Resumo: Os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana assumiram, nas quadras do Estado Constitucional de Direito, um papel de destaque no âmbito do Direito Administrativo. Este ensaio tem por objetivo analisar as relações intrínsecas que esses temas apresentam nos dias atuais, enfatizando a importância de se tratar da Administração Pública sob a perspectiva do cidadão e da proteção dos direitos humanos.
Palavras-chave:direitos fundamentaisdireitos fundamentais,dignidade da pessoa humanadignidade da pessoa humana,Direito AdministrativoDireito Administrativo,direitos humanosdireitos humanos.
Abstract: Fundamental rights and human dignity took over, in the Constitutional State of law courts, a prominent role in the context of Administrative Law. This essay aims to analyze the intrinsic relations that these topics feature in the present days, emphasizing the importance of dealing with the Public Administration from the perspective of the citizen and human rights protection.
Keywords: fundamental rights, dignity of the human person, Administrative Law, human rights.
Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e direito administrativo
Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e direito administrativo
Human dignity, fundamental rights and administrative law
Recepção: 03 Março 2014
Aprovação: 08 Abril 2014
Já havia parcialmente cuidado deste tema em outra sede. [1] Com efeito, a constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana "modifica, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda a elaboração do Direito, porque ele é o elemento fundante da ordem constitucionalizada e posta na base do sistema. Logo, a dignidade da pessoa humana é princípio havido como superprincípio constitucional, aquele no qual se fundam todas as escolhas políticas estratificadas no modelo de Direito plasmado na formulação textual da Constituição." [2]
Luis Roberto Barroso observa, a esse respeito, que a "dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos." [3]
Ganha destaque o alargamento da Administração protetora, que desempenha atividades administrativas para promoção e efetivação dos direitos fundamentais.
A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito da proteção desses direitos, mas também de proteger esses direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros. Essa interpretação do Bundesverfassengsgericht empresta, sem dúvida, uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de ?adversário? (Gegner) para uma função de guardião desses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgarant). [4]
Os direitos fundamentais desempenham múltiplas funções no ordenamento constitucional, como bem adverte Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do Supremo Tribunal do Brasil: (i) comportam-se como direitos de defesa destinados a proteger posições subjetivas contra as ingerências do Poder Público seja pelo não impedimento da prática de determinado ato ou pela não intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições jurídicas; (ii) funcionam como normas de proteção de institutos jurídicos (tais como a propriedade, o casamento, a herança); (iii) visam garantir positivamente o exercício das liberdades, comportando-se como direitos a prestações de índole positiva seja com referência a prestações fáticas ou normativas de índole positiva. [5]
Em se tratando de direitos fundamentais a prestações estatais, discute-se como o Estado possa vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo de direitos consagrados. Se o direito à saúde ou à moradia, por exemplo, são direitos sociais, discute-se como se pode exigir do Estado o provimento dessas demandas. Ou seja, "em que medida, as ações com o propósito de satisfazer tais pretensões podem ser juridicizadas, isto é, se, e em que medida, tais ações se deixam vincular juridicamente." [6] Isto leva, segundo Gilmar Ferreira Mendes, a uma "transmutação" no próprio Direito, pois situações tradicionalmente consideradas de natureza política são convertidas em situações jurídicas, "acentuando-se a tensão entre direito e política".[7]
Esta mudança paradigmática ? de direitos fundamentais negativos a direitos fundamentais positivos - importará, como reflexo, uma mudança paradigmática no campo da Administração: da Administração de agressão para a Administração de prestação, do Estado de Direito para o Estado Social, da Administração de autoridade para Administração de cooperação. [8]
A implementação do Estado prestador garante a transição (paradigmática) no campo dos direitos fundamentais. A raiz do dever de universalidade, inerente ao serviço público, reside na igualdade substancial.
