A natureza democrática e a construção social da verdade histórica e sua relação com o Estado, o regime militar e a sociedade civil: aspectos introdutórios
Recepção: 22 Março 2014
Aprovação: 28 Abril 2014
Resumo: O presente ensaio trata de uma abordagem preliminar da natureza democrática da verdade histórica e sua construção social, considerando o paradigma democrático deliberativo de inclusão dos cidadãos nos processos de exame e esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados no período do regime militar Brasileiro de 1964 a 1985 e objetiva, em linhas gerais, analisar as condições e possibilidades de participação social na Comissão da Verdade no Brasil. Para tanto, num primeiro momento será demonstrado os percursos e desafios da democracia representativa à participativa, bem como da democracia deliberativa, num segundo momento se verificará a importância da verdade histórica no âmbito dos regimes de força, bem como a memória como direito fundamental à uma nova democracia e por fim, se examinará as condições e possibilidades de participação social na Comissão da Verdade no Brasil.
Palavras-chave: democracia deliberativa, verdade, regime militar, Estado, sociedade.
Abstract: This essay is a preliminary approach of the democratic nature of the historical truth and its social construction, considering the deliberative democratic paradigm of inclusion of citizens in the process of examination and clarification of the acts of disappearances, abductions, killings and torture committed during the period of the Brazilian military regime from 1964 to 1985 and aims to broadly analyze the conditions and possibilities of social participation in the Truth Commission in Brazil. For this purpose, at first will be shown the journeys and challenges from the representative democracy to the participatory and deliberative democracy, in a second moment it will be analyzed the importance of historical truth under the power schemes, as well as memory as a fundamental right to a new democracy and finally, it will me examined the conditions and possibilities of social participation in the Truth Commission in Brazil.
Keywords: deliberative democracy, truth, military regime, State, society.
Palabras clave: algumas
1 Considerações Iniciais
Ao longo do processo de democratização da sociedade contemporânea consolidou-se, fundamentalmente, o sistema democrático representativo, no qual as atividades institucionais do Estado e ações políticas eram pouco questionadas. E mais tarde, a extensão da democratização se deu por meio de procedimentos que permitem a participação dos cidadãos.
Portanto propõe-se verificar esse percurso, da democracia representativa à participativa, bem como o "novo modelo" de democracia deliberativa de inclusão social nos processos políticos, para posteriormente verificar a importância da verdade histórica no âmbito dos regimes de força, bem como a memória como Direito Fundamental à uma nova Democracia e por fim, se analisar as condições e possibilidades de participação social na Comissão da Verdade no Brasil.
2 Matrizes da Democracia Contemporânea: algumas notas
Desde o século que decorre da idade da restauração até a primeira guerra mundial, a história da democracia coincide com a dos Estados representativos nos principais países europeus e com o desenvolvimento interno de cada um deles. Esses países conhecem o processo de democratização em duas linhas: o direito de voto até o sufrágio universal masculino e feminino, e o desenvolvimento do associacionismo político até a formação dos partidos políticos e o reconhecimento da sua função pública. [1]
Entretanto a consolidação da democracia representativa não impediu o retorno da democracia direta, pelo contrário, segundo Bobbio, ela jamais desapareceu, tendo sida mantida por grupos radicais que sempre consideraram a democracia representativa não como uma "inevitável adaptação do princípio da soberania popular às necessidades dos grandes Estados", mas a entendiam como uma condenação de desvio da ideia originária do governo "do povo, pelo povo e através do povo". [2]
Neste contexto, podemos dizer que a integração das democracias representativa e direta constitui o processo de alargamento da democracia na sociedade contemporânea. Apesar disso, o grande avanço da democratização ocorreu da passagem da democracia na esfera política para a democracia na esfera estatal, com o "exercício de procedimentos que permitiam a participação dos interessados nas deliberações de um corpo coletivo", onde o indivíduo é considerado como cidadão. [3]
Com a conquista do direito à participação política, o cidadão das democracias mais avançadas percebeu que a esfera política está na esfera da sociedade em seu conjunto e que não existe decisão política que não esteja relacionada ou determinada por aquilo que acontece na sociedade civil. [4]
Por assim dizer, só se conquista um direito de auto-desenvolvimento em uma "sociedade participativa", onde a sociedade "gere um sentido de eficácia política, nutra uma preocupação por problemas coletivos e contribua para a formação de um corpo de cidadãos conhecedores e capazes de ter um interesse contínuo pelo processo governamental." [5]
Contudo, com o processo de democratização nas sociedades ocidentais, observa-se, cada vez mais, que nas democracias liberais há uma inclinação para a democracia deliberativa, ou seja, a democracia participativa, entendida como "modelo de gestão política de interesses comuns centrada na possibilidade de participação social" [6] dá lugar à deliberativa, onde a participação é mais inclusiva e diversificada de atores nos processos políticos.
