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Voucher como instrumento de fomento da educação básica no Estado Social e Democrático de Direito
Voucher as an instrument for the promotion of basic education in the Social and Democratic Rule of Law
Voucher como instrumento de fomento da educação básica no Estado Social e Democrático de Direito
Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 9, núm. 1, 2022
Universidad Nacional del Litoral
Recepción: 11 Junio 2022
Aprobación: 08 Agosto 2022
Resumo: Este artigo tem o propósito de examinar a legitimidade da instituição de fomento de educação básica pelo Estado via voucher (vale-educação). Pretende-se problematizar a viabilidade da adoção de tal instituto com alicerce no princípio da subsidiariedade, quadro que demandaria a retirada do Estado de seu dever constitucional de prestação direta de serviços públicos de educação básica de qualidade. Sustentar-se-á que a escolha pelo constituinte de 1988 de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito permite a este a utilização eventual de parcerias, de forma planejada, a exemplo de fomento via vouchers, à luz do princípio da socialidade, criando condições para que parceiros privados possam estender aos cidadãos, como um complemento da atuação do poder público, o máximo acesso ao direito fundamental à educação básica de qualidade, numa perspectiva de consensualidade, com vistas ao desenvolvimento nacional.
Palavras-chave: fomento, educação básica, vouchers, colaboração, parcerias.
Abstract: This article has the purpose of examining the legitimacy of the institution of basic education promotion by the State via voucher (education voucher). It is intended to problematize the feasibility of adopting such an institute based on the principle of subsidiarity, a framework that demands the withdrawal of the State from its constitutional duty to provide public services for quality basic education. It will be argued that the choice made by the 1988 constituent of a model of a Social and Democratic State of Law imposes on the latter the possible use of partnerships in a planned way, such as promotion via vouchers, in the light of the principle of sociality, creating conditions so that private partners can extend to citizens, as a complement to the performance of public power, the maximum access to the fundamental right to basic quality education, with a view to consensuality, with a view to national development.
Keywords: promotion, basic education, vouchers, collaboration, partnership.
1. Premissas para a utilização dos vouchers na educação básica – o papel das parcerias como complementar à prestação de serviços públicos
A qualidade da educação pública básica brasileira e a relação público-privada nesse campo são objetos de constantes discursos e questionamentos nos mais diversos foros de debates ou deliberações públicas, não raro motivados por conclusões extraídas de indicadores educacionais.
Neste contexto, Luana Costa Almeida e Geraldo Antonio Betini salientam que, “embora a lógica dos negócios, nos últimos anos, tenha pautado a questão da qualidade da educação brasileira, reforçada por políticas públicas implementadas, em especial poderíamos citar as políticas de avaliação em larga escala, observamos que o tema vem sendo motivo de embate”.[1] Assim, sustentam que “há certa mobilização das proposições sociais em contraposição à lógica empresarial que busca imprimir o caráter mercadológico na educação, visando as pessoas apenas como produtores e consumidores postos no mercado.”[2]
Diante desse quadro, propostas neoliberais de adoção do modelo educacional de vouchers (vales-educação), amparadas no princípio da subsidiariedade, têm surgido nos últimos anos, sob a resistência daqueles que depositam na escola pública o ambiente mais adequado e juridicamente competente para a construção de uma educação básica de qualidade.
Em razão disso, adverte Carlos Roberto Jamil Cury que quanto mais amadurecidos forem os debates e propostas “menores serão nossas ilusões e maiores as perspectivas de ir traçando um horizonte mais promissor para a democratização e universalização da educação básica”.[3]
O presente artigo pretende problematizar a instituição do fomento na educação básica pelo Estado via vouchers, contrapondo-se a acepção que o define como instrumento de substituição de serviços públicos (princípio da subsidiariedade), sobretudo em um modelo de Estado Social e Democrático de Direito. Partindo dos cânones da Constituição da República de 1988, o estudo pretende demonstrar que a recepção das parcerias – na área da educação básica – somente poderá ser utilizada como ferramenta de complementação à prestação de serviços públicos.
Para tanto, além do presente item, no qual se identifica o contexto no qual será realizada a pesquisa, aprecia-se, em um segundo momento, o intituto do fomento no Estado Social e Democrático de Direito, tratando de uma perspectiva crítica à tendência da subsidiariedade em deferência ao princípio da socialidade. Estabelecidas tais premissas, passa-se ao estudo do fomento da educação básica no Brasil, pretendendo delinear tal instrumento de colaboração em prol de uma educação de qualidade. Posteriormente, descreve-se o Voucher como um instrumento de política pública de fomento à educação básica para, ao final, retomar as considerações críticas apontadas.
