Resumo: O presente artigo pretende analisar a revolução digital da Administração Pública através de um olhar crítico, compreendendo que se trata de uma transformação necessária para o alcance dos objetivos republicanos e do Estado Social, mas não sem riscos inerentes. Destarte, o estudo abordará a problemática da exclusão digital em suas diversas faces, desde a exclusão econômica, até a exclusão urbanística e cognitiva. Por fim, discutirá a questão das escolhas políticas e dos recursos públicos escassos como obstáculos para a implementação de tecnologia em contraste com a garantia dos demais direitos fundamentais e sociais, concluindo pela necessidade de um planejamento prévio que se atente às condições materiais da população. Trata-se, por fim, de pesquisa exploratória, e para alcançar os objetivos referenciados, a pesquisa bibliográfica sobre o tema, por meio de artigos jurídicos, revistas jurídicas, normas constitucionais e infraconstitucionais, será o método de procedimento específico do trabalho em questão.
Palavras-chave: administração pública digital, tecnologia, serviços públicos, desigualdade, escassez.
Abstract: This article aims to analyze the digital revolution of the Public Administration through a critical view, understanding that it is a necessary transformation to achieve the republican objectives and the Social State, but not without inherent risks. Thus, the study will address the problem of digital exclusion in its various facets, from economic exclusion to urban and cognitive exclusion. Finally, it will discuss the issue of political choices and scarce public resources as obstacles to the implementation of technology in contrast with the guarantee of other fundamental and social rights, concluding with the need for prior planning that pays attention to the material conditions of the population. This is, finally, an exploratory research, and to achieve the referenced objectives, the bibliographical research on the theme, through legal articles, legal magazines, constitutional and infra-constitutional norms, will be the method of specific procedure of the work in question.
Keywords: digital public administration, technology, public services, inequality, scarcity.
Artículos
Administração Pública digital: limites e possibilidades em atenção à desigualdade social e ao custo dos direitos
Digital Public Administration: limits and possibilities in view of social inequality and the cost of rights
Recepción: 27 Marzo 2022
Aprobación: 04 Julio 2022
A velocidade com que novas tecnologias são desenvolvidas e inseridas na sociedade transforma o modo com que os indivíduos se relacionam. Desde a forma de comunicação até a forma de produção e consumo,[1] tecnologias alteram substancialmente a estrutura em que se vive.
A Administração Pública não pode se furtar do uso de novas tecnologias em seu funcionamento, seja nas relações administrativas internas, seja na relação direta com os administrados. Entende-se, para fins deste raciocínio, tecnologia como sinônimo de um conjunto de conhecimentos empíricos, que alteram ou possibilitam a transformação de procedimentos internos ou externos, objetivando, em suma, o alcance da eficiência no âmbito administrativo.[2]
Ainda, de suma importância ressaltar a conectividade, ou a “sociedade em rede”, como indissociável do conceito de tecnologia, vez que a reestruturação da forma com que indivíduos se comunicam e se relacionam também deve nortear a atuação da Administração Pública, que deve repensar a relação com os administrados através, por exemplo, do acesso à internet.
Com efeito, no Brasil, esta tem sido uma realidade explorada desde a década de 1990, à época da reforma administrativa[3] e, especialmente, a partir do início do século XXI. A exemplo, a plataforma gov.br reúne os serviços digitalizados disponíveis ao cidadão na esfera federal, separando-os por categoria e/ou público alvo, tendo, inclusive, painel de monitoramento dos serviços federais com indicadores daqueles que são digitais, bem como avaliação dos usuários e tempo de espera.
Através de dados fornecidos sobre o histórico da plataforma, infere-se que o objetivo, de início, era sistematizar os serviços em um ambiente integrado e com interface intuitiva, processo esse que teve início no ano de 2000 com o Programa de Governo Eletrônico do Estado brasileiro. No entanto, a primeira década do século foi dedicada, primordialmente, à digitalização dos processos internos da Administração Pública.[4]
A partir de 2015, muda-se o foco do “governo eletrônico”, até então compenetrado nas relações internas da Administração Pública, para o conceito de “governo digital”, a fim de efetivar a prestação de serviços digitais de forma acessível e eficiente, além do acesso à informação e a utilização da tecnologia como ferramenta para maior participação social no processo de decisões públicas.[5]Assim, em 2019 o domínio gov.br tornou-se um portal único para a concentração de todos os serviços e informações referentes ao Governo Federal.
Finalmente, seguindo a mesma lógica, em 2020 foi lançada a Estratégia de Governo Digital para 2020-2022, pautada no Decreto nº 10.332, que pretende melhorar e tornar acessíveis os serviços públicos de forma digital.[6]
Busca-se superar, conforme narrado por José Sérgio da Silva Cristóvam, Lucas Bossoni Saikali e Thanderson Pereira de Sousa, o paradigma do governo eletrônico que tão somente dispõe as informações em plataformas eletrônicas. Para além de informar, de forma incremental, a tecnologia deve ofertar serviços[7] e, se os serviços públicos são instrumento para a concretização de direitos fundamentais e sociais,[8]a tecnologia deve também contribuir para esse fim.
Mais recentemente, em Decreto nº 10.609 de 26 de janeiro de 2021, restou instituída a “Política Nacional de Modernização do Estado”, bem como o “Fórum Nacional de Modernização do Estado”. Da leitura do decreto infere-se que tal política, atuante no âmbito do Poder Executivo, tem entre suas diretrizes “promover a transformação digital da gestão e dos serviços”. O decreto também menciona que a implementação da política se atentará, necessariamente, “à governança de dados, à internet das coisas, à digitalização da economia, à digitalização de serviços, à integração das bases e à estrutura de conectividade.”
