O serviço de streaming no cenário legal brasileiro: reflexões a partir do caso Netflix

O serviço de streaming no cenário legal brasileiro: reflexões a partir do caso Netflix

The streaming service in the Brazilian legal scenario: notes concerning the Netflix case

LUCAS BOSSONI SAIKALI
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Brasil), Brasil
ALICE PADILHA DE CARVALHO
Universidade Federal do Paraná (Brasil), Brasil

O serviço de streaming no cenário legal brasileiro: reflexões a partir do caso Netflix

Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 4, núm. 2, 2017

Universidad Nacional del Litoral

Autores mantienen los derechos autorales y conceden a la revista el derecho de primera publicación.

Recepção: 18 Junho 2017

Aprovação: 15 Outubro 2017

Resumo: O presente artigo acadêmico tem o intuito de versar sobre um complexo ponto da atualidade, qual seja o serviço de streaming fornecido pela Netflix e sua relação com o Direito Administrativo. O estudo busca analisar como deve a Administração Pública influir na regulação de tais novas tecnologias. Eventual regulação causará efeitos diretos não só sobre a Administração Pública, mas também na iniciativa privada, na medida em que os serviços de telecomunicação não possuem qualquer regime de exclusividade estatal. Assim, primeiramente serão apresentadas noções de serviço público na Constituição de 1988 e pelos doutrinadores administrativistas, passando por debates históricos realizados pela doutrina. Ainda nesse ponto, será debatida a influência estatal e suas escolhas políticas quanto aos serviços que serão considerados públicos. Em seguida, tratar-se-á especificamente dos serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens, de modo a esclarecer seus contornos jurídicos. Posto isso, o caso da Netflix será analisado considerando os conceitos sedimentados anteriormente, para que se possa demonstrar que o serviço por ela prestado não se confunde com os serviços de radiodifusão tradicionais e de Serviço de Acesso Condicionado. Enfim, conclui-se o estudo de maneira a identificar o grau de sua incidência sobre a Administração Pública.

Palavras-chave: tecnologia, serviço público, serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, Netflix, assimetria regulatória.

Abstract: This academic article aims to address a complex point of today, which is the streaming service provided by Netflix and its relationship with Administrative Law. The study seeks to analyze how the Public Administration should influence the regulation of such new technologies. Eventual regulation will have direct effects not only on the Public Administration, but also on the private initiative, since the telecommunication services do not have any regime of state exclusivity. Thus, first will be presented notions of public service in the Constitution of 1988 and by the administrativist scholars, passing through historical debates realized by the doctrine. Also at this point, the state influence and its political choices will be debated regarding the services that will be considered public. Next, the article will deal specifically with the public services of sound broadcasting and of sounds and images, in order to clarify their legal contours. That said, the case of Netflix will be analyzed considering the previously established concepts, so that it can be demonstrated that the service provided by it is not confused with traditional broadcasting services and Conditional Access Service. Finally, the study is concluded in order to identify the degree of its impact on Public Administration.

Keywords: technology, public service, service of sound broadcasting and of sounds and images, Netflix, regulatory asymmetry.

Sumário:

1. Introdução; 2. Fundamentos do serviço público; 2.1. Noção histórica; 2.2. Concessão de serviço público; 3. Serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens; 4. O serviço de streaming: o caso Netflix; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.

1. Introdução

O objeto do Direito se transforma de tempos em tempos com as inovações tecnológicas, o que afeta todas as suas esferas, ainda que algumas de modo mais evidente que outras. Hodiernamente, as evoluções tecnológicas são cada vez mais rápidas, de modo que se tornou um desafio acompanhá-las, assim, o Direito transborda conceitos e se expande para buscar explicar tais mudanças. A relação entre Estado e Sociedade é extremamente dinâmica e depende de diversos fatores, dentre os quais, da economia, política, cultura e das ideologias. Assim, a doutrina do Direito Administrativo tem ampliado e segue buscando a renovação do Direito Público se distanciando do modelo clássico ?para ocupar-se de todas as relações que se possam estabelecer no amplíssimo e indefinido campo das interações jurídicas em que a Administração seja parte, mesmo que, por eleição da lei ou dela própria, se possam classificar como relações de direito privado?.[1]

