Autonomia municipal no Estado federal brasileiro

Autonomia municipal no Estado federal brasileiro

Municipal autonomy in Brazilian federal state

Regina Maria Macedo Nery Ferrari
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Autonomia municipal no Estado federal brasileiro

Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 1, núm. 2, 2014

Universidad Nacional del Litoral

Comunicado científico: A busca pelos esquecidos: contribuições e desafios do Plano "Brasil sem Miséria" (Decreto Presidencial n. 7.492/2011) para a ressignificação do Pacto Federativo Nacional

Recepção: 28 Março 2014

Aprovação: 17 Abril 2014

Resumo: Uma especialidade própria do Estado Federal é a que se refere a um necessário equilíbrio entre as entidades que o compõem. Esse atributo delicado tem se mostrado de difícil acesso no federalismo como um todo e no Brasil tem propiciado a criação de regiões de desenvolvimento entre os Estados Membros e de Regiões Metropolitanas entre Municípios, sem que isto venha a comprometer a divisão de competências prevista constitucionalmente, ou seja, a autonomia necessária para a existência como entidade federativa parcial. A Lei Fundamental brasileira reforçou a capacidade da União para regular a maioria das atuações do Poder Público, o que acarretou o esvaziamento do poder de decisão da municipalidade e seu distanciamento do interesse local, sendo o Município mero executor das políticas determinadas pelo governo federal.

Palavras-chave: autonomia municipal, federalismo, Estado federal, Direito Constitucional brasileiro.

Abstract: A specialty of the Federal State itself is referred to a necessary balance between its component entities. This delicate attribute has been shown to be difficult to access on federalism as a whole and in Brazil it has propitiated the creation of regions of development among the Member States and metropolitan areas between Municipalities, without compromising the division of competences provided by the Constitution, i.e., the autonomy necessary for existence as partial federal entity. The Brazilian Fundamental law strengthened the Union's capacity to regulate most of the performances of the public authorities, which led to the emptying of the decision-making power of the municipality and to distancing from its local interest, turning the Municipality into a simple executor of the policies determined by federal government.

Keywords: municipal autonomy, federalism, Federal State, Brazilian constitutional law.

Sumário:

1. Introdução; 2. Autonomia do Município brasileiro; 3. Distrito Municipal; 4. Referências.

1. Introdução

O art. 1 da Constituição Federal de 1988 proclamou que "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito" e o artigo 18 reza que: "A organização político administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição".

Ao declarar que as nossas entidades federativas são dotadas de autonomia, quis dizer que, dentro de um rol de competências previstas constitucionalmente, possuem a capacidade de gerir os seus próprios negócios, observando os princípios previstos na Constituição Federal e Estadual.

A Federação brasileira deriva de um Estado unitário que se descentralizou, característica originária, própria do federalismo por desagregação e, se inicialmente foi do tipo dual, ou seja, correspondente à separação clássica de competências entre os entes federativos parciais, conforme o modelo utilizado nos Estados Unidos da América do Norte adota, após a Primeira Guerra Mundial e com o surgimento do Estado de Bem-Estar ou Estado-providência, um tipo de federalismo cooperativo, o qual, segundo Paulo Bonavides, é propicio para, além da implantação de intuitos autoritários, permitir que a União se sobreponha às demais unidades federativas, sob o argumento da necessidade para enfrentar crises sociais, o que, não raramente, conduz a um Estado unitário descentralizado constitucionalmente. [1]

Outra especialidade própria do Estado Federal é a que se refere a um necessário equilíbrio entre as entidades que o compõem. Este atributo delicado tem se mostrado de difícil acesso no federalismo como um todo e, principalmente, no Brasil, o que tem propiciado a criação de regiões de desenvolvimento entre os Estados Membros e de Regiões Metropolitanas entre Municípios, sem que isto venha a comprometer a divisão de competências prevista constitucionalmente, ou seja, a autonomia necessária para a existência como entidade federativa parcial.

