Ne bis in idem versus independência entre as instâncias: conflito real ou putativo?
Ne bis in idem versus independência entre as instâncias: conflito real ou putativo?
Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 8, núm. 2, 2021
Universidad Nacional del Litoral
Recepción: 16 Octubre 2021
Aprobación: 19 Diciembre 2021
Resumo: No centro da discussão sobre a viabilidade – ou não – de cumulação de imputações e sanções pelos mesmos fatos se encontra o chamado princípio da independência entre as instâncias. Analisa-se alguns dos eventos que circundaram a consagração de tal princípio; e, em vista do conteúdo e das implicações do que se convencionou chamar ne bis in idem, verifica-se acerca da (in)compatibilidade desses dois institutos e, então, propõem-se uma possível interpretação a partir da lei da colisão desenvolvida por Robert Alexy.
Palavras-chave: direito do estado, poder, controle, independência de instâncias, ne bis in idem.
Abstract: At the center of the discussion about the viability – or not – of the accumulation of punishments and sanctions by the same facts is found the called principle of independence between the instances. One analyses some of the events that are related to the consecration of such principle; and, because of the content and of the implications of what has been agreed to be called ne bis in idem, it is verified that there is an incompatibility between these two institutes so, therefore, it is proposed that there should be a possible interpretation beginning from the collision law proposed by Robert Alexy.
Keywords: public law, power, control, independence of instances, ne bis in idem.
1.Apontamentos acerca dos campos de responsabilidade
É prevalente na doutrina e na jurisprudência brasileiras o entendimento de que um princípio de independência entre as instâncias acobertaria o exercício do poder repressivo detido Estado, nos variados campos de responsabilidade em que se manifesta. Daí decorre, dentre outras coisas, a possibilidade de que agentes públicos tomem decisões diferentes em vista dos mesmos fatos; e de que alguém seja absolvido por um juiz e condenado por outro, em razão de um mesmo ato.
Isso pode acontecer em diversos âmbitos do direito, mas em casos de improbidade administrativa essa independência acaba gerando maior perplexidade, por conta de certas implicações concretas. É difícil explicar, senão juridicamente, que o Estado possa, sendo ele um só – tal como o poder que emprega para solucionar os conflitos –, dar soluções opostas a processos que possuem base fática idêntica; e aplicar, por vias separadas (independentes), sanções equivalentes. Mas, mesmo juridicamente, pensar essa realidade, a partir dessas premissas, gera desconforto.
De fato, pode-se dizer, seguramente, que a Constituição da República de 1988 distingue sanções, como que por espécies, em linha com uma tradicional divisão do direito em ramos (penal, civil, administrativo) – o § 3º,[1] do art. 225, é um exemplo disso –, mas que as correlatas instâncias incumbidas da aplicação não devam se comunicar, ou se comunicar na menor medida possível, isso, ela não afirma. Pelo menos, não, literalmente.
O Código Civil de 1916[2] já previa que a responsabilidade civil era independente da criminal (art. 1.525).[3] No entanto, foi depois da Constituição de 1988 que uma gama de leis de conteúdo sancionador, que se repetem em termos de qualificação das condutas proibidas e das sanções incidentes – e afirmam, direta ou indiretamente, essa independência –, começou a ser editada.[4]
O dispositivo que costuma ser invocado para respaldar a tese de que existe um fundamento constitucional para isso é o § 4º, do art. 37; e o que ele estabelece é o seguinte: “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Daí, então, questiona-se: é isso o que esse “sem prejuízo da ação penal cabível” significa? Que a todo ato de improbidade corresponderá um crime? Que se deve replicar as tipificações? Que não tem problema, inclusive, repetir as sanções aplicáveis?
Mais importante do que tentar identificar qual teria sido a vontade do legislador constituinte, parece ser analisar as construções dogmáticas que cercam os institutos e o grau de compatibilidade que guardam com os postulados do sistema jurídico em foco, mas, neste caso, é interessante lembrar que, durante o processo constituinte, o dispositivo em questão sofreu uma alteração. Até um certo momento a redação era “sem prejuízo da ação penal correspondente”. A justificativa para substituir por “cabível” foi, precisamente, a de que o “correspondente” levava a pensar isso; e não era para ser assim.[5]
Nada obstante, na prática, os casos que atraem a incidência da Lei da Improbidade Administrativa posta em vigor em 1992 (Lei nº 8.429/1992) podem, também, ensejar a aplicação das penas e sanções previstas, por exemplo – apenas para citar alguns –, no Título XI, do Código Penal, que versa sobre os crimes contra a Administração Pública; no Capítulo II-B, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021, recém promulgada para substituir a Lei nº 8.666/1993), que tipifica os crimes em licitações e contratos administrativos; nos diplomas que dispõem sobre os crimes de responsabilidade (Lei nº 1.079/1950 e Decreto-lei nº 201/1967, dentro outros); além de poderem se amoldar às previsões da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013);[6] dos Estatutos de Servidores Públicos (Lei nº 8.112/1900, no caso dos servidores da União, autarquias e fundações públicas federais); das Leis Orgânicas dos Tribunais de Contas (Lei nº 8.443/1992, no caso do Tribunal de Contas da União); e, ainda, de outras leis e regulamentos setoriais.
E, apesar dessa coincidência de tipificações, o art. 12, da LIA, antes de definir a quais cominações está sujeito o responsável por um ato de improbidade,[7] ressalva, expressamente, no caput, que elas se aplicam, “independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica”.
A Lei nº 8.112/1990, por sua vez, estatui no art. 125, que “as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si”. Se esse diploma tivesse partido de uma formulação que levasse a que essas sanções não se confundissem, no plano concreto, poder-se-ia dizer que ele respeita uma diretriz de independência entre instâncias que não, necessariamente, conduziria à sobreposição,[8] mas não é o que acontece, em regra.
Ainda, neste ponto, é ilustrativa a previsão contida no art. 136, da Constituição do Estado de São Paulo, no sentido de que “[o] servidor público demitido por ato administrativo, se absolvido pela Justiça, na ação referente ao ato que deu causa à demissão, será reintegrado ao serviço público, com todos os direitos adquiridos”.