Nessa toada, as inovações na tecnologia e o constante desenvolvimento da rede mundial de computadores desafiam o Poder Público, principalmente por estarem amplamente difundidas na sociedade. Nos dias de hoje, existem casos de empresas que prestam serviços que podem coincidir com atividades prestadas pela Administração de forma direta ou indireta, mediante concessão ou permissão de serviço público. Por isso, deve-se investigar quais os limites de eventual regulação governamental, uma vez que o serviço público envolve questões políticas e jurídicas essenciais.

O desafio para o Estado é enfrentar as chamadas ?inovações disruptivas?: termo utilizado para se referir às novas tecnologias que, ao prestarem serviços ou oferecer um bem instigam a competição entre empresas consolidadas, abrem o mercado e incentivam constantes mudanças com o intuito de manter seus consumidores.[2] Tais inovações disruptivas são prestadas por meio da rede mundial de computadores e podem ser acessados em notebooks, smartphones e tablets e utilizados a qualquer momento. Alguns exemplos de fenômenos tecnológicos que estão nessa categoria são o WhatsApp, Uber e os serviços de streaming (Netflix, Spotify, iTunes Match, HBO GO, dentre outros). No presente artigo será abordado especificamente o serviço prestado pela Netflix, que propõe a disponibilização de conteúdos de entretenimento on demand através da tecnologia da transmissão instantânea de dados.

A utilização e a regulação dos referidos serviços geram discussões tanto no mundo acadêmico quanto na sociedade de modo geral. No caso que será estudado, da Netflix, discute-se qual deve ser o lugar da empresa, no cenário brasileiro, tendo em vista a sua natural concorrência com as operadoras de televisão aberta e fechada. Desse modo, será examinado a interferência dessa tecnologia frente aos serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens, que possuem um regime tradicionalmente restrito. Portanto, resta evidente que o tema afeta diretamente a livre concorrência da iniciativa privada e a Administração Pública.

Muito embora, seja essencial que o ente estatal procure se adequar as novas tecnologias, é de suma importância apontar que esta deve verificar a observação do princípio da eficiência ? presente no caput do art. 37 da Constituição Federal ? ao intervir nos meios econômicos e sociais. O presente artigo busca apresentar esse diálogo, considerando a posição do legislador quanto ao tema e os ensinamentos doutrinários, principalmente ao abordar a teoria de serviços públicos, e em seguida analisando o regime jurídico das atividades relacionadas a radiodifusão sonora e de sons e imagens.

É relevante apontar que ainda que tais discussões sejam escassas no mundo jurídico, destaca-se a relevância do tema, haja vista que a conexão direito-economia-tecnologia é uma realidade que merece atenção.

2. Fundamentos do serviço público

O tema do serviço público é polêmico aos administrativistas por conta de suas diversas transformações a fim de se adaptar a novas realidades sociais, de modo que não há um único conceito que possa abranger o assunto. Em seus estudos, Dinorá Adelaide Musetti Grotti afirma que o serviço público é uma escolha política realizada pelo legislador, na medida em que ?cada povo diz o que é serviço público em seu sistema jurídico?[3]. Isso significa que se trata de uma escolha política realizada em um determinado momento histórico, no qual o Estado passou a entender que esta atividade deveria ser tomada como sua, submetendo-a ao regime de serviço público.

Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta a importância da noção do serviço público no Brasil ao afirmar que ?basta mencionar que a Constituição brasileira se reporta a ele, literal e diretamente, 18 vezes em seu texto permanente e mais 5 no Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, afora o arrolamento de serviços públicos de competência exclusiva da União?[4]. Ademais, imperioso mencionar que a Constituição Federal de 1988 expõe ? de forma clara e específica ? no caput do art. 175 que a prestação de serviços públicos compete ao Estado, direta ou indiretamente, sob o regime de concessão ou permissão.