2. Fomento no Estado Social e Democrático de Direito: da subsidiariedade à socialidade
No período histórico do final do século XX e início do século XXI, veio à tona no Brasil, sobretudo sob a influência europeia, a defesa dos postulados do Estado Neoliberal, pautado no princípio da subsidiariedade, propondo-se maior atuação privada em atividades econômicas e sociais em contrapartida à retirada do Estado de diversos setores, a exceção de atividades típicas que envolvem poder de império.[4]
Para Sérgio Guerra, “o forte clamor por democracia e melhoria das condições de vida da população provocou um sucessivo processo de mutação das estruturas estatais. Inserida no contexto do padrão neoliberal houve, no Brasil, a opção pela participação no amplo processo econômico globalizante.”[5] Para o autor, a efetivação dessa nova dimensão do Estado implicava na “adoção de um programa de redução do papel do Estado na exploração de atividades econômicas e prestação direta de serviços públicos, mediante a desestatização.”[6]
Destaca Emerson Gabardo, neste ponto, que este propugnado Estado mínimo, ainda que das mais diferentes correntes teóricas, “tem íntima ligação com o ressurgimento do discurso sobre o princípio da subsidiariedade, a partir da década de 1990”.[7] Também Daniel Wunder Hachem pondera que, “propondo um papel subsidiário ao Estado, com o repasse de grande parte de suas incumbências na área social para a iniciativa privada, essa corrente defendia o enxugamento da estrutura e do aparelhamento estatal, com a redução de suas funções.”[8] Segundo o autor paranaense, “a prestação de serviços públicos e demais atividades de caráter assistencial deveria ser prioritariamente desenvolvida pela sociedade civil organizada, competindo ao Poder Público apenas a função de fomentá-las e regulá-las”.[9]
Aos adeptos desse modelo, a utilização de instrumentos de parceria, dos quais o fomento figura como espécie, decorre do princípio da subsidiariedade, ou seja, de uma preferência pela atuação indireta do Estado, cuja intervenção, sob regime jurídico administrativo, passa a ser considerada inadequada.[10]
O instituto do fomento é visualizado, nesta ótica, sob o viés de Administração Pública Gerencial, como ferramenta de incremento de parcerias para a consecução de interesses públicos, marcando o período pós-Constituição Federal de 1988 (CF/88) no Brasil.
Nessa perspectiva, adveio do Plano Diretor da Reforma do Estado brasileiro, de 1995, proposta de reforma do aparelho do Estado como resposta à sociedade para um modelo de Administração Pública emergida no século XX, em meio à expansão das funções sociais do Estado, que supostamente demonstrava-se esgotado, demandando eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos, além do desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações.[11]
Maria Sylvia Zanella di Pietro, em obra clássica sobre o tema, propõe a aplicação do princípio da subsidiariedade com o fim de delimitar as áreas de indelegável ação do Estado como “segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação e polícia”, das áreas em que seria possível haver uma postura estatal supletiva à iniciativa privada quando ela for deficiente, a exemplo da “educação, saúde, pesquisa, cultura, assistência”, além da indústria, comércio e finanças.”[12]
Sérgio Guerra também destaque essa nova dimensão do Estado brasileiro e afirma que “está subsumido ao princípio da subsidiariedade, pelo qual a iniciativa privada tem primazia sobre a investida estatal, e o Estado deve abster-se de exercer qualquer atividade que compete à livre iniciativa, cabendo a este o fomento, a coordenação e a fiscalização das atividades desenvolvidas pelo particular.”[13] Para ele, assim como para Maria Sylvia Zanella di Pietro, o Estado deveria apenas ser responsável pelas atividades indelegáveis à iniciativa privada, dentre elas a segurança, justiça, relações exteriores e polícia e apenas em caráter subsidiário deveria manter as atividades sociais (educação, saúde e cultura).[14]
Para Jacques Chevallier, o princípio da subsidiariedade remete à ideia de que a intervenção do Estado somente é legítima “em caso de insuficiência ou de falha dos mecanismos de autorregulação social (supletividade), sendo entendido que convém [...] apelar à colaboração dos atores sociais (parceria)”.[15]
Em remate, o professor uruguaio Carlos E. Delpiazzo assevera que “el principio que debe animar la actuación estatal al respecto es el de subsidiariedad, en cuya aplicación puede detectarse un aspecto negativo y un aspecto positivo.” Para o autor, o aspecto negativo de tal princípio se traduz no fato de que “el bien común no fundamenta en favor del Estado competencias y responsabilidades que pertenecen al ámbito legítimo de los particulares y los grupos intermedios”, enquanto que no aspecto positivo, tem-se que “el Estado debe ayudar, coordinar, enderezar y proteger la iniciativa privada, supliendo lo que los particulares, individualmente o en grupos, no puedan cubrir.”[16]
Trata-se, portanto, de um formato de organização estatal em que se inverte o pêndulo a favor da iniciativa privada, ou do mercado, na análise de Caroline Muller Bitencourt e Janriê Reck.[17] Assim, primeiro verifica-se se há interesse dos particulares na prestação da atividade e, apenas nos espaços em que não estiver presente tal interesse é que o Estado atuaria. Por certo, tal modelo, de inspiração neoliberal, desafia as demandas de um Estado Social na efetivação de amplo rol de direitos sociais e econômicos, pressupondo o máximo de garantia de liberdade de iniciativa aos particulares, defendendo a atuação do poder público apenas quando a iniciativa privada não for capaz de realizar os direitos fundamentais.[18]