Tal realidade leva a adoção do Princípio da Subsidiariedade, o qual, conforme determina a Encíclica Centesimus Annus, de 1991, uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida de uma sociedade inferior, privando-a de suas competências, mas, ao contrário, deve apoiá-la para que consiga atingir a sua finalidade. Tal entendimento, se aplicado à estrutura do Estado Federal, significa dizer que só na hipótese do menor nível federativo, ou seja, do Município não poder cumprir, a contento, uma tarefa, é que deverá ser realizada pela entidade de porte superior, ou apoiá-la para que consiga atingir a sua finalidade.

É neste sentido a afirmação de Zimmermann, quando diz que "a intervenção da União somente é justificada quando a instância inferior não se encontra em condições suficientes à justa realização de um determinado interesse comum". [2] Como se sabe, para a existência de um Estado Federal é imprescindível a autonomia das entidades parciais que o formam, o que significa dizer: devem ter "a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios", dentro de um circulo de competências, prefixado pela Constituição Federal, na qualidade de instrumento de sua formação e mais, em virtude da especial descentralização, administrativa e política, que o caracteriza, proporciona a incidência de várias ordens jurídicas estatais sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas, o que impõem uma repartição rígida de competências entre suas diversas esferas, para que a ação estatal possa ser eficiente e que não haja desperdício de esforços e recursos.

Tal repartição consiste na atribuição, pela Constituição Federal, para cada ente federativo parcial, de um rol de competências que lhes sejam próprias, de modo que a a interferência, de um na esfera de outro, caracteriza uma violação de sua Lei Fundamental. Assim, o Estado Federal exige a existência de uma Suprema Corte com jurisdição nacional e de um mecanismo de intervenção federal, "como procedimento assecuratório da unidade física e da identidade jurídica da Federação". [3]

2. Autonomia do Município brasileiro

Como já registrado, o artigo 1º da Constituição Federal de 1988 ao adotar a Federação como a forma do Estado brasileiro, declara que corresponde à união indissolúvel dos Estados, Distrito Federal e Municípios e, na mesma toada, reconhece, no artigo 18 da CF, que "A organização político administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição"

Nos termos da atual Lei Fundamental do Estado Brasileiro o Município, na qualidade de entidade territorial político administrativa, é dotado de autonomia política, administrativa e financeira, com capacidade de auto-organização por meio de Cartas próprias, conforme previsto nos artigos 18, 29, 30, 34, VII, "c".

Portanto, sua autonomia se realiza mediante quatro capacidades: 1- capacidade de auto-organização, pela a elaboração de sua Lei Orgânica, verdadeira Constituição Municipal que determina a vida do Município observado os limites constitucionalmente previstos na Constituição Federal e Estadual; 2- capacidade de autogoverno, com a eletividade do Chefe do Executivo e dos membros do Legislativo Municipal; 3- capacidade normativa própria, pela elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva ou concorrente; 4- capacidade de auto-administração para manter e prestar serviços públicos de interesse local.

Neste passo, é importante registrar que a Constituição Federal anterior (1969) não desconheceu a autonomia municipal, mas delegou sua organização ao Estado Membro, que o fazia, de modo idêntico, para todos os situados em seu território.

Atualmente a autonomia do Município brasileiro é mais ampla do que a existente na Itália, porque a forma de Estado dos dois países é distinta, ou seja, a Itália adota um tipo de Estado Unitário, o que não impede uma descentralização administrativa e financeira, para possibilitar o reconhecimento de que a possui ao lado das Províncias e Regiões e do Estado (Poder Central). Porém, são criados e organizados, em modelos uniformes, pelas leis da República e delegadas pela Região (arts. 5, 114, 117, 118, 119).

