Artículos
Recepción: 25 Enero 2021
Aprobación: 28 Abril 2022
DOI: https://doi.org/10.14409/redoeda.v8i1.9517
Resumo: A exploração de recursos minerários no Brasil é atividade que depende de análise técnica por parte da Agência Nacional de Mineração e, como ato derradeiro, de concessão por parte do Ministro de Minas e Energia. A decisão derradeira deste processo, todavia, pode ser pelo indeferimento do pedido de lavra, mediante análise e decisão discricionária do Ministro de Minas e Energia. Em que pese a discricionariedade de tal decisão, o indeferimento deverá ser fundamentado a partir de uma das duas hipóteses contidas no permissivo legal, ambas permeadas de conceitos abertos. A partir da reflexão apresentada neste artigo almeja-se explorar os limites da discricionariedade da administração pública no indeferimento de pedidos de concessão de lavra, de modo a viabilizar uma visualização com maior o alcance da discricionariedade do administrador para o caso de negativa ao pleito de concessão de lavra formulado pelo administrador.
Palavras-chave: mineração, discricionariedade, portaria de lavra, Ministério de Minas e Energia, concessão de lavra.
Abstract: The exploitation of mining resources in Brazil is an activity that depends on technical analysis by the National Mining Agency and, as a last act, on concession by the Minister of Mines and Energy. The final decision in this process, however, may be due to the rejection of the mining request, through analysis and discretionary decision by the Minister of Mines and Energy. In spite of the discretion of such a decision, the rejection must be based on one of the two hypotheses contained in the legal permissive, both permeated by open concepts. Based on the reflection presented in this article, the aim is to explore the limits of the discretion of the public administration in the rejection of mining concession requests, in order to enable a visualization with greater scope of the administrator's discretion in case of denial of the concession claim. of mining formulated by the administrator.
Keywords: mining, discretion, mining ordinance, Ministry of Mines and Energy, mining concession.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. O artigo 42 do Código de Mineração e a discricionariedade da Administração Pública; 3. Discricionariedade administrativa e motivação: limites da administração pública na decisão a respeito da concessão de lavra; 3.1. Reflexões sobre o bem público e sua prejudicialidade na análise de pleitos de concessão de outorga de lavra; 3.2. Reflexões sobre o conceito de interesse da União no âmbito da mineração; 4. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em que pese ser um tema diminutamente explorado pela doutrina nacional, o conteúdo a ser abordado é de relevante importância em razão da sua aplicação no campo prático e teórico. Deste modo, o presente artigo tem por objetivo analisar o problema acerca dos limites da discricionariedade conferida à Administração Pública, por intermédio do artigo 42 do decreto-lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967, o qual prevê duas hipóteses de recusa à concessão de portaria de lavra a minerador que já tenha aprovado pela Agência Nacional de Mineração o competente Relatório Final de Pesquisa apresentado.
Almeja-se, por intermédio do presente artigo, investigar até que ponto se admite a subjetividade do agente público no que diz respeito à elaboração do juízo de conveniência e oportunidade que resultará na concessão ou na recusa de outorga de lavra, o qual se manifesta na realidade jurídica na forma ato administrativo discricionário. Ademais, busca-se também demonstrar se há – e, neste caso, quais são – os critérios que balizam a referida análise.
Diante expressão “a juízo do governo” – prevista no referido artigo 42 – deparamo-nos com a presença de certo grau de insegurança jurídica em razão da ausência de norma disciplinadora que defina os limites da discricionariedade que, por sua vez, atenta a duas circunstâncias: a) “se a lavra for considerada prejudicial ao bem público ou”; b) “(se a lavra) comprometer interesses que superem a utilidade da exploração industrial”. Percebe-se que, nestas duas hipóteses – em que pode haver recusa de portaria de lavra –, o artigo 42 se mostra com a viabilidade de um entendimento dilatado, pois se vale de termos abertos e indeterminados, uma vez que o legislador não definiu quais “interesses” são esses, tampouco a que “bem público” se refere.