De outro lado, em breve menção à face regulatória do Estado frente ao uso de tecnologia por entes públicos e privados, iniciativas como a Lei Geral de Proteção de Dados buscam proteger direitos fundamentais de caráter individual,[9] a exemplo da privacidade. Também nessa toada, o artigo 20 da mesma lei garante o direito à explicabilidade das decisões tomadas por algoritmos, o que, nas palavras de Juarez Freitas, implica a inversão do ônus da prova a favor do administrado, incumbindo ao Poder Público provar que “os algoritmos eleitos não acarretam efeitos juridicamente lesivos”.[10]
Ainda no tema das decisões tomadas por algoritmos, especialmente no tocante à utilização da Inteligência Artificial pela Administração Pública, a atividade regulatória também é de grande importância, sendo imprescindível a noção de que o algoritmo é objeto de criação suscetível às intenções de seu criador,[11] bem como a capacitação do agente público para controle dessa atividade.[12]
Também vale a menção à Lei de Defesa dos Usuários de Serviços Públicos, que, ao tratar da regulação de serviços públicos no ambiente digital, também faz referência à atividade regulatória, pois disciplina o direito de acesso e obtenção de informações relativas ao usuário, bem como determina a proteção de suas informações pessoais.[13] A atividade regulatória, portanto, faz parte da nova realidade da Administração Pública Digital, sendo instrumento para a promoção do bem-estar social.[14]
Embora os exemplos supracitados indiquem a evolução, desde o início do século, no sentido de modernizar e digitalizar a Administração Pública, por certo ainda não se pode considerar o trabalho como completo, ainda mais em face da volatilidade das tecnologias. Bem assim, seguindo essa lógica, cite-se o serviço público como o meio pelo qual a Administração Pública pretende atender as necessidades coletivas, que conforme seu regime jurídico, definido pela Lei nº 8.987, deverá ser prestado sob a condição da atualidade. Isto é, um serviço público prestado de maneira obsoleta do ponto de vista tecnológico viola, frontalmente, o regime jurídico administrativo referido. Sob esse ponto de vista, é necessário inclusive a reconstrução do que se considera “serviço público adequado”, nos moldes previstos na lei referida.[15] Dessa forma, surge para o Estado o dever de redesenhar a prestação de serviços públicos com o auxílio das tecnologias.[16]
Mais a mais, o próprio princípio da eficiência, que rege o Direito Administrativo, conforme elencado no artigo 37 da Carta Magna e também no artigo 6º, § 1º da Lei nº 8.987, está diretamente atrelado ao serviço público prestado da forma adequada, pensando-se não somente em qualidade, mas também em redução de custos, otimização do serviço e sustentabilidade.[17]
E, em uma perspectiva mais ampla, para pautar o advento da tecnologia nas atuações do Estado, considerando os direitos fundamentais constitucionalmente qualificados como a base de nosso ordenamento jurídico, imperativo citar o que já se torna um certo consenso na doutrina, qual seja a configuração do direito fundamental à internet, como derivado do próprio princípio da dignidade humana[18] ou, ainda, o que seriam chamados "direitos humanos de quarta geração”.[19]
No entanto, a implementação de tecnologias no âmbito da Administração Pública, especialmente no que diz respeito a serviços prestados diretamente à população, deverá ser cautelosa. Isto porque, de início, é necessário se atentar à desigualdade social que impacta significativamente a inclusão digital da sociedade.
Ou seja, a implementação da tecnologia por parte do Estado deve se atentar à parcela da população que não possui acesso à internet e que, via de regra, são pessoas da classe mais vulnerável, a quem também são negados outros direitos fundamentais, a exemplo de moradia, educação ou segurança alimentar.[20]
Não obstante a digitalização das esferas público e privada venha, comumente, acompanhada do estigma do desenvolvimento, tal fenômeno, especialmente na arena pública, não pode ser um fim em si mesmo. Isto é, pouco adianta o investimento em tecnologia se esse não se traduzir em serviços prestados com maior qualidade e com maior alcance, fortalecendo a igualdade material. Nas palavras de Vanice Valle, especificamente em relação aos serviços públicos digitais, a "simples disponibilização de suas condições básicas de prestação em um sítio eletrônico ou aplicativo não traduz o salto de qualidade que a expressão inequivocamente pretende revelar”.[21] Nesse sentido, as inovações tecnológicas devem ser analisadas sob o ponto de vista da compatibilidade com um desenvolvimento includente, pensado a partir do efetivo acesso aos serviços prestados e melhoria na qualidade de vida da população.[22] A inclusão da tecnologia no aparato estatal deverá, portanto, ser precedida por análise técnica em relação aos seus impactos, positivos e negativos, para que realmente se atinja o princípio da eficiência.[23]
Ademais, é necessário enxergar a problemática da inclusão como um todo. Por óbvio, estratégias de digitalização da Administração Pública devem levar em conta a maximização do acesso à internet. No entanto, não se pode limitar a isso: em uma sociedade de cidadãos estruturalmente excluídos, é necessário pensar a inclusão digital como forma de acesso aos demais serviços públicos.[24]
Sendo assim, as iniciativas de investimento tecnológico devem ter, por base, a expansão do acesso ao internet; a redefinição da dicotomia urbana entre centro-periferia, que limita o acesso da população vulnerável aos mais diversos serviços públicos, inclusive sinal de internet de qualidade; bem como a construção de ferramentas intuitivas, de fácil compreensão, que aproximem o cidadão da Administração Pública. Dessa forma, a transformação digital permitirá não somente maior participação democrática, favorecendo o princípio republicano,[25] mas também melhor acesso aos serviços públicos,[26] em atenção à universalidade intrínseca à satisfação dos direitos fundamentais e sociais conforme dispostos na Constituição Federal.[27]
Por outro lado, sob a lógica de recursos escassos e orçamento público enxuto, a alocação de recursos na implementação de tecnologia em certa área implica, necessariamente, a escolha de não alocação de recursos em outra área. Para tal inquirição, imprescindível a doutrina de Cass Sunstein e Stephen Holmes que, quando da análise do viés político e ético orçamento público, afirmam que as escolhas de alocação de recursos obrigam a sociedade a reconhecer os sacrifícios que estão dispostos a suportar em prol de alcançar objetivos mais importantes.[28]
Neste ponto, a noção de “objetivos importantes” na esfera estatal parece turva, encoberta pela noção ampla e subjetiva de “interesse público”. Contudo, é possível se guiar pelos objetivos previstos para a República, no artigo 3º da Constituição Federal, bem como as previsões abarcadas pelos direitos sociais previstos no artigo 6º da Carta Magna.[29]
A exemplo, ao decidir alocar recursos públicos em determinada inovação tecnológica na área da educação, é necessário analisar quais os impactos positivos da medida, quem a medida irá atingir (alcançará a população jovem e vulnerável que suporta as condições mais precárias da educação pública?) e, finalmente, se tais impactos positivos justificam deixar de alocar os mesmos recursos em outra área, como a da saúde.