Um ato capaz de dar causa à demissão de um servidor poderia não ensejar, obrigatoriamente, a propositura de uma ação; e, nesse caso, a instância administrativa teria autonomia para solucionar a questão.[9] Agora, mirando em um ato passível de demissão que também pudesse ensejar a instauração de um processo judicial, o qual, da mesma forma, poderia resultar na demissão do servidor, não é de se descartar que o legislador tenha – mesmo – pretendido estender os efeitos da decisão absolutória à esfera administrativa, por razões de coerência. Uma tentativa de evitar que um mesmo Estado, por diferentes agentes, manifeste posições antagônicas, a princípio, não é contrária aos ditames constitucionais. Todavia, o entendimento doutrinário predominante, nessa matéria, pauta-se mais por outras preocupações.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por exemplo, sustenta que o dispositivo legal em questão deve ser interpretado à luz do artigo 935, do Código Civil e do artigo 65, do Código de Processo Penal, de modo que a decisão judicial apenas repercutiria na via administrativa nessas hipóteses, “pois, a aceitar-se outra interpretação, estar-se-ia pondo fim à independência entre as instâncias penal e administrativa, com manifesta ofensa ao princípio da separação dos poderes”.[10]
Fábio Medina Osório se alinha ao entendimento de que a independência entre as instâncias se associa ao princípio da separação dos poderes – consagrado no art. 2º, da Constituição da República –, diz que ela ostenta normatividade constitucional e reputa se tratar de um princípio basilar do direito punitivo. Sustenta, porém, que, além de gerar uma grave insegurança jurídica, a existência de múltiplos órgãos dotados de competências semelhantes ou análogas fragiliza direitos fundamentais; e, portanto que “o fenômeno da inter-relação entre as instâncias deveria demandar o enfrentamento de questões prejudiciais ou mesmo fáticas de forma absolutamente harmônica e coerente”;[11] e que “[a]os Poderes, órgãos e entes com esferas de abrangência comum como interdependentes, é recomendado profícua coordenação ou cooperação institucional”.[12] A despeito disso, porque cabível, paralelamente, em tese, uma ação penal para castigar atos ímprobos descritos na Lei de Improbidade Administrativa, o autor entende que, nesse âmbito, “tem-se um tratamento normativo que opta pela independência entre as instâncias de modo singular”,[13] de modo que, na visão dele, essa lógica de inter-relação entre instâncias não seria extensível aos casos de improbidade.
Também há autores que, de certa forma, tomam essa propugnada independência como um dado posto, isto é, sem relacioná-la com qualquer construção dogmática. Apesar de dedicar um tópico específico ao tema na obra em que comenta a Lei de Improbidade, Marino Pazzaglini Filho, por exemplo, apenas afirma que “[a]s instâncias civil e penal são autônomas”,[14] mencionando, depois, alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. Marcelo Figueiredo, na mesma linha, diz que “[s]ão três as esferas ou jurisdições passíveis de responsabilidade: a administrativa, a civil e a penal”, que atuam, “em princípio, com relativa independência”.[15] E esse “relativa” se liga somente à menção que ele faz das hipóteses de absolvição criminal por negativa do fato ou da autoria.
Por outro lado, pensando na pena (criminal) e na sanção administrativa, Daniel Ferreira[16] apenas diz não enxergar qualquer proibição para a cumulação de consequências restritivas de direito, seja na Constituição ou na lei. Em sentido consonante – e, precisamente, com base na previsão contida art. 37, § 4º, in fine, da Constituição –, Waldo Fazzio Júnior aponta que as sanções decorrentes da LIA são cumuláveis com outras “sanções penais decorrentes de processo por delitos correlatos e, inclusive, sanções de natureza administrativa”,[17] sendo que, depois de afirmar que “[n]ão é de hoje que o ordenamento jurídico consagra a independência entre as esferas administrativa, cível e penal”, ele se posiciona no sentido de que, por conta disso, “mesmo que a ação de improbidade tenha por fundamento fatos idênticos aos já analisados em outras instâncias não há que se falar em bis in idem, nem tampouco na indevida intromissão do Judiciário na esfera de atribuições privativas do administrador, tendo em vista o princípio da independência entre as instâncias”.[18]
Ainda, com foco nos estatutos funcionais e mencionando, diretamente, a Lei Federal nº 8.112/1990, Wallace Paiva Martins Júnior sustenta que a LIA não os revogou, “no que diz respeito às faltas funcionais e correlatas sanções, processo administrativo e competência no exercício do poder disciplinar, inclusive no tocante à probidade administrativa”[19] – justo –, porque “[s]ão esferas distintas e independentes de repressão”.[20] E, por isto, segundo ele, “[a]s hipóteses de atos de improbidade administrativa não excluem a conceituação legal do fato delineada nos estatutos do funcionalismo federal, estadual e municipal”.[21]
Agora, já de uma outra perspectiva – aparentemente, mais refletida e crítica –, José Roberto de Oliveira Pimenta e Dinorá Adelaide Musetti Grotti vêm trabalhando os atos de improbidade (dentro de uma categoria denominada Direito Administrativo Sancionador da Improbidade), a partir de um conceito de “sistema de responsabilidade”, que corresponde, segundo eles, a um “conjunto de normas jurídicas que delineiam, com coerência lógica, a existência de um sistema impositivo de determinadas consequências jurídicas contra o sujeito infrator e/ou responsável”;[22] e leva em consideração, para tanto, “a prévia tipificação do ato infracional e das sanções imputáveis, o processo estatal de produção e os bens jurídicos ou interesses públicos constitucionalmente protegidos com sua institucionalização normativa”.[23] Para esses autores, por se tratar de um sistema e de uma espécie de subconjunto normativo, esse conjunto deve estabelecer plexos de coerência e unidade, em vista da finalidade a que se destina, além de uma “prévia conformação às injunções principiológicas superiores – materiais e formais – contidas na Constituição”.[24]
Ademais, depois de situaram as infrações e sanções administrativa, especificamente, dentro de um sistema de responsabilização administrativa, os autores sustentam que o conceito mais amplo de sistema de responsabilização – que se encaixa em um outro, qual seja, o de política pública de conformidade de condutas –, “consegue albergar todos os institutos que sistematicamente devem ou podem ser utilizados pelo Estado na busca de efetividade do Direito”.[25] Então, dizem não ser possível defender que haja livre escolha legislativa entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, “inclusive para o fim de legitimar situação de substituição completa da necessária intervenção penal por regime jurídico-administrativo sancionador em certas situações (hipóteses indevidas de descriminalização absoluta)”; e que “[o] contrário igualmente é válido”.[26]
Em conformidade com essas ideias, coloca-se, também, a irresignação de Maíra Rocha Machado, em face do que ela chama de departamentalização do saber jurídico, ao perceber que o desenvolvimento de pesquisas voltadas a compreender os procedimentos de responsabilização alocados nas diferentes esferas do direito e o modo como se articulam, sobrepõem-se e se complementam, é prejudicada por uma “rígida fragmentação da produção de conhecimento em ‘áreas jurídicas’”.[27]
A autora não vê a incidência de múltiplos programas sancionatórios como algo, necessariamente, problemático, mas observa que o quadro de possibilidades de interação desses diferentes programas é determinado pelo significado que se atribui a dois de seus componentes: a “independência entre as esferas” e o ne bis in idem (“não duas vezes o mesmo”).[28] Em vista disso, aponta para a necessidade de que a tradicional organização do direito em áreas jurídicas seja afastada, para se pensar os arranjos normativos que se formam no interior delas, no contexto do que convenciona chamar de “programas- jurídicos sancionatórios”,[29] já que, dentre outras coisas, “[t]anto o reconhecimento da violação quanto a imposição de consequências dependem da decisão de uma autoridade competente em um procedimento também regulado pelo direito”.[30]
Por sinal, poder-se-ia acrescentar que se não trata de um procedimento regido por um direito qualquer, genérico ou atemporal. Diversamente, trata-se de um procedimento cuja legitimidade depende de um fino alinhamento com os valores axiológico-normativos incorporados à Constituição, todos atrelados àquele que é princípio reitor do sistema jurídico: a pessoa.[31] E, efetivamente, a depender da dimensão que essa independência alcance, a resposta para o que, exatamente, não pode ser repetido, muda (se a tipificação, o processo e/ou a sanção). Para dizer se essa proibição de cumulação se restringe ao programa sancionatório penal ou se abrange os demais programas instituídos em torno dos mesmos atos ilícitos, a mesma variável impacta.