Por via de consequência, ao deixar uma ampla margem à interpretação do “juízo” – uma interpretação extensiva, portanto – o legislador ampliou formidavelmente o campo em que se verifica o mérito administrativo o qual embasa a decisão discricionária do agente público. Para Celso Antônio Bandeira de Mello "mérito é o campo de liberdade suposto na lei que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissível perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada."1
Noutro quadrante, para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o “mérito do ato administrativo, ou mérito administrativo é o conteúdo das considerações discricionárias da Administração quanto à oportunidade e conveniência de praticá-lo, ou seja, é o resultado do exercício da discricionariedade”.2
Diante deste quadro de subjetividade – em que se constata a indeterminação semântica dos referidos conceitos terminológicos trazidos pelo artigo 42 – verifica-se a abertura de um vasto campo para interpretações equivocadas e arbitrárias que podem confrontar princípios elementares da Administração Pública, os quais se encontram elencados no artigo 37 da Constituição Federal, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Nesse mesmo sentido, ao partir do pressuposto de que o interesse a que se refere o artigo 42 do Código de Mineração seja o interesse público, temos que a indeterminação semântica dos conceitos amplia em demasia o campo de análise do mérito administrativo do qual podem resultar decisões equivocadas ou arbitrárias que não necessariamente atendam ao bem comum, entendido aqui como interesse público.3
Na hipótese da perversão conceitual que culmine no afastamento da efetivação real do interesse público a que a Administração objetiva, temos, comumente, uma consequente agressão também ao direito à lavra que o minerador possuí, repercutindo numa afronta ao próprio administrado que possui expectativa de direito consubstanciada na aprovação do Relatório Final de Pesquisa.
A respeito de tal possibilidade, Emerson Gabardo adverte acerca do problema da aplicação prática do princípio da supremacia do Interesse público. Segundo o doutrinador, o fato do referido princípio se manifestar “como argumento (ou álibi) de certos atos arbitrários não significa de modo algum a deturpação de sua essência ou sua força ética e normativa. O problema não é do princípio, mas de sua aplicação prática”4 Pode-se inferir deste entendimento doutrinário que é no ato de cognição avaliativa – ao sopesar os critérios de conveniência e oportunidade de determinada circunstância – que surge a ocasião em que se verifica a aplicação prática do referido princípio administrativo.
Ainda sob o mesmo prisma, figura-se que o ponto crítico converge no problema da interpretação do artigo 42 do Código de Mineração pelo agente público, vez que a referida norma apresenta margem suficiente para que, dentro da discricionariedade que lhe fora concedida, este cometa lesões ao bem público: seja por desvio de finalidade pública que objetiva questões de ordem estranha ao bem público, seja por abuso de poder por emprego de finalidade alheia a que a lei estabeleceu para o ato.
Desta feita, o artigo 42 do Código de Mineração desenha um cenário em que se verifica a formação do binômio Estado-indivíduo. De um lado, o Estado, representado na figura do Ministro de Minas e Energia, ao qual a lei outorga o poder-dever de analisar e elaborar o ato discricionário que resultará na recusa ou concessão de portaria lavra. Noutro quadrante, encontra-se o minerador, que por intermédio da livre iniciativa assume o risco do negócio de sua empresa ao explorar a atividade minerária.
Nota-se que ambos os polos se complementam e estabelecem uma relação simbiótica, onde o Estado, por intermédio de concessão, permite o aproveitamento do minério pelo minerador enquanto este beneficia a coletividade em razão do exercício de suas atividades.
2. O ARTIGO 42 DO CÓDIGO DE MINERAÇÃO E A DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O processo de obtenção de Portaria de Lavra – título que viabiliza a exploração de recursos minerários pelo regime da concessão – envolve o trâmite de processo administrativo que se inicia pelo pedido de autorização de pesquisa, transcorre ao longo da fase investigativa que, ao seu termo, culmina com a apresentação de relatório final de pesquisa, demonstrando – ou não – a viabilidade técnica e financeira da lavra pretendida.
A aprovação do relatório final de pesquisa representa o ato derradeiro dentro da fase de pesquisa, conferindo ao minerador relativa segurança a respeito da anuência da Agência Nacional de Mineração no que se refere aos dados apresentados com a finalidade de ulterior atividade exploratória.
Uma vez aprovado o relatório final de pesquisa, dispõe o titular do direito minerário do prazo de um ano para a apresentação de requerimento de lavra, sendo lícita, inclusive, a cessão do direito sobre o título minerário obtido ao longo de referido lapso temporal. A possibilidade expressamente prevista na redação do artigo 31 do Código de Mineração reforça, inclusive, o acréscimo de valor e liquidez que o título passa a fruir a partir da aprovação do relatório final de pesquisa, conferindo verdadeira expectativa de direito sobre o mesmo.