Segundo Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas, a doutrina brasileira tende a entender que as atividades consideradas como serviço público estão reversas à lógica do mercado.[5] Conforme pode ser depreendido do conceito de Marçal Justen Filho, os serviços públicos são atividades que buscam atender às necessidades vinculadas a direitos fundamentais individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, que não podem ser satisfeitas de forma adequada por meio da livre iniciativa e, além disso, que devem ser executadas sob o regime de Direito Público.[6]

Nesse sentido, segundo o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, o serviço público compreende atividades em que há ?oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público?, que deve seguir interesses tidos como norteadores da Administração Pública.[7]

Para além dos posicionamentos supracitados, Eros Grau afirmara, em edição mais antiga de seu livro, haver uma distinção, presente na Constituição, entre serviços públicos e atividades econômicas em sentido estrito. Desse modo, há diferenciação entre os serviços públicos privativos, que caso sejam prestados pelo setor privado configuram as hipóteses de concessão e permissão, e aqueles em que a prestação é livre pelo setor privado configurariam a modalidade de atividade econômica em sentido estrito se prestados por particulares, como no caso de saúde e educação, enquanto se fossem prestados pelo Estado seriam um serviço público não privativo.[8] No entanto, na mais recente edição de sua obra, o jurista sustentou que essa distinção é errônea, haja vista que uma atividade caracteriza ou deixa de caracterizar serviço público por estar sendo exercida pelo Estado ou pelo setor privado, de modo que tudo é serviço público, pois ?há serviço público mesmo nas hipóteses de prestação dos serviços de educação e saúde pelo setor privado?.[9]

Nesse diapasão, afirma o autor que a distinção entre serviço público não privativo daquele privativo é que o primeiro pode ser prestado independente de concessão ou permissão. Logo, há serviço público mesmo quando este é prestado pelo setor privado. Assim, quando se tratar de atividade econômica em sentido amplo é necessário atender o imperativo da segurança nacional e do relevante interesse coletivo, quando o Estado a desenvolver será atividade econômica em sentido estrito, no entanto, se exercer em função do interesse social será serviço público.[10] Por fim, tem-se que a noção de serviço público que Eros Grau apresenta define este como a ?atividade explícita ou supostamente definida pela Constituição como indispensável, em determinado momento histórico, à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social (Duguit) ? ou em outros termos, atividade explícita ou supostamente definida pela constituição como serviço existencial relativamente à sociedade em um determinado momento histórico (Cirne Lima)?.[11]

Isto posto, necessário apresentar os princípios que regem a execução e desenvolvimento dos serviços públicos no Brasil, quais sejam, o da continuidade, generalidade ou igualdade dos usuários, modicidade das tarifas e mutabilidade do regime jurídico.[12] Quanto ao primeiro, considera-se que tais serviços possuem grande importância e o exercício da função pública deve não pode ser interrompido, de modo que o concessionário ou permissionário não pode se escusar do cumprimento de contrato, exceto nos termos do art. 39 da Lei 8.987/95 e em situação de emergência ou aviso prévio.[13]

O princípio da generalidade é uma decorrência do princípio da impessoalidade, ou seja, não é admissível a prática de discriminação entre usuários. Devido ao fato de os serviços públicos serem considerados de grande relevância para a coletividade, o princípio da modicidade das tarifas importa que devem haver tarifas que não excluam usuários considerando as diferenças sociais existentes no país[14]. Por fim, a mutabilidade do regime jurídico manifesta que este pode ser adaptado de acordo com os interesses públicos, não havendo uma proteção para alterações unilaterais por parte do Poder Público no contrato, este pode ser considerado um princípio que provém da supremacia do interesse público.[15]