Acontece que a determinação desse alcance depende de que, antes, a própria razão de ser de um qualquer montante de independência – nesse sentido de uma quase completa incomunicabilidade – seja constitucionalmente justificado. Primeiro, porque que nenhuma potestade sancionadora é autorreferente ou possui justificação natural. Depois, porque a aplicação de sanções de diferentes ordens, quando for o caso – como exige a Constituição –, não ficaria, prima facie, inviabilizada com a adoção de uma técnica de coordenação das instâncias competentes, voltada à concretização do ne bis idem e da satisfação de outros direitos e garantias constitucionais individuais. A sobreposição de sanções idênticas e predispostas ao atendimento das mesmas finalidades é que, possivelmente, sim. Logo, a defesa de um tipo de independência entre instâncias que inviabiliza o avanço nessa direção – dificultando, por conseguinte, a concretização do ne bis in idem – não poderia aparecer na forma de uma resposta pronta. Ao contrário, antes de tudo, a sua origem e a legitimidade de sua permanência no ordenamento, precisariam ser explicadas, com alguma densidade.
Porém, diferente do que se tem com relação ao ne bis in idem – previsto, inclusive, em convenções internacionais aos quais o Brasil aderiu e,[32] com isso, incorporado ao ordenamento como direito fundamental[33] –, a análise da chamada “independência entre as instâncias” não conta com o suporte de uma vasta elaboração dogmática, como, de plano, observa Maíra Rocha Machado.[34] No contexto brasileiro, segundo a autora, a consolidação dessa máxima – se assim se pode chamar – resultou, basicamente, de um duplo movimento: “o processo de diferenciação entre as esferas civil e penal no final do século XIX e início do século XX e, mais recentemente, a expansão do direito administrativo sancionador e, consequentemente, das hipóteses de incidência simultânea ao direito penal”.[35]
Parece haver um problema com isso. E é necessário procurar explicações até para se descartar, se for o caso, a hipótese de que essa máxima esteja sendo – ou possa ser – empregada como mero argumento de autoridade, contra direitos fundamentais. Porque, afinal, apenas como o produto acabado de um duplo movimento, em si, inacabado, não parece ser possível admitir que ela seja tomada como possuidora de uma base de sustentação consistente.
É certo, para além disto, que independência é um termo polissêmico; e, como tal, maleável. Mas há uma linha de sentido específica – bem, por isto, aliás, de importância singular – a balizar a sua significação e a de quaisquer outros vocábulos semelhantes: aquela que emana da Constituição de 1988. E, portanto, deve-se tomar como principal ponto de partida a premissa de que o denominado princípio da independência entre as instâncias não deveria ser assimilado, simplesmente, como um dado posto ou como um derivante aleatório da separação de poderes – nem, muito menos, dever-se-ia tolerar qualquer fragilização a direitos, com base nisso –, sem maiores indagações.
2. O sentido do termo independência, a vedação ao bis in idem e o exemplo espanhol
O constitucionalismo brasileiro foi construído sobre as ruínas sociais do colonialismo, herdou seus vícios e, além disto, andou “em promiscuidade com a escravidão trazida dos sertões da África e com o absolutismo europeu, que tinha a hibridez dos Braganças e das Cortes de Lisboa, as quais deveriam ser o braço da liberdade e, todavia, foram para nós contraditoriamente o órgão que conjurava a nossa recaída no domínio colonial”, conforme afirma Paulo Bonavides.[36]
Nada obstante, o processo de introdução de instituições representativas e constitucionais acompanhou, no Brasil, o movimento havido em Portugal – dando-se, verdadeiramente, em paralelo –, além de ter imitado fontes comuns. No aspecto doutrinário, a base veio do constitucionalismo francês, com as garantias fundamentais previstas no art. 16, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1979; e, no aspecto positivo, a inspiração foi a Constituição espanhola de Cadiz. Por sinal, o mesmo texto chegou a ser outorgado por D. João VI no Rio de Janeiro e vigorou no Brasil por um dia.[37]
Tal como conta Luis Sanchez Agesta,[38]com a Constituição de Cadiz, a Espanha tentou reproduzir o modelo inglês, já com as modulações feitas pela França e, ainda, com outras adaptações próprias, de modo que ela incorporou a divisão de poderes inglesa com o filtro dos textos escritos na época da Revolução Francesa e das reinterpretações que lhes deram a Constituição francesa de 1791 e a própria Carta espanhola de 1812. E, sob o influxo dessa miscelânia de influências, à qual, depois, foram agregados, também, elementos de inspiração norte-americana, todas as Constituições brasileiras,[39] desde a primeira – que data de 1824 e foi produto da mesma outorga imperial que erigiu a Carta constitucional portuguesa de 1826[40] –, sempre contiveram disposições relativas à divisão dos poderes. Porém, sem grandes variações de conteúdo, a despeito das diversas mudanças de contexto.
Nesse ambiente, por outro lado, a tese de que as instâncias repressivas são independentes, gradativamente, foi se estabelecendo, até se firmar como verdadeiro axioma, a despeito da inexistência de uma construção dogmática específica para lhe explicar, tampouco justificar a sua permanência no ordenamento, em vistas das muitas mudanças conjunturais que lhe acompanharam.
Da história espanhola, neste aspecto, colhem-se outros elementos que interessam à análise. A aparição da potestade sancionadora administrativa na Espanha e a subsequente afirmação de sua independência, frente à já em voga ideia da separação de poderes e, também, ao ne bis idem, ajudam a perceber como, há muito, estes temas se imbricam – ainda que de maneiras particulares e contingenciais –; e como o sistema jurídico brasileiro, nesta matéria, parece ter reproduzido soluções encontradas pelos espanhóis.