A partir dos pontos apresentados é que o presente artigo buscará compreender se os investimentos tecnológicos, de fato, se mostram benéficos em relação ao custo-benefício. Isto é, se restam justificados à medida que possibilitam maior qualidade e acesso aos serviços públicos. Pretende-se, assim, analisar a implementação necessária da tecnologia na Administração Pública de forma crítica, objetivando o efetivo alcance dos objetivos republicanos e dos direitos fundamentais e sociais.
Por fim, considerando que o estudo da Administração Pública Digital sofre alterações substanciais a cada momento, uma vez que a velocidade da evolução das tecnologias ainda ultrapassa, em muito, a capacidade de assimilá-las tanto na vida privada mas especialmente na pública, tem-se que a melhor forma de analisar o tema é através do método de revisão bibliográfica de artigos científicos publicados em revistas especializadas e livros organizados coletivamente, além de artigos de opinião que possuem periodicidade constante e analisam, de forma concisa, a inclusão da tecnologia no Direito Administrativo, e também da análise de normas constitucionais e infraconstitucionais, o que se fará ao longo deste artigo.
O estudo crítico do processo de digitalização da Administração Pública no Brasil está intrinsecamente ligado à problemática da exclusão digital. Por óbvio, uma vez que a existência do aparato estatal é condicionada à satisfação e concretização de direitos fundamentais,[30] o processo de inclusão de tecnologia na arena pública não pode prescindir de uma análise concreta de seu alcance em relação aos administrados.
Da pesquisa bibliográfica sobre o tema, resta incontroverso que a implementação da tecnologia na esfera pública é vantajosa no que diz respeito à acessibilidade aos processos administrativos, o que permite maior engajamento da população sobre os atos de gestão da coisa pública, conforme apontado por Thiago Marrara.[31] Na seara legislativa, por exemplo, há plataformas digitais que estimulam a participação direta do cidadão, que podem ser qualificadas como ferramentas da “democracia eletrônica”ou “e-democracia”,[32] nas quais é possível analisar, sugerir alterações e realizar pesquisas de opinião pública em Projetos de Lei em andamento, alem da própria propositura de Projeto de Lei por iniciativa popular.
Em verdade, a transformação que a Administração Pública enfrenta é a evolução para um modelo mais distante das burocracias tradicionais, em prol de uma flexibilidade que favoreça a maior participação social nos processos decisórios.[33]
No entanto, Marrara não se furta de críticas ao assunto, especialmente no que diz respeito à necessidade de compatibilidade entre o uso de tecnologias disruptivas pela Administração Pública e o ordenamento constitucional e legislativo.[34]
A compatibilidade com o ordenamento, no que diz respeito aos direitos fundamentais, coaduna com a crítica tecida por Emerson Gabardo, Justo Reyna e Fábio de Sousa Santos, quando exploram a temática da exclusão digital. Nas palavras dos autores, ao indivíduo já invisibilizado não pode ser imposto o ônus de adquirir, por si mesmo, as ferramentas necessárias para a participação na sociedade digital.[35]
Bellocchio e Santiago dispõe, nesse sentido, que o Estado Digital de Direito deve ativamente promover o acesso universal à internet, levando em consideração desde o acesso à infraestrutura até a disponibilização da maior quantidade de informação possível em rede.[36]
E fato é que a realidade brasileira ainda impõe a segregação de parte da população nesse aspecto. Segundo os últimos dados coletados pelo IBGE, relativos ao ano de 2018, a internet era utilizada em 79,1% dos domicílios brasileiros, sendo que nos domicílios sem acesso, os motivos indicados para tanto foram a falta de interesse, o custo alto do serviço ou a inaptidão para utilizar o recurso.[37]
Embora o número de domicílios com acesso tenha aumentado em relação às pesquisas anteriores e inclua agora a maioria da população, ainda há dados que precisam ser confrontados. Conforme a pesquisa, para 4,5% das pessoas que não acessam a internet, não há disponibilidade do serviço no local, percentual esse mais elevado nas regiões Norte e Nordeste se comparadas ao Sudeste.[38]
Forçoso concluir que tais dados representam, em sua maioria, a população economicamente vulnerável. Isto é, em primeira mão, a questão da exclusão digital passa por um recorte de renda[39]. Não bastasse a exclusão estrutural das demais condições sociais, financeiras e culturais que permitem acesso aos serviços públicos, os mesmos indivíduos podem ser privados do acesso a dispositivos tecnológicos, a exemplo do computador pessoal e do smartphone, bem como o próprio acesso à internet, seja banda larga, seja por rede wi-fi.[40]
Outrossim, espera-se que, em um mundo tão desigual, permeado pela concentração de renda na mão de poucos, as novas ferramentas tecnológicas sejam utilizadas para fins de combate à pobreza, à insegurança alimentar, aos preconceitos de raça, gênero, sexualidade, etc., seja na esfera privada ou pública. Ademais, na esfera pública, não se trata de mera expectativa, e sim uma imposição, e as novas tecnologias devem ser implementadas não somente para adaptar a Administração Pública aos novos padrões digitais, mas principalmente em vista das desigualdades já existentes, promovendo um desenvolvimento sustentável e inclusivo.[41]
A interseção entre vulnerabilidade econômica e acesso à internet pode ser observada com o advento da pandemia de Covid-19. As medidas impostas para contenção do vírus aceleraram o processo de remodelação da Administração Pública, especialmente no que diz respeito ao atendimento ao público, ressignificando os espaços físicos e digitais.[42]
