A coisa julgada administrativa no direito brasileiro: administração pública e o princípio constitucional da segurança jurídica

A coisa julgada administrativa no direito brasileiro: administração pública e o princípio constitucional da segurança jurídica

Administrative res judicata in Brazilian law: public administration and the constitutional principle of legal certainty

FELIPE KLEIN GUSSOLI
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil), Brasil

A coisa julgada administrativa no direito brasileiro: administração pública e o princípio constitucional da segurança jurídica

Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 4, núm. 1, 2017

Universidad Nacional del Litoral

Recepção: 12 Abril 2017

Aprovação: 18 Junho 2017

Resumo: No Brasil não há consenso sobre a coisa julgada administrativa. Enquanto alguns pregam sua inexistência no sistema brasileiro de jurisdição una, outros acolhem a coisa julgada administrativa com base em fundamentos não homogêneos. Diante disso, o trabalho visa aclarar os conceitos e definições propostas doutrinariamente e referidos pela Administração Pública e Tribunais, para a partir disso extrair uma definição inovadora de coisa julgada administrativa que explique a pertinência do instituto no ordenamento jurídico brasileiro e que lhe justifique utilidade prática. A metodologia empregada é dedutiva. Arranca da Constituição e assume a coisa julgada administrativa como corolário dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança e boa-fé. O trabalho analisa ainda, paralelamente, o regime da coisa julgada jurisdicional para concluir, ao fim, que a coisa julgada administrativa é um limite formal ao dever da Administração de autotutela, afeto aos processos administrativos litigiosos e com características identificáveis segundo o regime jurídico administrativo brasileiro. As considerações contribuem cientificamente na medida em que demonstram a sede constitucional brasileira da coisa julgada administrativa, seus pressupostos fáticos de incidência, seus efeitos negativos, positivos e preclusivos, bem como os limites objetivos e subjetivos dessa figura que não encontra similar em nenhum outro sistema jurídico.

Palavras-chave: coisa julgada administrativa, autotutela administrativa, processo administrativo, Administração Pública, princípio da segurança jurídica.

Abstract: In Brazil there is no consensus on the administrative res judicata. While some preach their absence in the Brazilian law system, other host administrative res judicata based on non homogeneous foundations. Thus, the work aims to clarify the concepts and definitions proposed doctrinally and referred to the Public Administration and Courts, for from that extract an innovative definition of administrative res judicata to explain the relevance of the institute in the Brazilian legal system and to justify its practical utility. The methodology is deductive. Starts from the Constitution and takes the administrative res judicata as a corollary of the principles of legal certainty, protection of trust and good faith. The paper analyzes also, in parallel, the system of judicial res judicata to conclude the administrative res judicata as a formal limit to the duty of Administration cancel its ilegal acts, bound to the litigious administrative processes and identifiable according to the Brazilian legal administrative system. The considerations contribute scientifically by demonstrating the Brazilian constitutional locus of administrative res judicata, its incidence substract, its negative, positive and preclusive effects as well as the objective and subjective limits of this unique figure.

Keywords: administrative res judicata, administrative nullification power, administrative procedure, Public Administration, principle of legal certainty.

Sumário:

1. Introdução; 2. O instituto da coisa julgada no direito brasileiro: aproximação disciplinar e comparações necessárias; 2.1. A coisa julgada na função jurisdicional; 2.2. Os contornos da coisa julgada administrativa para a doutrina brasileira; 3. Coisa julgada administrativa: sede constitucional e proposta de contornos para o instituto; 3.1. Coisa julgada administrativa como corolário do princípio constitucional da segurança jurídica; 3.2. Coisa julgada administrativa no Direito brasileiro: um limite formal ao dever de autotutela; 4. Considerações finais: proposta de definição do conceito, tracejo da hipótese de incidência, efeitos e dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada administrativa; 5. Referências.

1. Introdução

A definitividade é a marca da coisa julgada jurisdicional, ao passo que ela mesma é o critério definidor da própria função jurisdicional do Estado. Além de critério, o instituto traduz ainda um dos fundamentos do Estado de Direito. A estabilidade e certeza das relações travadas entre particulares e entre esses e a Administração, depois de decididas com a marca da definitividade pelo Estado-juiz e já com o rótulo da coisa julgada, representam valores fundamentais de nossa sociedade, materializadores da segurança jurídica.

Se isso é certo em relação à coisa julgada jurisdicional, no Brasil pouca ou nenhuma relevância se dá àquilo que se convencionou chamar de coisa julgada administrativa. A função administrativa, assim como a jurisdicional, também instrumentaliza seu agir através do processo. Os atos administrativos encadeados formam um processo administrativo com fim de decidir as controvérsias dirigidas à resolução da Administração e com o fim de tornar transparente o iter decisório, o que importa muito especialmente para o sistema de controle do Estado.

Ao contrário da coisa julgada jurisdicional, a coisa julgada administrativa não tem previsão constitucional ou legal expressa, e para quase a totalidade da doutrina não guarda a característica essencial da definitividade para as partes e para terceiros. Quando muito, teria definitividade em relação à Administração Pública, mas nunca, por exemplo, em relação ao Judiciário, pois a Constituição garantiria o direito de ação em virtude de ameaça ou violação de direitos decorrentes de qualquer ato administrativo.