A Constituição Brasileira, ao adotar a Federação, reconhece o Município como ente federativo parcial e lhe confere competências privativas, materiais e normativas, sendo que estas podem ser, também, suplementares ou complementares, ao lado das administrativas, comuns a todos os níveis federativos e previstas por meio da normas do tipo programática, o que significa dizer que dentro do espaço da predominância do interesse local, caberá ao Município, de acordo com os princípios constitucionais federais e estaduais, eleger a melhor maneira de atender, dentre as previstas no art. 23 da CF,as necessidades de seus cidadãos.

O contorno escolhido, pelo Legislador Constituinte originário, para determinar o espaço de competência exclusiva do Município, foi o da predominância do "interesse local", ao lado do interesse geral da União e Regional do Estado Membro, o que propicia dificuldade em determinar o seu horizonte, na medida em que seu universo, no sistema constitucional anterior, era reservado àquele que abrangia o seu "peculiar interesse". Entretanto, tal alteração não chegou ao ponto de levar a entender que possa existir isolamento entre os entes parciais da Federação. É com este significado que se trata como predominância e não como exclusividade de interesse

Conforme Hely Lopes Meirelles, "No que concerne às atribuições mínimas do Município, erigidas em princípios constitucionais garantidores de sua autonomia (...) constituem um verdadeiro direito público subjetivo, oponível ao próprio Estado (União), sendo inconstitucionais as leis que, de qualquer modo, o atingirem em sua essência". [4]

Quando se identifica um interesse tido como local, denota que tais assuntos são de competência privativa do Município, como, por exemplo, o definir seu Plano Diretor. Porém, a dificuldade ainda não está superada, pois, o que hoje se inclui em um determinado conceito, amanhã, considerando sua evolução, poderá ter outro núcleo. Por exemplo: o fornecimento de água e esgoto foi tido como algo de seu peculiar interesse, ou seja, de interesse local, mas, conforme se olhe o problema do saneamento básico, pode refletir maior dimensão, chegando até a nacional.

Integra a administração municipal, certamente, sob aspecto institucional ou funcional, tudo aquilo que é de interesse local, e assim, cabe ao Município definir e organizar seus órgãos administrativos, sua política funcional, uma vez respeitados os princípios previstos na Constituição Federal, que regem a vida dos servidores públicos.

Seu artigo 30 prevê alguns serviços públicos de competência privativa do Município, como, por exemplo, o transporte coletivo, além de outros mantidos e prestados com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, ou seja, os programas de educação infantil e de ensino fundamental, os serviços de atendimento à saúde da população, isto tudo ao lado da sua capacidade para promover, no que couber, o ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e ocupação do solo urbano, em um contexto de ampliação dos direitos sociais, no qual, as descentralizações das políticas públicas ampliam as atribuições do governo local.

É importante registrar a lição de Cretella Junior, quando ponderou, já em 1975, que: "bem pouco poderia fazer o Município que tivesse autonomia política e administrativa e, por outro lado, não dispusesse da respectiva autonomia financeira, que lhe possibilitasse a realização de obras, trabalhos públicos, bem como a organização, execução, funcionamento e manutenção dos serviços locais". [5]

A Constituição Federal de 1988, em um primeiro momento, elevou a receita municipal, não só pela arrecadação de tributos de sua competência, mas, especialmente, por transferências intergovernamentais. Entretanto, no período entre 1995 a 2002, surgiu uma nova etapa, onde se viu a União aumentar sua parcela financeira na partilha federativa, com a criação de tributos não partilháveis com os outros entes da Federação.

Entre 2003 e 2010 se vive a etapa definida como de "coordenação federativa", na qual o governo federal passa a ter mais controle sobre a instituição de políticas públicas, muito embora respeite as autonomias municipais e estaduais, na medida em que reconheceu que não estariam obrigadas a aderir às políticas por ela formuladas, o que, no fim, foi especialmente esvaziado, já que sua adesão seria a forma de receber parcela dos fundos, previstos para sua formulação.