2.1. Noção Histórica

A expressão ?serviço público? foi primeiramente empregada por Jean-Jaques Rousseau como um conceito político que abrangia atividades exercidas pelo Estado, não por particulares, e que satisfaziam uma necessidade entendida como geral da sociedade.[16] Em uma análise da realidade se verifica que atualmente essas assertivas podem ser empregadas, muito embora o momento histórico-político seja diverso. Considera-se que o serviço público ? conceitualmente nominado dessa forma ? surgiu após a Revolução Francesa, apesar de que no contexto do Ancién Régime existiam atividades materialmente relacionadas não há evidências de que se tratava de tal instituição jurídica, pois eram apenas práticas sociais coordenadas por uma autoridade comum.[17] Com o fim da Revolução Francesa passa a se ter a ideia de que todas as instituições públicas constituem um serviço público (no entanto, não é este o ponto de partida de uma dominação sobre a intervenção estatal).[18]

Diversos fatores contribuíram para o processo de assunção de poder e concentração de maneira centralizadora pela Administração Pública em seus mais diversos níveis de intensidade. Nesse sentido, Meilán Gil afirma que ?para intervir em um certo campo o Estado necessita previamente declará-lo de sua competência, quer dizer, declará-lo público?,[19] sendo este processo chamado de publicatio, através do qual a titularidade do serviço é transferida ao Estado, passando este a ser um serviço público.

A noção de serviço público em seu atual sentido apenas aparece no século XIX, a partir de uma decisão do Tribunal de Conflitos no Caso Blanco em 1873.[20] Contudo, é no século seguinte que a jurisprudência francesa desenvolveu com maior propriedade a noção de serviço público, sendo inicialmente utilizada como forma de distinguir as competências da jurisdição administrativas e comum.[21]

A partir dessa nova temática instaurada pelas Cortes francesas, surgiu a Escola Realista (ou Escola de Bordeaux), compostas por autores como León Duguit e Gaston Jèze, que, em seus estudos, buscaram embasar suas pesquisas teóricas em fatos sociais.

Para o primeiro, o serviço público é concebido como fundamento do Estado, sendo uma forma de legitimação deste e seu cumprimento deve ser assegurado e regulado pelos governantes.[22] Para Duguit, o Estado é uma cooperação de serviços públicos, organizados e controlados pelos governantes, que assim como os governados estão submetidos ao direito e gerenciam aqueles.[23] O autor definia serviços públicos como ?toda atividade cuja realização deve ser assegurada, regulada e controlada pelos governantes, porque a consecução dessa atividade é indispensável à concretização e ao desenvolvimento da interdependência social, e é de tal natureza que só pode ser realizada completamente pela intervenção da força governante?.[24] Desse modo, propunha uma teoria reducionista, que tinha como centro o serviço público e normas e princípios que gravitavam em torno deste[25]. O entendimento do autor sobre o que era serviço público foi extremamente criticado, sobre tudo por tratar-se de um modelo reducionista do Direito Administrativo. À título de exemplo, Maurice Hauriou apresentava-se como um dos opositores das ideias e Duguit, sustentando que este teria deixado de incluir em sua teoria a noção de poder político.[26]

Gaston Jèze, por sua vez, por ser um autor de caráter mais formalista, advogava a ideia de que o serviço público está relacionado ao procedimento e a um regime jurídico de Direito Público ? sendo que o interesse público sobrepujado ao privado. Para o jurista não é toda a atividade realizada pelo Estado que se caracteriza como serviço público, mas apenas aquelas que o Poder Público decide realizar determinada atividade por meio do procedimento de direito público.[27]

As noções apresentadas pela Escola de Bordeaux foram refutadas após a transição do Estado Liberal para o Welfare State (época conhecida como a Primeira Crise do Serviço Público). Nesta transição, a atuação do Estado foi ampliada e não seria possível explicar todas as áreas de atuação da Administração a partir da teoria proposta por Duguit e Jèze.[28] No entanto, não há como se negar a importância dos estudos e dos avanços doutrinários dos autores franceses para a temática do serviço público.