Retomando eventos passados, em um detido estudo acerca da relação entre os ilícitos penal e administrativo e do contexto das teorias que os distinguem, Ramón García Albero conta que, no constitucionalismo espanhol, o duplo encargo dado às autoridades incumbidas de administrar as províncias (chamadas de Alcaldes) – um governativo e o outro de julgar –, está na origem da aparição da potestade sancionadora administrativa. Esse duplo papel, ambíguo do ponto de vista da Constituição de Cadiz, a qual reconhecia o princípio da separação de poderes, com atribuição monopolística da função contenciosa e repressiva à esfera judicial – baseada nos princípios da exclusividade e da unidade –, teria ensejado a sua primeira fissura, segundo ele. Diz o autor que se tratava, no entanto, de uma reminiscência do Antigo Regime, a qual, supreendentemente, teria conseguido transgredir o princípio da separação de poderes.[41]
Segundo J. Ramón Parada Vázquez, um certo autoritarismo (que ele chama por “autoritarismo administrativo”) sempre marcou o exercício da potestade sancionadora entregue à Administração em todos os sistemas políticos espanhóis, desde o início do constitucionalismo, dentre outras coisas, porque “esta potestad sancionadora es independiente de la jurisdicción penal común, en el sentido de que una y otra pueden actuar sobre los mismos hechos sin coordinación ni vinculación de los pronunciamientos de una sobre la outra”.[42] E ele sustenta que, por critérios quantitativos e qualitativos, é possível ver essa realidade dividida em três períodos: o primeiro, que vai da Constituição de Cádiz até a Ditadura do General Primo de Rivera (1923), corresponderia àquele da “aparición y afirmación de un poder sancionador moderado y limitado a las autoridades gubernativas de índole provincial o local (alcaldes y gobernadores)”;[43] o segundo, indo de 1923 a 1939, compreenderia a legislação da Ditadura e da II República e se caracterizaria pela “politización del poder sancionador y la apertura de su ejercicio a las autoridades gubernamentales, ministro de la Gobernación y Consejo de Ministros”;[44] e, no terceiro, iniciado em 1939, vê-se “la expansión del poder sancionador al ámbito de todos los sectores de intervención administrativa especial, sin la pérdida de sus anteriores caracteres”.[45]
Na visão desse autor, em poucas matérias – dada a contradição percebida entre a norma constitucional[46] e a lei ordinária, incluídos os simples regulamentos – se tem prova tão clara do nominalismo das constituições espanholas e de sua inoperância como guia e critério balizador da redação dos dispositivos que, concretamente, devem conformar o comportamento político e social, como nesta. Para ele, haveria um “signo diferencial más grave del Derecho español en relación con el Dereche europeo”,[47] estando o desenvolvimento histórico da legislação administrativa espanhola, com a assunção de poder penal pela Administração Pública e o crescimento do poder sancionatório em matéria de ordem pública, identificado, em boa medida, com “reacciones defensivas de los grupos políticos dominantes frente a sus antagonistas, sin que en este punto ninguno de los sistemas políticos que han precedido al actual pueda censiderarse inocente en el arte de la creación y empleo de potestades administrativas para descalificar al adversário político”.[48]
Ramón García Albero, por outro lado, partindo de apontamentos do próprio Parada Vázquez, mas mais especificamente interessado em entender quando e sob quais condições essa capacidade sancionadora administrativa adquiriu um tal sentido de independência, em face da jurisdição penal comum – ao ponto de poderem ingerir sobre os mesmos fatos sem se coordenarem ou se vincularem aos pronunciamentos uma da outra – volta a sua atenção para as reações doutrinárias de distintas épocas, frente às incertezas geradas em matéria de competência e sobre o campo de aplicação do bis in idem.[49] A resposta que ele encontra – e afirma – é a de que o processo de consolidação da potestade punitiva administrativa contou com decisões lastreadas em interpretações predispostas mais a preservá-la, do que a promover a satisfação dos ditames constitucionais e legais.[50]
Na análise de uma situação que exigia definir se a matéria penal era – ou não – de monopólio do poder judiciário, envolvendo questão de competência de um governador e de um juiz de primeira instância, para dizer “si los alcaldes podían imponer sanciones con independencia y al margen de sus poderes judiciales para el enjuiciamento de las faltas”,[51] em 1849, o Conselho Real espanhol acabou por atestar o poder sancionador da Administração. E, em face dos fundamentos declinados, Parada Vázquéz disse que essa decisão foi justificada “más allá del amparo formal que suministran las leyes ordinarias y la propia Constitución, en la esencia misma de la Administración, concebida como un poder cuya autoridad parece inimaginable sin la facultad de castigar a los súbditos, haciendo tabla rasa de uno de los principios capitales del Estado liberal”.[52]
García Albero[53] também faz referência a essa decisão – citando a posição de Parada Vazquéz –, a qual, para ele, teria sido capital para consolidação da potestade punitiva da Administração. Conta, ademais, que, a despeito de refletir uma das maiores desarmonias e incongruências do ordenamento espanhol, em meados do século XIX, a coexistência de faltas ou infrações penais e administrativas terminou por se estabelecer; que, durante o resto daquele século, boa parte das atividades legislativa e jurisprudencial do Conselho de Estado giraram em torno disso, por conta de conflitos entre as duas jurisdições gerados pela falta de distribuição racional das matérias que lhe eram afetas; e que “la raíz histórica de afirmación del ‘bis in idem’, de la compatibilidad de sanciones penales y administrativas, se encontra en ese proceso ambiguo de solución de conflitos de competências entre Tribunales y Administración para conocer sobre las mismas infracciones”,[54] sendo que a ele se chega – justo – por não se ter conseguido resolver essas competências sobrepostas; e – justo – porque “[la] única forma de salvar las competencias de ambos, va a resultar a la larga el reconocimiento de la total independencia sancionadora de la Administración respecto de los Tribunales y a afirmar al regla de la compatibilidad”.[55]
Essa regra da compatibilidade, basicamente, equivale àquilo que, no Brasil, chama-se por independência entre as instâncias; e ela foi a forma que os espanhóis encontraram de justificar “la posibilidad de someter al culpable a dos legislaciones e imponerle dos penas”.[56]
Dentro desse cenário, aquele “autoritarismo administrativo” do sistema espanhol de que falou Parada Vázquez toma ainda mais forma. Ao que parece, foi mais fácil justificar o – quiçá – injustificável, do que distribuir racionalmente o poder sancionador entre as autoridades instituídas.
