Resumo: A ubiquidade das tecnologias da informação e comunicação (TICs) impacta cada vez mais no cotidiano da sociedade, inclusive da Administração Pública. Desse modo, surge o problema acerca da necessidade de se efetivamente implantar e aprimorar uma cultura da proteção de dados na Administração Pública. O trabalho é dividido em três partes: (i) no primeiro momento, é estudada a existência de novos paradigmas em decorrência da evolução tecnológica, posto que a digitalização levou a um mundo “phygital” (ou “figital”, em português, que resulta da junção do “físico” com “digital”), no contexto da sociedade da informação; (ii), após, analisa-se a transformação digital da Administração Pública e da evolução do governo eletrônico para o governo digital, que é o modelo mais evoluído e marcado pelo uso das TICs não apenas como um instrumento, mas também para aproximar a população da Administração Pública, bem como a realização dos direitos fundamentais, especialmente os sociais; (iii) por fim, trata-se da cultura de dados na Administração Pública, com destaque para a desigualdade na inclusão digital, que existe tanto na sociedade quanto na Administração Pública, que impacta na mentalidade e cultura de dados na Administração Pública, bem como a preocupação com o tratamento e compartilhamento indevido dos dados dos cidadãos coletados no âmbito do governo digital. Assim, em estudo realizado mediante pesquisa bibliográfica e com o emprego do método dedutivo, entende-se que, para que sejam atendidos os direitos fundamentais no governo digital, deve haver atenção especial ao direito fundamental à proteção de dados, com constante atenção à segurança dos dados e capacitação dos agentes públicos, com reforço da ética no manejo dos dados pessoais, para que não ocorram vazamentos e nem compartilhamentos ilegais e indevidos.
Palavras-chave: governo digital, transformação digital, inovação, phygital, proteção de dados.
Abstract: The ubiquity of information and communication technologies (ICTs) increasingly impacts society's daily life, including Public Administration. Thus, the problem arises about the need to effectively implement and improve a culture of data protection in Public Administration. The work is divided into three parts: (i) at first, it’s studied the existence of new paradigms as a result of technological evolution is studied, since digitalization has led to a “phygital” world (or “figital”, in Portuguese, which results the combination of “physical” and “digital”), in the context of the information society; (ii) then, is analyzed the digital transformation of Public Administration and the evolution of electronic government to digital government, which is the most evolved model and marked by the use of ICTs not only as an instrument, but also to bring the population closer together Public Administration, as well as the realization of fundamental rights, specially social ones; (iii) finally, the work deals with the culture of data in Public Administration, with emphasis on inequality in digital inclusion, which exists both in society and in Public Administration, which impacts on the mentality and culture of data in Public Administration, as well as the concern with the undue treatment and sharing of citizens' data collected in the scope of the digital government. Thus, in a study carried out through bibliographical research and using the deductive method, it is understood that, in order for fundamental rights to be met in the digital government, there must be special attention to the fundamental right to data protection, with constant attention to data security. data and training of public agents, with reinforcement of ethics in the handling of personal data, so that leaks and illegal and undue sharing do not occur.
Keywords: digital government, digital transformation, innovation, phygital, data protection.
