Controle jurisdicional de políticas públicas no brasil: alguns parâmetros para a atuação do judiciário na concretização de direitos fundamentais sociais
Resumo: O presente trabalho tem por objeto o estudo do exercício de cada uma das funções-poderes estatais, verificando a prevalência de uma sobre a outra, ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal. Em um país de Modernidade Tardia, como o Brasil, a ineficiência de políticas públicas básicas leva, sem dúvida, a uma judicialização de questões afetas à concretização dos direitos sociais. Constatou-se que esse ativismo judicial, calcado e plasmado na esteira do pós-positivismo, vem encontrando frontal resistência na classe política, que se insurge contra os supostos ataques do Judiciário, àquilo que chama de soberania do voto, para fazer referência à legitimidade dos atos dos administradores, porquanto fundados em mandato de representação política democraticamente conquistada. O procedimento metodológico adotado consistiu no estudo de casos da jurisprudência, em especial da Suprema Corte brasileira, a qual, aos poucos, tem firmado posicionamentos que representam importantes parâmetros para se verificar o limite da atuação jurisdicional. Conclui-se que o estado de coisas inconstitucional, o mínimo existencial e a não-intervenção em questões meramente políticas constituem parte de tais parâmetros.
Palavras-chave: função estatal, ativismo, política pública, direitos fundamentais sociais, Poder Judiciário.
Abstract: The present work aims to study the exercise of each of the state powers, verifying the prevalence of one over the other, or because this exercise is exaggerated, in a way that one of the Powers surpasses others, or because others do not give the exercise the intensity that would be normal. In a country of Late Modernity, such as Brazil, the inefficiency of basic public policies undoubtedly leads to a judicialization of issues that affect the implementation of social rights. It was verified that this judicial activism, shaped and organized in the wake of post-positivism, has encountered frontal resistance in the political class, which protests against the supposed attacks of the Judiciary, to what it calls the sovereignty of the vote, to make reference to the legitimacy of the acts of the administrators, since they are based on a mandate of political representation democratically conquered. The methodological procedure adopted consisted in the study of cases of jurisprudence, in particular the Brazilian Supreme Court, which, little by little, has established positions that represent important parameters to verify the limit of the jurisdictional action. It is concluded that the unconstitutional state of affairs, the existential minimum and non-intervention in purely political issues are part of such parameters.
Keywords: state function, activism, public policy, fundamental social rights, Judiciary Power.
Fecha:
Recibido el/Received: 09.07.2019 / July 09th, 2019
Aprobado el/Approved: 12.10.2019/ October 12th, 2019
RESUMO:
O presente trabalho tem por objeto o estudo do exercício de cada uma das funções-poderes estatais, verificando a prevalência de uma sobre a outra, ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal. Em um país de Modernidade Tardia, como o Brasil, a ineficiência de políticas públicas básicas leva, sem dúvida, a uma judicialização de questões afetas à concretização dos direitos sociais. Constatou-se que esse ativismo judicial, calcado e plasmado na esteira do pós-positivismo, vem encontrando frontal resistência na classe política, que se insurge contra os supostos ataques do Judiciário, àquilo que chama de soberania do voto, para fazer referência à legitimidade dos atos dos administradores, porquanto fundados em mandato de representação política democraticamente conquistada. O procedimento metodológico adotado consistiu no estudo de casos da jurisprudência, em especial da Suprema Corte brasileira, a qual, aos poucos, tem firmado posicionamentos que representam importantes parâmetros para se verificar o limite da atuação jurisdicional. Conclui-se que o estado de coisas inconstitucional, o mínimo existencial e a não-intervenção em questões meramente políticas constituem parte de tais parâmetros.
Palavras-chave:
função estatal; ativismo; política pública; direitos fundamentais sociais; Poder Judiciário.
ABSTRACT:
The present work aims to study the exercise of each of the state powers, verifying the prevalence of one over the other, or because this exercise is exaggerated, in a way that one of the Powers surpasses others, or because others do not give the exercise the intensity that would be normal. In a country of Late Modernity, such as Brazil, the inefficiency of basic public policies undoubtedly leads to a judicialization of issues that affect the implementation of social rights. It was verified that this judicial activism, shaped and organized in the wake of post-positivism, has encountered frontal resistance in the political class, which protests against the supposed attacks of the Judiciary, to what it calls the sovereignty of the vote, to make reference to the legitimacy of the acts of the administrators, since they are based on a mandate of political representation democratically conquered. The methodological procedure adopted consisted in the study of cases of jurisprudence, in particular the Brazilian Supreme Court, which, little by little, has established positions that represent important parameters to verify the limit of the jurisdictional action. It is concluded that the unconstitutional state of affairs, the existential minimum and non-intervention in purely political issues are part of such parameters.
Keywords:
state function; activism; public policy; fundamental social rights; Judiciary Power.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Harmonia e independência entre os poderes; 3. Controle jurisdicional na sociedade contemporânea; 4. A atuação do judiciário (e do STF) frente à inércia dos demais poderes e a crise institucional instaurada; 5. Concretização de políticas públicas pela via judicial: alguns parâmetros; 6. Conclusão; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto o estudo do exercício de cada uma das funções-poderes estatais, verificando a prevalência de uma sobre a outra, ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal.