Para Franco Modugno, trata-se de acentuar o paradigma liberdade-personalidade em face do paradigma liberdade-propriedade. No Direito italiano, o autor explica que esta passagem comporta, no plano axiológico-positivo, o enfraquecimento da liberdade econômica e o fortalecimento das autênticas liberdades pessoais, responsáveis pela formação do núcleo condicionante de todas as outras liberdades e que constituem a esfera intangível, ou como exprimiu a sentença 11/56 da Corte Constitucional Italiana, o patrimônio irretratável da pessoa humana. [9] O binômio liberdade-dignidade deve substituir o da liberdade-propriedade, aliás, como princípio supremo do ordenamento, informador e conformador de todo o sistema de direitos e de deveres constitucionais. [10]
A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações. [11]
Se no Direito Administrativo os direitos fundamentais incorporam garantias aos cidadãos (afirmação de direitos de defesa e direitos à prestação positiva frente à Administração), em trânsito para uma Administração mais democrática (principalmente mediante a participação dos particulares nos procedimentos administrativos); no Direito Civil, os direitos fundamentais cumprirão um importante papel, que não pode ser menosprezado.
Ao se referir às correções indispensáveis no agir administrativo, Ramon Martin Mateo sustenta que "será difícil, não obstante, que se incorpore nas regulações administrativas algo tão óbvio como o que a Administração não é um fim em si mesmo e que sua principal tarefa não é garantir o pagamento do salário de seus servidores." [12] A Administração não pode se furtar à tarefa de concretização dos direitos fundamentais.
A afirmação de direitos fundamentais caminha junto com a "despatrimonialização do Direito Civil" enquanto "tendência normativa-cultural" relevada por uma opção que lentamente vai se concretizando no sentido da pessoa prevalecer sobre qualquer valor patrimonial, destaca Pietro Perlingieri. [13] Os institutos patrimoniais do Direito Privado revestem-se de novos valores, "na passagem de uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores existenciais".[14]
À despatrimonialização do Direito Civil corresponderia a sua repersonalização: "o Direito Civil constitucionalizado parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, na regulação patrimonial que sempre pretendeu ser." [15]
Pietro Perlingieri insiste na necessidade de reconstrução do sistema do Direito Civil segundo o valor da pessoa:
Não é suficiente, portanto, insistir na afirmação da importância dos ?interesses da personalidade no Direito Privado?; é preciso predispor-se a reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou um aumento de tutela das situações patrimoniais mas com um tutela qualitativamente diversa. Desse modo, evitar-se-ia comprimir o livre e digno desenvolvimento da pessoa mediante esquemas inadequados e superados; permitir-se-ia o funcionamento de um sistema econômico misto, privado e público, inclinado a produzir modernamente e a distribuir com mais justiça. O pluralismo econômico assume o papel de garantia do pluralismo também político e do respeito à dignidade da pessoa humana. O Direito Civil reapropria-se, por alguns aspectos e em renovadas formas, da sua originária vocação de ius civile, destinado a exercer a tutela dos direitos "civis" em uma nova síntese ? cuja consciência normativa tem importância histórica (arts. 13-54 e 1-12 Const.) ? entre as relações civis e aquelas econômicas e políticas. [16]
Não se desconhece, todavia, que o princípio da dignidade da pessoa humana oferece dificuldade em sua compreensão. O problema é bem enfrentado por Carmem Lúcia Antunes Rocha:
No Brasil, esse princípio constitucionalmente expresso convive com subomens empilhados sob viadutos, crianças feito pardais de praça, sem pouso nem ninho certos, velhos purgados da convivência das famílias, desempregados amargurados pelo seu desperdício humano, deficientes atropelados em seu olhar sob as calçadas muradas sobre a sua capacidade, presos animalados em gaiolas sem portas, novos metecos errantes de direitos e de Justiça, excluídos de todas as espécies produzidos por um modelo de sociedade que se faz, mais e mais, impermeável à convivência solidária dos homens.
