com baixo ou médio Índice de Desenvolvimento do Governo Eletrônico (EGDI), e se materializa pela criação de páginas na internet e informações, para em um segundo momento, desmaterializar os serviços públicos.25
Já num segundo momento ocorre a mudança para uma administração mais digitalizada. Aqui se encontram países com EGDI de médio a alto, em que se observa a conversão para a administração com um governo de multicanais. Não se trata apenas de desmaterialização da administração pública, mas também da implementação de seus serviços em diferentes canais (sites, celulares, blogs, etc). É aqui que são criadas as primeiras formas de consulta eletrônica dos usuários.26
Finalmente, a terceira fase refere aos países que passaram para uma nova etapa de modernização destinada a abrir a administração totalmente aos usuários. Aqui estão os países dom EGDI muito alto e correspondem no que parte da literatura chama de Governo Aberto, que será melhor abordado posteriormente.27
Há distinções entre o governo eletrônico e a governança eletrônica, que traz como base as distinções entre governo e governança. Enquanto governo refere a uma estrutura vertical e hierárquica, esta corresponde em um fenômeno que envolve instituições e atores governamentais e não governamentais. Ou seja, a governança refere um sistema de ordenação, cujo alicerce reside nas relações interpessoais em uma concepção horizontal e não vertical.28
No caso da governança eletrônica, parte-se da concepção de que o conceito de governança é mais amplo que o de governo e assim pode envolver qualquer tipo de atividade relacionada a administração, como por exemplo, atividades de administração do governo ou entidades que possam finalidades de interesse público; interações entre administrações locais com órgãos e sociedade civil; processos onde autoridades definem decisões públicas; processos e instituições em que cidadãos, sociedade civil também participam.29
Fala-se em eixos da governança. São elas. 1- Gestão-burocracia; que exige uma transformação dos modos de gestão, e transforma relações entre o antigo e o novo que já não são mais necessárias; 2 - Administração – no desenvolvendo de serviços acessíveis por dispositivos móveis e que facilitam uso pelos usuários, aumentando a interatividade; 3- Democracia eletrônica, na interação das pessoas, no exercício da cidadania.30
O Governo 2.0 reside na proposta de integração de tecnologias Web 2.0 ao governo eletrônico na criação de oportunidades na melhora de qualidade dos serviços públicos ou mesmo na relação entre cidadãos e administração pública.31 Refere-se, assim, às incorporações de propriedades da web, como o conteúdo gerado pelo usuário, a entrega e uso de dados abertos e efeitos de rede.32
Tradicionalmente, alude-se ao Governo 2.0 como uma versão mais comunicativa e interativa do governo eletrônico. Há uma mudança de foco sobre os cidadãos, que passam a ser tratados como contribuintes ativos na gestão de assuntos públicos, o que pode ser realizado, especialmente, por meio de aplicativos, plataformas e redes sociais.33 A condição principal de um governo 2.0 reside na interação entre a administração e os cidadãos.
Para Tim O’Reilly, que foi quem cunhou a expressão, o Governo 2.0 significa mais que simples interação. O autor explica se trata de uma concepção de redescoberta do poder do projeto original da World Wide Web (a qual foi desenhada com a proposta de abertura, independência e conexões entre as pessoas). Assim, o Governo 2.0 seria um “governo redescoberto e reimaginado como se fosse a primeira vez”.34 Na sua proposta, portanto, o governo seria um verdadeiro mecanismo de ação coletiva.
Alude-se também ao governo 3.0 que já relaciona as novas tendências no governo conectado para alcançar um maior nível de integração através do uso da web semântica, da infraestrutura de informação pública e de todos os novos meios de comunicação.35
Alinhada às premissas do governo 2.0 está a proposta de governo aberto. Surge em janeiro de 2009, quando, em uma de suas primeiras ações administrativas, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, emite uma ordem executiva sobre transparência e governo aberto que orientou a Secretaria de Administração e Orçamento a adotar uma diretiva sobre transparência no governo. A circular estabeleceu a transparência, a participação e a colaboração como princípios fundamentais de um governo aberto.36
Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE, o Governo Aberto se refere à transparência das ações governamentais, a acessibilidade dos serviços e informações governamentais e a capacidade de resposta do governo a novas ideias, demandas e necessidades. Trata-se de eixos em que são compreendidos como promotores de benefícios para o governo e para as sociedades.37
Alega-se que a distinção do governo aberto com o eletrônico reside na mudança de valores agregada no primeiro, em um repensar dos governos, de seus procedimentos e de seus dogmas.38 Para tanto, indica-se que a conversão para um Governo Aberto exige mudanças: 1- culturais, com a administração reconhecendo o papel central do cidadão; 2- dos procedimentos oferecidos, se não é cômodo ao cidadão, deve ser modificado; 3- a da organização da administração; menos burocrática e mais eficiente e; 4- formas de relação que ocorram por meio do diálogo.39
A abertura dos governos não se materializa, portanto, apenas mediante implementação de políticas de transparência.40 Embora fundamentais, a construção de um Governo Aberto depende também de maior participação e colaboração dos atores públicos e privados. Assim, o objetivo é a combinação dos três requisitos para incremento na qualidade dos serviços públicos e tornar os governantes mais responsáveis.