E, neste ponto, chama atenção uma outra observação que ele faz quando aprofunda a sua reflexão, analisando as legislações da Ditadura e da II República espanholas. Conforme adverte, o poder penal administrativo chegou à apoteose durante a Ditadura de Primo de Rivera, na Espanha. Mas diz que se engana quem acha que o fim da Ditadura e o advento da Segunda República fizeram mudar a fisionomia da legislação administrativa. Nas palavras do autor, “[l]a II República fue inconsecuente com sus principios democráticos y no menos dura en el diseño de la represión administrativa que lo fu ela Dictadura”.[57]
Ainda, outros acontecimentos decorreram ou se conectaram com o tema. Ao longo de mais de cem anos, toda uma discussão se desenvolveu em torno da questão da existir – ou não – diferenças ontológicas entre os ilícitos penais e administrativos.[58] No caso da Espanha, a doutrina e a jurisprudência empreenderam esforços para assentar o entendimento de que eles seriam, ontologicamente, idênticos, a fim de que lhes fosse conferido o mesmo tratamento, em termos de garantias. Isto não impediu, entretanto, que durante o franquismo, o Tribunal Supremo se dedicasse a, cuidadosamente, separar as penas das infrações administrativas, com o propósito político de, com relação a estas, afastar as garantias da Lei de Regime Jurídico da Administração e do Estado, que lhes seriam extensíveis – se equiparadas às penas –, para deixar a Administração livre, nesse âmbito, como conta Alejandro Nieto García.[59]
No quadro do desenvolvimento constitucional dos países periféricos, Marcelo Neves[60] também emprega o termo nominalismo, para se referir a situações que minam ou violam a Constituição; e refletem uma incapacidade de concretização do texto constitucional. No caso brasileiro, em vista de especiais características de cada uma as cartas constitucionais postas em vigor – desde a Constituição do Império, até aquela promulgada em1988 –, ele percebe um ciclo vicioso de alternância entre nominalismo e instrumentalismo constitucional. As de feição nominalista seriam aquelas que, apesar de declararem direitos, liberdades e princípios e preverem formas de limitação e controle do poder, mostrar-se-iam alheias à realidade e ineficazes, do ponto de vista jurídico-normativo; e, instrumentalistas, aquelas cujos dispositivos serviriam, antes de mais, como instrumento para a manutenção de regimes autoritários, sendo perceptível a “emissão casuística de texto constitucional” e a Constituição sendo subordinada às relações de poder. É notável o fato de que essa chave metodológica lhe serve para adjetivar até mesmo a Constituição da República de 1988.[61]
Segundo o autor, com a elaboração da Constituição de 1988, implementou-se a passagem de um instrumentalismo para um novo nominalismo constitucional. E ele sustenta isso em vista, dentre outras coisas, da constatação de que “[a] proclamação do Estado democrático e social de direito com base no texto constitucional desempenha um papel simbólico-ideológico”;[62] e do fato de a Constituição de 1988 surgiu no contexto de uma crise econômica, que seguiu se agravando e dificultando a observância e a concretização dos preceitos constitucionais. Dentro desse cenário, que denomina “desjuridificante”, Marcelo Neves aponta que “os detentores do poder tendem a sacrificar o direito constitucional em favor das exigências do sistema econômico”;[63] e, ainda, que “o bloqueio ou deformação da concretização constitucional e, conjuntamente, a desconsideração do código autônomo (positivo) do direito tornam-se, sob determinados aspectos, mais problemáticos do que nos contextos sociais menos complexos dos textos constitucionais brasileiros anteriores”.[64]
Pelas considerações que Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento[65] fazem acerca da trajetória constitucional brasileira, confirma-se a conclusão de que ela oscilou entre períodos de abismos e incoerências entre as proclamações constitucionais e a realidade social – dentre outras coisas, pela baixa aderência que o ideário constitucionalista importado da Europa e dos Estados Unidos obteve, fora do textos –; e períodos de forte inclinação autoritária, muito embora apontem que, sob a égide da Constituição de 1946, também foram vistos momentos de democracia de estabilidade institucional.
Nada obstante, sobre a Constituição de 1988, os mesmos autores contam que as suas maiores influências externas foram as constituições portuguesa e espanhola, datadas, respectivamente, de 1976 e 1978; e que ambas foram gestadas no âmbito dos processos de redemocratização iniciados com a superação do autoritarismo que marcou as ditaduras salazarista e franquista. Segundo eles, a Constituição brasileira de 1988, na mesma linha, representa, do ponto de vista histórico, “o coroamento do processo de transição do regime autoritário em direção à democracia”,[66] sendo que, a despeito das forças que sustentaram o regime militar terem estado presentes na arena constituinte, houve a promulgação de um texto cujas marcas distintivas são “o profundo compromisso com os direitos fundamentais e com a democracia, bem como a preocupação com a mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no sentido da construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da pessoa humana”.[67]
A ruptura daquele círculo vicioso que faria o constitucionalismo brasileiro passar de fases nominalistas a instrumentalistas, sucessivamente, conforme a lição de Marcelo Neves, depende, como ele mesmo aponta,[68] de variáveis complexas, no que se refere aos pressupostos, caminhos e consequências, de modo que elas apenas poderão ser percebidas ao longo do processo histórico. E o que se tem, nesta perspectiva, é que revisitar figuras jurídicas preteritamente criadas para servir de fundamento à manutenção de realidades constitucionais nominalistas; e que seguiram ganhando estatura por meio de argumentos retóricos, até se apresentarem como fato consumado[69] – como parece ser o caso da chamada independência entre as instâncias –, pode ser um passo nessa direção.
Por sinal, frente às consequência geradas pelo “curioso” princípio da “suposta” compatibilidade e independência entre sanções administrativas e penas judiciais – “declarado em quase todas as normas que configuram poderes sancionadores administrativos”, segundo observam, com referência ao ordenamento espanhol –, Eduardo García de Enterría e Tomáz-Ramón Fernández sustentam, que “nem compatibilidade de sanções, nem independência na prova e na qualificação dos mesmos fatos”[70] são admissíveis depois da promulgação da Constituição espanhola de 1978. Dizem eles: “[s]e recordarmos, como nos impõe a Constituição, que estamos aqui ante algo que afeta imediatamente os cidadãos e sua esfera de liberdade (liberdade de conduta, primeiro; liberdade no que diz respeito à disponibilidade dos bens de que as sanções ou penas o privam, em segundo termo), tudo se simplifica e esclarece”.[71]
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández entendem que, dentro desse contexto, a atividade sancionadora da Administração deveria ser reduzida a uma atividade auxiliar da repressão penal, não podendo, nunca, sobrepor-se ou ser alternativa a ela. Nada obstante, destacam não ser preciso colocar essa tese em primeiro plano para chegar a tal conclusão. O mais importante é assimilar – seguindo a linha de raciocínio que eles traçam –que, depois da Constituição espanhola de 1978, “[n]ão há mais ‘independência’ possível do poder punitivo da Administração, nem poderia justificar-se de maneira alguma que um mesmo, idêntico fato legitime uma corrente sucessiva de sanções para seu único autor por parte de órgãos diferentes”.[72]
As disposições da Constituição da República brasileira de 1988 parecem induzir à mesma conclusão. Logo, se é que ainda cabe falar em independência de instâncias, deve ser em um outro sentido. Mesmo porque, se trabalhada a partir de uma interpretação atenta aos valores axiológico-normativos incorporados à Constituição – aos quais se vinculam não só a vedação ao bis idem, mas os princípios da presunção de inocência, da proporcionalidade e do devido processo legal, também –, ela poderia adquirir outro formato e ter alguma utilidade protetiva, inclusive.[73]
Na prática, sem prejuízo da ingerência de outras condicionantes e reflexões que se afigurem relevantes, poderia ser reformulada a partir de uma lógica em que a vedação ao bis idem – por conta do status constitucional que possui –, se colocasse como um critério de controle, voltado a impedir a repetição de sanções em leis cuja competência para aplicação esteja a cargo de instâncias diferentes, seja em razão da divisão das esferas de poder (judicial, administrativa ou legislativa), ou das divisões de competência por matéria. Assim, quando houvesse algum propósito (legítimo) para o enquadramento de um mesmo ato em duas tipificações e para a aplicação de sanções diferentes – deste modo, em caráter de complementariedade e, não, de repetição –, a independência das instâncias se justificaria, justo, pela diferença.