Artículos
Transformação digital e urgência da cultura de dados na Administração Pública brasileira
Digital transformation and the urgency of data culture in Brazilian Public Administration
Recepción: 20 Enero 2023
Aprobación: 09 Agosto 2023
Tendo em vista a realidade da Quarta Revolução Industrial, as tecnologias da informação e comunicação (TICs) estão cada vez mais presentes na vida das pessoas, nos mais diversos aspectos. E, como não poderia ser diferente, também impactam nas atividades da Administração Pública, sobretudo com a sua transformação digital, iniciada pelo governo eletrônico, o governo aberto e o governo digital. Este é tido como o modelo mais evoluído, por ser mais atento aos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, com a aproximação do cidadão e a possibilidade de prestação de serviços públicos também de modo digital.[1]
As tecnologias são extremamente benéficas e facilitam a vida dos cidadãos em diversos aspectos, seja com economia de tempo, de custos, bem como facilidade de comunicação, entre outras facilidades.[2] Contudo, seus impactos podem ser severos, especialmente quanto à grande massa de dados disponibilizados em diversos lugares e plataformas,[3] o que leva ao direito à proteção de dados pessoais, recentemente alçado constitucionalmente como direito fundamental.[4]
Assim como nas entidades privadas, também deve haver preocupação com o manejo dos dados coletados em razão da realização das mais diversas atividades e serviços no âmbito da Administração Pública na era digital, ou até mesmo “phygital”, com a relação entre o mundo físico e o digital. Há a possibilidade de vazamentos e compartilhamento indevido dos dados coletados pela Administração Pública, e já existem notícias nesse sentido. Por isso, é imperativa a implementação de uma cultura de dados, para implementar a segurança dos dados, e para que haja conscientização e treinamento quanto ao seu uso dentro de padrões éticos,[5] em obediência aos direitos fundamentais (especialmente o da proteção de dados) e o interesse público.
Desse modo, mediante pesquisa bibliográfica e o emprego do método dedutivo, o presente estudo tem a intenção de analisar a transformação digital na Administração Pública e a necessidade de estabelecimento de uma cultura de dados. Para tanto, no primeiro momento foi feita uma breve exposição a respeito da evolução das tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e seus novos paradigmas, a exemplo da sociedade da informação e o novo mundo “phygital” ou “figital”. Após, falou-se a respeito da transformação digital da Administração Pública, com explanações a respeito do governo eletrônico, do governo aberto e do governo digital. Por fim, tratou-se necessidade da implantação de uma cultura de dados na Administração Pública, para fixação de padrões éticos e procedimentos para o armazenamento, tratamento dos dados obtidos com a digitalização dos processos e procedimentos, bem como em razão do governo digital.
No transcorrer do trabalho foram consideradas as desigualdades de acesso à internet e tecnologias da informação e comunicação (TICs), tanto na sociedade como nas diversas esferas da própria Administração Pública. Concluiu-se que, para que sejam atendidos os direitos fundamentais, deve haver atenção especial ao direito fundamental à proteção de dados, inclusive no âmbito do governo digital, com constante atenção à segurança dos dados e capacitação dos agentes públicos, com reforço da ética no armazenamento e tratamento dos dados, para que não ocorram vazamentos e nem compartilhamentos ilegais
Com a rápida evolução e difusão das tecnologias da informação e comunicação (TICs) é difundida a ideia de que se vive a Quarta Revolução Industrial,[6] marcada pela ubiquidade tecnológica, onipresença da internet, sensores cada vez menores e nanotecnologia, bem como a imersão cada vez maior dos seres humanos em tecnologias como inteligência artificial e blockchain,[7] com impactos nas mais diversas esferas, a exemplo dos registros públicos e atividades notariais, bem como na economia, com os criptoativos e a tokenização.[8]
Mas as novas tecnologias impactaram de modo relevante na vida de todos os cidadãos, sobretudo na atual sociedade da informação ou informacional,[9] com importante “papel da tecnologia na transformação social”.[10] Sem sombra de dúvidas, a interação entre as pessoas sofreu grandes alterações, sobretudo no que tange às gerações que nasceram anteriormente ao surgimento da internet,bem como aqueles que vieram a ter seu primeiro contato com esta na adolescência ou vida adulta.[11]