No entanto, em que pese tenha protagonizado políticas públicas nacionais no ambiente das reformas administrativas neoliberais dos anos 90,[19] tal modelo não demonstrou forças para se contrapor à corrente denominada de Direito Administrativo Social, presente na realidade brasileira desde os anos 2000, cujos olhos estão voltados à concretização do Estado Social e Democrático de Direito, miliando a favor de uma atuação estatal interventiva nos domínios econômico e social.[20]
Nesse cenário, tem-se que ler a noção de fomento como um instituto decorrente do princípio da subsidiariedade desafia a devida filtragem constitucional,[21] dada a adoção pela Constituição da República de 1988 de um Estado Social e Democrático de Direito, em que a atuação estatal deverá estar voltada para a consecução de suas finalidades ou objetivos, à luz do disposto em seus artigos 1. e 3., especialmente a garantia do desenvolvimento nacional (dimensões de desenvolvimento social, político e econômico, efetivados em condições que promovam e preservem a sustentabilidade).[22]
A noção de desenvolvimento, portanto, implica a atuação do Estado como partícipe ativo na realização dos direitos fundamentais.[23] Afasta-se, portanto, a possiblidade de adoção do modelo da subsidiariedade. Novamente segundo Emerson Gabardo, “quando se tem o desenvolvimento tanto como um direito fundamental dos indivíduos, quanto como um objetivo ou política pública obrigatória (como no caso do Brasil), não há como se esperar do Poder Público posicionar-se como se fosse uma instância secundária e suplementar.”[24] Assim, de acordo com o autor, “Sempre que for identificada a presença de interesse público pelos representantes eleitos […], o Estado deverá atuar de forma plena e primária”.[25]
Neste diapasão, a primeira autora do presente artigo também já teve oportunidade de salientar que ao Estado brasileiro incumbe a “garantia a todos os indivíduos de um núcleo de direitos fundamentais, em uma perspectiva material e, por vezes, pela ação interventiva do poder público, limitada pelo Direito”.[26] Concluiu-se, naquela oportunidade, que “é na esfera, não só do princípio democrático, mas também na do princípio do Estado Social que tal concepção se legitima, na medida em que a consagração dos direitos sociais permite que as esperanças da coletividade, na consecução de uma sociedade livre, justa e solidária se dirijam ao Estado”.[27]
A partir desse modelo de Estado, tem-se que o instituto do fomento deve ser lido como medida complementar à prestação de serviços públicos,[28] sem descurar das diretrizes da CF/88, voltadas à justiça social,[29] competindo ao Estado planejar práticas de fomento, ou seja, avaliar em concreto a presença do interesse público na atividade,[30] com vistas a garantir a todos o máximo acesso aos direitos fundamentais.[31]
Silvio Luiz Ferreira da Rocha registra que o panorama constitucional não admite que a transferência de execução de determinados serviços públicos por meio da atividade administrativa de fomento possa substituir integralmente a atuação do Estado na prestação de serviços públicos, pois “isto implica uma renúncia às funções que lhe foram acometidas pelo Texto Constitucional”.[32]
O Estado brasileiro, nos termos da Constituição da República de 1988, tem a responsabilidade de assegurar a todos os cidadãos o acesso aos direitos fundamentais que lhes permitirão viver dignamente. Essa é a razão que impõe o dever de prestação de serviços públicos – mecanismo de garantia de direitos sociais –, nos termos do art. 175, da Constituição.
Trata-se, aqui, do reconhecimento do serviço público (e seu regime jurídico) como direito fundamental (e, portanto, cláusula pétrea), razão por que seu núcleo essencial não pode sofrer restrições,[33] filtro constitucional pelo qual as parcerias com a iniciativa privada devem necessariamente passar.[34]
Nessa ótica, que impede adesão ao modelo pautado no princípio da subsidiariedade, o Estado tem o dever de buscar, também pela via do fomento, a criação de condições para que parceiros privados possam estender aos cidadãos, como um complemento da atuação do poder público, o acesso aos direitos fundamentais, com vistas ao desenvolvimento nacional.
Em outras palavras, figura o fomento, ao lado do serviço público, como instrumento à realização de atividades de interesse público e voltado ao acesso aos bens juridicamente protegidos pelos direitos fundamentais, consagrando o Estado Social e Democrático de Direito.
Para Marçal Justen Filho, o fomento apresenta-se como uma alternativa voltada à redução das desigualdades, viabilizando a todos o desenvolvimento plasmado pelo constituinte de 88, mediante a utilização de mecanismos no âmbito do mercado.[35]
Juarez Freitas, indica, nesse contexto, uma nova faceta do poder público, fundado em uma “racionalidade dialógica, pluralista e democrática [...] endereçada ao cumprimento coerente e coeso das metas superiores da Constituição.”[36]
É nessa medida que Jorge Reis Novais destaca um processo conjunto de estadualização da sociedade e de socialização do Estado que se corporifica no princípio da socialidade e distingue o Estado Social e Democrático de Direito,[37] em um trajeto que lhe garante renovada atualidade, aberto a uma pluralidade de concretizações, “entre as quais se desenvolve a tensão conflitual inerente aos diferentes programas políticos e interesses sociais que nelas se consubstanciam”,[38] no qual é perfeitamente possível vislumbrar a participação da sociedade civil juntamente com o Estado em busca do desenvolvimento nacional.