O tema ganha relevância, em especial em razão de recentes julgamentos da Suprema Corte que tratam desde temas como reconhecimento de efeitos jurídicos à união homoafetiva, como a cassação da ex-presidente da República e a determinação de adoção de medidas administrativas em relação ao sistema carcerário brasileiro.
Desta forma, o presente artigo, sem adentrar a aprofundada distinção entre poder (que é uno e emana do povo) e funções (atribuições a cada órgão estatal), ou a corriqueira identificação de funções estatais típicas e atípicas, analisará a harmonia e independência entre os Poderes.
No capítulo seguinte far-se-á uma análise do exercício da função jurisdicional na sociedade contemporânea. Pretende-se o estudo da concepção de pós-positivismo consagrada no encontro da norma com a ética, inaugurando no mundo jurídico as ideias de justiça e legitimidade consubstanciadas em princípios, assim chamados os valores vividos pela sociedade em determinada época e lugar.
Por fim, após destacar a atuação jurisdicional em confronto com a inércia dos demais poderes, o trabalho tentará estabelecer parâmetros para a atuação jurisdicional concretizadora de políticas públicas garantidoras de direitos sociais fundamentais.
2. HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES
Sem adentrar a aprofundada distinção entre poder (que é uno e emana do povo) e funções (atribuições a cada órgão estatal), é corriqueira a identificação das funções estatais principais, quais sejam, legislativa, executiva e jurisdicional, como funções independentes entre si, cada qual com sua gama de competências. Tais funções-poderes convivem de forma harmônica, pois são distintas e específicas. Esta separação das atribuições, contudo, não é austera, havendo influências recíprocas em cada poder. Ou seja, cada função-poder estatal, além de exercer suas atribuições, também interfere nas demais.
Trata-se do modelo de freios e contrapesos (checks and balances do Direito norte-americano), caracterizada por uma postura de mútuo controle de poderes, enquanto âncora modeladora do exercício do poder e salvaguarda da liberdade[1]. Ao mesmo tempo que um poder controla o outro, acaba, também, limitando-o. E esta é, também, a intenção do modelo do ?freios e contrapesos?. ?Do que se trata então não é de limitação pelas formas dos actos, mas de limitação por regras que impeçam o poder de invadir (ou deixar invadir por outros poderes sociais)?, conforme explica Jorge Miranda[2]. Por limitação material, entenda-se a limitação da ação dos governantes, preservando-se valores permanentes e superiores. Continua o doutrinador: ?Limitação material significa disciplina do poder ? inclusive do poder constituinte ? contenção dos governantes e defesa dos direitos dos governados; traduz-se no respeito pela autonomia destes últimos; implica instrumentos jurídicos de garantia?[3]. Daí o porquê, inclusive, da Constituição de 1988 inserir a separação de poderes, sob esta concepção (diga-se) como cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, inciso III).
Na compreensão de Montesquieu[4], a preocupação de se limitar o poder consistia no intuito de não permitir o seu abuso, vez que o poder cresce e se alarga, indo até onde encontra limites.
Os poderes estatais são, portanto, independentes e harmônicos entre si (artigo 2º, da Constituição de 1988). Não há, em princípio, nas palavras de Pontes de Miranda, ?predominância de qualquer deles. O exercício de cada um dos três é que pode fazer um deles preponderar?[5].
Porém, é o exercício de cada um deles que pode fazer um preponderar sobre o outro, ?ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos Poderes passe a superar os outros, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal?[6]. Pontes de Miranda, identificando uma crise no que tange à concretização dos preceitos da Constituição de 1946 e que, guardadas as peculiaridades do contexto histórico, pode ser identificada nos dias de hoje, afirmava que ?A crise que sobreveio ? no plano da democracia e no plano das finanças e da economia ? resultou disso?. Continua: ?Não é ao Poder Executivo que incumbe dar importância ao Poder Legislativo, ou reconhecer-lhe supremacia: só o próprio Poder Legislativo pode fazer-se tão importante quanto a Constituição de 1946 estatuíra que devera ser?. E conclui: ?só ele mesmo [Legislativo] poderia criar-se a supremacia no torneio de bem servir, que a Constituição de 1946 permitia aos três Poderes. (...) No mundo jurídico, os três poderes têm a mesma altura; no mundo fático, é mais alto o que mais merece? ou seja, ?o que se conservou onde devia estar, enquanto os outros se baixaram de nível?[7].
Feitas estas considerações, imperativo que se analise a atual crise entre Legislativo e Judiciário, refletida em julgados da Suprema Corte brasileira, o STF, à luz da Constituição de 1988, tomando-se por parâmetro a devida noção das atribuições de cada um destes Poderes.
3. CONTROLE JURISDICIONAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Para melhor compreensão do atual papel do Poder Judiciário, imperativa uma breve análise histórica.
No campo do Direito, o século XIX e início do XX serviram para a consolidação do paradigma jurídico positivista. Sob ele construiu-se um modelo argumentativo ?liberal-individual-normativista?[8], pela qual a lei é vista como ?lei-em-si-mesma?, abstraída de suas condições histórico-sociais.
Sustentando esse modelo inidividual-normativista existe um campo hermenêutico jurídico, disseminado pela Filosofia da Consciência, pautada na lógica do sujeito cognoscente e objeto cognotivo, pela qual o sujeito de direito, defronte ao objeto a ser analisado, limita-se a descrevê-lo, utilizando a linguagem como mero instrumento dessa relação entre sujeito-objeto[9].