Em torno das divergências, não seria difícil assumir que a coisa julgada administrativa é um instituto com nomem iuris enganoso e importado para o regime jurídico administrativo com uma série de ressalvas. Longe da pretensão de esgotar o tema, os intentos desse breve trabalho são estabelecer o aprofundamento da discussão, responder até que ponto aquela afirmação é verdadeira e até que ponto é útil ou inútil falar em coisa julgada administrativa diante da principiologia constitucional.

2. O instituto da coisa julgada no direito brasileiro: aproximação disciplinar e comparações necessárias

A importação de institutos classicamente aplicáveis ao processo judicial deve ser feita com cautela, ainda que se reconheça a importância da segurança jurídica e a relevância da proteção da confiança que o cidadão deposita nas decisões da Administração.[1] É fundamental levar em conta esse alerta, mas também é inegável que a coisa julgada administrativa traz à mente, antes de qualquer instituto ligado à segurança jurídica, a coisa julgada jurisdicional. Nada impede, assim, a comparação inicial com o instituto processual.

2.1 A coisa julgada na função jurisdicional

A marca de definitiva da coisa julgada jurisdicional é a garantia para o cidadão de certeza das relações jurídicas e de segurança de prosseguimento dos projetos de vida sem correr o risco de ver revertida a decisão estatal a respeito de determinada pretensão jurídica. A coisa julgada concretiza no plano processual o princípio da segurança jurídica. Nesse influxo, é amplamente conhecida a distinção entre (i) coisa julgada formal e (ii) coisa julgada material.

Esgotados os recursos, a decisão judicial tornar-se imutável, incidindo sobre ela a (i) coisa julgada formal. Esta é a preclusão máxima no bojo de um determinado processo, pressuposto da coisa julgada material.[2] Enquanto a coisa julgada formal torna indiscutível um litígio em processo específico no qual inicide (endoprocessual), a (ii) coisa julgada material é extraprocessual, ou melhor, "torna imutáveis os efeitos produzidos por ela e lançados fora do processo. É a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, entre as mesmas partes."[3] Só o efeito declaratório contido no dispositivo da sentença é albergado pelo manto da coisa julgada porque os demais efeitos em regra dependem de atuação externa para concretizar-se, seja das partes ou seja provocada pelas circunstâncias.[4]

O Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº 13.105/2015) no art. 502 dispõe: "Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso." Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira lecionam sobre o vocábulo marcante da definição legal. Segundo eles "'autoridade' é uma situação jurídica: a força que qualifica uma decisão como obrigatória e definitiva."[5] Do exposto, na síntese lapidar de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, "tem-se, então que a coisa julgada corresponde à imutabilidade da declaração judicial sobre a existência ou não do direito da parte que requer tutela jurisdicional."[6]

Nesse contexto, são efeitos da coisa julgada material sua (a) eficácia negativa; (b) eficácia positiva e (c) eficácia preclusiva.[7] (a) a eficácia negativa proíbe o novo julgamento de mérito da causa pelo Judiciário; (b) a eficácia positiva corresponde àquele efeito garantidor da indiscutibilidade da questão decidida para o fim de propositura de novas ações; e (c) a eficácia preclusiva da coisa julgada considera deduzidas e enfrentadas no processo transitado em julgado todas as questões que poderiam ter sido alegadas e poderiam constituir premissas da decisão judicial, ainda que não o tenham sido por negligência ou vontade das partes.

Diante do significado do instituto e da apresentação de seus efeitos básicos, a classificação que aparta os (i) limites objetivos dos (ii) limites subjetivos da coisa julgada torna didático seu estudo. (i) Os limites objetivos definem ao fim e ao cabo "quais partes da sentença ficam cobertas pela coisa julgada".[8] Sob o regime brasileiro a legislação processual civil circunscreve os limites da coisa julgada ao dispositivo da sentença transitada em julgado.[9] É o comando judicial da decisão não mais sujeita a recurso a parte da sentença sobre a qual incide a imutabilidade da coisa julgada e seu efeito preclusivo em relação a futuras discussões.[10] Quanto aos (ii) limites subjetivos da coisa julgada material, esse aspecto remonta ao esclarecimento sobre "quem é atingido pela autoridade da coisa julgada material."[11] No regime brasileiro os limites subjetivos da coisa julgada nas ações individuais estão circunscritos às partes processuais, "já que participaram do contraditório que resultou na prolação da decisão judicial."[12]

Diante desse brevíssimo panorama sobre a coisa julgada jurisdicional, a inevitável conexão das disciplinas jurídicas coloca em marcha reflexões a respeito da coisa julgada administrativa e permite a fundamentação de um instituto autônomo[13] dotado de relevância prática e com sede constitucional.

2.2 Os contornos da coisa julgada administrativa para a doutrina brasileira

O principal argumento em prol da inexistência da coisa julgada administrativa é de fato a ausência de dualidade de jurisdição no sistema jurídico brasileiro,[14] por força do art. 5º, XXXV da Constituição.[15] A tese, no entanto, parte da falsa premissa de uma suposta identidade entre a coisa julgada jurisdicional e coisa julgada administrativa no ordenamento jurídico brasileiro. Mas a inexistência de uma coisa julgada administrativa típica do contencioso administrativo não exclui o reconhecimento da coisa julgada administrativa moldada em torno do ordenamento jurídico brasileiro, no qual o monopólio de jurisdição é do Poder Judiciário.