As responsabilidades privativas dos Municípios, explícitas no art. 30, incluem: a) organizar e prestar, diretamente ou sob concessão ou permissão, os serviços de interesse local, incluindo o transporte coletivo, que tem caráter essencial; b) manter e prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e dos estados, os programas de educação infantil e de ensino fundamental; c) prestar os serviços de atendimento à saúde; d) promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; e) promover a proteção do patrimônio histórico e cultural.

Isto posto, necessário registrar que, ao lado das competências acima relacionadas, o Município possui, nos termos do artigo 23, responsabilidades comuns e compartilhadas com os outro entes que compõe a Federação brasileira, o que inclui, por exemplo: a) cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; b) proteger os documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais e os sítios arqueológicos; c) proporcionar os meios de acesso a cultura, à educação e à ciência;d) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar; e) promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais; f) promover programas de saneamento básico; g) combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, etc...

A cooperação entre as diversas esferas federativas no campo das competências administrativas, conforme previstas pelo Constituinte de 1988, necessita estar embasada no princípio da subsidiariedade e solidariedade, isto é, a atuação do governo federal e dos governos estaduais, deve prevalecer sobre os municipais, só quando estes não puderem executar, com eficiência, políticas públicas. Porém, a previsão de que ao lado de competências privativas, existem outras compartilhadas entre todos: União, Estados- Membros e Municípios, não se ateve à heterogeneidade existente entre nossas entidades municipais, de modo que poucas foram as que se beneficiaram e, a cooperação pretendida, passou a ser entendida como competição. [6]

Passa-se, então, a falar em ingovernabilidade dos Municípios, especialmente em razão das diversas edições de Emendas Constitucionais que alteraram o sistema tributário e propiciaram a recentralização das receitas em favor da União, com a instituição de tributos não partilháveis, tais como, as contribuições sociais, e, ao não preverem a possibilidade de transferências necessárias de recursos, vieram a interferir na receita municipal, pois, ainda, previram um maior comprometimento do governo municipal no atendimento de políticas públicas.

Tal concentração leva a aumentar, consideravelmente, o número de transferências voluntárias, ou seja, só para alguns, sob o argumento de que sua necessidade decorre do aumento de investimentos. Esta sistemática leva os não agraciados até o governo federal, a implorar e negociar a probabilidade de serem incluídos entre os seus beneficiários.

A verdade é que grande parte dos Municípios brasileiros depende da transferência de receitas, principalmente, do Fundo de Participação de Municípios distribuído de modo proporcional à sua população e à sua renda per capita, o que de certo modo favorece os de menor porte e localizados em regiões menos desenvolvidas, pois, sua autonomia financeira não é igual a dos de maior expressão populacional, nos quais a capacidade contributiva decorre do maior número de habitantes e da maior capacidade de desenvolvimento econômico.

Dos 5.565 Municípios brasileiros só, mais ou menos, 5% deles conta com uma população superior a 100 mil habitantes, o que permite dizer que poucos têm condições de desfrutar, significativamente, de sua autonomia financeira, quando existe a condição de aumento de suas receitas em decorrência do maior volume de arrecadação de tributos.

Assim, no Brasil existem formas distintas de exercício da autonomia municipal. Nas Regiões Sul e Sudeste "ela se manifesta por meio do protagonismo dos atores locais, interessados em comandar o processo de formulação de políticas em face das demandas territoriais locais". Nas demais regiões, a ?municipalização? faz parte da estratégia de distribuir serviços que se tornam direitos sociais, como forma de alcançar um padrão mínimo dos direitos de cidadania, tais como: saúde, educação e moradia. [7]

Cabe ressaltar que, frente a tal situação, nosso Município não deixa de ser ente federativo dotado de autonomia, pois continua com competências próprias previstas na Constituição Federal, mas, expõem o problema da concretização da norma constitucional, analisado por Friedrich Müller, ao afirmar que sua normatividade é obtida no decurso de sua consolidação, e que, esta, significa a propriedade dinâmica de influenciar a realidade a ela relacionada (normatividade concreta) que, por sua vez, é influenciada e estruturada pela realidade (normatividade materialmente determinada). [8]