Segundo essa concepção epistemológica, a atividade judicial é concebida como mera administração da lei pelo Judiciário, instituição tida como neutra, imparcial e objetiva, ficando o intérprete, aplicador do Direito, convertido a um simples burocrata do Direito Positivo. Como o que importa não é a explicação, a compreensão ou a orientação dos comportamentos jurídicos, e sim a tipificação e sistematização de situações normativas hipotéticas, ao agir de modo ?técnico?, isto é, sem preferências valorativas e imunes a questões político-sociais, o jurista atua limitado pelas garantias formais, da certeza jurídica e do império da lei, postulados fundamentais do modelo paradigmático liberal-burguês do Estado de Direito Positivo: ?...ele [o jurista] desempenha também o papel de um profissional competente na integração dos atores considerados ?disfuncionais? na vida social?[10].
Já no início do século XX, surgiram críticas ao modelo positivista, destacando a necessidade de se incorporarem valores sociológicos e econômicos ao conceito de norma, numa idéia ampliativa acerca das fontes jurídicas[11] e que aponta as fraquezas de um sistema formal desvinculado de ideais finalísticos.
E a partir da segunda metade do século passado, uma nova dogmática incorpora os valores abandonados pelo positivismo, numa nova fase de jurisprudência de valores, contestando-se o vazio axiológico e teleológico criado pela legalidade formalista. Tal concepção propaga-se na doutrina, principalmente alemã, que reorganizava o seu Direito Constitucional sob a ótica da democracia substancial, notadamente com Alexy[12] e Canaris[13], este último definindo, claramente, o Direito como um sistema aberto de valores, ou seja, expresso por meio de princípios dotados de força normativa.
O pós-positivismo consagra, assim, o encontro da norma com a ética, inaugurando no mundo jurídico as idéias de justiça e legitimidade consubstanciadas em princípios, assim chamados os valores vividos pela sociedade em determinada época e lugar. Nesta linha de raciocínio, o jurista americano Ronald Dworkin[14] trabalha com uma perspectiva do direito enquanto pacto pré-interpretativo referente às práticas sociais que serão consideradas jurídicas numa certa sociedade, ressaltando que tais práticas deverão ser analisadas tomando-se por base princípios fundamentais eleitos pela própria comunidade. No desenvolvimento de processo interpretativo, é necessário adequar os preceitos estabelecidos, coerentemente, à interpretação do direito.
Para Alexy, o silogismo judicial não encerra o entendimento jurídico e não são prescindíveis juízos de valor da parte do julgador. Será necessário, porém, promover meios racionais de explicação desses juízos de valor, de modo que se atinja uma reorganização racional dos preceitos argumentativos usados no debate jurídico. Ensina que o julgador deve ?fixar uma teoria do discurso para o objeto proposto, fundamentando as proposições normativas?, acarretando ?a produção de um discurso racional, valendo ressaltar que, mesmo não sendo este resultado absoluto, traria uma racionalidade na decisão.? [15]
O zelo pela formalização, característico do positivismo, bem como a concepção fechada e impermeável do Direito, predominantes por quase dois séculos, passam a ser colocados em dúvida frente à complexidade das relações jurídicas e sociais. Era ?uma noção de positividade que não nos restitui, senão opacamente, a complexidade que a ordem jurídica tem por dever organizar?. Paolo Grossi continua sua crítica: ?Deve ser superada a idéia de que o direito é feito mediante leis e que somente o legislador é ?jusprodutor?, capaz de transformar tudo em direito, quase como um Midas dos nossos dias?[16]. O século XX é ainda palco de novas propostas filosóficas[17] com importantes reflexos no mundo jurídico e na concepção de justiça[18].
Nesta mesma linha é a doutrina de Daniel Sarmento, para quem ?a leitura clássica do princípio da separação de poderes, que impunha limites rígidos à atuação do Poder Judiciário, cede espaço a outras visões mais favoráveis ao ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais?. No lugar de ?concepções estritamente majoritárias do princípio democrático, são endossadas teorias de democracia mais substantivas, que legitimam amplas restrições aos poderes do legislador em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, e possibilitem a sua fiscalização por juízes não eleitos. E ao invés de uma ?teoria das fontes do Direito focada no código e na lei formal?, enfatiza-se a ?centralidade da Constituição no ordenamento, a ubiqüidade da sua influência na ordem jurídica, e o papel criativo da jurisprudência.?[19]
Importa, entretanto, para os fins do presente estudo, identificar (ou, pelo menos, tentar identificar) a atual extensão da função jurisdicional, no ordenamento jurídico brasileiro, frente à crise institucional que vive o Poder Legislativo.
4. A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO (E DO STF) FRENTE À INÉRCIA DOS DEMAIS PODERES E A CRISE INSTITUCIONAL INSTAURADA
A nova ordem mundial é marcada pela heterotopia, ?isto é, pela pulverização e multiplicidade dos centros de decisão política e empresarial, que não mais se limitam as fronteiras geopolíticas dos Estados nacionais, estando espalhados em diversos lugares do mundo?. E conclui: ?Entidades privadas nacionais e supranacionais também passaram a regulamentar os comportamentos?[20]. Multiplicam-se, assim, as esferas normativas, retirando do Estado o monopólio normativo, acentuando a crise da lei.