Assim a democracia deliberativa apresenta-se como alternativa, como "modelo ou processo de deliberação política caracterizada por um conjunto de pressupostos teórico-normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva" [7]. Aposta-se aqui numa democracia onde há possibilidade de uma efetiva "partilha de poder entre Estado e sociedade civil na formulação e decisão do interesse público," [8] pois a sociedade não deve ser mera expectadora, mas executora das ações políticas, onde seja possível a construção coletiva dessas políticas no que diz respeito a elaboração, implementação e controle das ações.
Para Habermas, o conceito de democracia deliberativa, que ele chama de "política deliberativa" só ganha referência quando:
fazermos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um auto-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca do equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. [9]
Esse conceito de democracia, sugerido por Habermas, "baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo." [10]
E pela possibilidade de alcançar resultados racionais de modo deliberativo, Habermas trata a política deliberativa como procedimentalista e afere que:
esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendimento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de que tais condições almejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação linguística. [11]
A partir dessas descrições do processo democrático fica claro o percurso para se chegar a uma conceituação normativa de Estado e Sociedade. Assim, para Habermas, o pressuposto para isso é que, como há conotações normativas, concebe-se "os direitos fundamentais e princípios do Estado de direito como uma resposta consequente a pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático." [12]
E tal modo não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas torna dependente da institucionalização dos procedimentos que lhe dizem respeito. Ou seja, "a formação de opinião que se dá de maneira informal desemboca em decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável." [13]
Destarte, o poder administrativamente disponível, conforme Habermas, modifica seu estado de mero agregado desde que:
seja retroalimentado por uma formação democrática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente o controle do poder político, mas que também o programe de uma maneira ou de outra. A despeito disso, o poder político só pode ?agir?. Ele é um sistema parcial especializado em decisões coletivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo social e que simulam opiniões influentes. [14]
Diante dessas premissas da democracia deliberativa sustentada por Habermas, observa-se que a sociedade civil é caracterizada como ponto importante na construção da esfera pública democrática, pois proporciona maior proximidade com os problemas e demandas dos cidadãos, questionando as ações públicas. Assim, entende-se que a democracia deliberativa apresenta-se como modelo de soberania dos cidadãos, constituindo-se, como promove Habermas, um processo de institucionalização de espaços de discussão pública, incumbindo a legitimidade de decidir aos cidadãos reunidos em espaços públicos.
Portanto, uma das formas de cidadania, encontra-se nesses espaços públicos, onde, além da legitimidade para decidir, encontram um espaço de troca de conhecimentos e interesses, estimulando a expressão e a formação da opinião pública. Deste modo, os cidadãos articulariam não somente suas preferências, mas as preferências e interesses de toda uma coletividade, fazendo com que, além das demandas majoritárias, as demandas minoritárias tenham oportunidade de questionamento de suas políticas públicas.
É este sentido que o trabalho procurará desenvolver brevemente o tema da natureza democrática da verdade histórica e sua construção social, considerando o paradigma democrático deliberativo de inclusão dos cidadãos nos processos de exame e esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados no período do regime militar brasileiro de 1964 a 1985.