À vista disso, no Direito brasileiro a coisa julgada administrativa terá um significado particular e especial, construído em conformidade com os princípios e regras constitucionais e legais do ordenamento brasileiro. Por conseguinte, a falta de uma jurisdição administrativa não é por si só argumento viável para sepultar o instituto da coisa julgada administrativa. Mas bem por isso ele deverá ser dessemelhante da coisa julgada jurisdicional: seus pressupostos de incidência e efeitos serão diferentes, tal qual seus limites objetivos e subjetivos. Enfim, a explicação do conceito deverá ser de certo modo original e em concordância com o regime jurídico administrativo brasileiro.

Nessa toada, cumpre mencionar a posição de Hely Lopes Meirelles, quem preservou a heterogeneidade dos institutos jurídicos mencionados. O autor jungiu a coisa julgada administrativa à uma espécie de "preclusão de efeitos internos" que garantiria a irretratabilidade da decisão administrativa pela Administração, ressalvada sempre a possibilidade de insurgência pela via judicial ou ainda revisão ou reforma na esfera administrativa se instaurado novo processo em que respeitados os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.[16] Honram essa posição Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari,[17] Marçal Justen Filho[18] e Mônica Martins Toscano Simões.[19]

Mas, mesmo que se admita algumas hipóteses restritas nas quais se verificaria a coisa julgada administrativa no bojo de um processo administrativo, segundo a doutrina até então exposta, apenas existiria a coisa julgada formal.[20] De acordo com Marçal Justen Filho, a coisa julgada administrativa, de forçoso reconhecimento no ordenamento brasileiro, seria "o efeito jurídico acarretado pelo encerramento de um procedimento administrativo, em virtude do qual se torna vedado rever a decisão nele adotada sem a instauração de um procedimento específico e distinto."[21]

No mesmo plano doutrinário, Bruno Aurélio entende que o Brasil recepcionou parcialmente a teoria da coisa julgada administrativa dos países que adotam o sistema dual de jurisdição. O sistema uno brasileiro, seria compatível com a tese da imutabilidade do ato administrativo na esfera administrativa, mas mesmo assim a teoria sairia enfraquecida principalmente por conta do que prevê o art. 53 da Lei nº 9.784/99,[22] dispositivo que regula a revogação e anulação no ordenamento brasileiro.[23] José dos Santos Carvalho Filho segue orientação semelhante. Para ele, é a irretratabilidade no seio da Administração Pública que perfaz os contornos do instituto. Define a coisa julgada administrativa como "sendo a situação jurídica pela qual determinada decisão firmada pela Administração não mais pode ser modificada na via administrativa."[24]

Celso Antônio Bandeira de Mello reconhece a coisa julgada administrativa como o instituto representativo do princípio da segurança jurídica apto a obstar a revisão das decisões da Administração tanto esfera administrativa quanto na esfera judicial. Bandeira de Mello Frisa que essa qualidade é restrita aos atos ampliativos de direitos, não havendo que se falar em impossibilidade de anular ou revogar decisões limitadoras da esfera jurídica do cidadão.[25] Segundo ele, o "fenômeno aludido só ocorre em relação a este gênero de atos, pois se trata de instituto que cumpre uma função de garantia dos administrados e que concerne ao tema da segurança jurídica estratificada já na própria órbita da Administração. Logo, não tem porque se propor quando em causa atos restritivos."[26] Segundo essa concepção teórica não haveria nem mesmo utilidade para o cidadão falar em intangibilidade ou imutabilidade de uma decisão administrativa a ele desfavorável, eis que certamente sua vontade será, em tese, sempre desfazê-la, pelo que impor um óbice à reforma que beneficie o administrativo soaria estranho.

Outrossim, para Celso Antônio Bandeira de Mello a coisa julgada administrativa exige ainda que a decisão administrativa sobre a qual ela incidirá seja proferida "de modo contencioso".[27] Seria preciso um litígio envolvendo a Administração e algum outro sujeito de direito para que o instituto incidisse, não havendo razão para invocá-lo, por exemplo, nos processos administrativos internos.[28]

Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello, Rafael Valim conceitua coisa julgada administrativa como a "irretratabilidade de uma decisão tomada pela Administração Pública, de modo contencioso, do qual não caibam mais recursos na esfera administrativa." Para Valim a coisa julgada administrativa impossibilitaria o questionamento de atos ampliativos pela Administração Pública, seja administrativamente ou mesmo na esfera judicial. Somente a terceiros atingidos é que estaria facultada a correção judicial do ato.[29]

No amplo espectro doutrinário examinador da coisa julgada administrativa, Eduardo Stevanato Pereira de Souza e Guilherme Ferreira Gomes Luna, embora não compactuem com uma coisa julgada absoluta,[30] estão situados próximos da ponta mais favorável à manutenção do ato produzido ao final da trilha do processo animado pelo contraditório e ampla defesa. Os autores defendem a incidência da coisa julgada administrativa não só em atos ampliativos de direitos, mas em todos os atos por eles denominados como decisão administrativa. O regime especial desses atos decisórios[31] determinaria uma definição autêntica e ousada de coisa julgada administrativa. Essa consistiria nos "efeitos de imutabilidade incidentes sobre uma decisão administrativa (...) em relação ao exercício da função de autotutela estatal a não afastar a possibilidade de discussão, em qualquer caso, pelo administrado da decisão administrativa junto ao Poder Judiciário."[32] Seria, desta forma, um instituto aplicável às decisões irrecorríveis, oponível apenas em face da Administração e calcado no princípio da segurança jurídica e da boa-fé.