Ensina Luhmann que entre o abstrato e o concreto sempre existe falta de identidade, propiciando caminhos diversos de concretização das normas constitucionais e de múltiplas expectativas normativas, decorrente do texto. Em que pese, entre nós, a autonomia política estar assegurada pela eleição dos membros do Executivo e Legislativo; a autonomia legislativa, pela competência privativa e concorrente, além de sua capacidade de auto-organização pela elaboração da Lei Orgânica e sua autonomia financeira estar embasada no poder de instituir tributos, nossos Municípios, em sua maior parte, convive com a falta de infra-estrutura e com a escassez de recursos necessários para seu efetivo enquadramento constitucional. [9]

Como dito, tal realidade não implicou na perda da autonomia municipal, mas propiciou escancarar a dificuldade de tratar o assunto do desenvolvimento nacional de forma integrada, na medida em que nas Regiões, Sudeste e Sul existe a possibilidade de formulação de políticas locais para o atendimento de suas necessidade e ,nas demais regiões, isto não acontece, o que propicia aos que possuem maior capacidade financeira a serem os grandes beneficiários do reconhecimento do Município como ente federativo brasileiro.

Nesse contexto, a construção do Município, a partir do atual texto constitucional, fica, ainda, na dependência da sua concretização, em um processo de ampla expectativa no que tange ao reconhecimento de sua efetiva autonomia, pois, a Lei Fundamental brasileira, ao determinar o predomínio da capacidade da União para regular a grande maioria das competências legislativas municipal, (art. 22 e 24 da CF), esvaziou não só sua competência legislativa, mas seu poder de decisão, no que diz respeito à adoção de políticas públicas próprias.

3. Distrito Municipal

Assim como os Estados-membros da Federação brasileira, por determinação constitucional, dividem-se em Municípios, nossa Lei Fundamental autorizou aos Municípios dividirem-se em Distritos, prevendo, no art. 30, IV, que a eles compete criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual.

Distritos são circunscrições administrativas, que não possuem personalidade jurídica, sendo, nada mais, nada menos, do que unidades administrativas do Município, fruto da técnica da desconcentração, isto porque, não adquirem personalidade jurídica diferente da entidade municipal onde estão localizados, nem autonomia política ou financeira, em nome próprio.

Mas é oportuno perguntar: considerando sua autonomia e o fato de serem competentes para criar, organizar e suprimir distritos, o que pode ser objeto da legislação estadual?

Primeiramente, realizando um raciocínio interpretativo de modo a respeitar a harmonia e unidade da Federação, é possível aceitar que a lei estadual possa estabelecer condições para unificar os critérios a serem seguidos por todos os que integram um mesmo Estado-membro, mas, sua efetiva criação, organização e supressão, serão feitas por meio de lei municipal, que é a competente para tratar de assunto ligado, prioritariamente, ao interesse local, variável segundo suas peculiaridades.

Não é possível ignorar que essa lei estadual é perigosa, pois, além de poder adentrar a esfera da autonomia municipal e caracterizar uma inconstitucionalidade, ficará sem sentido se vier apenas assegurá-la.

Nos grandes Municípios, a divisão administrativa pode, ainda, comportar a existência de subdistritos, que, também, não têm personalidade jurídica, e, como parte de seu território, encontram-se a eles subordinados.

Como visto a efetiva realização de nosso Estado Democrático de Direito só estará assegurada no momento em que a população tenha o exercício de sua cidadania decorrente do atendimento de suas necessidades pela entidade municipal, que é a mais importante de nossa Federação, por ser a que lhe está mais próxima.

O STF, reconhecendo a realidade brasileira, por unanimidade, resolveu no sentido da responsabilidade solidária entre, União, Estados e Municípios, no que tange aos serviços de saúde, quando na STA 175, de 17.03.2010, sob a relatoria do Min. Gilmar Mendes, decidiu: "A competência comum dos entes da Federação para cuidar da saúde consta do artigo 23, II da Constituição. União, estados. Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa do SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal".