3 Qual a Verdade e Memória do Regime Militar Brasileiro?
O regime militar brasileiro de 1964 a 1985 passou por três fases distintas: A primeira foi a do Golpe de Estado [15], em abril de 1964, e consolidação do novo regime. A segunda começou em dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), desdobrando-se nos chamados anos de chumbo, em que a repressão atingiu seu mais alto grau. A terceira foi marcada pela posse do general Ernesto Geisel, em 1974, ano em que, paradoxalmente, o desaparecimento de opositores se tornou rotina ?, iniciando-se então uma lenta abertura política que iria até o fim do período de exceção. [16]
Durante os 21 anos de regime de exceção foram feitas manifestações pela sociedade que demonstrava seu sentimento de oposição pelos mais diversos canais e com diferentes níveis de força. Já nas eleições de 1965, adversários do regime venceram a disputa para os governos estaduais de Minas Gerais e da Guanabara, levando os militares a decretar em outubro o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que eliminou o sistema partidário existente e forçou a introdução do bipartidarismo. [17]
Mais tarde o AI-5 foi considerado um verdadeiro "golpe dentro do golpe". O Congresso Nacional foi fechado, as cassações de mandatos foram retomadas, a imprensa passou a ser completamente censurada, foram suspensos os direitos individuais, inclusive o de habeas-corpus. O Conselho de Segurança Nacional teve seus poderes ampliados e a chamada Linha Dura assumiu o controle completo no interior do regime. Ações de guerrilha urbana, já iniciadas antes do AI-5, se avolumaram nitidamente até setembro de 1969. [18]
A Constituição de 1967, que Castello Branco havia introduzido em substituição à Carta de 1946, e que tentava legalizar um sistema carente de legitimidade constitucional, é trocada, por decreto, pela Constituição de 1969. Este último arremedo de Constituição, completamente inconstitucional à luz de qualquer abordagem apoiada nos princípios universais do Direito, nada mais fazia do que desdobrar as imposições contidas no draconiano AI-5. E este tinha abolido os direitos individuais, que representam o eixo central de todos os preceitos do constitucionalismo, bem como da própria democracia. [19]
Ernesto Geisel assumiu a Presidência da República em março de 1974, anunciando um projeto de distensão lenta, gradual e segura. Cinco anos depois, ao transmitir o posto ao general João Baptista Figueiredo, entregaria ao sucessor um regime ainda não democrático, mas onde a repressão política era menos acentuada. Estaria abolido o AI-5, a liberdade de imprensa vinha sendo devolvida aos poucos, as propostas de anistia eram debatidas abertamente e Golbery do Couto e Silva, que voltou então à primeira cena na vida política nacional, preparava uma proposta de reforma partidária extinguindo o bipartidarismo forçado.[ 20]
No entanto, é certo que nos três primeiros anos de Geisel, os interrogatórios mediante tortura e a eliminação física dos opositores políticos continuaram sendo rotina. O desaparecimento de presos políticos, que antes era apenas uma parcela das mortes ocorridas, torna-se regra predominante para que não ficasse estampada a contradição entre discurso de abertura e a repetição sistemática das velhas notas oficiais simulando atropelamentos, tentativas de fuga e falsos suicídios. [21]
No âmbito político, 1979 é o ano da Anistia, que foi aprovada em 28 de agosto, envolvendo questões polêmicas. Mesmo incorporando o conceito de crimes conexos para beneficiar, em tese, os agentes do Estado envolvidos na prática de torturas e assassinatos, a Lei de Anistia possibilitou o retorno de lideranças políticas que estavam exiladas, o que trouxe novo impulso ao processo de redemocratização. [22] Nesse mesmo ano, foi aprovada a reformulação política que deu origem ao sistema partidário em vigência até os dias de hoje.
Desde 1978, no entanto, vinham se repetindo atentados a bomba, invasões ou depredações de entidades de caráter oposicionista, jornais e mesmo bancas de revista, cuja autoria sempre foi interpretada como só podendo caber aos integrantes do aparelho de repressão.
Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição Federal, batizada como Constituição Cidadã que definiu o país como uma democracia representativa e participativa, fixando, no artigo 1º, que o Estado Democrático de Direito tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.