Não é novo, nem mesmo raro, que Constituições traduzem excelentes propostas, mas não sejam capazes de concretizar os projetos dos povos que as formulam. Ou talvez sejam mesmo os povos, seus autores, que não as conseguem concretizar. Na América Latina, particularmente, tem sido uma constante ter-se a norma, mas não a sua aplicação, o seu acatamento, a sua observância, especialmente pelos governantes, caudilhos com ganas de poder e ojeriza a limites, mais ainda a direitos. [17]
O alertamento feito por Cármen Lúcia não havia passado despercebido pelo grande jurista platino Jorge Luis Salomoni [18]. Seu desaparecimento precoce não teve o condão de sepultar as suas idéias. Salomoni desde muito tempo trabalhava com a perspectiva da internacionalização dos ordenamentos jurídicos tendo em conta os direitos humanos. A proposta de um sistema internacional de direitos humanos, como pretendia Salomoni não se consolida sem que haja um pleno e cabal reconhecimento da hierarquia constitucional dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. [19]
Esse avanço, se obedecido, como corresponde a qualquer Estado reconhecido pelo direito internacional, significa que a interpretação do sistema de direitos humanos no Brasil não se encontra na esfera de apreciação dos juízes e tribunais nacionais, senão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Salomoni, de forma oportuna, questiona: o que significa isto? E ele próprio trata de responder: que a hermenêutica do direito hoje, está fora de nossas fronteiras. Que a Constituição, muito embora seja considerada fonte global do ordenamento, resta estabelecida uma hierarquia de fontes, onde haverá de preponderar o que estiver prescrito nos Tratados de Direitos Humanos.
Concomitante aos estudos de Salomoni, a professora paranaense Tatyana Scheila Friedrich, doutora em direito internacional, ao tratar de forma pioneira em nosso País, da importância e da abrangência do jus cogens, já sinaliza que as normas dele decorrentes expressam uma ordem categórica, que ultrapassa a noção de norma obrigatória. Citando João Grandino Rodas, a jovem mestra ao ressaltar que o jus cogens, englobando a idéia de universalidade e extensão, exprime valores éticos, que só se podem impor com força imperativa se forem absolutos e universais. [20]
A virtuosidade da Constituição Federal de 1988, tantas vezes exaltada, porque assentada na dignidade da pessoa humana, sua base antropológica comum, haveria de quedar inócua, se a República Federativa do Brasil não assimilar essa grande dimensão que se relaciona ao ser humano e tudo que lhe diz respeito, de modo a dar lugar a um ordenamento jurídico internacional cogente, vale dizer, categoricamente superior, inclusive às Cartas do Estados soberanos.
À luz desse conjunto de direitos humanos e fundamentais encartados nos tratados internacionais e na Constituição de 1988, é preciso reconhecer, por exemplo, que o direito a uma prestação efetiva e humanitária dos serviços de saúde pública é um direito fundamental de cada cidadão.
Costuma-se imaginar que o contido no art. 5º, inciso III da Constituição brasileira é um preceito que tem sede no Direito Penal. Retrata o aludido preceptivo que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Um enfermo acometido por grave enfermidade, experimentando dores lancinantes e não atendido prontamente em hospital público ou conveniado, faz supor um Estado que descumprindo todos os seus compromissos com a dignidade da pessoa humana, submete seus cidadãos à inobjetável tortura. E o que pensar da inaceitável omissão estatal ao permitir que pessoas sejam deixadas, sem nenhum atendimento emergencial, nos bancos e macas de ambulatórios, às mais das vezes, ostentando ferimentos degradantes e semidespidas? É evidente que tal atitude caracteriza um tratamento desumano e degradante!
Milhões de reais são destinados à publicidade estatal e promoção pessoal dos governantes, às vezes, em descarada afronta ao art. 37, §1º da Constituição brasileira [21]. Sem falar de inúteis e caríssimos projetos que ? em afronta à inteligência da sociedade ? são levados a efeito sem qualquer outro retorno, senão de dividendos políticos e retribuição de promessas eleitoreiras. Hospitais e ambulatórios mal aparelhados, médicos percebendo retribuição vilipendiosa, não condizente com os relevantes serviços que prestam, são deprimentes constatações diárias. Nesta quadra da vida nacional quando alvorece a gestão governamental é imperioso conscientizar os detentores do poder e cobrar cada vez com maior intensidade e substância uma atuação que combine com os discursos proferidos nos palanques eleitorais.