Figura no mesmo diapasão a clássica tese de Amartya Sen, que compreende o desenvolvimento como liberdade, exortando, neste sentido, a atuação do “agente” como transformador e sua responsabilidade quanto às mudanças na sociedade, a indicar um movimento por meio do qual a sociedade civil atua, em conjunto com o poder público, promovendo as condições que possibilitem a expansão das capacidades das pessoas para a conquista de uma liberdade substancial.[39]
A atividade de fomento apresenta-se, portanto, no cenário de Estado Social e Democrático de Direito, à luz do princípio da socialidade, como instituto capaz de fazer com que os particulares assumam e bem realizem suas responsabilidades quanto ao acesso a bens juridicamente protegidos pelos direitos fundamentais, numa perspectiva de consensualidade, atuando em cooperação em busca de um desenvolvimento nacional sustentável.
3. Fomento da educação básica no Brasil: instrumento de colaboração para uma educação de qualidade
No contexto de Estado Social e Democrático de Direito eleito pelo constituinte de 1988, o direito fundamental social à educação (art. 6.., CF/88) figura dentre os bens essenciais à implementação dos objetivos de garantir o desenvolvimento, promover o bem de todos e construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3., CF/88).[40]
Para Magno Federici Gomes, “o capítulo da Educação é muito avançado na atual CR/88 e possui a base para ampliação da cidadania e dos direitos humanos, pois a educação outorga dignidade às pessoas, é elemento que baseia a democratização da sociedade”,[41] e ainda “decorre do esforço dos educadores em criar um Direito e a Constituição é pacto fundamental na coexistência social”.[42]
A ilustrar esse cenário, nos artigos 205 e seguintes o legislador constituinte tratou o direito à educação como direito de todos e dever do Estado, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, prescrevendo, no artigo 208, o dever do Estado com a educação básica, obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade.
A Lei Maior de 1988, portanto, exige do Estado a responsabilidade de formulação e implementação de políticas educacionais de qualidade, que tenham por foco formar cidadãos e propiciar a todos oportunidades que permitam a cada um empenhar-se em realizar sua própria concepção de boa vida.
A busca pela educação de qualidade não restou olvidada, também, pelo legislador ordinário, a exemplo do art. 3º, IX, da Lei 9394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)[43] e do art. 2º, IV, da Lei 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação).[44]
No entanto, a realidade dos serviços de educação oferecidos pelo Estado demonstra que, apesar dos avanços nas duas últimas décadas, muito há ainda a se fazer, sobretudo no tocante a qualidade do ensino básico público.
Um dos progressos mais relevantes da educação brasileira sob a vigência da CF/88 foi a expansão da cobertura da rede de ensino (universalização do ensino fundamental e melhor acesso à educação infantil e ensino médio) e consequente evolução dos níveis educacionais da população em geral, desafiando um grave quadro pré-constitucional de analfabetismo e dificuldade no acesso às escolas de grande parte da população brasileira.[45]
Nina Beatriz Stocco Ranieri sustenta que “[…] não há dúvida de que esse resultado advém do enfrentamento público de questões recorrentes da educação brasileira, tais como universalização, financiamento, garantias de acesso e permanência na escola, qualidade do ensino, dentre outras.”[46] Assim, assevera que “a atuação do Poder Público nos últimos vinte anos assume especial relevância quando consideramos o atraso secular da educação no Brasil, notadamente da educação pública, em comparação a outros países da América Latina, que já no início do século XX haviam universalizado a educação fundamental”.[47]
Destacam-se, no quadro pós-constituinte, inseridos no contexto de busca de qualidade e equidade nos serviços públicos de educação, a Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação),[48] o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) de 1996[49] e o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) em 2006.[50]
Jorge Abrahão de Castro, em recorte ao período de 1995 a 2002, registra os avanços das políticas educacionais públicas:
Os gastos em educação tiveram uma ampliação e ganho de importância, quando saíram de 3,90% para 4,31% do PIB. […] As principais instituições internacionais que formalizam e comparam dados e indicadores educacionais e sociais, tais como a OCDE e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), utilizam o gasto público de cada país na área de educação em porcentagem do Gross Domestic Product (GDP) como um indicador da importância relativa dada à educação diante da atividade econômica dos países. […] No entanto, mesmo com o crescimento dos recursos, quando comparado esse resultado com os exibidos pelos países da OCDE, observa-se que o Brasil, mesmo sendo a 14a. economia do mundo, ainda está bem abaixo do esforço médio de todos os países da OCDE (5,3% do GDP). […] As comparações internacionais mostraram que o Brasil se encontra em uma situação de aplicação de recursos, tanto com relação ao GDP, gasto público e per capita, bem abaixo da maioria dos países da OCDE e até mesmo dos principais países da América Latina. Quadro esse que demonstra que em alguns países é dada grande importância à educação no decorrer da ação pública e que, portanto, se a educação estivesse no centro da agenda política brasileira, a ela deveriam ser destinados mais recursos, para assim se realizar alternativas mais ousadas de ampliação do acesso e melhorar a qualidade de toda a educação básica.[51]
Por sua vez, de 2000 a 2011, observou-se no Brasil um aumento de investimento público total em educação em relação ao PIB na ordem de 3,9 para 5,9%, conforme relatório Educationat a Glance de 2014 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).[52]
Nesta etapa histórica, à luz do Relatório Educação para Todos (2014),[53] o incremento da alocação orçamentária, aliado a políticas públicas, redundou, dentre outros indicadores: em crescimento do atendimento escolar na educação infantil de 27,1% para 43,5%; maior atendimento à população de 15 a 17 anos no ensino médio, passando de 36,9% (2001) para 51,6% (2011); e decréscimo da taxa de analfabetismo funcional, na faixa etária de jovens e adultos, de 27,3% (2001) para 18,3% (2012).