Porém, a maioria dos países desenvolvidos do mundo vive esse processo de globalização e inserção de novas regras de comportamento não editadas pelo Estado, em momento em que preceitos fundamentais mínimos já haviam sido protegidos, no plano jurídico, e concretizados, no mundo dos fatos. ?Em países de modernidade tardia, como o Brasil, onde os direitos fundamentais sociais não foram minimamente concretizados, o papel do Estado?, explica Cambi, ?como instituição capaz de promover a efetivação desses direitos, indispensáveis à transformação social, depende da observância rigorosa da Constituição?[21].
A crise da lei, hoje, é evidente. ?Tem-se se visto que, muitas vezes, o Congresso Nacional legisla demais em certas matérias deixando, curiosamente, de lado outras que estão a exigir um comando normativo que as integre?[22]. Sabe-se que a Constituição de 1988 possui uma série de normas constitucionais de eficácia contida e limitada. Se as primeiras são passíveis de execução, vindo o legislador infraconstitucional a restringir sua eficácia, as segundas, por definição, são normas constitucionais de princípios e dependem de outras providências para que possam produzir efeitos essenciais objetivados pelo legislador constituinte[23]. Não raras vezes, a inércia do Congresso Nacional impede a execução do ideal constitucional.
Neste caso, o programa constitucional, definidor de valores maiores, resta relegado a um segundo plano de importância, pois a inércia do legislador, neste caso, deve-se a juízos políticos.
A tal inércia legislativa, soma-se, para contribuir com o agravamento da chamada ?crise da lei?, os escândalos de corrupção que dominam, dia-a-dia, os noticiários da mídia nacional. Em um país em que é expressiva a desigualdade social, em que o Estado é ?incapaz de sequer promover efetivamente os direitos fundamentais de primeira geração?, exige-se ?firmeza do Poder Judiciário no cumprimento das disposições democráticas contidas na Constituição Federal de 1988?[24], defende Cambi.
A função legiferante que, antes, numa concepção de Estado monocrático, bastava para a adequada gestão da coisa pública, veio sendo substituída por uma concepção de Estado telocrático, ou seja, um Estado que se vincula à obrigação de concretizar o programa estabelecido na norma, criando instrumentos aptos e voltados à efetivação dos direitos previstos nos preceitos esculpidos pelo legislador[25].
Mas não se constata apenas uma crise da lei, mas também de serviços públicos. Em um país de Modernidade Tardia, como o Brasil, a ineficiência de políticas públicas básicas, como as da área da saúde e da educação leva, sem dúvida, a uma judicialização de questões afetas à concretização dos direitos sociais.
A concretização desses direitos pelo Poder Judiciário tem ocorrido por meio do controle feito pelos órgãos jurisdicionais, à luz da Constituição, da eficiência e eficácia de políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos sociais dos cidadãos.
O controle jurisdicional de políticas públicas tem sido objeto de discussões contrapostas e que tem origem, basicamente, nas idéias contrapostas de Habermas e Dworkin. Para a corrente procedimentalista de Habermas, um ?Estado sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o principio da separação dos poderes corre perigo?[26].
Além de identificar uma possível ofensa ao princípio da separação dos poderes no modelo de Estado prestador de serviços sociais, o procedimentalismo de Habermas aponta para um prejuízo à democracia participativa toda vez que o Judiciário intervém em políticas públicas, como explicado por Cristóvam: ?O juízo de constitucionalidade de políticas públicas acaba por dificultar o exercício da cidadania participativa, favorecendo a desagregação social e o individualismo?. O cidadão, ?colocando-se na posição de simples sujeito de direitos, assume uma posição passiva perante o Estado, uma espécie de cidadão-cliente, perante o Judiciário fornecedor de serviços?.[27]
Ou seja, a intervenção do Judiciário conduz, segundo Habermas, a uma postura apática do cidadão, alheio às discussões inerentes ao regime democrático, pois se mostra dispensável sua participação, já que o juiz lhe assegura aquilo de que necessita. Neste caso, a Constituição deve assegurar instrumentos de participação e comunicação democrática, instrumentos estes que devem ser resguardados e concretizados pelo Judiciário sendo este seu papel e não o de fornecedor de serviços[28].
A corrente substancialista, que busca amparo no pensamento de Dworkin, por outro lado, defende que o Estado constitucional ?exige uma redefinição do papel do Poder Judiciário, porquanto, com a evolução do Estado, as leis para o Estado das políticas públicas, resta ao Judiciário a função de assegurar a implementação dos direitos fundamentais?[29].
O controle jurisdicional de políticas públicas, fenômeno também chamado de judicialização da política, tem por objetivo garantir a supremacia da Constituição, princípio fundamental ? e que consiste no próprio papel do Judiciário ? e que prevalece, inclusive, em relação à separação de funções estatais.
Rebatendo o argumento procedimentalista de que a justiciabilidade acaba por tornar os cidadãos meros clientes do Judiciário, alheios à democracia participativa, Cristóvam esclarece que, na verdade, ?o Poder Judiciário se transforma em instância de efetivação da cidadania participativa, um canal aberto aos cidadãos para pleitearem a implemento de ações governamentais voltadas à efetivação dos direitos sociais? ou até mesmo para questionarem as ações que, por ventura, sejam contrárias aos primados da justiça social.