2.2 Concessão de Serviço Público

No Direito brasileiro não há como se falar no exercício da função pública por particulares sem qualquer ato jurídico de direito público, ainda que implícito ou que importe delegação do desempenho daquela função. Isto posto, ?a atividade privada, por mais relevante ou útil que seja para toda a sociedade, não caracteriza por si só, via de regra, serviço público?.[29] Neste ponto sobreleva ressaltar a distinção entre titularidade e prestação, pois por mais que o Estado seja o detentor (ou titular) de tal serviço ele não é obrigado a prestá-lo de fato, mas deve sempre promover a sua prestação.[30] Dessa forma, cabe a outras entidades (como as empresas privadas) prestar, mediante concessão ou permissão, tais serviços observando as diretrizes e regras fixadas pela Administração, bem como a noção de complementariedade dos sistemas privado, público e estatal.[31]

O legislador ordinário regulamentou, ao editar a Lei nº 8.987/95, o disposto na Constituição Federal sobre a matéria dos serviços públicos, evidenciando que ela será regida nos termos do art. 175 da Constituição da República, nas normas legais pertinentes, nas cláusulas dos contratos e na própria lei infraconstitucional, sendo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão realizar as adaptações necessárias para abranger suas modalidades de serviços. Quanto a identificação desses dois modelos de prestação de serviço (concessão e permissão), o contraste entre ambas fica evidente da leitura do art. 2º da Lei nº 8.987/95.[32]

Inicialmente, a doutrina pátria costumava diferenciar permissão de concessão ao afirmar que esta tinha natureza jurídica contratual enquanto aquela era um ato unilateral precário. Contudo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.491/DF afastou as diferenças contratuais entre essas.

3. Serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens

Conforme esposado anteriormente no trabalho, a concessão do serviço ocorre em razão da prerrogativa do Poder Púbico (União, Estados e Municípios) exercer diretamente ou mediante regime de concessão, permissão ou autorização a prestação de serviços públicos.

Dessa forma, importa ressaltar a relevância constitucional do estudo. Inicialmente, tem-se que os artigos 21, inc. XII, e 22, inc. IV, da Constituição, reservam para a União, a fim de que ela explore, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Ainda, conforme disciplina o art. 223 da Constituição Federal, ?compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal?. Nessa medida, a concessão reveste a natureza de todo contrato administrativo de prestação de serviço público, uma vez que se trata de situação em que a Administração Pública transfere ao concessionário, pessoa jurídica de direito privado, o exercício de atividade em seu nome. Contudo, esta mantém o poder fiscalizatório, bem como torna-se responsável pelos possíveis riscos do empreendimento.[34]

No âmbito dos serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens tem-se um regime tradicionalmente restrito e confuso. Vale pontuar que a Lei de Concessões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/95), nos quais se encontrara um parâmetro legal para regular a matéria, dispõe expressamente que ela própria não se aplica à regulamentação das concessões/autorizações de rádio e TV (art. 41), que possuem regramento próprio (Código Brasileiro de Telecomunicações ? Lei nº 4.117/62).[35] Não obstante, embora o Poder Público busque adequar o ambiente institucional, as novas tecnologias ? especialmente aquelas provenientes de aparatos ligados à rede mundial de computadores ? dificultam a eficácia regulatória.[36]

De acordo com José Afonso da Silva, os serviços públicos de telecomunicações podem ser divididos em duas espécies: a do ?serviço público em geral? e ?serviço público restrito?. Enquanto a primeira está destinada ao público em geral, a segunda é facultada ao uso de passageiros dos navios, aeronaves, veículos em movimento ou ao uso do público em localidades ainda não servidas pelo serviço público em geral.[37]