No entanto, em que pese o fortalecimento dos índices educacionais decorrentes do aumento considerável de investimentos públicos e implemento de políticas estruturantes, o cenário atual da educação básica pública brasileira, especialmente no que atine à qualidade, revela a necessidade de premente atenção política.[54]
Neste sentido, colhe-se dos dados do Programme for International Student Assessment (Pisa), avaliação vinculada à OCDE, que o desempenho dos alunos brasileiros de escola pública de ensino básico (sobretudo as municipais e estaduais) segue, ao menos desde 2006, com resultados estagnados em níveis muito baixos, situando o Brasil nas piores colocações no ranking em comparação com outros 79 países e territórios.[55]
Entretanto, é importante frisar que a média dos países da OCDE nas matérias avaliadas (ciências, leitura e matemática), aproxima-se dos números atingidos pelas instituições públicas federais e particulares brasileiras,[56] quadro que converge com o último censo escolar da educação básica, ao indicar que as escolas públicas federais e particulares de ensino básico, embora em menor número comparativamente às escolas públicas estaduais e municipais, apresentam drasticamente melhores resultados em relação a estas.[57]
Tal cenário evidencia, de um lado, a inferioridade da qualidade do ensino básico público de estados e municípios em relação ao ensino privado, e, de outro, dados os índices apresentados pelas escolas públicas federais, a plena capacidade do Estado de oferecer educação de qualidade.
O somatório de gestão e receitas (investimento devido) interfere na qualidade do ensino oferecido, seja nas escolas públicas (federais) ou nas privadas, a indicar a necessidade da tomada de medidas no que tange às escolas públicas municipais e estaduais, local em que se abriga a maioria da população escolar brasileira, especialmente a mais pobre, com vistas ao oferecimento de educação com qualidade a todos.
Segundo Sandra A. Riskal, “parte da população em idade escolar encontra-se fora do sistema público, porque tem condições de pagar pelo ensino privado e frequentar escolas que apresentam bom desempenho. Neste caso não há interferência estatal, porque se considera a qualidade da educação satisfatória”.[58] Segundo a autora, esse quadro acaba por trazer como resultado a “ausência de uma política educacional única, que abarque todo o sistema. Desta forma, é mantida, senão reforçada, a divisão entre a educação dos setores privilegiados, que devem arcar com o financiamento de sua educação com seus próprios recursos, em escolas cada vez mais distantes do acesso da maioria da população”.[59] Assevera, ainda, que “os setores não privilegiados, que recebem a educação pública que visa uma igualdade que jamais será alcançada, porque coexistem sistemas diferentes, em uma política que lembra a concepção de iguais mas separados”.[60]
Nesse contexto, em 2014, ante a Emenda Constitucional n. 59/2009, que alterou o artigo 214 da CF/88, o Congresso Nacional sancionou o Plano Nacional de Educação (PNE) via Lei n. 13.005/2014, tendo por foco o direcionamento de esforços e investimentos para a melhoria da qualidade da educação no país, estabelecendo 20 metas a serem atingidas em 10 anos (2014-2024) e enfatizando questões como capacitação e plano de carreira dos professores e maior investimento público por aluno [parâmetro de custo aluno-qualidade (CAQ) e custo aluno-qualidade inicial (CAQi)].[61]
Enquanto o CAQi trata do padrão mínimo de qualidade, o CAQ visa ao custeio próximo daquele realizado por países desenvolvidos, tendo em vista noções de escola com boa infraestrutura e qualidade,[62] considerando que, conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e OCDE, o investimento público por aluno no Brasil do ensino básico é de menos da metade que a média dos países da OCDE.[63]
A despeito de o PNE ter estabelecido arrojada política de Estado em matéria educacional, bem como de a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2016 e o Plano Plurianual (2016-2019) terem definido as metas inscritas no PNE como prioridades, o contexto político instalado a partir de 2016, sob o discurso oficial de ajuste de contas públicas, adotou um novo regime fiscal a partir da Emenda Constitucional (EC) n. 95/2016 (Proposta de Emenda à Constituição 241/2016 que alterou o art. 110 do ADCT), limitando, por 20 anos, a despesa primária total da União à despesa realizada em 2016 (apenas corrigida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA - ou outro índice que vier a substituí-lo).