Irene Bouhadana e William Gilles apontam para cinco desafios na construção de um Governo Aberto. A melhoria nos serviços públicos, o reforço da integridade pública, a melhoria na eficiência da gestão dos recursos públicos, a criação de comunicações mais seguras e finalmente, o reforço da responsabilidade social. Tratam-se de valores que devem ser tomados como requisitos fundamentais para um governo de “mente aberta”.41
Seguindo essa linha, os autores formulam dez princípios norteadores de um Governo Aberto. 1. O direito à transparência e ao acesso à informação pública; 2. O direito de reutilização da informação pública; 3. O direito dos cidadãos a participar na tomada de decisões públicas; 4. O direito à renovação democrática e ao pluralismo; 5. O direito à sinceridade e à confiança no próprio governo; 6. O direito a um governo responsável; 7. O direito à proteção dos atores de um governo aberto; 8. O direito a um governo aberto efetivo; 9. O direito à proporcionalidade e a justificação de exceções aos princípios de governo aberto; 10. O direito de divulgar a cultura de um governo aberto.42
Por sua vez, o Governo Aberto de Dados (OgD) trata da inclusão de dados e sua disponibilização ao domínio público. A ideia de dados abertos consiste em colocar a disposição das pessoas dados produzidos, coletados ou processados dentro de uma unidade pública e permitir sua reutilização para fins privados ou comerciais. Os dados abertos se inscrevem dentro do movimento de transparência administrativa e responde também às preocupações econômicas de liberar dados públicos para inovação.43
Os dados podem coletados mediante observação de uma determinada população, incluindo dados demográficos e outros de pesquisa. Podem ser também dados coletados por agências governamentais sobre suas operações, incluindo-se aquelas relativas a transações de serviços públicos em setores como saúde, serviços sociais, justiça e educação. A abertura de dados possui como características essenciais deixar a disposição os dados, serem eles gratuitos e a possibilidade do seu livre uso.44
Assim, dados abertos e disponíveis no domínio público podem estar em vários formatos. Em essência os OgD são dados governamentais, mas nem todos os dados governamentais são OgD.45
A OCDE relata que há um número crescente de governos adotando políticas para implementação de OgD. A instituição exemplifica com divulgação de dados recolhidos e produzidos por organizações públicas no desempenho das suas tarefas, ou ainda dados encomendados com fundos públicos. O escopo da OgD é para que seja divulgada em formatos em que seja possível a sua livre utilização, reutilização e distribuição. A divulgação de dados produzidos que têm relação com interesses públicos é crescente e ela possui amplo potencial no aumento da transparência, mas também na responsabilidade, integridade e desempenho público. O objetivo dos dados abertos corresponde na criação de valor econômico e social.47
Dois são os eixos do Governo Digital.48 Um deles são as novas tecnologias, e o outro é a nova mentalidade que ele traz.
Big Data, Internet das Coisas – IoT,49 inteligência artificial, e também cloud computing e blockchain são todas tecnologias disruptivas que impactam de modo profundo a sociedade e alteram também as estruturas da administração pública.50 Diz-se que com elas se inaugura uma nova era de políticas e tomada de decisões.
Isso porque elas conferem um processo de digitalização de ponta a ponta de modelos de negócios, desenvolvimento e prestação de serviços. Com a cloud computing (computação em nuvem), por exemplo, permite-se acesso “on-demand” a diversos recursos, sejam eles redes, armazenamento, aplicações ou serviços. Assim, os departamentos não são precisam hospedar e gerenciar sua própria infraestrutura de TICS, o que traz mais agilidade e redução de custos operacionais.51
Tendo em vista o impacto profundo e a possiblidade de uma nova engenharia da organização estatal, que pode utilizar dessas comodidades de um modo que altere sua própria estrutura, essas tecnologias colocam os modelos tradicionais de governo eletrônico “ultrapassados”.52 Emerge, daí, a necessidade da administração mudar o foco da automação e redução de custos (presente na proposta de governo eletrônico) para enfatizar na co-criação com cidadãos e empresas. Este novo estágio de amadurecimento das tecnologias e seu emprego pelos governos é o símbolo da transformação para o governo digital.