Na esfera da radiodifusão não há exploração exclusiva, tendo em vista o art. 35 do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT).[38] Essa também é a realidade nos casos dos Serviços de Acesso Condicionado ? SeAC.[39] Nestes, ?na?o haverá? limite ao número de autorizações para prestação do serviço, salvo em caso de impossibilidade técnica ou, excepcionalmente, quando o excesso de competidores puder comprometer a prestação do serviço, nos termos da legislação?, conforme o art. 11 da Resolução nº 581/2012 da ANATEL, que regula os SeAC. Contudo, no caso dos concessionários e autorizados prestadores de serviço público há um forte influxo regulatório, não sendo possível que a utilização do Netflix como um modelo que prejudique as TVs abertas e fechadas.[40] [41]

No entanto, as novas tecnologias e os novos modos de prestar serviços trazem diversas discussões para o mundo jurídico. E, principalmente, demonstram que nestes casos o desenvolvimento tecnológico está diretamente ligado ao poder da economia[42] e à eventual regulação por conta da Administração Pública.

4. O serviço de streaming: o caso Netflix

Derivada do vocábulo inglês stream, a palavra streaming traz a ideia de fluxo, algo que se move rapidamente. Nos serviços de streaming é pago o acesso livre em detrimento de guardar o arquivo em dispositivos, o que permite maior interação entre os usuários, bem como uma melhor organização dos arquivos.[43] Isso significa que esses serviços consistem na distribuição online de dados. Diferentemente dos downloads, não há armazenamento de conteúdo, sendo este reproduzido na medida em que o usuário o recebe.[44]

Hodiernamente, a utilização dos serviços prestados via streaming por empresas como Netflix já são realidade no cenário nacional[45] e certamente merece a atenção dos pensadores do Direito, pois quanto mais se inova mais se dá espaço para que novos serviços sejam implementados através da rede mundial de computadores e, nesse momento, crê-se que o legislador falha em acompanhar as inovações tecnológicas.

De acordo com seu próprio sítio eletrônico, a Netflix pode ser definida como ?um serviço de transmissão online que permite aos clientes assistir a uma ampla variedade de séries de TV, filmes e documentários premiados em milhares de aparelhos conectados à internet?. A variedade e a contínua inserção de novas séries, documentários ou filmes são características do serviço ofertado. Há sempre uma vasta quantidade de conteúdo a ser acessada pelo assinante do serviço da Netlifx. Desta feita, conclui-se que, ao contrário do que acontece com a televisão aberta e com os Serviços de Acesso Condicionado, a liberdade do conteúdo ofertado por aquela é maior que o destas.

Segundo Ericson Scorcim, o Netflix e outras empresas que prestam serviços de streaming ?fornecem conteúdo audiovisual, na modalidade vídeo (filmes, seriados, vídeos etc.), os quais não são propriamente programação de televisão?.[46] Dessa maneira, não estariam submetidas a? Lei no 4.117/62, por não se tratar de serviço de radiodifusão. Não obstante, sustenta o autor que ?também, estas espécies de serviços audiovisuais não são objeto da Lei da TV por assinatura porque não são propriamente canais de programação ofertados aos consumidores?. Para o autor, é necessário o debate do Poder Legislativo sobre o assunto.

Sendo assim, Floriano de Azevedo Marques Neto e Rafael Véras de Freitas defendem que por mais que se entenda a Netflix como um serviço privado autônomo, não é cabível cogitar que ela está autorizada a comprometer a viabilidade do serviço de radiodifusão universal e gratuito ou então de um prestador do SeAC: ou seja, não é cabível se cogitar que a Netflix apresente um novo modelo que inviabilize a TV aberta e fechada. Desse modo, sustentam os juristas que deve haver uma ?assimetria regulatória? que, por um lado, deverá regular a Netflix a fim de não permitir que ela dê fim das concessionárias e autorizadas do serviço de radiodifusão e, por outro, que esse regramento legal deve coibir a interdição do serviço de streaming, levando em consideração o conceito de neutralidade de rede (o respeito à neutralidade da rede impede que seja reduzido o tráfego de dados, in casu, a Netflix).[47] No Brasil, o princípio da neutralidade da rede se apresenta na Lei no 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que defende ?a preservação e garantia da neutralidade da rede?, essencial para a continuidade dos serviços de streaming. O artigo 9º do referido diploma dispõe que ?o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação?.