O novo regime fiscal, considerada a expansão das despesas obrigatórias, em especial as previdenciárias e assistenciais, enseja riscos de comprometimento da execução das políticas educacionais previstas no PNE.[64]
A partir de tais contornos, diante do dever do Estado de garantir a máxima efetividade ao direito fundamental social à educação básica de qualidade, para além de implementar as metas do PNE (2014-2024), cabe-lhe estabelecer, como medida de equidade e com viés de colaboração, políticas de fomento em busca do imediato oferecimento de educação de qualidade, dentre as quais o instituto do voucher (vale-educação) afigura-se como legítima – desde que interpretada em deferência aos valores do Estado Social e Democrático de Direito, como complemento ao serviço público.
4. Voucher como modelo de política pública de fomento à educação básica em complemento à prestação de serviços públicos
A noção inicial de vouchers (vale-educação) é atribuída a Milton Friedman, economista, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1976 e reconhecido autor liberal, que pregou em seus trabalhos que os maiores interessados na educação das crianças não devem ser o Estado, a escola ou os professores, mas os pais dos alunos, a quem compete controlar o sistema de ensino e a qualidade das escolas.[65]
Para Friedman, em suma, o programa de vouchers funcionaria da seguinte forma:
Todos os colégios do governo passarão a cobrar taxas que cubram o custo total dos serviços educacionais que oferecem para, deste modo, competirem em termos iguais com as escolas não-governamentais. Divide-se a quantia total dos impostos a ser gasta por ano com o ensino superior pelo número de estudantes que se deseja subsidiar por ano. Dão-se a este número de estudantes vouchers no valor do resultado da divisão. Será permitido o uso dos vouchers em qualquer instituição educacional da escolha do aluno, contando apenas que o ensino seja de um tipo que se deseja subsidiar. Se o número de estudantes solicitantes dos vouchers for maior do que o número disponível, os vouchers serão racionados pelos critérios que a comunidade considerar aceitáveis: concursos, capacidade atlética, renda familiar, ou por qualquer um dos vários padrões possíveis.[66]
Dessa maneira, o mais adequado seria o fornecimento, pelo Estado, de vouchers para as famílias (tendo por primeiro critério o número de filhos), cujo papel “[…] estaria limitado a garantir que as escolas mantivessem padrões mínimos”.[67]
As ideias de Friedman claramente apontam para um modelo com alicerce no princípio da subsidiariedade, de aplicação da lei do mercado à educação (a educação definida como um bem econômico e concorrência entre estabelecimentos de ensino, seja de rede pública ou privada) e redução de gastos públicos na educação (com edifícios escolares, pessoal, etc).[68]
No Chile, o primeiro país no mundo em que se adotaram os vouchers em escala nacional, segundo Jennifer Stephanie Monje Marin, as mudanças educativas, entre os anos 1973 e 1990 (governo militar), surgiram sob o discurso antiestatista de crítica a um Estado supostamente inoperante e burocrático, sendo justificadas a partir de três eixos: Estado subsidiário, descentralização/expansão do setor privado e supremacia da liberdade do ensino.[69]
Muito embora não se pretenda, nos limites do presente artigo, aprofundar-se nos predicados do modelo de voucher implantados no Chile (ou em outros países, como Colômbia, Suécia e Estados Unidos), é possível destacar que passadas décadas da implantação, sua conveniência ainda é discutida nos principais foros de política educacional.
Para Gustavo Cosse, os resultados do Chile anteriores às políticas compensatórias implantadas pelo governo democrático, nas condições puras de disputa no mercado educacional, ou seja, à luz de uma visão neoliberal, foram de piora do sistema educativo.[70]
No Brasil, em que pese não figurar em sua ordem jurídica, o fomento da educação básica via vouchers figurou como proposta nos últimos debates eleitorais, compondo programas de governo de alguns candidatos, a exemplo do eleito e atual Presidente da República.
No entanto, o transplante desse modelo de vouchers ao sistema educacional brasileiro demanda prévia reflexão, para além de critérios sociopedagógicos,[71] de sua conformidade com a CF/88.
Nesta toada, o art. 205 da CF/88 estabelece que a educação deverá ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa. Também, o art. 206, III, prevê que: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […] coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”. Ainda, o art. 227 estabelece que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito […] à educação [...]”.
Construiu o constituinte um sistema claramente híbrido, no qual devem conviver a educação pública e a privada, possibilitando uma atuação concertada entre estado e sociedade civil.
Todavia, diante do desenho de Estado Social e Democrático de Direito adotado pela CF/88 e do reconhecimento do serviço público (e seu regime jurídico) como direito fundamental (e, portanto, cláusula pétrea), a eventual implementação do fomento, via vouchers, demanda a (re)leitura do instituto, afastando-se de contornos alinhados ao princípio da subsidiariedade e ao Estado neoliberal.