Ocorre que os anos passaram e o Brasil nunca foi informado oficialmente sobre o verdadeiro aparato de repressão, ainda hoje prevalecem incertezas e interpretações discordantes a respeito de quem foram os responsáveis, porque aconteceram, como aconteceram e onde aconteceram diversos sequestros, torturas, desaparecimentos e mortes de pessoas.
Apesar disso, pode-se afirmar que o Brasil tem plenas condições de trazer a verdade e a memória esses fatos para superar os desafios ainda restantes à efetivação de um robusto sistema de proteção aos Direitos Humanos.
Uma das formas de abordagem do debate sobre as violações de Direitos Humanos e Fundamentais decorrentes do regime militar é o da justiça de transição, que diz respeito à justiça dos fatos ocorridos nos períodos políticos e ao confronto entre justiça e verdade, dando destaque à investigação, documentação e divulgação pública dessas violações em busca de uma memória voltada à pacificação e reconciliação, nas palavras de Tietel: "La justicia transicional puede ser definida como la concepción de justicia asociada con períodos de cambio político, caracterizados por respuestas legales que tienen el objetivo de enfrentar los crímenes cometidos por regímenes represores anteriores" [23]
Conforme Teitel, a justiça transicional moderna se compõe de três fases:
Conforme Teitel, a justiça transicional moderna se compõe de três fases:
justicia transicional moderna se remontan a la Primera Guerra Mundial. Sin embargo, la justicia transicional comienza a ser entendida como extraordinária e internacional en el período de la posguerra después de 1945. La Guerra Fría da término al internacionalismo de esta primera fase, o fase de la posguerra, de la justicia transicional. La segunda fase o fase de la posguerra fría, se asocia con la ola de transiciones hacia la democracia y modernización que comenzó en 1989. Hacia finales del siglo XX, la política mundial se caracterizó por una aceleración en la resolución de conflictos y un persistente discurso por la justicia en el mundo del derecho y en la sociedad. La tercera fase, o estado estable, de la justicia transicional, está asociada con las condiciones contemporáneas de conflicto persistente que echan las bases para establecer como normal un derecho de la violencia.
A justiça de transição vai além da reparação e punição dos responsáveis pelos atos de tortura, sequestro, desaparecimento e mortes, pois busca a verdade e resgata a memória, gerando políticas públicas com a necessária opinião pública, visto que está relacionada com perdão e reconciliação.
Para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a verdade tiene sus raíces en el derecho internacional humanitario, particularmente en lo que se refiere al derecho de los familiares a conocer la suerte de las víctimas, y en la obligación de las partes en conflictos armados de buscar a los desaparecidos. [24]
E no que diz respeito à memória, Sylvas destaca que "El proceso de construcción de la memoria se relaciona con la identidad individual y colectiva, con la recuperación de un pasado histórico y con la defensa de los Derechos Humanos" [25]
E o objetivo principal da justiça transicional é de construir uma história alternativa dos abusos que ocorreram no passado em busca da verdade e da justiça, regatando a memória, através do mecanismo institucional que são as Comissões da Verdade. A Comissão da Verdade é um organismo oficial, criado por um governo nacional para investigar, documentar e tornar público abusos de direitos humanos em um país durante um período específico, [26]o que passamos a analisar.
4 A criação da Comissão da Verdade no Brasil e a participação social
Foram formadas Comissões da Verdade em diversos países, todos com apoio internacional, na busca em conhecer as causas das violências ocorridas nos períodos de ditadura, identificando os conflitos e os casos de violação dos Direitos Humanos. Um dos países que implementou a Comissão da Verdade foi a Argentina. Sua Comissão da Verdade foi batizada de Comissão Nacional para a Investigação sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que tinha como objetivo investigar as violações ocorridas no período de 1976 a 1983. A comissão criou o documento Nunca Mas e com as informações geradas por esta comissão a população argentina passou a conhecer a história das ocorrências do período militar. [27]
Em 2008 o governo brasileiro foi notificado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos do Relatório que decidiu sobre o "Caso Lund e outros vs. Brasil" [28]. O documento continha várias recomendações ao Estado. Tendo em vista que as informações sobre o cumprimento neste caso não foram satisfatórias, a demanda foi submetida à Corte, a qual decidiu o feito em 24 de novembro de 2010.