Esta posição é parcialmente compartilhada por Ricardo Marcondes Martins. Em primeiro lugar, segundo este, a coisa julgada administrativa só acontece em processos administrativos, espécie de procedimento administrativo animado pelo contraditório, conforme lição de Romeu Felipe Bacellar Filho.[33] Seu reconhecimento demanda obrigatoriamente "ter ocorrido a publicidade da decisão proferida em última instância administrativa sobre o ato administrativo conclusivo; ou ter decorrido o prazo para impugnar na instância administrativa o ato administrativo conclusivo."[34] Para Ricardo Marcondes Martins, a coisa julgada na esfera administrativa não é instituto próprio dos processos que culminam em atos ampliativos de direitos porque sua finalidade é a estabilização de todas as relações jurídicas. A coisa julgada administrativa visa perpetuar segurança jurídica, então não pode limitar-se aos atos ampliativos. De modo que "a coisa julgada ocorre em todas as espécies de processo administrativo: seja no processo de participação, seja no processo de defesa, seja no processo restritivo ou ablatório de direito, seja no ampliativo, seja no iniciado pela Administração, seja no iniciado pelo administrado."[35] O autor , no entanto, preserva a opinião segundo a qual novo processo administrativo corretor possa rever decisão prévia da Administração eivada de ilegalidade, referindo-se tão somente ao aumento do ônus argumentativo da Administração para instaurar novo processo administrativo.

Há quem seja mais radical. Para Daniele Coutinho Talamini simplesmente inexiste coisa julgada administrativa, já que embora existam limites para a competência revogatória, "o exaurimento da esfera administrativa não impede a Administração de rever a decisão." Deste modo, no campo de análise de Daniele Coutinho Talamini (da revogação do ato administrativo) a coisa julgada administrativa jamais seria impeditivo para revisão do ato administrativo, como seriam por exemplo a produção contínua de efeitos do ato, a manutenção da competência discricionária, a decadência ou o direito adquirido.[36]

Não se discorda da autora nesse ponto, por isso a busca de uma definição de coisa julgada administrativa deve centrar-se na identificação de um limite formal ao poder de autotutela da Administração, isto é, ao dever-poder de invalidar o ato administrativo contrário ao Direito. Este é, afinal, o primeiro grande recorte fundamental ao estabelecimento de uma definição segura de coisa julgada administrativa. Só é possível blindar a decisão administrativa naqueles atos produzidos no exercício da competência vinculada, afastando-se sua incidência e seus efeitos, consequentemente, dos atos discricionários. Para esses vige o regime da revogação.

Visto isso, é preciso ir adiante e cooptar o melhor de cada posição acima apresentada para, segundo uma interpretação sistemática das normas constitucionais e infraconstitucionais, propor uma definição que respeite o regime jurídico administrativo e encontre finalmente os limites objetivos e subjetivos firmados pela coisa julgada administrativa e seus efeitos básicos.

3. Coisa julgada administrativa: sede constitucional e proposta de contornos para o instituto

É insofismável a partir das posições doutrinárias apresentadas que a coisa julgada do Direito Processual Civil, conquanto sirva de modelo comparativo, em muito se distingue da coisa julgada administrativa. Logo, não é permitido invocar o Código de Processo Civil como fundamento jurídico para a existência da coisa julgada administrativa, e nem mesmo se pode invocar isoladamente o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal[37] como sustentáculo do instituto no Direito positivo. Conforme se demonstrará, é o princípio implícito da segurança jurídica o verdadeiro alicerce da coisa julgada administrativa.

3.1 Coisa julgada administrativa como corolário do princípio constitucional da segurança jurídica

O princípio da segurança jurídica deve ser compreendido pelo ângulo da "segurança do Direito", na qual o princípio garante através de um complexo de normas a segurança, estabilidade, certeza e confiança do próprio sistema jurídico.[38] De fato, a ideia de segurança jurídica é o gérmen fundador do próprio Estado de Direito, sem a qual não faria sentido a formação de uma ordem jurídica.[39]

Adentrando no direito positivo brasileiro, importante consignar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o princípio da segurança - conquanto definido como um dos mais importantes princípios do ordenamento jurídico[40] - "não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo."[41] Igualmente, José Joaquim Gomes Canotilho extrai do princípio do Estado de Direito o princípio da segurança jurídica.[42] Ou melhor, referido autor compreende o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos como subprincípios concretizadores do Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição brasileira).[43]

A seu turno, José Afonso da Silva radica no elemento "segurança" do caput do art. 5º da Constituição Federal[44] a fundamentação constitucional do princípio, para ele uma garantia que orienta os institutos previstos nos incisos desse dispositivo.[45] Perspicazmente, Fernando Dias Menezes de Almeida ainda lembra o art. 103-A, §1º da Constituição[46] como única menção, indireta é verdade, à segurança jurídica no corpo da Lei Fundamental.[47]

Não importa a posição assumida, o fato é que como acertadamente Romeu Felipe Bacellar Filho sentencia, "se não há expressamente mencionado no texto constitucional, um princípio da segurança das relações jurídicas, é evidente que da leitura atenta dos preceptivos da Constituição extraem-se além dos princípios explícitos também os princípios implícitos, um dos quais aquele de que trata o presente trabalho."[48] Nessa mesma linha argumentativa, Ingo Wolfgang Sarlet faz referência à segurança no preâmbulo da Constituição para em seguida listar uma série de institutos representativos do princípio implícito da segurança jurídica, entre eles o da coisa julgada,[49] ponto de largada para comparação com a coisa julgada administrativa.