De outro lado, o auxílio emergencial, concedido através de cadastro em aplicativo de celular, expôs a problemática da exclusão digital: muitas pessoas tiveram de formar filas em frente a agências da Caixa Econômica Federal para conseguir o benefício, por vezes sem o distanciamento social necessário, seja por falta de acesso ao aplicativo, seja por funcionamento inadequado do mesmo.[43]
De igual forma, novos obstáculos surgiram na área da educação. A imposição do ensino à distância revelou o abismo entre escolas públicas e privadas, não raras as matérias veiculadas na mídia sobre crianças e adolescentes enfrentando dificuldades para acompanhar as aulas virtuais. Outrossim, embora adiado, a manutenção do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), porta de entrada para o ensino superior, cunhou o termo “ENEM da desigualdade”,[44] uma vez que milhares de estudantes não puderam se preparar da forma que pretendiam, enquanto alunos de escolas particulares pouco perderam em qualidade e frequência das aulas.[45]
Ainda no tema da educação, foi ao ar no programa Fantástico, em 21 de março de 2021, reportagem sobre um estudante de ensino médio residente no Pará, especificamente na área rural do município de Alenquer. Em razão da pandemia, o estudante de 15 anos assistia às aulas virtuais em cima de uma árvore, único lugar com sinal de internet na área em que vive. A matéria foi veiculada com tons de esperança e resiliência, demonstrando que a meritocracia ainda é o discurso predominante entre a sociedade brasileira.
Mas, o que histórias como essa realmente transparecem é a diferença entre as oportunidades apresentadas às classes alta e baixa, aos residentes do Norte e do Sul, aos moradores da cidade e do campo. O discurso da meritocracia esconde por trás das cortinas a falta de acesso às condições necessárias para uma vida digna, além de apresentar como privilégios o que, em verdade, são direitos básicos.
Todo o exposto demonstra que inobstante a implementação de tecnologias por parte da Administração Pública seja desejável e necessária, a ausência de planejamento pode significar um agravamento das situações de desigualdade social,[46] permitindo aos mais ricos que prossigam normalmente com suas vidas, inclusive em meio a uma pandemia,[47] ingressando em faculdades e mantendo seus trabalhos em regime de home-office sem prejuízo.
Corroborando com essa narrativa, um estudo realizado pelo Instituto PwC, em parceria com o Instituto Locomotiva, demonstrou que o acesso pleno à internet poderia ter impacto direto na elevação de renda da população mais pobre. O estudo ainda faz a importante diferenciação entre a conectividade plena, sem problemas de instabilidade de conexão, e a conectividade parcial ou intermitente.[48]
A situação descrita é reforçada pela variação de patrimônio dos bilionários ao longo do ano de 2020. Segundo narrado pela revista Forbes,[49] desde o início da pandemia, a riqueza dos bilionários ao redor do mundo aumentou em 25%, enquanto a população brasileira enfrentou recorde de desemprego.[50]
O acesso à internet e ao mundo digital é, portanto, um instrumento de poder. Isto porque está diretamente atrelado ao acesso à informação, que por sua vez garante acesso à educação, ao mercado de trabalho e à interação social, sendo um meio para conquista de poder político e econômico na sociedade.[51] Trata-se, assim, de análise de viés ético, que perpassa a discussão sobre o acúmulo de poder tecnológico e, portanto, econômico e político, na mão de grandes empresas do setor de tecnologia, por exemplo.[52]
Sobre a questão, Vanice Valle aponta que a gestão de riqueza decorrente da produção de dados produzidos e tratados na prestação de serviços públicos (considerando dados como um dos grandes ativos de mercado do século XII) "não pode restar oculta; é matéria a estar sujeita não aos interesses do mercado, mas sim à esfera de deliberação da política”.[53]
Nesta toada, explorando iniciativas que buscam aproximar a tecnologia da população desamparada, cumpre citar o projeto “Mães da Favela ON”, criada pela Central Única das Favelas (CUFA), que pretende, através de instalação de pontos de wi-fi gratuitos e distribuição de chips de celular, conectar 2 milhões de pessoas até julho de 2021, conforme se extrai da página online do projeto.[54]
No âmbito do Governo Federal, cita-se o Programa Internet Para Todos, que existe desde 2018 e pressupõe parcerias voluntárias com os governos locais e empresas credenciadas. Dito programa está vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e tem por objetivo promover atendimento a localidades onde inexista acesso à internet.[55]
Já na esfera municipal, convém ressaltar a mais recente iniciativa da Prefeitura de Curitiba, anunciada em 07 de janeiro de 2021, que planeja instalar 254 pontos de wi-fi gratuitos pela cidade.[56] O projeto será executado pelo Instituto das Cidades Inteligentes, organização social sem fins lucrativos que pesquisa e desenvolve soluções de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para a gestão pública.[57] Os projetos supracitados são alguns exemplos de cooperação entre organizações sociais, empresas privadas e o Poder Público para a expansão do acesso à internet, projetos esses urgentes para que se possa falar em uma Administração Pública verdadeiramente digital.
E no âmbito da implementação de tecnologia nas estruturas vivenciadas cotidianamente pelos administrados, adentra-se em outra esfera de exclusão digital: a exclusão urbanística. A organização das cidades é frequentemente definida pela dicotomia centro-periferia, que segrega parte da população a áreas de infraestrutura precária e assentamentos irregulares, longe de seus locais de trabalho, quando não retiradas de suas casas por ações de reintegração de posse e processos de gentrificação.