A aprovação do relatório final de pesquisa, no entanto, não implica na necessária outorga de portaria de lavra, por ao menos duas razões distintas.
A primeira delas remonta num aspecto absolutamente prático e que dispensa maiores reflexões: na medida em que o detentor do título minerário dispõe do prazo de um ano para a apresentação de requerimento de lavra, sua eventual inércia implica, necessariamente, na caducidade do título minerário.
De maior relevo para a presente discussão, há uma segunda hipótese que pode levar um alvará de pesquisa com relatório final aprovado a não dar origem a uma portaria de lavra, a qual consiste no eventual indeferimento do pleito de concessão em decorrência de a lavra ser considerada prejudicial ao bem público ou comprometer interesses que superem a utilidade da exploração industrial, a juízo do Governo, nos termos do artigo 42 do Código de Mineração.
Tais hipóteses se concatenam umbilicalmente ao modelo de prioridade adotado pelo ordenamento jurídico pátrio na exploração dos recursos contidos no subsolo.5
Em decorrência de disposição constitucional, a propriedade dos bens minerários existentes no subsolo brasileiro – sejam eles conhecidos ou não – é da União Federal, nos termos do artigo 176 da Carta Magna. Referida concepção se adequa a uma conceituação moderna e relacionada ao atendimento do interesse público no aproveitamento dos bens, assimilando-se ao próprio conceito de Estado e de soberania modernos.
A dominialidade da União, todavia, não conduz à conclusão de que a exploração destes recursos se dará pelo Estado. Pelo contrário, a regra estabelecida na própria Constituição é de que a pesquisa e lavra de recursos minerais deverão ser conduzidas por particulares, mediante a autorização ou concessão da União, observada a necessária satisfação do interesse público na decisão que versar sobre a autorização ou a exploração.
A realização de pesquisa e lavra mineral por particulares decorre de uma opção legislativa que, apesar da dominialidade dos recursos minerais pertencer à União, transfere a iniciativa de exploração dos mesmos aos particulares. Tal opção decorre do fato de os recursos minerais encontrarem-se dispersos ao longo de todo o território nacional, não se tendo ciência prévia acerca da efetiva localização dos mesmos, tampouco da quantidade e da qualidade de cada jazida existente.
Em síntese: apesar da dominialidade da União se estender irrestritamente sobre todos os recursos minerais existentes no subsolo brasileiro, não se tem ciência prévia acerca do quantum e da qualidade destes recursos.
Por conta do desconhecimento do Estado acerca da dimensão das jazidas existentes no subsolo nacional, o regime da prioridade na pesquisa minerária foi adotado, de modo a permitir, por intermédio de uma concessão pública, a realização de pesquisa e posterior exploração minerária dos recursos nacionais. Por intermédio do instituto da pesquisa – fase inicial de qualquer pretensão de exploração de recursos minerários por particulares – o Estado passa a ter, de forma documentada e procedimentalizada, ciência acerca da qualidade e da dimensão das jazidas existentes no interior do território nacional.
A realização de pesquisas pelos particulares permite ao Estado, simultaneamente, a obtenção de informações acerca da totalidade da extensão do solo e do subsolo brasileiros, na medida em que milhares de pesquisas conglobam um grande banco de dados, bem como o conhecimento específico de áreas de interesse de mineradores. A realização da pesquisa mineral, neste sentido, tem justamente o condão de nutrir o Estado com informações acerca da qualidade e da quantidade de recursos minerais existentes nas áreas abarcadas pelas poligonais de processos minerários,6 de modo a permitir que decisões adequadas à satisfação do interesse público sejam adotadas no manejo dos recursos minerais existentes.
O modelo de concessão de direitos minerários adotado pelo Brasil, neste sentido, revela duas facetas que, apesar de aparentemente opostas, se complementam e apontam para o viés que se mostra adequado à satisfação do interesse público. Ao mesmo tempo em que o modelo prioritário denota o evidente caráter nacionalista e protetivo dos recursos naturais existentes no território nacional, revela, igualmente, a expressa refuta ao modelo da acessão, que garantia direitos irrestritos à fruição dos recursos minerários ao proprietário do imóvel sob o qual se encontrassem recursos minerários.
De todo modo, o modelo de prioridade confere ao governo federal a prerrogativa de, diante de critérios de prejudicialidade ao bem público e comprometimento de interesses que superem a utilidade da exploração industrial, a juízo do governo, decidir pelo deferimento – ou não – do pedido de concessão de lavra.