Ricardo Marcondes Martins dissolve o princípio da segurança jurídica em duas acepções, uma (i) objetiva e outra (ii) subjetiva. Na acepção objetiva o princípio "consiste numa exigência objetiva de regularidade estrutural e funcional do sistema jurídico", enquanto na acepção subjetiva significa "a certeza do Direito, ou seja, é reflexo da segurança objetiva nas relações jurídicas."[50] Não obstante válida a cisão do princípio da segurança jurídica em dois componentes, um objetivo e outro subjetivo, outra possibilidade é designar por aquele nomen iuris "o aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem para o aspecto subjetivo."[51] Concede-se deste modo autonomia científica e jurídica ao princípio da proteção da confiança. Moldado no Estado Social alemão ao longo da segunda metade do século XX, o princípio da proteção da confiança (Vertrauensschutz) é também denominado por alguns, no Direito Comunitário europeu, de princípio da confiança legítima, no qual é considerado um princípio fundamental.[52]

É inarredável a conexão entre a boa-fé e o princípio da proteção à confiança.[53] O cidadão acredita e confia na legitimidade dos atos administrativos.[54] A palavra empenhada pelo Estado é forte e gera nas pessoas o senso de confiança necessário à continuidade de uma vida tranquila. Nessa linha, a autovinculação dos atos administrativos transfigura-se em uma vestes mais emblemáticas do princípio da legalidade na atualidade e dá corpo ao princípio da confiança legítima.[55]

Normas específicas têm o condão de garantir a segurança e a certeza das relações jurídicas. Se muitas se encontram positivadas, outras podem ser extraídas do tecido constitucionais como corolários do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, especialmente aquelas ligadas à manutenção do ato administrativo.[56]

Com efeito, se é correto dizer que a proibição de retroatividade legal e o instituto da coisa julgada judicial são manifestações concretas do princípio constitucional da segurança jurídica, é tanto mais correto dizer que o mesmo se dá em relação à chamada coisa julgada administrativa.[57] A rigor, é possível assegurar que "o instituto da coisa julgada administrativa está contido no conceito de segurança jurídica, dividindo espaço com outros institutos e princípios, como são exemplos o princípio da confiança legítima, a prescrição, a decadência, a preclusão, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido, entre outros."[58] Uma decisão administrativa publicada após o transcurso de um processo administrativo com a participação do interessado gera a expectativa fortíssima de manutenção do ato final não mais sujeito a recurso.[59] Não se olvide, ademais, que a estrutura administrativa é em tudo superior ao que está ordinariamente disposto ao particular. Seja no corpo de agentes públicos especializado, seja na disponibilidade de recursos, a Administração detém todos os pressupostos fáticos e jurídicos para emissão de uma decisão conforme o Direito e que gere nos cidadãos essa impressão. Por isso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos e a autovinculação são razões bastantes para privilegiar o princípio da proteção da confiança no processo administrativo e extrair do princípio da segurança jurídica um instituto dotado de eficácia contra a modificação da decisão final tomada no exercício da função administrativa em processo administrativo, qual seja, a coisa julgada administrativa. Sendo assim, ela afasta no plano do ato administrativo a nocividade ínsita à insegurança característica de uma decisão que poderia, por ato contraditório da Administração, reverter-se mesmo após obedecido o rito processual definido constitucionalmente e munido de garantias.[60]

3.2 Coisa julgada administrativa no Direito brasileiro: um limite formal ao dever de autotutela

A coisa julgada administrativa é autonomamente definida como um limite formal ao dever de invalidar.[61] Do mesmo modo que a coisa julgada jurisdicional não tem vínculo necessário com justiça ou adequação da decisão com o Direito,[62] a coisa julgada administrativa incidente em desfavor da Administração privilegia a segurança das relações jurídicas e a proteção da confiança daqueles diretamente atingidos pelos efeitos do ato.

A edição de um ato administrativo inválido põe em conflito princípios com mandamentos distintos. O princípio da segurança jurídica impõe a estabilização das relações jurídicas, a proteção da confiança e da boa-fé exigem a manutenção do ato inválido. Em oposição, o princípio da conformidade à ordem jurídica (princípio da juridicidade) exige a correção do vício a fim de garantir correspondência do ato com o Direito. O conflito originado na edição do ato inválido exige a compatibilização entre os princípios em oposição e definição sobre o saneamento, invalidação ou manutenção do ato.[63]

Defende-se aqui que a coisa julgada administrativa consiste numa razão definitiva para a Administração emissora do ato de prevalência do princípio da proteção da confiança, do qual deriva. Antes de tudo, quanto ao atributo da autotutela, ressalte-se o seguinte pressuposto: "(...) o ordenamento jurídico, conforme a situação fática posta, não obriga à retirada como ato único ou mais adequado meio ao alcance da legalidade. Muitas das vezes ela somente será atingida com a manutenção de um ato ou de efeitos originalmente ilegítimos (...)."[64] Desta maneira, a relação de causalidade ilegalidade -> invalidação não é sempre impositiva. Na realidade, muitas vezes o que parece injusto porque obscurecido pela ilegalidade deve ser mantido para garantir a própria justiça.[65]

Nesse fluxo, a coisa julgada administrativa emerge como um limite formal ao poder de autotutela para preservar a legitimidade dos atos administrativos, a boa-fé e a confiança dos cidadãos, sem fulminar a possibilidade de anulação do ato por outros agentes legitimados à preservação da legalidade. Os limites subjetivos da coisa julgada administrativa, na sequência elucidados, excluem certos órgãos de controle do dever de respeito à imutabilidade que o instituto confere para a Administração. São os limites subjetivos da coisa julgada administrativa que compatibilizam o princípio da legalidade com o princípio da segurança jurídica nas situações em que evidenciado ato administrativo definitivo e cogente para a Administração, mas ilegal perante o Direito.