Evidente, portanto, que a organização geográfica das cidades se relaciona diretamente com a exclusão digital, que restringe o acesso aos serviços públicos e à própria cidadania,[58] uma vez que, para além da atuação da Administração Pública, oportunidades privadas também se fortalecem pelo acesso ao mundo digital, a exemplo da incorporação no mercado de trabalho.[59]
À vista disso, a reforma digital da Administração Pública deve andar lado a lado com uma proposta de reforma urbana que (re)pense a cidade de forma integrada, a fim de que os serviços digitalizados não atendam somente à população do centro e de bairros nobres. A exemplo disso, os temas atinentes ao Direito Urbanístico, como o conceito de cidade inteligente ou smart city,[60] devem ir além da implementação de soluções tecnológicas, caracterizando-se como um fenômeno de participação social e integração como ferramenta para a satisfação das demandas populares.[61]
A Organização das Nações Unidas possui cadernos específicos sobre Nova Agenda Urbana[62] e Cidades Inteligentes[63] decorrentes do chamado Habitat III, conferência sobre moradia e desenvolvimento urbano sustentável realizada em outubro de 2016. A conferência foi destinada a compreender os desafios referentes à urbanização, bem como propor soluções em termos de habitação, infraestrutura, serviços básicos, segurança alimentar, saúde, educação, empregos, segurança e recursos naturais.
Nesse sentido, a Organização dispõe que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) possuem potencial para atingir resultados de desenvolvimento sustentável,[64] com maior eficiência no uso dos recursos – aqui utilizando-se do termo “sustentável” como diretamente atrelado à ecologia – e melhor qualidade de vida dos cidadãos. Contudo, o documento se atenta às necessidades particulares dos países em desenvolvimento, sugerindo que os investimentos baseados em TICs não passem ao largo de outras prioridades de interesse público.
Ainda sobre o tema, foi publicado em 2018 estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense,[65] em que foram entrevistados especialistas brasileiros de diversas áreas de conhecimento para compreender quais os aspectos considerados mais vitais para o desenvolvimento de uma “cidade inteligente”. Os resultados demonstraram que os indicadores elencados como mais relevantes são relativos à governança, e não especificamente tecnologia (embora possam se beneficiar de abordagens tecnológicas), quais sejam gestão de infraestrutura, mobilidade, planejamento urbano, saúde, segurança pública, sustentabilidade e políticas públicas.[66]
Isto é, existem medidas que contribuem para a inteligência das cidades, garantindo um ambiente de desenvolvimento sustentável, que não dependem necessariamente de tecnologia ou, pelo menos, não de tecnologias de alta complexidade. Compreende-se que investir localmente no aprimoramento de serviços de saneamento básico,[67] saúde, transporte público e políticas públicas de moradia e segurança alimentar são primeiros passos essenciais para o efetivo desenvolvimento sustentável.[68] A verdade é que não basta inovação tecnológica, é fundamental também a inovação na gestão e no desenvolvimento de políticas públicas que promovam qualidade de vida.[69]
A bem da verdade, a utilização de tecnologias como big data, inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT)[70] pode auxiliar na prestação de serviços públicos,[71] além de otimizá-los, reduzindo custos para a Administração Pública e, por consequência, disponibilizando os recursos economizados para outros investimentos. Assim, João Marcelo Rego Magalhães exemplifica possíveis usos da tecnologia em serviços cotidianos, como a utilização de sensores para monitoramento do descarte de lixo nos bairros, a fim de otimizar as rotas de coleta, ou mesmo para controlar o gasto de água e energia, além do acompanhamento em tempo real de vagas de estacionamento públicas e tráfego de carros para melhorar o fluxo de veículos.[72]
Ainda, especificamente em relação ao big data, a gestão dos dados por parte da Administração Pública pode auxiliar na melhor compreensão sobre o perfil dos cidadãos, contribuindo para a elaboração de políticas públicas e prestação eficaz dos serviços.[73] O compilado de dados geridos pela Administração Pública permite, assim, que ela atue de forma preditiva, ao invés de agir em reação às demandas depois de já existentes ou, ainda, em mero “controle de danos".[74]
Outras tecnologias já foram incorporadas ao dia a dia das cidades,[75] tal qual a digitalização dos processos judiciais, a emissão de certidões públicas online, disponibilização de documentos oficiais de identificação por aplicativo, controle eletrônico de uso de vagas de estacionamento públicas,[76] etc.
A tecnologia também pode ser utilizada para aprimorar a transparência governamental, para que seja de fato ativa, conectando o Estado aos cidadãos e informando-os das decisões que afetem suas rotinas. É o que Marcos Nóbrega e Juliano Heinen propõem em artigo de opinião publicado no Estadão,[77] em que abordam a Administração Pública pós-covid. Para os autores, decisões públicas podem ser encaminhadas diretamente aos indivíduos que por elas sejam afetados, através de meios de comunicação realmente utilizados no cotidiano, a exemplo do whatsapp. É claro que iniciativas como essa entrelaçam-se com o direito à privacidade, uma vez que dependem de análise de dados, âmbito esse em que se faz necessária a face regulatória do Estado diante das tecnologias.
Adiante, outro aspecto identificado como representativo do desenvolvimento das cidades é a própria população, através do que se denomina “capital intelectual”,[78] que associa o desenvolvimento sustentável ao trabalho, ao empreendedorismo e às inovações produzidas pelos particulares. Contudo, para que as ideias se concretizem no mundo material, deve haver um ambiente propício para tanto.[79] Isto é, um espaço de oportunidades iguais, que incentive a inovação e a pesquisa, e que não restrinja o acesso ao conhecimento, ambiente esse que demanda esforços diretos para a redução das desigualdades econômica, de raça, de gênero e de orientação sexual.