Naturalmente, que isso não resolveria a situação, em todos os seus aspectos. Ainda remanesceria a possibilidade de serem firmados juízos conflitantes, por exemplo; e, com isso, também, a necessidade de se pensar em formas de refinar os critérios de comunicabilidade e de coordenar a atuação das instâncias encarregadas. Mas, assim, a ideia de uma independência entre as instâncias poderia ter um espaço no ordenamento, ao lado da vedação ao bis idem ou como um suporte para ele; e não como um pretenso princípio – ou mesmo uma regra – opositor, que desafia, frequentemente, a sua operatividade.
Afinal, dos valores axiológico-normativos consagrados na Constituição não se pode desviar; e, portanto, por eles devem ser resolvidas as disputas estabelecidas dentro do ordenamento, nos planos em que isso pode vir a acontecer. O princípio reitor do sistema nunca entrará em linha de colisão com outros elementos do sistema. Ele (a pessoa) é o fundamento do fundamento de validade (a Constituição) das normas que orbitam ao redor dele.[74] Logo, nesse plano, não há disputas possíveis.
Agora, imaginando a hipótese de que a independência entre as instâncias pudesse se qualificar como uma norma – seja com roupagem de regra ou de princípio, aqui, tomando-se por referência a classificação proposta por Robert Alexy –, poder-se-ia cogitar de uma eventual disputa entre ela e a vedação ao bis in idem? Ela venceria esse embate? Só pela ratio que lhe subjaz já se poderia, intuitivamente, adiantar que não. Mas parece oportuno aprofundar essa análise, para que se veja, desde uma perspectiva mais concreta, que, de uma forma ou de outra, a Constituição obriga a que ela – com as feições que ainda possui – ceda espaço à vedação ao bis in idem.
3. Uma solução possível pela teoria da colisão de Robert Alexy
Haveria, apesar de tudo, um conflito entre o ne bis in idem e a independência entre as instâncias a ser superado? Como dito, parece haver, na verdade, razões para negar a existência de um real conflito de normas entre o ne bis idem e a independência entre as instâncias. Porém, como ela é chamada, por vezes, de princípio; e, a partir disso, outras cogitações seriam objetáveis, pode ser pertinente aprofundar a análise dessa hipótese.
Mas antes, cumpre registrar – com incremento ao que se vem sustentando – que, tecnicamente, ela, a independência entre as instâncias, não se sustenta como um princípio da ordem daqueles princípios gerais que Karl Larenz apresenta como passíveis de serem “condensados numa regra imediatamente aplicável”[75] – e, assim, lex, em si próprios, e não só ratio legis –, ou seja, daqueles que, de tão “evidentes”, o legislador teria julgado desnecessário explicitar, mas tão-somente as exceções. E não é só porque, entre eles, o autor relaciona o próprio ne bis in idem, mas, também, porque ele define esses princípios gerais como concretizações do Estado de Direito, apresentado (ele, o Estado de Direito) como um princípio que contém uma “ideia diretiva” a nortear todos os demais subprincípios.[76]
E, a menos que o rótulo de derivante do princípio da separação dos poderes fosse capaz, sozinho, de lhe conferir esse status – o que não parece ser possível sob a égide da Constituição de 1988 –, não se poderia reconhecer à independência entre as instâncias uma tal envergadura, de forma automática. Sobretudo, nas condições em que se consolidou; e quando se vê que, em regra, ela é invocada para justificar mais restrições a direitos – e para exigir, por via reflexa, menos esforço de racionalização do ente estatal, no manejo do poder repressivo –, estando, assim, longe de se caracterizar como uma concretização do Estado de Direito, pelo menos, desde o ponto de vista dos postulados que conformam o paradigma do Estado Constitucional.
Mas e se se tratasse de um princípio com sentido de “mandamento de otimização”, seguindo-se o raciocínio de Robert Alexy? Neste caso, tem-se que um confronto solucionado com o emprego da lei da colisão proposta pelo mesmo autor, faria com que ela tivesse de ceder espaço ao ne bis in idem.
Na linha do que propõe Robert Alexy sua a teoria sobre os direitos fundamentais, “toda norma é ou uma regra ou um princípio” – e ambos são juízos de dever-ser –, sendo que, enquanto as regras “são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas”,[77] os princípios “são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados”; e, enquanto as regras contêm “determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”,[78] a medida da satisfação dos princípios depende das possibilidades fáticas e jurídicas, que são medidas e determinadas, concretamente, em face dos princípios e regras colidentes.[79]
Além disto, “[u]m conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida”,[80] tendo em vista que “não é possível que dois juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si sejam válidos”.[81] Neste caso, portanto, a decisão é sobre validade.
Agora, se dois princípios colidem e um deles tem de ceder, não quer dizer que seja inválido, nem que há necessidade de que seja introduzida uma cláusula de exceção. O que acontece é que se constata que “um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições”.[82] Aqui, o conflito não se dá na dimensão validade, mas na dimensão do peso.
Para solucionar esses casos, Alexy[83]concebe uma fórmula que denomina lei da colisão, sugerindo que, o sopesamento que se realiza por meio dela, resulta em uma norma de direito fundamental atribuída.
Se isoladamente considerados dois princípios diferentes conduzem a uma contradição, no que diz respeito às possibilidades fáticas que deles decorrem (ou seja, eles levam a juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si), significa que um restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro. O objetivo do sopesamento, portanto, é definir qual dos interesses (protegidos por esses diferentes princípios, os quais, abstratamente, estão no mesmo nível) têm maior peso no caso concreto.
A solução, segundo Alexy,[84] é o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada (concreta ou relativa) entre os princípios, sendo que a questão a ser respondida é a seguinte: sob quais condições um princípio deve prevalecer ou deve ceder?
E um dos pontos importantes para essa teoria das relações de precedência condicionadas, no entendimento de Alexy, neste aspecto, é que essas condições dizem com os direitos fundamentais; são as condições sob as quais se verifica uma violação a direitos fundamentais. Em resumo, “[s]e uma ação viola um direito fundamental, isso significa que, do ponto de vista dos direitos fundamentais, ela é proibida”.[85]
Eis a regra que deve balizar a definição da relação de precedência; e o resultado dessa definição se estabelece como um enunciado de preferência que também se consagra como uma regra. Nas palavras de Alexy, “de um enunciado de preferência acerca de uma relação condicionada de precedência decorre uma regra, que, diante da presença da condição de precedência, prescreve a consequência jurídica do princípio prevalente”.[86]
Sinteticamente, então, prescreve: “[a]s condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência”.[87]
Ainda, diz que: “como resultado de todo sopesamento que seja correto do ponto de vista dos direitos fundamentais pode ser formulada uma norma de direito fundamental atribuída, que tem estrutura de uma regra e à qual o caso pode ser subsumido”.[88]
Sob estas bases, é possível conceber uma solução para um eventual conflito entre a independência entre as instâncias e o ne bis is idem? Se “princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas”[89] e a independência entre as instâncias for aceita como um princípio, nos termos em que Alexy os qualifica, um exercício de sopesamento que resulte em um enunciado de preferência mais favorável à prevalência do ne bis idem pode exigir que aquele ceda.