O permissivo legal previsto no artigo 42 do Código de Mineração abre caminho para a tomada de decisão por parte do poder público que não encontra limitação pelo simples cumprimento de requisitos legais por parte do minerador, mas abre caminho para a verificação da conveniência e da oportunidade do ato, viabilizando a adoção de motivação própria para a tomada de decisão.
A inexistência de vinculação do governo federal é evidente, na medida em que se confere ao detentor do título minerário o direito ao percebimento de indenização no caso de indeferimento do pedido de concessão de lavra na segunda hipótese elencada no artigo 42 do Código de Mineração, evidenciando a relativa segurança de que goza o minerador e, concomitantemente, o grau de discricionariedade de que dispõe a administração pública.
Percebe-se, assim, que a inexistência de vinculação – e, consequentemente, a discricionariedade – da administração pública encontra respaldo no próprio texto legal, que expressamente ostenta vocábulos plurissignificativos, que ostentam conceitos jurídicos indeterminados e, assim, viabiliza ao governo federal a adoção de motivação discricionária para a tomada de decisão a respeito do pleito concessivo de lavra por parte do minerador.7
A plurissignificância das expressões empregadas pelo legislador, no entanto, leva a dúvidas quanto ao alcance da discricionariedade da administração pública. A discricionariedade confere alguma liberdade ao administrador na tomada de decisão, no entanto o vincula à observância de determinados critérios para a motivação do ato, oriundos da lei e/ou dos princípios a que se submete a administração.8
3. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E MOTIVAÇÃO: LIMITES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA DECISÃO A RESPEITO DA CONCESSÃO DE LAVRA
O surgimento da possibilidade de adoção de critérios discricionários para a tomada de decisão por parte da administração pública surgiu como uma espécie de resposta ao modelo da primeira fase do Estado de Direito, que eclodiu a partir da Revolução Francesa de 1789, viabilizando a adoção de razões de decidir por parte da administração pública que não fossem expressamente previstas em lei, ainda que dependessem de previsão legal para assim serem adotadas.9
A necessidade de maior liberdade na prática de atos administrativos por parte da administração pública reflete o desenvolvimento de uma sociedade que é cada vez mais complexa e, diante de demandas cada vez mais inovadoras e urgentes, demanda atuação do poder público de modo célere e adaptável.
A discricionariedade, no entanto, não representa uma liberdade absoluta, tampouco desprendida do Princípio da Legalidade. A discricionariedade do administrador é uma decorrência lógica do Princípio da Legalidade, na medida em que a própria discricionariedade somente pode ser reconhecida em decorrência de previsão legal neste sentido ou, alternativamente, omissão que viabilize a atuação discricionária – fruto, em ambos os casos, de uma norma abstrata.10
Como esclarece Alfredo Ruy Barbosa, “a concessão de lavra não envolve uma propriedade, por mais especial que possa ser, mas um direito real de exploração, estruturado administrativamente”.11 Há de se observar, portanto, que o Estado, ao exercer a função de gerenciador da atividade minerária por intermédio da Agência Nacional de Mineração, tem a prerrogativa de recusar ou conceder a portaria de lavra ao minerador.
Tal atribuição se amolda a um poder discricionário que tem em seu horizonte a observância de aspectos técnicos inerentes à própria atividade de exploração minerária que é pretendida pelo minerador. Tem-se, neste sentido, como relevante a perspectiva da doutrina italiana, encabeçada por Renato Alessi,12 que vislumbra a existência de atos discricionários que tocam única e exclusivamente critérios administrativos, enquanto outros atos discricionários são influenciados por aspectos que dizem respeito ao conhecimento técnico atinente ao tema.
Os atos discricionários que são influenciados por conhecimentos técnicos, por seu turno, podem ter tal interferência decorrente da preexistência de informações técnicas – que devem ser analisadas pela administração e, a partir daí, permitir a formação de um juízo de oportunidade e conveniência –, bem como podem decorrer da necessidade de a administração pública, a partir de seu crivo de conveniência e oportunidade, optar entre diferentes técnicas para a tomada de decisão que se conforme aos juízos de conveniência e oportunidade.13
No caso da decisão tomada pelo Ministro de Minas e Energia diante de um pleito de concessão de portaria de lavra, tem-se um ato discricionário que parte de informações de natureza eminentemente técnica – os relatórios finais de pesquisa, apresentados pelo próprio minerador – que deverão ser cotejadas com outras informações atinentes à localização do empreendimento, sua vizinhança, dinâmica econômica e social regional e nacional, dentre outros, para, a partir daí, formar-se o juízo de conveniência e oportunidade apto a conceder – ou não – o pedido de expedição de portaria de lavra.