Sem dúvidas, as soluções tecnológicas supracitadas apresentam respostas para obstáculos decorrentes da urbanização, mas não devem ser incorporadas às cidades – e aos ambientes de vivência social de forma geral - de forma desproporcional, sem que se atente a outros dilemas já enraizados na sociedade. A exemplo, o Município de Curitiba, inobstante seja considerada a 3ª cidade mais inteligente do Brasil,[80] ainda enfrenta graves problemas em relação à moradia e à desigualdade socioespacial.
É o que apontam Tainá Andreoli Bittencourt e José Ricardo Vargas de Faria, utilizando-se de indicadores como a abrangência de serviços de saneamento básico, energia elétrica e coleta de lixo, iluminação pública, oferta de transporte público, renda per capita, entre outros: a Curitiba “modelo” encontra-se na região central da cidade, enquanto os bairros periféricos suportam as condições mais precárias de infraestrutura e renda, representando 28% da população curitibana.[81]
Por fim, a exclusão digital também se apresenta em forma de exclusão cognitiva. Conforme antes mencionado, o acesso à internet e ao mundo digital é mais restrito em áreas rurais quando comparado a áreas urbanas, e a realidade se estende para municípios interioranos quando comparados a capitais e grandes metrópoles. E, via de regra, nesses locais se encontram indivíduos que não possuem afinidade com a tecnologia.[82]
O mesmo também é verdade para cidadãos idosos, que viveram grande parte de suas vidas antes do advento da internet. Para muitos, não se trata somente de conhecimento técnico ou conexão à internet, e sim uma escolha de se manter alienado, seja por comodidade, seja por desconfiança em relação ao mundo digital.[83]
Logo, mesmo que a tecnologia favoreça a padronização dos serviços e o tratamento isonômico dos administrados, certo grau de humanização deve ser mantido a fim de que se compreenda as peculiaridades de cada realidade concreta, evitando a marginalização de grupos não conectados.[84] A digitalização da Administração Pública é, portanto, um processo de transição, que não pode ser feito às custas dos serviços analógicos, que se mantêm necessários, mesmo que de forma reduzida, para atender a demanda dos cidadãos não familiarizados ou não conectados com a internet.
A exclusão cognitiva também indica que a digitalização de serviços públicos, especialmente nas plataformas de contato direto com o cidadão, deve ser feita de forma simples e intuitiva, de fácil compreensão, visando aproximar os “analfabetos digitais” da participação democrática. Finalmente, exclusão cognitiva também se traduz em exclusão enfrentada por pessoas com deficiência, devendo a Administração Pública propor soluções de acesso àqueles que convivem com deficiências auditivas, visuais, físicas e intelectuais.
O presente capítulo buscou demonstrar as várias faces da exclusão digital, que vão além da mera conexão à internet. Assim, resta concluir que as novas tecnologias devem ser abordadas sob a lente da realidade material, que permita compreender as necessidades concretas dos cidadãos, atentando-se às particularidades dos estados e municípios, para então planejar a concretização de direitos sociais através do modelo de governo digital.[85]
A escassez de recursos públicos, o déficit público e a dívida externa são termos muito presentes quando em discussão a economia e a política brasileiras, pelo menos nos últimos anos. A abordagem é acompanhada de uma agenda política de austeridade fiscal, a exemplo do congelamento de gastos públicos pela Emenda Constitucional nº 95 de 2016.
Portanto, é nesse contexto que o presente trabalho parte da premissa de que os recursos são finitos, as demandas são crescentes[86] e o planejamento do orçamento público depende de escolhas políticas. Nesse sentido, valiosa a contribuição de Cass Sunstein e Stephen Holmes em sua obra The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. Na obra, além de explorarem a relação intrínseca entre garantia de direitos individuais e custeio de tais direitos através de impostos, Sunstein e Holmes também discorrem sobre escassez e sobre direitos não serem, na realidade material, absolutos. Para tanto, os autores discutem o viés ético e político do orçamento público, afirmando que as escolhas de alocação de recursos obrigam a sociedade a reconhecer os sacrifícios que estão dispostos a suportar em prol de alcançar objetivos mais importantes.[87]
No que diz respeito à utilização de tecnologias por parte da Administração Pública, conforme já explorado neste artigo, o problema se encontra na compatibilidade dessa transformação com a garantia de direitos fundamentais e sociais.[88] Por certo, não se olvida a capacidade que as tecnologias possuem de contribuir com o princípio da eficiência no Direito Administrativo. Isto é, em síntese, as tecnologias possuem o potencial de garantir serviços públicos de maior qualidade e que atinjam o maior número de cidadãos, em atenção à universalidade, por um custo menor aos cofres públicos.
Considerando apenas tal aspecto, seria possível afirmar que o investimento em tecnologia na esfera pública é positivo para a melhor prestação dos serviços públicos e também para o orçamento público como um todo, permitindo diversificar a alocação de recursos para as mais diversas áreas antes desfalcadas.
Inclusive, é o que prevê o plano de ação europeu da União Europeia para acelerar a transformação digital da Administração Pública, que explicita que os serviços digitais “reduzem encargos administrativos para as empresas e os cidadãos, tornando a sua interação com as administrações públicas mais célere e eficiente, mais conveniente e transparente, bem como menos onerosa.”, concluindo que a modernização da Administração Pública através do uso de tecnologias “pode proporcionar vantagens econômicas e sociais para a sociedade em geral”.[89]
Na mesma toada, Marrara e Gasiola acreditam que as mudanças de gestão impulsionadas pela pandemia do Covid-19, especialmente no que diz respeito ao distanciamento físico, serão incorporadas definitivamente à Administração Pública, vez que diminuem custos operacionais e são mais ecologicamente sustentáveis, pois reduzem exploração de recursos naturais.[90]
Especificamente sobre as tecnologias de produção e transporte, Marrara dispõe que se bem utilizadas, permitem a melhoria e ampliação dos serviços e, em alguns casos, o barateamento.[91] A redução de custos e ampliação dos serviços é absolutamente necessária quando da análise da implementação de tecnologias, vez que contribuem para a universalização dos serviços e, por consequência, colaboram com a redução das desigualdades, objetivo fundamental e constitucionalmente previsto da República.