Para a OCDE esse novo estágio de maturidade das tecnologias digitais e seu emprego marca a mudança de paradigma de governo eletrônico para governo digital. O principal resultado desta mudança é que o governo digital não reside apenas em disponibilizar serviços on-line e alcançar eficiência operacional. Trata-se de abraçar uma nova concepção das TICS como um elemento central da transformação do setor público.53
Esta mudança tem como um modelo que seja orientado pelo e para o cidadão, com os princípios do governo aberto, o desbloqueio de dados, a inserção do “digital por padrão” (ideia que os serviços digitalizados devem ser os primeiros a estarem disponíveis para as pessoas) e a atenção aos desafios de segurança digital.54
Assim, a conversão do governo analógico para o digital constitui o uso otimizado dos canais de comunicação para incrementar o uso dos usuários e também na prestação de serviços. Usuários se transformam também em co-construtores dos serviços. Serviços e relações passam a ter como base a confiança. Trata-se de um processo de digitalização de ponta a ponta que coloca os métodos clássicos de governo eletrônicos como obsoletos, saindo-se da mera eficiência para a construção conjunta.55
Ao buscar fortalecer a coordenação institucional, o governo digital exige que sejam adotadas estratégias de longo prazo de políticas de Estado, para assegurar a implementação das estratégias.56 A OCDE alude a uma abordagem holística da transformação do governo digital. Isso significa o alinhamento de instituições, organizações, pessoas, tecnologia, dados e recursos para apoiar a mudança desejada dentro e fora do setor público para a geração de valor público.57
Não se trata, portanto, apenas de uma inovação tecnológica, mas de uma mudança de mentalidade. Essa é a razão da OCDE defender que o governo digital representa uma etapa seguinte e distinta do governo eletrônico. Com efeito, a entidade define governo digital como “o uso de tecnologias digitais, como parte integrante das estratégias de modernização dos governos, para criar valor público”.58
A OCDE ainda destaca os nove pilares para uma transformação visando um governo digital. São eles. 1. Visão, liderança, mentalidade: Fortalecer a liderança transformacional, mudança de mentalidades e capacidades digitais a nível individual; 2. estrutura institucional e regulatória integrado; por meio de uma estrutura normativa abrangente; 3. Modificar a cultura organizacional; 4. Promover o pensamento sistêmico e abordagens integradas para elaboração de políticas e prestação de serviços; 5. assegurar a gestão estratégica dos dados bem como acesso à informação por dados governamentais abertos; 6. Infraestrutura adequada e com preços acessíveis; 7. mobilização de recursos por meio de parcerias; 8. Aumento de capacidade das escolas de administração pública; 9. desenvolver capacidades na sociedade.59
O histórico da evolução da transformação digital na administração pública revela que houve uma modernização da nomenclatura e também no significado da inserção das TICS ao longo dos anos, como se nota do gráfico abaixo:
Como se nota, a transição digital é acompanhada por etapas, sendo o governo eletrônico a primeira delas e o “digital” como aquela a que se instala diante das novas tecnologias conhecidas como disruptivas. Por isso, há quem aponte o termo “transformação digital” como o mais adequado na descrição do impacto das novas tecnologias no âmbito da administração pública.61
O estudo evidenciou que as expressões governo 2.0, governo aberto e governo digital podem ser acomodados dentro de um núcleo comum, que enxerga para além da instrumentalização das TICS nos governos e na sua eficiência. Todas elas relacionam-se com uma mentalidade de colaboração entre atores da sociedade civil e os governos e fazem parte de uma mesma lógica de interação, interoperabilidade e conexão. Em estágios mais avançados, trata-se de uma ideia de co-criação, responsabilidades compartilhadas, inovação e criação de valor público, sendo esta a proposta de um governo digital.
Trata-se, com efeito, de valores que vão além da primeira concepção de governo eletrônico, erigida na década de 90 para o fim de acomodar o uso das TICS para promover uma melhor prestação de serviços. O governo digital, portanto, alinha-se e acompanha as tendências da evolução das tecnologias dentro de uma governança global. A distinção existe, não apenas no que concerne aos dispositivos, mas notadamente na inteligência de cada modelo.
É na constatação dessa nova inteligência que a OCDE entende o governo digital como uma etapa seguinte do governo eletrônico.62 O governo brasileiro também faz essa diferença e aponta que “a partir de 2015, o paradigma de “governo eletrônico” trouxe a informatização dos processos internos de trabalho (visão interna), evoluindo para o conceito de “governo digital”. Segundo a página do governo, a proposta é de tornar a prestação dos serviços mais simplificados e acessíveis por meio das tecnologias digitais.63
Por outro lado, em seu relatório sobre desenvolvimento digital dos Estados-membros, as Nações Unidas64 empregam governo eletrônico e digital de modo intercambiável. Segundo a instituição, não existe distinção formal entre os termos no âmbito acadêmico, ou nos de formuladores de políticas e mesmo profissionais. Além disso, a locução governo eletrônico já estaria incorporada e institucionalizada nas políticas e estratégias dos governos, além de ser o termo mais recorrente em pesquisas acadêmicas.