Por essa razão, uma interpretação equivocada ou arbitrária acerca do conteúdo semântico dos termos do artigo 42 para o julgamento do mérito administrativo do ato discricionário que venha resultar em recusa de portaria de lavra, pode não apenas atentar contra o direito do minerador – que se vê lesado por não exercer a atividade minerária –, mas, também, macular o interesse público, vez que o Estado perde uma oportunidade de arrecadar receita por meio do recolhimento de tributos, promover o desenvolvimento regional e obter maior conhecimento geológico do subsolo daquela área.
Tais conteúdos viabilizam uma análise sob a perspectiva técnica, todavia não representam uma absoluta fiabilidade a conceitos perfeitamente delineados e imutáveis. A este respeito, faz-se curial a distinção entre apuração técnica e discricionariedade técnica, conferindo à apuração técnica uma integral submissão da administração pública aos critérios técnicos que dizem respeito à tomada de decisão, enquanto que a discricionariedade técnica conferiria ao administrador a possibilidade de, a partir de critérios técnicos, alcançar conclusões que partem de regras técnico-científicas que não são absolutas, mas opináveis.14
Constata-se, portanto, que o legislador, ao redigir o artigo 42 do Código de Mineração, outorgou à administração pública capacidade discricionária para que esta atue com liberdade dentro de uma margem fixa, observando conceitos determinados em lei cotejados a aspectos técnicos oriundos do próprio relatório final de pesquisa apresentado pelo minerador. Como pode se verificar, o ato discricionário não confere liberdade absoluta ao executor em razão de que também ostenta outra parte que se revela de natureza vinculada, que em tese busca nortear o juízo de valor que redundará no ato discricionário.
Contudo, o que se verifica é que a capacidade discricionária no caso do artigo 42 se estende também como uma prerrogativa implícita à inteligência da norma, que outorga ao executor capacidade para definir conceitos abstratos em razão de ausência de definição/restrição legal aplicável ao âmbito técnico. A norma não define quais critérios de natureza técnica devem ser observados para nortear a tomada de decisão pela autoridade, ainda que estejam envolvidos critérios que dizem respeito a aspectos técnicos da mineração e sua eventual prejudicialidade ao bem público ou incompatibilidade com interesses que superem seu proveito.
Desse modo, ainda com observância ao teor do artigo 42 do Código Minerário, tem-se que a mera possibilidade da ocorrência de uma arbitrariedade dentro dos alargados limites discricionários já é em si um problema que necessita solução. A indeterminação semântica e terminológica ostentada pelo referido artigo pode ensejar um problema hermenêutico e um consequente equívoco ou arbitrariedade estatal diante de um juízo de valor imbuído de vícios.
Na mesma toada, revela-se um segundo problema em decorrência da impossibilidade quase que absoluta de um controle judicial do mérito do ato administrativo, em razão do princípio da não interferência dos poderes, ainda que seja constatada uma discricionariedade arbitrária.
Dentro deste contexto, importa frisar que, se de um lado se revela a liberdade discricionária, por outro, se manifesta o princípio da motivação dos atos administrativos o qual impõe ao administrador a obrigatoriedade de motivar os atos que emitir.15
Faz-se necessário, assim, compreender o núcleo semântico das duas hipóteses aventadas no artigo 42 do Código de Mineração, de modo a viabilizar a definição, com precisão, dos limites da discricionariedade do Ministro de Minas e Energia no eventual indeferimento do pedido de concessão de lavra formulado pelo detentor de relatório final de pesquisa aprovado.
3.1 REFLEXÕES SOBRE O BEM PÚBLICO E SUA PREJUDICIALIDADE NA ANÁLISE DE PLEITOS DE CONCESSÃO DE OUTORGA DE LAVRA
O artigo 42 que traz em seu bojo duas condicionais que poderão redundar na recusa da concessão de portaria de lavra pelo Ministro de Minas e Energia. Atendo-se ao primeiro núcleo, tem-se que o mesmo nos traz a informação de que “se a lavra for considerada prejudicial ao bem público”, aí, então, haverá a recusa ao pedido de concessão da portaria de lavra formulado pelo interessado.