Transportando os ensinamentos acima para o papel que vem exercendo o Judiciário brasileiro, em especial o STF, ao longo dessas últimas duas décadas, percebe-se que a Corte Suprema brasileira tem atuado como verdadeira concretizadora dos preceitos constitucionais, frente a inação legislativa.
Alguns casos e julgados são paradigmáticos.
Cite-se, por exemplo, o caso do Mandado de Injunção. Trata-se de ação constitucional concedida sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais.
Quanto aos efeitos da decisão em mandado de injunção, a posição não-concretista[30], por muito tempo, foi a dominante na jurisprudência do STF (cite-se, por exemplo, a decisão proferida no MI 107-DF). Por se tratar de posicionamento que não permitia o exercício do direito e, praticamente, esvaziava a eficácia da ação constitucional em questão, o STF sofreu muitas críticas.
Posteriormente, o STF passou a adotar em alguns casos concretos a posição concretista individual. Ou seja, fixava-se um prazo, instigava-se o Legislativo a editar norma regulamentadora em tal lapso temporal fixado e, caso descumprida a determinação, o autor da ação exerceria o direito, da forma como especificasse o STF. No julgamento do MI 721/DF, o Pleno do STF, acompanhando o voto do Ministro Relator, Marco Aurélio, deferiu ao impetrante o direito à aposentadoria especial em regime próprio, suprindo a omissão legislativa, na regulamentação do art. 40, parágrafo 4º, da Constituição, determinando a aplicação de dispositivo que regulava semelhante matéria, no regime geral de previdência.
Por fim, recentemente, em 2008, no julgamento dos MI 670, 708 e 712 em que se buscava assegurar o direito de greve a determinadas categorias de servidores representadas pelos impetrantes dos referidos mandados de injunção, o STF assegurou o direito de greve para os servidores públicos, determinando a aplicação da lei de greve da iniciativa privada (Lei 7.783/89). Ocorre que a aplicação da lei, em regulamentação ao direito até então pendente de disciplina, não se restringiu às categorias representadas pelas entidades impetrantes, mas sim, valeu para todo o funcionalismo público nacional. O STF, portanto, passou a consagrar a corrente concretista geral[31].
Esse ativismo judicial, suprindo-se a inércia do Congresso Nacional, esteve presente no julgamento de outras questões de relevo. Também em 2008, reconhecendo eficácia normativa ao princípio da moralidade ? porém sem qualquer disciplina específica sobre a matéria ? o STF edita a Súmula Vinculante n. 13[32], com inegável eficácia normativa. Pela referida súmula, a Corte Suprema declara inconstitucional a prática de nepotismo, ou seja, a nomeação de parentes para cargos de comissão ou função de confiança.
Outro exemplo, é a regulamentação do aviso prévio proporcional. Contido no artigo 7º, inciso XXI, da Constituição de 1988, o pagamento proporcional do aviso prévio, ao tempo de serviço, estava pendente de regulamentação até a edição da Lei 12.506/11. Ao longo desse período, o tema foi objeto de questionamento no STF por meio de vários mandados de injunção, nos quais trabalhadores exigiam uma solução para a omissão legislativa. O STF, no MI 943, decidiu por aplicar a lei em questão, de modo a suprir a omissão legislativa, mesmo a casos anteriores ao advento da referida lei.
Já em 2011, verifica-se mais um evidente caso de transferência do debate político do âmbito do Congresso Nacional para o Poder Judiciário. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, os Ministros do STF, por unanimidade, reconheceram a possibilidade de constituição de união estável para casais do mesmo sexo. Ou seja, casais em relação homoafetiva passam a constituir família, com a mesma proteção jurídica das relações heteroafetivas.
Apesar de pendentes vários projetos de lei e de emenda à constituição, no Congresso, para disciplinar a matéria, o Legislativo optou por manter-se inerte, evitando o desgaste de um debate político aberto sobre o tema.
Esta decisão do STF, porém, chama a atenção, pelo fato da Constituição da República dizer, literalmente, que a união estável é reconhecida como aquela formada entre homem e mulher (artigo 226, parágrafo 3º).
Nas referidas ações de controle concentrado de constitucionalidade, o STF esteve, ao que parece, por reconhecer a existência de inconstitucionalidade superveniente por omissão. Ou seja, se em 1988, efetivamente só existia união estável entre homem e mulher (até porque o tema foi amplamente debatido na assembleia constituinte), a evolução dos valores sociais passou a admitir a união entre pessoas do mesmo sexo. O poder constituinte derivado reformador, que deveria ser usado com o fim de adaptar a Constituição aos novos preceitos sociais, acabou sendo negligenciado pelo Congresso Nacional que, como visto, manteve-se inerte. Suprindo tal inércia e concretizando princípios como o da igualdade e da dignidade da pessoa humana, o STF atuou como concretizador da Constituição. Conforme explicou Cristóvão, ?o Poder Judiciário se transforma em instância de efetivação da cidadania participativa, um canal aberto aos cidadãos para pleitearem a implemento de ações governamentais voltadas à efetivação dos direitos?[33].
Esse ativismo judicial, já exposto anteriormente, calcado e plasmado na esteira do neoconstitucionalismo, vem encontrando frontal resistência na classe política, que se insurge contra os supostos ataques do Judiciário, àquilo que chama de soberania do voto, para fazer referência à legitimidade dos atos dos legisladores, porquanto fundados em mandato de representação política democraticamente conquistado pela escolha livre e consciente do cidadão eleitor.