Salienta Emerson Gabardo, ao tratar de dispositivos como o art. 227 da CF/88, que “tais artigos impõe uma obrigação geral de intervenção, que nem mesmo é parcialmente excepcionada por qualquer indicativo de caráter acessório”.[72] Nessa ótica, a figura do voucher, como instrumento decorrente de planejamento do Estado para garantir a todos, de imediato ou, ao menos, com maior brevidade, o acesso à educação básica de qualidade (direito fundamental), demanda que sua implementação se dê ao lado do serviço público, ou seja, sem que o Estado descure das suas competências diretas.
Discute-se, ainda, se as atividades de fomento, a exemplo do voucher, consistiriam em mera prerrogativa ou em dever do Estado, face ao princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
O cenário educacional público brasileiro, como acima apontado, à exceção da minorias das escolas públicas de ensino básico (federais), é ilustrado com elementos que alimentam a iniquidade e incrementam a severa desigualdade social.
Nessa perspectiva, o Estado tem o dever (não se tratando de poder discricionário ou mera expectativa de direito dos interessados e da sociedade em geral) de buscar, pela via do fomento, a criação de condições para que parceiros privados possam estender aos cidadãos, como complemento de serviços públicos de ensino básico, maior acesso ao direito fundamental à educação de qualidade.
Afinal, se há um direito fundamental ao desenvolvimento, se esse direito implica em um dever imposto ao Estado de implementar mecanismos que permitam aos cidadãos o acesso aos direitos que lhes darão condições de viver uma vida com liberdade e, por isso, com dignidade, o fomento, tratado como uma função pública, não poderá ser jamais visto como mera liberalidade do governante.[73]
Esse dever do Estado decorre da própria incidência do princípio da indisponibilidade do interesse público, um dos pilares do regime jurídico administrativo, que demanda ao poder público o implemento de medidas de incentivo e promoção dos particulares, voltadas à efetivação do direto fundamental ao desenvolvimento.
Para Rafael Valim, neste ponto, cabe ao Estado o dever de realizar parcerias com os particulares, mediante instrumentos de fomento, para fins de promoção do desenvolvimento, haja vista que “como a atividade administrativa é de caráter serviente, coloca-se uma situação coativa: o interesse público, tal como foi fixado, tem que ser prosseguido, uma vez que a lei assim determinou”.[74]
É este entendimento que se extrai das disposições do art. 175, da CF/88, o qual parece imputar ao Estado o dever de prestação de serviços públicos, ainda que desprovido de meios para fazê-lo de forma direta, ocasião em que poderá recorrer a meios indiretos, tal como parcerias com a sociedade civil.
Nessa linha, a adoção de vouchers, como política pública de fomento amparada no princípio da socialidade, não demanda a proposição de cortes orçamentários, destinação de verbas de escolas públicas, em substituição, para vouchers ou vieses competitivos que coloquem em risco o dever constitucional do Estado de oferecer ensino público básico de qualidade.
Steven J. Klees e D. Brent Edwards Jr., ao criticarem as medidas educacionais implementadas sob a luz do princípio da subsidiariedade nos Estados Unidos, destacaram que “Quase nenhuma reforma educacional recomendou mais investimentos. Ao contrário, em muitos casos, o objetivo explícito da reforma era cortar custos. Ocasionalmente, recomendava-se gastar um pouco mais em livros didáticos, na formação contínua de professores, na educação das meninas...”[75] Os autores advertem, no entanto, que “Para fornecer uma educação básica adequada para todas as crianças do mundo, requer-se um comprometimento significativo de recursos. […] O mais próximo disso é a atenção dada aos professores, os quais são vistos, em geral, como um problema laboral”.[76] Em sua obra desponta, ainda, uma perspectiva crítica no sentido de que, generalizando as ideias de que não há alternativa, de que essencialmente deve-se buscar resultados, de que professores devem ser vistos como custo do Estado, de que o poder público é incompetente, pretende-se justificar a ideia de que deve ser adotado o modelo privatizado, cobrando-se taxas dos usuários. Mas são categóricos em afirmar que, com isso, “generalizam-se análises enganosas e politicamente descontextualizadas.”, pois, segundo eles, “precisamos de uma gestão local participativa, integrada por professores, pais, alunos com acesso a recursos suficientes para pôr em prática a mudança”.[77] Afirmam ainda que o que os estudantes necessitam são professores com formação adequada, bem remunerados, excelente material didático e “turmas suficientemente pequenas para que os professores possam ensinar e incentivar o amor e o interesse pela aprendizagem; edifícios que ofereçam ambiente propício à aprendizagem. Se isso não estiver no horizonte, a educação como um direito continuará a ser uma falsa promessa”.[78]
Ao transportar tal raciocínio ao contexto brasileiro de escolas públicas federais de ensino básico, pertinentes as conclusões de Paulo Sérgio Bandeira:[79]
Dessas premissas, vislumbra-se que as escolas federais, correspondentes a 0,4% do total das escolas brasileiras, ou seja, aproximadamente 744 instituições, demonstram que seu expressivo resultado no Pisa não se deve somente pela aptidão dos alunos – que passam por verdadeiros vestibulares para entrar nessas instituições, algo devido à grande procura – mas também pela capacidade de professores concursados e com planos de carreira, que recebem salários acima daqueles praticados na esfera estadual e municipal, e, principalmente, pela capacidade da União em gerir com mais eficiência um número reduzido de escolas, não se podendo olvidar serem essas instituições de sua exclusiva competência, conforme determina o art. 9, III, e art. 16, I, II e III, da LDB.