Uma das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi a de sugerir ao Brasil a implementação de uma Comissão da Verdade, a qual, conforme o documento em seu parágrafo 297, "pode contribuir para a construção e preservação da memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade". [29]
Apesar de já existir no Brasil uma comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, constituída por familiares e advogados das famílias das vítimas, que tentaram resgatar memórias e verdades, bem como a Comissão da Anistia, o Brasil ainda não conta com uma "Comissão da Verdade".
Porém este trabalho já foi iniciado. Foi sancionada em 18 de novembro de 2011 a Lei nº 12.528 que cria a Comissão Nacional da Verdade. De acordo com a lei, a comissão deverá examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946 até a data da promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria; recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional.
A explicação da ementa da Lei é a seguinte: A Comissão da Verdade busca efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. A Comissão da Verdade será integrada por 7 membros, designados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos. [30]
A Lei também enumera os objetivos da Comissão Nacional da Verdade, dentre os quais: promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional. [31]
A Lei prevê ainda as competências da Comissão Nacional da Verdade: para que possa executar os objetivos previstos, tais como a possibilidade de: requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo; convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados; promover audiências públicas. [32]
Sobre os dados e documentos sigilosos, a Lei dispõe que serão fornecidos à Comissão Nacional da Verdade e não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo, bem como possibilita à Comissão requerer ao Poder Judiciário acesso a informações, dados e documentos públicos ou privados necessários para o desempenho de suas atividades. Estabelece ainda que é dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade; dispõe também que as atividades da Comissão não terão caráter jurisdicional ou persecutório; dispõe que as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção de sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoas; dispõe que a Comissão poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos. [33]
A Lei dispõe ainda da criação de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramentos Superiores para exercício na Comissão Nacional da Verdade e que a Comissão terá prazo de 2 anos, contados da data de sua instalação, para conclusão do trabalho; estabelece que todo o acervo documental e de multimídia resultante da conclusão dos trabalhos da Comissão deverá ser encaminhado para o Arquivo Nacional para integrar o Projeto Memórias Reveladas. [34]
As críticas sobre o projeto são levantadas desde antes da aprovação na Câmara dos Deputados e essas sustentam-se nas questões atinentes ao número de membros da Comissão, bem como o prazo estabelecido de dois anos para a conclusão do trabalho.
No dia 21 de outubro do corrente ano a Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), Maria do Rosário, rebateu essas críticas ao projeto no debate sobre "Direito à Memória e à Verdade", promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A ministra admitiu que existem pontos polêmicos no projeto, como o relativo ao número de membros da comissão, considerado pequeno, e o que diz respeito ao período para elaboração de relatório conclusivo. Porém a ministra afirma que a escolha por sete membros foi feita para dar agilidade na tomada de decisões e alega que foram criados instrumentos fundamentais para auxiliar a Comissão, a exemplo da rede de Observatórios das Universidades, com o Ministério da Educação, bem como comitês autônomos, que buscarão informações e indicarão pessoas para serem ouvidas pela Comissão da Verdade. [35]
Para apoiar técnica e financeiramente a criação de Observatórios nas Universidades Brasileiras foi criado um Comitê de Gestão da Rede dos Observatórios do Direito à Verdade, à Memória e à Justiça das Universidades brasileiras [36] através da Portaria nº 1.516 da Secretaria de Direitos Humanos. Este órgão visa o assessoramento de políticas públicas no âmbito dos objetivos do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3). [37]
E ao Comitê de Gestão da Rede de Observatórios caberá:
I - auxiliar na implementação das diretrizes 24 e 25, do Eixo VI, do Plano Nacional de Direitos Humanos - PNDH 3 do Governo Federal; II - fomentar e assessorar a criação dos Observatórios junto às Universidades; III - promover a constituição de uma rede de cooperação física e virtual, entre estes Observatórios; IV - auxiliar os Observatórios e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República na gestão e publicidade do conhecimento para outros centros de ensino e pesquisa no país; V - facilitar a elaboração de metodologias e técnicas apropriadas à análise de documentos atinentes aos seus objetivos; VI - auxiliar na sistematização e avaliação de experiências correlatas à Verdade, Memória e Justiça para constituição de um banco de dados; VII - propor interlocuções com diferentes atores envolvidos com essa temática, visando à ampliação do conhecimento adquirido pelos Observatórios; e VIII - fomentar um debate público sobre a Verdade, Memória e Justiça através de ações diversas com a sociedade civil. [38]
No momento em que o Comitê de Gestão das Redes desses Observatórios objetiva propor interlocuções com diferentes atores envolvidos na temática, visando à ampliação do conhecimento e objetiva fomentar um debate público sobre a Verdade, Memória e Justiça através de ações diversas com a sociedade civil, percebe-se que pode haver um espaço de participação e deliberação democrática.