Desta maneira, identificado seus pressupostos de incidência, ao menos para a Administração emissora do ato deverá prevalecer a decisão final dela mesma proveniente por razões de segurança jurídica (especialmente nos atos restritivos de direito) e em prol da boa-fé do sujeito afetado (especialmente nos atos ampliativos de direito). Quer dizer, a coisa julgada administrativa incide para todas as espécies de atos administrativos que encerram um processo decisório administrativo, e não só para o atos ampliativos de direito. É que há de se considerar não apenas a esfera jurídica do cidadão afetado diretamente pela decisão, mas proteger a decisão final em homenagem ao princípio da segurança jurídica, de interesse geral.[66] Ao decidir em processos contenciosos a Administração está sujeita ao dever de atender o interesse público e ao princípio da juridicidade, portanto guia-se pelo dever imparcialidade. Por isso, todos os cidadãos aguardam e acreditam numa decisão de acordo com o Direito, longe de arbitrariedades e de alterações bruscas de posição desafiadoras da boa-fé. Eis a origem da coisa julgada administrativa e sua nota definidora: a imutabilidade.[67] Afinal, caso "assim não fosse, e, por via de consequência, a Administração pudesse rever indistinta e interminavelmente as decisões proferidas nos processos administrativos, (...), todo sistema de garantia ao devido processo legal e direito ao contraditório ruiria."[68]

Nenhuma problema há na manutenção pela Administração emissora do ato decisório desfavorável ao cidadão diretamente afetado, o que acontece em homenagem à segurança jurídica. Ao particular lesado pelo ato ilegal não mais sujeito à reforma pela Administração editora do ato (pois blindado pela autoridade da coisa julgada administrativa) resta a ampla faculdade de insurgir-se em outras esferas de controle interno e externo. A inafastabilidade de jurisdição para o particular é a contraface do dever da Administração de manter no sistema jurídico o ato restritivo de direitos. Ao cidadão foi conferido pela Constituição o direito fundamental de ação. A ele, não menos importante, está disposto o direito de petição perante os Tribunais de Contas e ao Ministério Público. Se for o caso, esses órgãos institucionais poderão anular ou demandar a anulação judicial do ato ilegal sob o qual pende a força da coisa julgada administrativa para a Administração.[69]

O regime levará em conta não a tríplice identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido, como na coisa julgada jurisdicional, mas os motivos. Os motivos são pressupostos do ato administrativo e portanto servem para a verificação da coisa julgada administrativa em casos futuros. Se os motivos são outros, obrigatoriamente a decisão administrativa será outra, não incidindo a coisa julgada administrativa porque não se repete a mesma situação que ensejou o ato administrativo decisório transitado administrativamente e sobre o qual incidiu a coisa julgada administrativa.[70]

A linha argumentativa situada culmina enfim numa definição própria e autêntica de coisa julgada administrativa, segundo a qual questões litigiosas já decididas pela Administração em processos administrativos nos quais, por imposição do princípio do devido processo legal foi facultada ou houve participação de pessoa natural ou jurídica, tornam-se imutáveis para o ente do Poder Público no qual inserido o órgão emissor da decisão administrativa não mais sujeita a recurso na esfera administrativa.

O órgão de representação judicial fica igualmente vinculado a essa decisão final. O princípio da segurança jurídica não admite a reforma nem mesmo de decisões desfavoráveis ao destinatário, a quem é facultado o acesso ao Poder Judiciário. A ressalva existiria para os órgãos e instituições responsáveis pelo controle interno e externo da Administração Pública. Os integrantes do sistema de controle da Administração detêm competência constitucional para fiscalizar a adequação dos atos administrativos com o Direito, pelo que não faria nem mesmo sentido cogitar na violação do princípio da proteção da confiança quando qualquer um deles age em nome da preservação da legalidade.

4. Considerações finais: proposta de definição do conceito, tracejo da hipótese de incidência, efeitos e dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada administrativa

Com fundamento no princípio da segurança jurídica e no princípio da proteção da confiança chega-se a uma proposta de definição de coisa julgada administrativa para o Direito brasileiro: coisa julgada administrativa é um limite formal ao dever de invalidar atos administrativos proferidos em processo administrativo litigioso, consistente na imutabilidade da parte declaratória do comando da decisão administrativa, favorável ou desfavorável aos interessados diretos partes do processo, não mais sujeita a recurso na esfera administrativa, e que por força por força do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança é irretratável administrativa e judicialmente pelo ente e órgãos da Administração direta ou indireta da qual faz parte o órgão emissor do ato. Ficam ressalvados os atos administrativos derivados de má-fé do destinatário e os qualificados pelo ordenamento como crimes (porque absolutamente insanáveis), bem como ressalvada a competência anulatória dos órgãos e entidades integrantes do sistema de controle brasileiro. Para uma síntese da explicação dessa definição, apresentam-se algumas rápidas conclusões.