Por outro lado – e, a despeito de ser denominado comumente como princípio –, mesmo que ela apresentasse as características das regras, o ne bis in idem poderia ser imposto como uma cláusula de exceção, seguindo-se a linha de raciocínio de Alexy, no sentido de que “[a] introdução de uma cláusula de exceção pode ocorrer em virtude de um princípio”.[90]
Até porque, segundo ele, “o caráter prima facie dos princípios pode ser fortalecido por meio da introdução de uma carga argumentativa a favor de determinados princípios”[91] (como, por exemplo, mais a favor dos interesses individuais do que de interesses coletivos), ainda que isso não os vá igualar às regras, em termos de caráter. “O caráter prima facie das regras, que se baseia na existência de decisões tomadas pelas autoridades legitimadas para tanto ou decorrentes de uma prática reiterada, continua a ser algo fundamentalmente diferente e muito mais forte".[92]
Isto, porém, não dispensaria o sopesamento, visto que princípios apenas estabelecem direitos prima facie, no entendimento de Alexy. Segundo ele, “decisões sobre direitos pressupõem a identificação de direitos definitivos. O caminho que vai do princípio, isto é, do direito prima facie, até o direito definitivo passa pela definição de uma relação de preferência. Mas a definição de uma relação de preferência é, segundo a lei da colisão, a definição de uma regra”.[93]
Na prática, significa que quando um princípio for base suficiente à tomada de uma posição concreta, ele passará a ser o fundamento de uma regra e, como tal, razão definitiva para esse juízo concreto.
Sendo assim, se um amplo grupo de condições de precedência confere um altíssimo grau de certeza a um dado princípio, como é o caso do princípio do ne bis in idem, e a relação de preferência que (sabidamente) estabelece em face de outros princípios lhe confere, nesta medida, conteúdo de regra, pode-se aventar a viabilidade de que um juízo ponderativo prévio deva ser feito pelo próprio legislador. Ou para lhe consolidar com cláusula de exceção à propugnada independência entre as instâncias (se tomada como regra); ou para conferir ao ne bis in idem igual posição (ou seja, de regra, em caráter definitivo), obrigando os intérpretes, nesse último caso, a ressignificar a independência entre as instâncias, sob pena de que a discussão atinja a dimensão da validade.
Tendo-se que os ilícitos penais e administrativos correspondem a conceitos puramente normativos, ao passo que o desenvolvimento de uma política sancionadora integrada e de coordenação entre as instâncias competentes não inviabilizaria a incidência de diferentes modalidades de sanção, quando fosse o caso – enquanto a independência entre as instâncias tem validado a mera repetição de sanções idênticas, por vezes, apenas com nomenclaturas diferentes –, a solução seria reconhecer que, quando a política legislativa produzir sobreposição, por não atentar para a necessidade de coordenação, verificar-se-á a ocorrência de bis in idem.
Logo, se trabalhada a partir da lei da colisão, essa premissa pode levar a afirmação de que: quando duas ou mais sanções são cominadas para o mesmo fato, sem que haja coordenação entre os poderes competentes para aplicá-las (suporte fático), o princípio do ne bis in idem resulta vulnerado; e, logo, sob o ponto de vista dos direitos fundamentais, essa ação é proibida (consequência jurídica).
Ademais, o princípio da separação dos poderes – do qual, em tese, deriva a suposta independência entre as instâncias –, agora usando as palavras de Sirlene Nunes Arêdes, “firmou-se como mecanismo de garantia das pessoas contra a arbitrariedade dos detentores do poder e como mecanismo de contenção do poder”.[94] Portanto, a “sua utilização para limitar a aplicabilidade de direitos fundamentais, como ocorre no direito brasileiro, é contrária à finalidade para a qual o princípio foi concebido”.[95]
Sendo o Estado uma entidade una, na qual as divisões internas apenas existem para garantir funcionalidade à sua atuação e à proteção de direitos fundamentais contra arbitrariedades, “consiste em subversão à lógica da separação dos poderes o entendimento conforme o qual esse princípio permite onerar as pessoas submetidas à ordem jurídica”.[96]
Dentro deste contexto, tem-se que, em termos de carga protetiva de direitos fundamentais, o peso da vedação ao bis in idem na equação de sopesamento com a independência entre as instâncias é superior. Nem toda intervenção estatal na esfera de direitos individuais está legitimada pelo ius puniendi; e, tampouco, pode ser justificada, simplesmente com base no princípio da independência entre as instâncias.[97]
A obviedade dos pesos atribuídos aos princípios em colisão, neste caso, leva a que a relação de precedência estabelecida entre eles seja tão sólida, que a regra extraída do enunciado de preferência pode ser antecipada e positivada pelo legislador. Em vista de suas bases e contornos, o princípio da independência entre as instâncias não consegue se desincumbir do ônus argumentativo que a vedação ao bis in idem lhe atribui.
A bem da verdade, dada a sua incorporação ao ordenamento pátrio como direito fundamental e a sua estreita ligação com outros direitos fundamentais, pode-se dizer que o ne bis in idem se apresenta como um critério de preferência aplicável diretamente.[98] Não porque independeria de sopesamento, mas porque a sua consagração já é o resultado de um exercício ponderativo prévio, cujo resultado é a sua consolidação como regra.
Essa ideia se assemelha àquela defendida por Daniel Wunder Hachem, quando trata da questão do mínimo existencial, dizendo que “[d]o mesmo modo como há um consenso social em relação ao desrespeito à dignidade provocado por determinadas ações (v.g. prática de tortura), deve haver um consenso social acerca da transgressão do mesmo princípio quando da omissão do Poder Público importar uma situação de flagrante indignidade”,[99] sendo o mínimo existencial justamente isso: o “núcleo material do princípio da dignidade humana”.
Em face destas e de outras considerações, ele sustenta que “[s]ua incidência dá-se pelo método da subsunção, não podendo ser objeto de ponderação, uma vez que o seu conteúdo coincide com o núcleo essencial irredutível dos direitos fundamentais, insuscetível de sopesamento”.[100] E isto, porque já é o resultado de um sopesamento. Portanto, “não se trata, na verdade, de efetiva blindagem contra qualquer ponderação: o que se entende é que esta já foi previamente realizada pelo constituinte – tornando-o, assim, um direito definitivo e não prima facie (...)”.[101]
Nesta perspectiva, tem-se que o poder (ou dever) do Estado de punir precisa, obrigatoriamente, ser exercido com respeito aos limites que o ne bis idem impõe, sendo-lhe vedado estabelecer imputações e sanções múltiplas, em face do mesmo agente e dos mesmos fatos, de maneira desordenada e desconexa.
Dizer o contrário importaria, no mínimo, uma despreocupação com a necessidade de que o sistema jurídico funcione de maneira coerente, o que é salutar para o resguardo da proporcionalidade das sanções e da segurança jurídica, não só no âmbito da aplicação, mas no âmbito legislativo também.