Guilherme Siqueira Vieira sustenta que o serviço de streaming de vídeos não se encontra abarcado por nenhum dos regimes regulatórios da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) ou da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Contudo, não defende uma nova regulação, mas sim a atualização do material legislativo existente, sob pena de criar obstáculos ao desenvolvimento desses empreendimentos no Brasil.[48]

Portanto, não há que se crer na existência de um regime juri?dico-administrativo que interdite a prestação concorrencial. A regulação deve acontecer de modo equilibrado a fim de equacionar ?de um lado, o direito do cidadão de receber serviços essenciais; e, do outro, o direito de exploração das atividades econômicas por particulares?.[49]

Vale ressaltar que o legislador infraconstitucional brasileiro já se imiscuiu no debate sobre a regulação dos serviços de streaming. No final de 2016, foi aprovado o projeto de lei que alterou a Lei Complementar nº 116/03, que dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza de competência dos Municípios e do Distrito Federal. A alteração legal adicionou os contratos de streaming à Lista de Serviços passíveis de incidência do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza.[50] Nesse diapasão, a necessidade de pagamento de impostos pela empresa prestadora do serviço tem como natural consequência o aumento do custo do serviço prestados, o que causa também o aumento usuários.[51]

Segundo Alexandre Santos de Aragão, são três os poderes essenciais da atividade regulatória: a possibilidade de editar normas, assegurar sua aplicação e reprimir seu descumprimento (poder de polícia administrativa).[52] Nessa medida, a análise de Direito Econômico, Direito Administrativo e Direito Regulatório é de suma importância para a possível e eventual regulação da Administração Pública sobre os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens prestados através da rede mundial de computadores.

5. Conclusão

Não há como se olvidar que atualmente a circulação de conteúdo entre as pessoas depende da comunicação social e, nesse ponto, as novas tecnologias digitais se diferenciam em muito das trocas de informações comuns na era analógica.[53] Em uma realidade social dotada de aparatos e ferramentas que facilitam a acessibilidade aos serviços de radiodifusão de sons e imagens, sobreleva ressaltar para o usuário, ou telespectador, ?o importante é ter um programa atrativo, prendendo a atenção, oferecendo conteúdos que ele queira assistir?, seja na televisão, no smartphone ou na internet.[54] Nesse sentido, por se tratar do Netflix de um serviço ainda novo no cenário brasileiro, é preciso, inicialmente, que seja realizado um trabalho político e de sensibilização em favor das transformações que ocorrem na esfera da comunicação e da radiodifusão, demonstrando o potencial dos serviços prestados a partir da atuação junto à internet.[55]

No cenário brasileiro, é forte o influxo regulatório a que se submetem os concessionários de serviços de radiodifusão e aqueles autorizados a prestar o serviço enquanto Serviço de Acesso Condicionado, principalmente no que se refere à responsabilidade das concessionárias do serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens em razão do conteúdo que transmite ao público.[56]

Em razão disso, o presente estudo segue a doutrina apresentada, a fim de concluir que o conflito entre os serviços públicos de radiodifusão (sonora e de sons e imagens) deve passar por uma prudente assimetria regulatória entre os prestadores ? seja pela televisão aberta, fechada e a Netflix (bem como as demais empresas que oferecem o serviço via streaming). Uma realidade em que os serviços públicos de radiodifusão tradicionais e os Serviços de Acesso Condicionado possuem forte regulação e na qual os serviços de streaming não se submetam a qualquer influxo regulatório aparenta causar uma concorrência predatória em favor da Netflix, pois teria como efeito o crescimento desta em desfavor daquelas.

Em conclusão, o presente estudo defende a regulação assimétrica do serviço prestado pelas empresas de streaming, a fim de se adequar ao cenário brasileiro e para não prejudicar os serviços tradicionais e de Acesso Condicionado de radiodifusão, devendo ser respeitada a neutralidade da rede.

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