No Brasil já se tem a efetivação da política dos vouchers, que foi adotada pela Medida Provisória n. 1061, de 10 de agosto de 2021, convertida na Lei n. 14.284, de 29 de dezembro de 2021. Tal Lei criou o Auxílio Brasil e também o “Auxílio Criança Cidadã”. Segundo esse programa, tem-se o voucher como um benefício, a ser pago ao responsável pela família – de preferência família monoparental – que consiga emprego e não encontre vagas em creches para crianças de 0 a 48 meses.[80]
Percebe-se, na referida legislação, uma nítida intenção de diminuição de investimento no serviço público de educação para a faixa etária atingida pelo programa, apontando-se como preferencial a prestação de atividades pelas instituições privadas e, nos termos do art. 8º, condicionando o voucher à ampliação da renda “mediante atividade remunerada ou comprovação de vínculo em emprego formal”[81] Parece inequívoca a opção do legislador para assegurar creche a quem detém emprego ou atividade remunerada o que, por certo, afronta de maneira indelével a característica da universalidade de serviço público, bem como os demais valores traduzidos em seu regime jurídico.[82]
Certamente, não é esse o modelo que se admite para o fomento na área da educação. Com efeito, não se afasta a possibilidade de que o Estado brasileiro adote práticas de fomento via vouchers, de acordo com suas demandas, que podem se apresentar extremamente relevantes, a exemplo de: (i) atingir melhores metas educacionais com as quais se comprometeu; (ii) formar atletas de alta performance; (iii) aprimorar o acesso ao ensino infantil, diante de insuficiência de vagas; (iv) reduzir desigualdades, etc., Tudo isso visando garantir a máxima efetividade ao direito fundamental a uma educação básica de qualidade mas sem jamais se admitir que tais medidas tenham o intuito de fugir do dever de prestação do serviço público.
5. Considerações finais
Ao adotar o modelo de Estado Social e Democrático de Direito, a CF/88 atribuiu a este a responsabilidade de assegurar a todos os cidadãos a máxima efetividade aos direitos fundamentais, dentre os quais figura na condição de destaque o direito fundamental social à educação.
Para tanto, o legislador constituinte previu o serviço público de educação como mecanismo de garantia de tais direitos sociais, nos termos do art. 175, da Constituição.
Todavia, a despeito das conquistas e avanços nas políticas públicas educacionais pós-redemocratização, o cenário atual da educação básica pública brasileira revela a necessidade de reflexão e atenção política.
Colhe-se de diversos indicadores, a exemplo dos advindos do Pisa, que o desempenho dos alunos brasileiros de escolas públicas de ensino básico (sobretudo as municipais e estaduais) segue, ao menos desde 2006, com resultados estagnados e em níveis muito baixos.
A partir de tais contornos, o direito ao desenvolvimento, estabelecido como objetivo do Estado Social e Democrático de Direito, impõe a este, mediante atuação planejada, a criação de políticas públicas de fomento, as quais devem ser implementadas de forma complementar aos serviços públicos, ou seja, sem que o Estado descure das suas competências diretas, sobretudo a promoção das metas construídas no PNE de 2014.
Afinal, no âmbito do Estado Social e Democrático de Direito, o fomento é mais um instrumental à disposição do poder público para a realização dos direitos fundamentais. Através dele, o Estado deverá incentivar a sociedade a realizar atividades que possam contribuir com a realização dos objetivos da República Federativa do Brasil, alcançando-se o desenvolvimento em todas as suas dimensões. Ao lado das demais funções administrativas, a implementação de programas de fomento deverá oportunizar condições para que a população possa expandir suas capacidades, mediante o acesso aos direitos que viabilizam a todas e todos as condições para escolherem a vida que desejarem viver.
Nessa ótica, o voucher educacional figura como legítimo instrumento de fomento decorrente de planejamento do Estado, capaz de, à luz do princípio da socialidade, fazer com que os particulares assumam e bem realizem suas responsabilidades, voltadas ao atingimento da máxima efetividade do direito fundamental à educação básica de qualidade, desde que seja manejado de acordo com as diretrizes da Constituição da República, em complementariedade – jamais em substituição – à educação pública.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
Como citar este artículo | How to cite this article:: SCHIER, Adriana da Costa Ricardo; BORTOLINI, André Luis. Voucher como instrumento de fomento da educação básica no Estado Social e Democrático de Direito. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 9, n. 1, p. 181-204, ene./jun. 2022. DOI 10.14409/redoeda.v9i1.12371