Inicialmente, cumpre esclarecer que o conceito de bem público não se confunde com o de bem estatal, porquanto este é definido como o conjunto universo dos bens do Estado, enquanto aquele pode ser entendido como bens que se caracterizam por ostentar natureza estatal e pública concomitantemente.
No plano ontológico a análise da primeira condicional pelo Ministro de Minas e Energia pode ocorrer ao se verificar incompatibilidades prática de atividades, ou seja, quando se constata a existência de duas ou mais atividades conflitantes entre si no plano material, como, por exemplo a implantação de uma rede de energia e de uma jazida em exploração, ou a ser explorada, que se mostram inviáveis em conjunto.
Em razão das duas atividades apresentarem assento constitucional, deflagrando-se incompatibilidade entre elas, cabe à Administração Pública estabelecer qual das atividades deverá prevalecer, levando em consideração o bem público a ser resguardado e, efetivamente, os aspectos técnicos inerentes a cada uma das atividades em conflito.16
Ao se restringir a análise da Administração Pública ao prisma econômico, pode-se exigir uma escolha entre a prevalência de um determinado bem público em detrimento de outro. Neste caso, o indeferimento do pedido de concessão de portaria de lavra teria como finalidade, diante de dados técnicos fornecidos à administração pública, avaliar qual bem forneceria maior benefício sob a perspectiva econômica à administração pública, o que poderia ser levado a cabo a partir de uma lógica utilitarista simples.
A avaliação da prejudicialidade do bem público, todavia, nem sempre se restringe ao âmbito econômico. Sói ocorrer que outros fatores devam ser levados em consideração para a tomada de tal decisão, como a prejudicialidade sob a perspectiva de aspectos sociais, culturais, regionais ou ambientais. Nestes casos, caberá à Administração Pública verificar a existência de interferências sob o aspecto técnico da lavra que possam prejudicar bens públicos de quilate relevante ao interesse público.
O traço distintivo de maior relevo entre a discricionariedade pura e a discricionariedade técnica se faz perceber justamente nesta circunstância. Na medida em que a discricionariedade técnica adiciona aspectos de ordem técnico-científica – e, portanto, consideravelmente menos abstratos que o mero juízo de conveniência e oportunidade puros –, gera à administração pública a obrigação de fundamentar sua decisão em tais aspectos.
Tem-se, assim, que não cabe à administração, em decisões que envolvam discricionariedade técnica, a adoção de justificativas de ordem política, mas tão somente de ordem técnica.17 Assim, mesmo na hipótese de análise de eventual prejudicialidade ao bem público que levem em consideração outros aspectos além do econômico, somente será lícito ao Ministro de Minas e Energia o indeferimento de pedido de outorga de concessão de lavra mediante justificativa que tenha embasamento de ordem técnica, e não exclusivamente política, limitando consideravelmente o campo de abrangência da discricionariedade da administração pública.
3.2 REFLEXÕES SOBRE O CONCEITO DE INTERESSE DA UNIÃO NO ÂMBITO DA MINERAÇÃO
A segunda hipótese prevista no artigo 42 do Código de Mineração que pode ensejar o indeferimento de pedido de concessão de lavra formulado por minerador que já ostente relatório final de pesquisa aprovado se dá quando da eventual verificação de comprometimento de interesses que superem a utilidade da exploração industrial.
Tal como na primeira hipótese que autoriza o indeferimento de pedido de concessão de outorga de lavra, abordada no tópico anterior, tem-se presente uma circunstância em que o Ministro de Minas e Energia deve, a partir de aspectos técnicos indicados no relatório final de pesquisa, verificar a eventual existência de comprometimento de interesses da União nos seus mais variados espectros que possam, eventualmente, superar o próprio interesse na exploração de recursos minerais.
A esse respeito, o Parecer PROGE nº 500/2008-FMM-LBTL-MP-SDM-JA nos informa que “[…] a definição do interesse preponderante na área será realizada “a juízo do governo”. Portanto, a análise desse requisito deverá ocorrer caso a caso, considerando os diversos interesses, valores e fatores envolvidos, com as prioridades da política governamental, o impacto no âmbito das comunidades regionais, a rigidez locacional própria da jazida mineral, a demanda existente na área, dentre outros”
Em que pese a similaridade no que toca à forma como a discricionariedade poderá ser exercida – devendo balizar-se a partir de aspectos técnicos –, percebe-se a existência de um fator complicador para a segunda hipótese de indeferimento de pleito concessivo de lavra presente no artigo 42 do Código de Mineração: a existência de dados técnicos a respeito de outros interesses da União que não a própria exploração mineral.