Em outras palavras, existe grande potencial para que a revolução tecnológica fortaleça o Estado Social conforme previsto na Constituição de 1988 mas, na lição de Cristovam, Saikali e Sousa, “não exclui a necessária realização de estudos técnicos para determinar as melhores estratégias e âmbitos de aplicação”.[92] Assim se apresenta o maior desafio do momento vivido pelo Direito Administrativo: implementar soluções tecnológicas a fim de melhorar a gestão pública, mas sem restringir a proteção dos cidadãos frente ao poder público,[93] seja através da proteção de dados, da garantia do acesso à internet ou da garantia dos direitos mais básicos e elementares para a fruição de uma vida digna: saúde, segurança alimentar, educação e moradia.
Em face da incapacidade do Estado de promover as condições mínimas de sobrevivência, o que é demonstrado pela considerável parcela da população em situação de miserabilidade extrema, é imprescindível o olhar crítico sobre a digitalização da Administração Pública, a fim de evitar que o dispêndio de recursos públicos para investimento em soluções tecnológicas se faça às custas da garantia dos demais direitos básicos necessários à redução das desigualdades sociais.[94]
Ora, se utilizada a lógica de Sunstein e Holmes, é fato que mesmo os direitos mais básicos não serão absolutos, sujeitos à análise orçamentária e às escolhas políticas.[95] No entanto, ao considerar a doutrina do mínimo existencial como o direito às condições mínimas de existência humana digna, conquistadas através de ações positivas do Estado,[96] compreende-se que existe um núcleo essencial presente nos direitos considerados básicos que deverá ser garantido independentemente da situação fática, não podendo ser restringido por limites orçamentários e escolhas públicas.[97]
Embora o conteúdo abrangido pelo mínimo existencial ainda seja subjetivo,[98] a lógica acima permite concluir que nele se enquadram ao menos as prestações necessárias à sobrevivência e dignidade humana, tais como saúde, educação, segurança alimentar e moradia e, portanto, a satisfação desses direitos deve ser ponderada quando do investimento em tecnologia pela Administração Pública.
Igualmente, a digitalização da Administração Pública não pode ser um fim em si mesmo, tão somente para adaptar o aparato estatal aos padrões digitais e equiparar-se (ou ao menos tentar) ao setor privado, que a cada inovação cria novos paradigmas de eficiência a serem alcançados.[99] Ainda, o referido processo também não pode ser uma moeda de troca, utilizada para atrair bases eleitorais de forma seletiva, sem considerar as reais necessidades da cidade, do estado ou do país naquele momento.
Por certo, a imagem de uma Administração moderna transparece eficiência e atrai investimentos, desde turismo até a instalação de indústrias e sedes corporativas de empresas multinacionais. Contudo, o cenário descrito não é compatível com a essência do Estado, especialmente do Estado Social, se não houverem efetivos resultados na qualidade de vida dos cidadãos.
À vista disso, as políticas nesse âmbito devem ser constituídas conforme as necessidades concretas em cada situação fática.[100] No Brasil, isso inclui considerar a condição de país capitalista periférico, além de levar em conta as disparidades entre as regiões quando da implementação de tecnologias pela União em suas competências federais. O mesmo é verdade para a realidade dos estados e municípios. Sobretudo, as competências municipais englobam as interações mais diretas entre cidadão e Estado, efetivamente presentes no dia a dia da população. Por isso, os governos municipais não devem se apropriar de modelos prontos para adotar tecnologias em suas funções sem personalizá-los de acordo com suas necessidades.
Assim, a observação das necessidades concretas dirá se a Administração Pública deve focar, primariamente, em fornecer as condições necessárias ao acesso à internet, investir na digitalização de serviços públicos e/ou na tecnologia implantada de forma indireta nos serviços públicos (por exemplo, novas técnicas para tratamento de resíduos sólidos, novas tecnologias na distribuição de energia elétrica, utilização de nanorôbos na medicina, etc.), ou, ainda, compreender se existem outras demandas mais básicas e urgentes que antecedam a prestação de determinados serviços digitalizados.
O raciocínio acima corresponde aos trade-offs orçamentários,[101] conforme explicado por Sunstein e Holmes na obra referida, quando do conflito entre a garantia de um direito e o desfalque de outro. Os autores elucidam que os trade-offs se fazem presentes em conflitos na mesma área ou em áreas diferentes, trazendo o exemplo de que o investimento em proteção ambiental deixaria menos recursos disponíveis para investimento em segurança pública.[102] Afirmam, por fim, que enfatizar a lógica do custo dos direitos é uma solução para que a atenção do administrador público não seja seletiva, e sim voltada ao ordenamento jurídico de forma holística.
De todo o exposto, resta claro que tais “barganhas” decorrentes do limitado orçamento público são inevitáveis, o que não significa que o Estado deve deixar de investir em tecnologia tão somente porque outros direitos poderiam ser mais bem assegurados com aqueles recursos – afinal, todos os direitos sempre poderiam ser maximizados e melhor assegurados.
O cerne da questão é o núcleo essencial dos direitos. Não se discute que a segurança alimentar sempre poderia ser mais bem garantida, através de políticas públicas de apoio à agricultura familiar e sem agrotóxicos e até mesmo acompanhamento nutricional. No entanto, o que está em risco é a própria fome, a total ausência de condições para se alimentar adequadamente e sobreviver. Há que se estudar, planejar e garantir que determinada solução tecnológica fortalecerá outras garantias jurídicas que beneficiem a sociedade como um todo, especialmente os mais vulneráveis, para que se justifique a alocação de recursos em uma área e não em outra.