Clara demonstração disso foi a PEC nº 33, apresentada pelo eminente Deputado Federal Nazareno Fonteles (contra o que o parlamentar chama de despotismo legislativo do STF), cujo texto segue no rodapé[34], e que, em suma se presta a limitar os poderes conferidos pela Constituição da República, à Suprema Corte do País. Mais que isto: a proposta legislativa afronta cláusula pétrea constitucional, na medida em que viola a separação dos poderes, expressamente insculpida no inciso III, do parágrafo 4º, do artigo 60, da Lei Maior.
O discurso pretensamente justificador de tal aberração legislativa patina no já ultrapassado e inconsequente argumento de que ?o Judiciário não conta com a legitimação popular, obtida única e exclusivamente pelo voto?[35]. Há que se frisar, entretanto, que esse é apenas um argumento político, frágil e inconsistente, porquanto os membros do Judiciário são sim, ainda que indiretamente, escolhidos pelo povo, cujos critérios de seleção são expressa e soberanamente estabelecidos na ordem constitucional, através de rígido e exaustivo processo de avaliação técnica e psicológica (requisito indispensável àquele que pretende se lançar na atividade de interpretação da norma jurídica, vislumbrando seus limites e possibilidades).
Também não se trata de sobreposição de um poder sobre o outro de invasão às atribuições do outro. Como disse Pontes de Miranda, em passagem antes citada, ?só ele mesmo [Legislativo] poderia criar-se a supremacia no torneio de bem servir, que a Constituição (...) permitia aos três Poderes. (...) No mundo jurídico, os três poderes têm a mesma altura; no mundo fático, é mais alto o que mais merece? ou seja, ?o que se conservou onde devia estar, enquanto os outros se baixaram de nível?[36].
Rebatendo a tentativa de se restringir a atuação do STF, o Ministro Gilmar Mendes chegou a tecer ácidas críticas à PEC 33, em entrevista à Revista Exame: ?Não há nenhuma dúvida, [a proposta] é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição. É evidente que é isso. Eles [parlamentares] rasgaram a Constituição. Se um dia essa emenda vier a ser aprovada, é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal?[37].
Clara, pois, a crise institucional instaurada na realidade brasileira.
5. CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELA VIA JUDICIAL: ALGUNS PARÂMETROS
Como visto anteriormente, a jurisdição pró-ativa tem sido utilizada na concretização de políticas públicas, em especial pela via do controle de constitucionalidade da omissão estatal no Brasil.
Foi, assim, por exemplo, no julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, que aplicou a teoria do estado de coisas inconstitucionais (ECI). Conforme esclarece o próprio STF na referida decisão, a teoria ou técnica da declaração do ?estado de coisas inconstitucional? permite ao juiz constitucional ?impor aos Poderes Públicos a tomada de ações urgentes e necessárias ao afastamento das violações massivas de direitos fundamentais, assim como supervisionar a efetiva implementação?[38]. Para que se caracterize o estado de coisas inconstitucionais, deve estar presente situação de grave, permanente e generalizada violação de direitos fundamentais; deve haver comprovada omissão de diversos segmentos e órgãos estatais no cumprimento de suas obrigações institucionais, a gerar a violação daqueles direitos de titularidade de uma quantidade indeterminada de pessoas; e a superação de tais estados deve demandar a adoção de medidas pelos diversos Poderes estatais, atuando o Judiciário na ordenação de medidas aptas a tanto.
No caso da referida ADPF 347, a crise caracterizadora do estado de coisas institucionais se instaurou no sistema carcerário brasileiro. A decisão menciona a violação da dignidade da pessoa humana dos presos, muitos encarcerados por prazo superior ao da própria pena, abandonados pelo Estado na reclusão em condições degradantes, sem assistência médica, jurídica, em celas superlotadas. Para solucionar tal ECI, a Suprema Corte brasileira ordena uma série de medidas que, em resumo, consistiram na obrigação de juízes e tribunais de instituírem a chamada audiência de custódia, consistente no direito do preso de ser entrevistado por um juiz no prazo de 24h a contar de sua prisão; na obrigação de juízes e tribunais de adotarem medidas substitutivas da prisão sempre que possível, motivando a sua não-adoção; de liberação, pelos cofres públicos federais, de recursos do orçamento a serem aplicados junto ao sistema carcerário.
Como visto, a determinação implica em remanejamento orçamentário, por ordem judicial, quando a lógica da legalidade é a de que os recursos públicos sejam dispostos por lei, a lei orçamentária. Há, assim, supressão da omissão legislativa, com intervenção em política pública financeira; há instituição de medidas de gestão do próprio sistema judiciário, já que os tribunais precisaram se organizar administrativamente para implementar as audiências de custódia; há intervenção no livre convencimento motivado, com a orientação de que se pondere motivadamente sobre a superlotação dos presídios ao se fixar penas restritivas de liberdade; ainda, atuação sob a função administrativa, ao se determinar a aplicação de recursos em políticas voltadas a melhoria do sistema carcerário.
A decisão demonstra o ativismo judicial, na concretização de direitos fundamentais mínimos, como a saúde e a integridade física do preso.
Se por um lado tal ativismo parece, em um primeiro momento, de todo aceitável, em especial no caso do estado de coisas inconstitucionais, teoria adotada em sede de controle de constitucionalidade, algumas ponderações merecem ser efetuadas. O ativismo requer, evidentemente, alguns parâmetros de atuação.