Aqui se deve registrar que se a solidariedade é importante na hipótese de atendimento de uma necessidade individual, também é fundamental quando se trata de ações coletivas, que podem evitar o desequilíbrio entre os entes federativos e onerar em demasia o Município.

É impossível esquecer que a Lei Fundamental brasileira reforçou, nos artigos 22 e 24, a capacidade da União para regular a maioria das atuações do Poder Público, o que acarreta, também, o esvaziamento do poder de decisão da municipalidade e, conseqüentemente, seu distanciamento do interesse local, tendo em vista que a tomada de decisão decorre de pessoa jurídica que, em um país como o Brasil, não consegue vivenciar, efetivamente, as necessidades dos munícipes e se vê que o poder público municipal e a sociedade local, pouco ou nada interferem na definição de políticas públicas, sendo o Município um mero executor daquelas políticas determinadas pelo governo federal.

Passa-se, então, a entender a diferença de falar em "prefeiturização" e municipalização, ou seja, o repassar aos Municípios os encargos para a concretização de políticas públicas, caracteriza o que, nos dias de hoje, se pretende como sua prefeiturização, o que é muito diferente da ideia que se faz da municipalização, que envolve a descentralização de recursos e competências para o exercício das funções de coordenação, planejamento, acompanhamento, controle e avaliação.

Tal sistemática não está imune a críticas, mas, infelizmente, isto não resolve o problema da autonomia do Município no Brasil, a qual deve, acima de tudo, estar colocada a serviço do cidadão e favorecer a participação popular na tomada de decisões, a qual necessita ser muito maior do que apenas dar ideias, incluindo, essencialmente, a possibilidade de se sentir solidariamente responsável pela atuação do Poder Público.

Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Municipal brasileiro. São Paulo: Universitária de Direito, 1975.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1964.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NEVES, Marcelo. Concretização Constitucional ?Versus? Controle dos Atos Municipais. In: GRAU, Eros Roberto Grau; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coords.). Estudos em Homenagem a José Afonso da Silva.São Paulo: Malheiros, 2003.

SANTOS, Angela Penalva dos. Autonomia Municipal no contexto federativo brasileiro. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 120, janeiro/junho 2011.

ZIMERMANN, Augusto Cotta. Teoria Geral do Federalismo Democrático. São Paulo: Lumen Juris, 1999.

Notas

[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 45.
[2] ZIMERMANN, Augusto Cotta. Teoria Geral do Federalismo Democrático. São Paulo: Lumen Juris, 1999. p. 212.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 832.
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1964. p. 49.
[5] CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Municipal brasileiro. São Paulo: Universitária de Direito, 1975. p. 93-94.
[6] SANTOS, Angela Penalva dos. Autonomia Municipal no contexto federativo brasileiro. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 120, janeiro/junho 2011. p.214.
[7] SANTOS, Angela Penalva dos. Autonomia Municipal no contexto federativo brasileiro. Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 120, janeiro/junho 2011. p.228.
[8] Citado por NEVES, Marcelo. Concretização Constitucional ?Versus? Controle dos Atos Municipais. In: GRAU, Eros Roberto Grau; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coords.). Estudos em Homenagem a José Afonso da Silva.São Paulo: Malheiros, 2003. p. 568.
[9] Citado por NEVES, Marcelo. Concretização Constitucional ?Versus? Controle dos Atos Municipais. In: GRAU, Eros Roberto Grau; CUNHA, Sérgio Sérvulo da (Coords.). Estudos em Homenagem a José Afonso da Silva.São Paulo: Malheiros, 2003. p. 572.

Autor notes

Professora aposentada de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná ? UFPR (Curitiba-PR, Brasil). Doutora em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora Geral e Professora do Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e do Instituto Paranaense de Direito Administrativo.
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