A primeira delas é a de que jamais se pode admitir que a coisa julgada jurisdicional se confunde com a coisa julgada administrativa, isto é, de que seriam sinônimos. Não são, eis que os contornos da primeira, como se viu, diferem grandemente dos traços da segunda. Julgados que afastam a coisa julgada administrativa sob o fundamento de que não existe contencioso no Brasil partem de um pressuposto equivocado, porque não é o fato de inexistir dualidade de jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro que exclui a existência de coisa julgada administrativa, ainda que diversa daquela dos países cujos ordenamentos contemplam a jurisdição administrativa.

É primordial, nesse contexto, ter em conta que em caso de abuso as prerrogativas garantidas pelo regime jurídico do ato administrativa (reconhecidas em prol da consecução do interesse público) encontram freio na atuação do Poder Judiciário. Daí a importância da inafastabilidade do controle judicial e a impossibilidade de reconhecer antes de tudo que não há identidade entre a coisa julgada judicial e coisa julgada administrativa.

Outra conclusão de pressuposta importância é a de que a coisa julgada administrativa não depende por si só do decurso do tempo para incidir sobre uma relação jurídica. Ainda que dependa, para incidir, do transcurso de um prazo processual, normalmente contado em dias, isso não significa que o instituto esteja relacionado aos institutos da prescrição ou decadência. A coisa julgada administrativa não é um limite temporal ao dever de invalidar ou à faculdade de revogar. Aproximar os institutos da decadência ou prescrição da coisa julgada administrativa, ou ainda enquadrá-los como uma das formas de manifestação dessas, serve apenas para confundir e deslocar a utilidade do conceito tratado. Tenha-se em mente, de uma vez por todas, que a coisa julgada administrativa é simplesmente um instituto derivado da interpretação sistemática da Constituição Federal, reflexo do encerramento de um processo administrativo litigioso não mais sujeito a recursos, que cria óbices à reforma pela Administração em virtude da imutabilidade da decisão definitivamente tomada. É, desta maneira, um limite formal ao dever de invalidar que determina a prevalência do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança em certas ocasiões.

A hipótese de incidência é evidente. A coisa julgada administrativa e seus efeitos aparecem no momento imediatamente seguinte ao esgotamento das vias recursais administrativas, seja por negligência ou vontade das partes que não cumpriram com o ônus processual de recorrer, ou seja em virtude do esgotamento do rol de recursos disponíveis. Esse momento que põe fim ao litígio acarreta no trânsito administrativo do processo administrativo, que pode ser certificado ou implicitamente verificado caso a caso.

Em analogia aos efeitos da coisa julgada jurisdicional, os efeitos da coisa julgada administrativa são basicamente três: (i) negativo; (ii) positivo e (iii) preclusivo. O primeiro veda a reapreciação da matéria decidida pela Administração dentro do quadro de motivos utilizados como pressupostos de instauração do processo administrativo e como pressupostos de edição do ato administrativo final do processo. O segundo impõe o dever de coerência para a Administração, que deverá preservar o conteúdo declaratório do ato decisório transitado administrativamente para quaisquer casos futuros - terceiros que não participaram da formação processual do ato final e prejudicados pelo efeito positivo da coisa julgada administrativa de outro processo poderão ir à juízo discutir a legalidade da decisão que a Administração tem a obrigação de cumprir. O terceiro e último efeito veda a utilização de argumentos fáticos e jurídicos que poderiam ter sido invocados pela partes (interessados e Administração) e não o foram por negligência ou propositalmente.

Os efeitos citados, especialmente o preclusivo, permitem concluir: a decisão fará coisa julgada administrativa para a Administração emissora do ato decisório desde que preservado o quadro dos motivos que moldaram a decisão final. É dizer, desde que não se altere o quadro fático que deu causa ao processo administrativo, a declaração da Administração haverá de prevalecer para ela. A contrario sensu, se os motivos se alteram após o trânsito administrativo pelo surgimento de fatos novos ou de impossível conhecimento das partes durante o trâmite do processo administrativo, afasta-se a coisa julgada administrativa.

A imutabilidade característica da coisa julgada administrativa também deve obedecer os limites objetivos e subjetivos que a guarnecem e compatibilizam o princípio da segurança jurídica (seu nascedouro) com outros princípios de mesma hierarquia, a exemplo do princípio da legalidade. De certo ângulo pode-se dizer que os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada administrativa relativizam a imutabilidade do comando da decisão administrativa, porque fazem compreender que afinal não é o comando propriamente dito que vincula a Administração e porque abrem espaço para o questionamento da decisão intangível por outros órgãos da Administração integrantes de outros entes e Poderes, bem como pelos órgãos de controle do sistema constitucional brasileiro.

Os limites objetivos da coisa julgada administrativa radicam na declaração subjacente ao comando da decisão administrativa. É a parte declaratória do ato, prévia ao comando administrativo, que constitui, modifica ou extingue direitos nos limites da lei. Portanto, apenas o conteúdo declaratório da decisão administrativa permanece imutável após o trânsito administrativo, e sempre para a Administração emissora do ato. Esta deverá, em respeito à coisa julgada administrativa incidente sobre a parte declaratória da decisão, cumprir o comando que dela decorre.