Não é tarefa fácil estabelecer tais parâmetros, tampouco existe resposta exata para a pergunta: até onde o Judiciário pode interferir em questões originalmente afetas aos demais Poderes. Não se pretende, aqui, uma resposta a tal questionamento. Mas o estado de coisas inconstitucionais mostra-se com um parâmetro aceitável de intervenção, ante ao nível de violação.
A judicialização da saúde apresenta outro parâmetro. Inserido dentro da concepção de mínimo existencial (ou seja, direito inserido dentro de um mínimo que deve ser garantido pelo Estado, para uma sobrevivência digna) [39], o direito à saúde vem sendo, há mais de uma década, assegurado mediante ordens judiciais de fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde. Ao invés de se adotarem políticas públicas que impliquem em melhoria do sistema, as decisões retiram dinheiro dos cofres públicos para entrega de medicamentos e tratamentos originalmente não previstos na organização e planejamento estatais.
Isso forçou a jurisprudência a, recentemente, no Brasil, recuar, estabelecendo parâmetros mais rígidos para a atuação judicial. O Superior Tribunal de Justiça (corte responsável por pacificar a interpretação acerca da legislação infraconstitucional), decidiu que: é necessária a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; a comprovação da incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; a existência de registro do medicamento na agência reguladora responsável pela autorização de comercialização do medicamento no Brasil[40].
Novos parâmetros podem ser extraídos a partir de tal decisão, qual seja, a intervenção judicial nos demais Poderes deve ocorrer em casos imprescindíveis, em que senão através do Estado, o cidadão não poderá concretizar o mínimo a sua sobrevivência digna. Ainda assim, a intervenção deve ocorrer respeitando questões técnicas alheias à análise jurisdicional, como análise da eficácia do medicamento, inclusive quanto à possibilidade de sua dispensa no mercado interno do país.
Outro exemplo de atuação judicial, em que a Suprema Corte brasileira demonstrou estar adotando um viés procedimentalista diz respeito às ações que envolveram o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. Primeiramente, as disputas políticas foram deslocadas ao STF devido à interposição da ADPF 378 pelo Partido Comunista do Brasil, cuja medida liminar para suspender o processo de impeachment até o julgamento de mérito pelo Pleno foi deferida pelo Ministro Edson Fachin, situação em que o STF se manifestou sobre o rito do impeachment amparado pela ampla defesa e contraditório, bem como decidiu sobre a impossibilidade de aplicação subsidiária das hipóteses de impedimento e de suspeição do presidente da Câmara, determinou a instrução e julgamento pelo Senado e a aplicação subsidiária dos regimentos internos para disciplinar questão interna corporis e a atenção à proporcionalidade nos blocos parlamentares, mantendo-se o decidido no MS 21.564/DF, à impossibilidade de chapas avulsas, devendo ser os membros das chapas indicados por líderes e à votação por voto aberto da Comissão Especial[41].
Ou seja, o STF deixou nas mãos dos representantes do povo, a decisão. Porém, delimitou parâmetros para que a decisão fosse tomada, assegurando-se garantias instrumentais fundamentais, como contraditório e ampla defesa, porém não interferiu no mérito de decisões essencialmente políticas. Tanto é assim que, posteriormente, a ex-presidente, já destituída em razão da decisão no processo de impeachment, levou a discussão meritória ao STF. No Mandado de Segurança (MS) 34.371, o Supremo Tribunal Federal indeferiu liminar pela qual Dilma Rousseff postulava a suspensão dos efeitos da Resolução do Senado Federal que a condenou por crime de responsabilidade e determinou sua destituição do cargo[42].
Outro parâmetro pode ser aí apontado, qual seja, o de que na esfera de decisões eminentemente políticas não deve haver intervenção jurisdicional, sob pena de se transportar indevidamente o debate política para cenário inapropriado a tanto.
O controle de constitucionalidade, fortemente realizado pela Suprema Corte brasileira a justificar a intervenção ou não em políticas públicas, deve se guiar por tais parâmetros. Os próprios efeitos da decisão jurisdicional devem ponderar acerca de aspectos sociais, históricos e políticos. Decisões da Suprema Corte que, no passado, garantiram amplamente a intervenção na concretização de direitos sociais, como medicamentos, tem exigido, hoje, uma discussão mínima acerca da própria possibilidade de revisão de entendimento antes firmado. É o caso, por exemplo, dos medicamentos de alto (elevado) custo, que tem forçado o STF a rediscutir a judicialização da saúde[43], já havendo voto do Ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de deixar à Administração Pública a avaliação de políticas públicas acerca do fornecimento de medicamentos altamente onerosos aos cofres públicos.
A modificação do entendimento em controle de constitucionalidade de políticas públicas pode, ainda, encontrar baliza em ordenamentos estrangeiros. Juliana Freitas ensina que, na Espanha, há uma ?flexibilização do efeito vinculante? das decisões em controle de constitucionalidade, ?sob a ótica vertical?, conforme entendimento firmado pelo Tribunal Constitucional Espanhol, manifestado na STC 160/1993 e ?que caracterizou uma importante interpretação da jurisdição constitucional no sentido de admitir que a vinculação aos precedentes não possa inibir a elaboração de novas interpretações normativas de modo a melhor adequar-se ao ordenamento?, exatamente porque ?a diferença do critério adotado em relação a uma decisão anterior não garante, de per si, uma violação ao princípio da igualdade, posto que o Judiciário não está obrigado a se manter vinculado ad eternum aos seus precedentes? e, com ainda mais razão, ?não está obrigado a se manter vinculado àqueles precedentes que incorreram em uma incorreta ou injusta aplicação normativa?. Assim, nem sempre ?a mudança de critério vai caracterizar arbitrariedade ou violação à igualdade na aplicação da lei?[44].