Em posicionamento semelhante, o Banco Mundial compreende o governo eletrônico como o uso das TICS para transformar as relações com cidadãos, empresas e outros ramos do governo.65 Deste modo, pode-se notar que, ainda quando instituições referem ao termo governo eletrônico, o fazem incorporando os elementos daquilo que parte da academia e entidades entendem como governo digital.
O exame sobre a transformação digital no âmbito da administração pública revela que o governo eletrônico reside na primeira definição sobre o uso e impacto das TICS pelos governos. Ao longo dos anos, com a inserção cada vez mais profunda de novos e disruptivos aparatos tecnológicos, parte da literatura optou por “atualizar” a nomenclatura, como meio de identificar e demonstrar importantes modificações no que concerne não apenas sobre as tecnologias utilizadas, mas também na forma de se relacionar dos governos com os cidadãos, no enfoque do seu uso e como as novas tecnologias trazem como consequência a necessidade de uma reestruturação completa da administração.
O governo aberto trouxe as premissas de eficiência, transparência, controle e participação, o que exige uma mudança de valores, enfatizando todas essas nuances no cidadão e não no governo. No entanto, é importante frisar que no âmbito da administração pública, a concepção de uma atuação mais horizontal, consensual, eficiente e eficaz não é recente. A Constitucionalização do direito administrativo traz essa nova leitura, que veio em reforço com o impacto da globalização como um todo.
Logo, as novas tecnologias e o seu uso se mostram como mais um elemento dentro dessa nova inteligência, que prega também por governos mais transparentes e abertos, elementos que vêm sendo mencionados na celeuma da perda de legitimidade democrática do aparelho estatal. A esse cenário acompanha também o incentivo para a participação social dos cidadãos, que saem da figura de serem meros consumidores, mas passam a serem instados a participar da vida cívica.
Trata-se de um movimento em conjunto que alude à modificação paradigmática da crise do modelo estatal e do pensamento moderno, ora acentuada pela revolução digital. Os impactos das tecnologias como Big Data66 e inteligência artificial são incluídos na concepção do governo digital.67 O digital decorre dessas tecnologias e também da perspectiva de modificar a relação do Estado com a sociedade, da busca pela criação de valor público, e em conjunto. O governo digital, portanto, reflete um amadurecimento no tratamento das tecnologias da informação no âmbito da administração pública.
Pode-se, portanto, aludir ao digital como um sistema mais evoluído. Por outro lado, considerando o escorço teórico e o emprego já consolidado do termo governo eletrônico, percebe-se que o governo digital também pode ser acomodado como mais uma etapa dentro do gênero “governo eletrônico”. Mais relevante, contudo, é ter conhecimento da razão pela qual se faz distinção entre os termos.
A OCDE é tão forte nessa defesa, pois acredita que apenas a instrumentalização dos dispositivos irá trazer uma eficiência e agilidade na prestação de serviços. Mas, mais ainda, que eles serão insuficientes se não implementados dentro da sua própria mentalidade. No Brasil, por exemplo, a desigualdade digital é um dos grandes e maiores problemas. Embora 70% da população tenha acesso a internet, esse número camufla desigualdade relevante da quantidade de pessoas e espectro social que não tem acesso às comodidades do digital.68
Para lidar com tudo isso, governos precisam mais que se autonomearem governos digitais. É preciso incorporar a racionalidade do que isso significa. A nomenclatura, no fim, pode ser apenas um simulacro, ou mesmo pouco relevante. O importante é o reconhecimento da evolução da transformação digital e da necessidade de sua incorporação em todos os seus elementos e formas. Como bem anotou Manuel Castells,69 o setor público é decisivo no desenvolvimento da sociedade em rede. Para tanto, cabe incluir a difusão de uma governança em um sistema de regulação que se adapte aos valores e necessidades da sociedade.
Como citar este artículo | How to cite this article: VIANA, Ana Cristina Aguilar. Transformação digital na administração pública: do governo eletrônico ao governo digital. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 8, n. 1, p. 115-13, ene. /jun. 2021. DOI 10.14409/redoeda.v8i1.10330
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ENA. E-administration et transition numérique de l’Etat. In: ENA – Centre de ressources et d’ingénierie documentaires. France: Bibliographie, décembre 2019.