Isto se dá porque a tomada de decisão a respeito da concessão (ou não) do direito de lavra compete ao Ministro de Minas e Energia, embasando-se tal análise, a priori, em dados técnicos atinentes aos trabalhos de exploração pretendidos pelo minerador. Outros interesses da União – como o impacto nas comunidades regionais, a rigidez locacional, a demanda de mercado existente na área, dentre outros – podem não ser passíveis de análise técnica em decorrência da inexistência de informações, estudos ou dados suficientes.
Como se observa pela leitura do excerto destacado do Parecer PROGE nº 500/2008-FMM-LBTL-MP-SDM-JA, o juízo do segundo requisito do artigo 42 coteja a análise de aspectos técnicos presentes no relatório final de pesquisa com aspectos que muitas vezes apresentam conotação abstrata, fora do campo de possibilidade da quantificação, reduzindo a objetividade do juízo, portanto.
A simples falta de substrato técnico-científico, no entanto, não justifica a subversão do juízo de discricionariedade técnica que permeia a tomada de decisão do Ministro de Minas e Energia e o vincula para eventual indeferimento de pedido de concessão de portaria de lavra.
Disso decorre que a ausência de critérios técnicos e objetivos para balizar a decisão pode, repisa-se, perverter a letra lei e acarretar em prejuízo ao bem público frustrando os interesses nacionais por um eventual erro no sopesar das circunstancia técnicas e fáticas, acarretando no indevido indeferimento de pedido de outorga de lavra.
Tem-se, assim, que eventual decisão do Ministro de Minas e Energia no sentido de negar pedido de concessão de lavra formulado por minerador sob a justificativa de comprometimento de interesses que superem a utilidade da exploração mineral somente será lícita se referido comprometimento for mensurável a partir de dados técnicos não apenas atinentes à exploração mineral, mas, também, atinentes aos campos destes outros interesses. Admitir o contrário seria, de forma transversa, admitir a mitigação da discricionariedade técnica, convertida em discricionariedade pura e, portanto, política.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A redação do artigo 42 do Código de Mineração se mantem inalterada desde a sua publicação, no já distante ano de 1967. Após a promulgação de uma nova Constituição Federal, a edição de centenas de atos regulamentares no campo minerário e profundas alterações no próprio Código, a profundidade do juízo de discricionariedade permanece adstrita à breve redação de referido dispositivo.
Por mais abstratos e imprecisos que sejam os conceitos empregados pelo legislador, fazendo menção à prejudicialidade ao bem público e ao comprometimento de interesses que superem a utilidade da exploração mineral, conclui-se pela inexistência de qualquer espécie de “salvo-conduto” para a tomada de decisões arbitrárias ou mesmo pautadas na chamada discricionariedade pura, normalmente relacionada a aspectos políticos da administração pública.
Em uma ou em outra hipótese, a análise levada a cabo pelo Ministro de Minas e Energia para concessão ou não da portaria de lavra deverá levar em consideração aspectos técnicos, tanto atinentes à própria lavra – produzidos pelo minerador no bojo da própria Agência Nacional de Mineração, na hipótese de prejudicialidade ao bem público – quanto aqueles atinentes a outros aspectos de interesse público – no caso de eventual indeferimento em decorrência de comprometimento de interesses que superem a utilidade da exploração mineral.
A clara definição dos limites da discricionariedade não apenas se coaduna com a mens legis do artigo 42 do Código de Mineração, como garante ao interessado a previsibilidade esperada e almejada, na medida em que permite, desde as fases iniciais dos trabalhos de pesquisa mineral, mensurar os riscos envolvidos na atividade e a probabilidade de obtenção da outorga para a exploração mineral.
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Notas
Notas de autor
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Como citar este artículo | How to cite this article: DAMMSKI, Luiz Paulo; NADER, Bruno Correa dos Santos. Âmbito de incidência da discricionariedade do administrador no indeferimento do direito de lavra: considerações sobre os conceitos indeterminados do artigo 42 do Código de Mineração. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 8, n. 1, p. 255-269, ene. /jun. 2021. DOI 10.14409/redoeda.v8i1.9517