Ao que parece, inicia-se uma reação ao ativismo judicial aplicado a políticas públicas que versam sobre direitos fundamentais sociais, reação esta interna, do próprio Poder Judiciário, que tenta estabelecer parâmetros para sua atuação, como também do legislador. Exemplos disso, para além das recentes decisões antes analisadas, são também as recentes alterações legislativas introduzidas em importantes diplomas legais, como é o caso da Lei do Mandado de Injunção e da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942, alterado pela Lei 13.655/2018). O artigo 22 desta última, advindo com referida alteração, estabelece que ?Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados?. O artigo 26, por sua vez, orientou aos gestores públicos a realização de consultas públicas, ouvindo o titular do poder sobre políticas públicas em relação às quais incida incerteza jurídica. Já a Lei do Mandado de Injunção (Lei n. 13300/2016) fez com que a corrente concretista geral, consagrada no julgamento do Mandado de Injunção sobre a greve dos servidores públicos (decisão antes analisada que estendeu os efeitos da supressão da omissão inconstitucional a todos os casos de greve de servidores, dispensando propositura de novas ações) deixasse de ser adotada, adotando uma linha intermediária e que restringe os poderes da Suprema Corte. A decisão do STF sobre a matéria caracterizava como uma decisão geral e abstrata, próxima da atividade normativa primária típica da função legiferante. Com a nova lei, as decisões do STF em Mandado de Injunção, ao suprirem a falta de lei regulamentadora de preceito constitucional, não valem automaticamente para todos os casos idênticos no Brasil, devendo a Suprema Corte oportunizar ao legislador, primeiramente, que supra a ausência de lei e, em casos específicos (não sendo esta a regra) ponderar quanto a adoção da eficácia erga omnes (coletiva) para o seu julgado. Trata-se de nítida limitação, pelo Legislativo, da anterior atuação jurisdicional da Suprema Corte.
6. CONCLUSÃO
Constatou-se que esse ativismo judicial, calcado e plasmado na esteira do pós-positivismo, vem encontrando frontal resistência na classe política, que se insurge contra os supostos ataques do Judiciário, àquilo que chama de soberania do voto, para fazer referência à legitimidade dos atos dos administradores, porquanto fundados em mandato de representação política democraticamente conquistada.
O procedimento metodológico adotado consistiu no estudo de casos da jurisprudência, em especial da Suprema Corte brasileira, a qual, aos poucos, tem firmado posicionamentos que representam importantes parâmetros para se verificar o limite da atuação jurisdicional.
Conclui-se que o estado de coisas inconstitucional, o mínimo existencial e a não-intervenção em questões meramente políticas constituem parte de tais parâmetros.
Tais conclusões foram extraídas, em especial, da análise de três decisões. A primeira, a ADPF 347, em trâmite junto ao STF (Supremo Tribunal federal) e que trata da crise caracterizadora do estado de coisas institucionais se instaurou no sistema carcerário brasileiro. A decisão implica em remanejamento orçamentário, por ordem judicial, quando a lógica da legalidade é a de que os recursos públicos sejam dispostos por lei, a lei orçamentária. Há, assim, supressão da omissão legislativa, com intervenção em política pública financeira; há instituição de medidas de gestão do próprio sistema judiciário, já que os tribunais precisaram se organizar administrativamente para implementar as audiências de custódia; há intervenção no livre convencimento motivado, com a orientação de que se pondere motivadamente sobre a superlotação dos presídios ao se fixar penas restritivas de liberdade; ainda, atuação sob a função administrativa, ao se determinar a aplicação de recursos em políticas voltadas a melhoria do sistema carcerário.
A segunda, consistente no Recurso Especial 1.657.156, julgado na sistemática de recursos repetitivos, pelo qual o STJ (Superior Tribunal de Justiça) recuou em entendimentos antes existentes, mais favoráveis à intervenção judicial na política de fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde, estabelecendo, atualmente, parâmetros mais rígidos para a atuação judicial. O Superior Tribunal de Justiça (corte responsável por pacificar a interpretação acerca da legislação infraconstitucional), decidiu que: é necessária a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; a comprovação da incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; a existência de registro do medicamento na agência reguladora responsável pela autorização de comercialização do medicamento no Brasil.
Por fim, analisou-se as decisões do STF no julgamento do processo de impeachment da ex-presidente da República Dilma Roussef, para concluir que na esfera de decisões eminentemente políticas não deve haver intervenção jurisdicional, sob pena de se transportar indevidamente o debate político para cenário inapropriado a tanto.
Ao que parece, inicia-se uma reação ao ativismo judicial aplicado a políticas públicas que versam sobre direitos fundamentais sociais, reação esta interna, do próprio Poder Judiciário, que tenta estabelecer parâmetros para sua atuação, como também do legislador.
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Notas