5 Considerações Finais
Ocorre que as tarefas da Comissão da Verdade não podem ser concebidas como temporalmente restritas ao período de dois anos ? que é o previsto para sua existência institucional -, mas alcança transcendência diferenciada, pois pretende imprimir na comunidade política em que vai operar transformações ilustradas sobre o custo e os riscos da Democracia. Isto significa sensibilizar mentes e corpos à defesa pró-ativa das liberdades públicas fundamentais, o que fará surgir, se espera, compromissos cívicos e republicanos para a mobilização permanente das instituições representativas e mesmo da cidadania ativa nacional em prol dos Direitos Humanos e Fundamentais.
Não se espera que a Comissão da Verdade consiga dar conta de analisar exaustivamente os mais de vinte e seis milhões de documentos hoje já existentes nos arquivos públicos sobre as lutas políticas só de 1964 a 1985; tampouco se imagina que vá conseguir dar respostas absolutas e completas para os temas de sua competência, por isto deve ser capaz de gerar redes de cooperação horizontal com o mais diverso conjunto de atores políticos e sociais, fazendo com que o maior número possível de pessoas se sinta responsável por esta empreitada, pois seguramente os tempos sombrios da violência de Estado tiveram suas noites duradouras também em face do permissivo silêncio de boa parte da população daqueles períodos.
Pois que então a Comissão da Verdade reeduque os nossos sentidos e a nossa resistência ao terror institucional do exercício do Poder; que deixe um legado de perenidade, verdade e memória redentoras, o que fará com que brasileiros e brasileiras continuem, com seus próprios passos e pulsos, dando continuidade ao trabalho desta Comissão, agora não mais tutelados pelo Estado, mas por vontades e consciências próprias, donos de seus destinos e vidas, jamais permitindo que lhes sejam usurpadas as liberdades novamente.
Em síntese, percebe-se que a Comissão da Verdade traz alguns espaços públicos de participação da sociedade, a exemplo dos Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades brasileiras. No momento em que o Comitê de Gestão das Redes desses Observatórios objetiva propor interlocuções com diferentes atores envolvidos na temática, visando à ampliação do conhecimento e objetiva fomentar um debate público sobre a Verdade, Memória e Justiça através de ações diversas com a sociedade civil. , percebe-se que há um espaço de participação e deliberação democrática, pois encontra-se aqui um espaço de troca de conhecimentos e interesses e articulações não somente sobre preferências individuais, mas sobre as preferências e interesses de toda uma coletividade, que relacionam-se com a construção da identidade da memória, com a recuperação de um passado histórico e com a defesa dos Direitos Humanos. Porém no caso do Brasil, só será possível essa verificação efetivamente após concluídos os trabalhos da Comissão e se forem cumpridos todos os seus objetivos. Mas de início já se observa que é possível promover um debate público sobre a Verdade, Memória e Justiça através de ações diversas com a sociedade civil.
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Notas
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