Ou melhor, segundo os limites subjetivos da coisa julgada administrativa, a irredutibilidade do conteúdo declaratório pressuposto do comando administrativo restringe-se aos órgãos integrantes do ente da Administração cujo órgão emissor da decisão faz parte. Isso significa ampliar para os órgãos de representação judicial do ente da Administração os limites subjetivos da coisa julgada administrativa e proibi-los de ir à juízo discutir a legalidade da decisão tomada no curso de processo administrativo pela Administração que representa. Em favor da coisa julgada administrativa como óbice à insurgência da Administração na via administrativa e judicial pesa o fato de que o processo litigioso emplacado pelo contraditório gera a esperança de uma decisão madura e conforme o Direito, e que torne aliás desnecessária a intervenção do Judiciário. A processualidade administrativa deve ser dotada de credibilidade suficiente à formação de decisões administrativas legítimas, estáveis e conforme o Direito. Ressalte-se que o direito à tutela administrativa efetiva e espontânea implica na existência de uma Administração Pública provedora de decisões que não careçam de reparo pela via judicial.

Sob a sombra da definição e dos limites subjetivos da coisa julgada administrativa não há nenhuma violação ao princípio da inafastabilidade do controle judicial previsto no art. 5º, XXXV da Constituição Federal brasileira. Direito fundamental que é, esse princípio inserto no catálogo do Título II existe em benefício do cidadão em face da Administração. Os direitos fundamentais não podem ser invocados pelo Poder Público, pelo que não há sentido em defender a inexistência de coisa julgada administrativa debaixo dessa fundamentação.

A compatibilização do princípio da segurança jurídica com outros princípios como o da legalidade acontece segundo os limites subjetivos aduzidos. Uma vez que a própria definição proposta exclui atos administrativos contaminados pela má-fé (porque ninguém pode se valer da própria torpeza) e os correspondentes a crimes (atos absolutamente insanáveis), e garante aos órgãos do sistema de controle brasileiro a anulação ou provocação judicial para anulação de atos contrários ao Direito, não há que se falar em prevalência irrestrita e em todos os casos do princípio da segurança jurídica. O Direito não protege a fraude, não compactua com a gravíssima ilegalidade atentatória de direitos fundamentais, e conta com a atuação firme dos Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e controladorias administrativas para o fim de harmonizar legalidade e segurança jurídica.

Reconhecer o dever de preservação da estabilidade das relações jurídicas segundo as diretrizes e limites acima pontuados é dar à coisa julgada administrativa a importância que ela merece e honrar o princípio da segurança jurídica nos termos em que colocado na Constituição brasileira. É, enfim, proteger a própria ordem constitucional democrática,a confiança dos cidadãos no Estado e fortalecer no plano interno a tríade necessária à integração latino-americana: direitos humanos, democracia e Estado de Direito.

5. Referências

ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Princípios da Administração Pública e segurança jurídica. In: In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Coord.). Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 47-63.

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Teoria Geral dos Atos Administrativos - uma releitura à luz dos novos paradigmas do Direito Administrativo. In: MEDAUAR, Odete. SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 37-70.

AURÉLIO, Bruno. Atos administrativos ampliativos de direitos. São Paulo: Malheiros, 2011.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. A segurança jurídica e as alterações no regime jurídico do servidor público. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 193-208.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum - ordinário e sumário. v. 2, t. I. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. (versão eletrônica)

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.883. (versão eletrônica)

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado, Porto Alegre, a. 27, n. 57, p. 33-75, 2004.

COUTO E SILVA, Almiro do. Os princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 20, n. 84, p.46-63, out./dez. 1987.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Limites da utilização de princípios do processo judicial no processo administrativo. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, jul./dez. 2013.

DIDIER JÚNIOR, Fredie, BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. v. 2. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015.

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo, Malheiros, 2007.

FINGER, Ana Cláudia. O princípio da boa-fé e a supremacia do interesse público: fundamentos da estabilidade do ato administrativo. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. (Coord.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 307-346.

HACHEM, Daniel Wunder. O Estado moderno, a construção cientificista do Direito e o princípio da legalidade no constitucionalismo liberal oitocentista. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, a. 11, n. 46, p. 199-219. 2011.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

MARINONI, Luiz Gulherme. Coisa julgada inconstitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. Malheiros: São Paulo, 2011.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estado de Direito e segurança jurídica. In: In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Coord.). Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 41-46.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Para uma teoria do ato administrativo unilateral. Interesse Público, Belo Horizonte, a. 15, v. 77, p. 15-21, jan./fev. 2013.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direito constitucional brasileiro. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 85-130.

SCLIAR, Wremyr. Coisa julgada e decisões de controle externo terminativas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 49, n. 194, abr./jun. 2012. p. 205-226.

SILVA, José Afonso. Constituição e segurança jurídica. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 15-30.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Teoria Geral do Processo Civil. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados. São Paulo: Malheiros, 2004.

SOUZA, Eduardo Stevanato Pereira de; LUNA, Guilherme Ferreira Gomes. Considerações sobre a coisa julgada administrativa. In: In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Coord.). Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 377-406.

TALAMINI, Daniele Coutinho. Revogação do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo do conhecimento. v. I. 55. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. (versão eletrônica).

VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010.

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por