Ademais, as tecnologias e, portanto, as escolhas políticas que as implementam não são neutras.[103] Aliás, a denominação já explicita, trata-se de escolhas políticas, que dependerão do governo atuante e seus posicionamentos, sejam mais alinhados à atuação positiva do Estado ou a políticas de austeridade fiscal e retração estatal. Inclusive, embora não seja tema estudado por este artigo, fato é que as tecnologias podem ser utilizadas para fins autoritários, a exemplo da vigilância cibernética sem consentimento e algoritmos programados de forma a replicar estereótipos de raça.
Isto posto, não há como definir apenas uma forma correta de investimento público dentro das margens discricionárias de ação do administrador público. Respeitados os limites constitucionais e infralegais, o administrador terá a liberdade de planejar o orçamento público e, por consequência, o investimento em garantias jurídicas de acordo com as necessidades pontuais que se apresentam e suas ideologias.
O que se depreende da discussão em tela é que o governo digital não pode se limitar à disponibilização de processos administrativos e serviços públicos em plataformas digitais, e sim almejar uma transformação na forma da gestão pública por meio das tecnologias, o que inclui melhor elaboração e monitoramento de políticas públicas, fortalecimento da democracia, aumento da eficiência na prestação dos serviços públicos, etc.[104]E mais importante, o deverá fazer voltando-se às necessidades dos administrados quando da escolha da alocação de recursos. Desconsiderar que o combate às barreiras impostas pela desigualdade socioeconômica deve ser o foco primário das ações estatais, seja por meio do uso da tecnologia ou não, é se afastar dos objetivos da própria existência do Estado.
O momento de desenvolvimento deste artigo coincide com uma realidade complexa no país: na seara da crise sanitária imposta pela pandemia, desde os conflitos iniciais entre a oferta de vacinas e a demanda desse recurso, até as investigações a respeito da condução das medidas de combate à pandemia pelo Governo Federal, além de disputas políticas entre entes federativos e informações contraditórias sobre medidas preventivas de combate ao contágio do Covid-19. E, ainda, em uma perspectiva macro, cenários de instabilidade econômica e recessão, violação de direitos humanos e agravamento da desigualdade social.
A circunstância impõe o antagonismo entre a esperança e a desilusão. Torna-se, no mínimo, árduo o trabalho de discorrer sobre transformações e revoluções na Administração Pública em meio a uma crise sanitária sem precedentes que agrava as desigualdades sociais, relegando as classes mais baixas a situações de miserabilidade em todos os sentidos: desemprego, fome, despejo, saúde em risco.
No entanto, o contexto também nos demonstra a importância do aparato estatal na contenção da crise, uma vez que necessárias as políticas públicas de enfrentamento à pandemia, por exemplo.[105] A situação fática, então, deve servir de combustível aos operadores do Direito, para que imaginem uma Administração Pública mais inclusiva, transparente e eficiente,[106] que agregue a tecnologia em sua agenda de forma compatível com a redução das desigualdades sociais.
Outrossim, é possível inferir que, em caminhos ainda desconhecidos, as respostas para o administrador público não estão prontas, e que na tentativa do acerto, erros serão cometidos. Mas, na mesma medida que tal caminho indefinido impõe maior tolerância aos erros, também impõe à Administração Pública a realização de estudos prévios à implementação de tecnologias, a fim de garantir os melhores resultados – a palavra da vez é “planejamento”.
Há de se partir do princípio de que as tecnologias são instrumentos para a mudança, e não um fim em si mesmo,[107] além de buscar o difícil equilíbrio entre garantir os direitos tradicionais e aqueles que surgem decorrentes da revolução tecnológica, e utilizar a regulação como catalisadora da inovação tecnológica tanto na esfera pública quanto na esfera privada.[108]
Também não se pode atribuir às novas tecnologias a capacidade de solucionar todos os problemas sociais,[109] especialmente em se tratando de um país de capitalismo periférico do Sul global, como é o caso do Brasil. Embora as tecnologias tenham o potencial de instrumentalizar mudanças sociais, ao final isso dependerá de planejamento e escolhas políticas.
A digitalização da Administração Pública deve se atentar à problemática da exclusão digital em todas as suas faces, compreendendo que a expansão do acesso à internet é insuficiente sem a consideração de uma reforma urbana que integre a cidade e agregue a qualidade de vida dos cidadãos, reformulando a dicotomia centro-periferia e suas consequências socioeconômicas. Além disso, o desenvolvimento das tecnologias e a manutenção de serviços analógicos de acordo com demanda, em atenção à exclusão cognitiva, também se faz imprescindível, para que não se marginalize os grupos não conectados.[110]
Adiante, partindo-se da premissa da escassez dos recursos, exige-se a proporcionalidade dos investimentos em tecnologia em face dos investimentos em demandas mais básicas e tradicionais, a exemplo de políticas públicas de moradia e segurança alimentar. Assim, a revolução tecnológica depende diretamente de uma análise de riscos e benefícios, com dispêndio de recursos responsável,[111] para que se justifique perante à sociedade.
Por derradeiro, todas as adversidades inerentes ao processo de digitalização da Administração Pública são sumarizadas pela busca ao equilíbrio. Conforme explicitado desde a introdução deste estudo, a revolução tecnológica não é apenas desejável como necessária, a fim de que o Estado alcance novos paradigmas de eficiência e encontre soluções para as demandas da sociedade no mundo digital. Todavia, o processo não pode passar ao largo do que é preconizado pelo Estado Social previsto na Constituição de 1988, devendo a tecnologia ser um instrumento positivo para mudança social.
Como citar este artículo | How to cite this article: VALLE, Vivian Cristina Lima López; FELISBERTO, Jéssica Heinzen. Administração Pública digital: limites e possibilidades em atenção à desigualdade social e ao custo dos direitos. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 9, n. 1, p. 151-180, ene. /jun. 2022. DOI 10.14409/redoeda.v9i1.11333