A este respeito, é interessante a posição defendida por Luc J. Wintgens,[102] quando propõe que os problemas legislativos sejam estudados sob o ângulo da teoria legal (legal theory), mas a partir de uma abordagem que ele chama de legisprudência (legisprudence),[103]como um contraponto à jurisprudência; e que se volta para a atuação do legislador – e não para o julgador –, tratando o ato de legislar não como uma mera questão de política (e, como tal, sujeita a lógica e jogos de poder próprios).
Dessa forma, segundo ele, questionamentos que tradicionalmente eram cobertos pelo manto da soberania (em que medida o legislador precisa levar em conta a sistematicidade da ordem legal, o que se considera como norma válida, quais significados podem ser criados e como, por exemplo), passam a poder ser direcionados ao legislador.[104] Então, para o desenvolvimento de uma teoria racional de produção legislativa o autor defende, a liberdade como principium e como a base para os princípios que irão, finalmente, concretizarem-se em deveres ao legislador.[105]
O princípio da coerência é o primeiro desses princípios e o que ele exige é que as normas façam sentido como um todo (“[i]t requires that norms make sense as a whole”); que não sejam contraditórias entre si; que o legislador apresente o porquê das mudanças operadas – ou não – com o passar do tempo; e que respeite teorias não propriamente legais (“theories that are not themselves law, but to which legislators must refer in order to justify their norms”).[106] Seguindo a proposição do autor, tem-se que, nesse plano, a coerência, tipicamente, relaciona-se com as regras que balizam as normas e com a separação de poderes, devendo assumir, sempre, por princípio, a liberdade.[107]
Os demais princípios são os da alternatividade, temporalidade e necessidade de densidade normativa, mas atendo a análise apenas àquilo que mais se relaciona ao objeto deste estudo, tem-se que o conteúdo conferido pelo autor a este último princípio é altamente elucidativo. Segundo o autor, em face dele, não se pode atribuir às sanções, de plano, a maior densidade normativa possível, sendo que, para que algo assim seja admissível, justificativas suplementares devem ser apresentadas, de modo a demonstrar a razão pela qual alternativas menos gravosas não serviriam para atender os propósitos em causa.[108]
Desde este ponto de vista, pensar que a solução para o aparente conflito entre a independência entre as instâncias e ne bis in idem deveria provir do próprio legislativo parece ser ainda mais apropriado. Ao fato de que assiste ao ne bis in idem uma preferência que pode ser antevista, acrescenta-se uma outra razão (que, aliás, serve para reforçar o seu peso na equação do sopesamento).
Tal como engendrados, os diplomas legais sancionadores que replicam tipos e sanções não respeitam uma métrica de coerência, propagam uma interpretação da separação dos poderes – consubstanciada em uma visão quase mística da chamada independência das instâncias sancionadoras – que desprestigia direitos individuais, em favor de interesses políticos contingenciais; e, de consequência, vulneram a unidade e a coerência do próprio sistema normativo.
Tendo-se que o ordenamento jurídico constitui um sistema, desde que as normas que o compõem se relacionem de forma coerente, empresta-se de Norberto Bobbio, o seguinte questionamento: “[q]ue ordem pode haver entre as normas de um ordenamento jurídico, se o critério de enquadramento é puramente formal, isto é, referente não à conduta que elas regulam, mas unicamente à maneira com que foram postas? Da autoridade delegada pode emanar qualquer norma?”.[109] Indo ainda mais longe, ele pergunta: “se pode emanar qualquer norma, pode emanar também uma norma contrária àquela emanada de uma outra autoridade delegada? Mas poderíamos ainda falar de sistema, de ordem, de totalidade ordenada num conjunto de normas no qual duas normas contraditórias fossem ambas legítimas?".[110]
Definitivamente, a resposta tem de ser negativa. E, portanto, não parece aceitável seguir restringindo a incidência da vedação ao ne bis idem ao âmbito penal e utilizando a dita independência entre as instâncias como um trunfo, para conferir ares de legitimidade a uma estrutura que se chama pelo nome de sistema, mas opera de forma dessincronizada.
IV. Considerações Finais
De tudo, duas cogitações se destacam: (i) ou a denominada independência entre as instâncias, tal como propugnada, não tem amparo constitucional e não se sustenta, sistematicamente, não havendo, de tal modo, um embate a ser solvido entre ela e a vedação ao bis in idem, porque esta – sim – tem ressonância constitucional, seja porque incorporada ao ordenamento, por força dos tratados internacionais a que aderiu o Brasil, seja por decorrer direta e indiretamente de outros direitos fundamentais; e, então, nesse o caso, a tese de que as instâncias sancionatórias são independentes, simplesmente, não serve como fundamento para justificar a sobreposição de tipificações e sanções em âmbitos diferentes; (ii) ou a hipótese é de colisão de normas e a solução pode passar pelo estabelecimento de um enunciado de preferência – e, de consequência, de uma norma de direito fundamental atribuída, com amparo na lei da colisão proposta por Robert Alexy –, sendo que, por esse caminho, dada a obviedade do peso que o ne bis in idem carrega, a relação de precedência que se estabelece em seu favor alcança uma tamanha solidez, que a regra extraída do enunciado de preferência pode ser antecipada e positivada pelo legislador.
Em um cenário ideal, como a equação de sopesamento seria antecipada pelo legislador, o ne bis in idem se consolidaria como regra e se apresentaria como um critério de preferência aplicável diretamente, impassível de ser afastado com o argumento de que as instâncias são independentes. Mas isso, a bem da verdade, só viria para conferir a maior operatividade que ele já deveria ter – frente a princípio reitor do sistema e à sua incorporação ao rol de direitos fundamentais –; e ainda não tem.
Afinal, considerando que qualquer exercício de coerção pelo Estado, sobretudo em razão do princípio da proporcionalidade, deve ser justificado formal e materialmente, não parece possível sequer aventar a hipótese de que cumular sanções que apresentem as mesmas – ou quase as mesmas – finalidades, por meio de processos paralelos, tenha sido o objetivo do legislador constituinte. É igualmente improvável que ele tenha prospectado um resultado positivo decorrente da replicação de tipificações já existentes – ou que poderiam vir a existir – em outros ramos; e, então, deliberadamente optado por viabilizar ao legislador infraconstitucional que assim o fizesse.
Em última análise, pode-se dizer que se não trata de uma mera conjectura. Uma interpretação como essa poderia sugerir que o legislador constituinte reservou espaços onde uma espécie de rompimento seletivo com a unidade de sentido que conforma a Constituição seria tolerável. Mas a própria ideia de uma ruptura excepcional é contrária a racionalidade que se assenta nessa unidade, a qual impõe que, em qualquer embate, os direitos individuais sejam priorizados. Logo, há um problema no modo como a máxima da independência entre as instâncias é trabalhada e empregada, com prejuízo a direitos fundamentais; e ele precisa ser resolvido.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
Como citar este artículo | How to cite this article: MEDEIROS, Alice Silveira de. Ne bis in idem versus independência entre as instâncias: conflito real ou putativo? Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 8, n. 2, p. 123-156, jul./dez. 2021. DOI 10.14409/redoeda.v8i2.10670