Não se pode desconsiderar que existem pessoas que nasceram em um mundo completamente analógico, antes mesmo a invenção e ampla difusão e popularização dos computadores e da internet, que se deparam com a necessidade de ter de se atualizar e aprender a usar e até mesmo trabalhar com esses novos dispositivos e tecnologias. São os imigrantes digitais, dotados de “resiliência virtual”,[12] pois esses indivíduos muitas vezes utilizam suas limitações cognitivas a favor do aprendizado para o mundo digital, em um padrão de aprendizagem diverso dos nativos digitais, aqueles que já nasceram em um mundo com ampla disseminação das tecnologias da informação e comunicação (TICs).[13]
Em razão do desenvolvimento tecnológico e das consequentes transformações na realidade social, há ampla difusão de novo conceitos e ideias, a exemplo do metaverso,[14] que vem do grego “meta”, que significa “além” – e traz em seu significado a ideia de além do universo.[15] Há a promessa de um universo digital paralelo conectado ao mundo físico por meio de múltiplas tecnologias, com a convergência entre o online e o offline, com experiencias por meio de avatares.[16]
Surgem, desse modo, oportunidades para a criação de novos modelos de negócios, com redefinição dos padrões e conceitos até então estabelecidos. E ainda, “pelo fato de não haver fronteiras no metaverso, assim como na Internet, há uma importante discussão em relação à jurisdição dos Estados v. a jurisdição sobre o cyberspace”,[17] o que reforça a necessidade de regulação desse espaço, até para conferir maior segurança jurídica quanto aos atos praticados.
Apesar de parecer futurista e distante, o metaverso já existe, em especial com a utilização de criptoativos,[18] com a vivência na era digital. Destaca-se a criação de uma embaixada virtual em Barbados, em uma parceria com o Decentraland, com um terreno no metaverso, dotado de soberania, assim como os existentes no mundo físico. Merece menção a iniciativa da comunidade autônoma da Catalunha, que tem um projeto de metaverso para a prestação de serviços aos cidadãos e realização de atividades culturais, como exposições e festivais.[19]
Com essa fusão entre o físico e o digital, fala-se em “phygital” (ou “figital” em português), que expressa justamente a junção das palavras físico (physical) e digital, funcionando a tecnologia como uma ponte entre esses dois mundos.[20] Há uma superação da dicotomia entre o físico e o digital, com mudanças na dinâmica entre os seres humanos, especialmente com o desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TICs), cada vez mais ubíquas, bem como com o metaverso.[21] Pode-se dizer, então, que se está a largos passos para essa realidade cada vez mais “phygital”, que não se limita aos jogos, mas também no comércio (cada vez mais digital), educacional (com as aulas online, inclusive com possibilidade de cursos e aulas no metaverso), entretenimento, entre outras possibilidades.
No entanto, apesar da larga evolução e presença da tecnologia no cotidiano das pessoas de um modo geral, sobretudo com a internet e os smartphones, há preocupação com a exclusão digital,[22] que vai além da diferença entre as gerações e o mundo digital, e tem como nodal a indisponibilidade de acesso, seja física ou por questões financeiras, que impacta na possibilidade de os cidadãos terem acesso às tecnologias.[23] Em 2021, 81,5% dos domicílios brasileiros tinham acesso a internet e 85,3% das pessoas eram usuárias da internet.[24] Apesar de ser um percentual expressivo, ainda assim quase 20% dos domicílios não possui acesso à internet no Brasil.
Por outro lado, o direito ao acesso à internet ou à inclusão digital é essencial ao exercício da cidadania, nos termos do art. 7º da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), e pode ser considerado como um direito fundamental,[25] justamente por se inserir nas disposições necessárias para que as pessoas possam perseguir seus objetivos na realidade atual, inclusive como pertencente do mínimo existencial.[26] Em razão da multifuncionalidade própria dos direitos fundamentais,[27] é possível inclusive a postulação judicial para o cumprimento desse direito,[28] o que demonstra a necessidade da continuidade de políticas públicas[29] e medidas que visem reduzir a desigualdade no acesso à internet, assim como demais tecnologias, de modo a diminuir a exclusão e o analfabetismo digital, tão prejudiciais na atual sociedade da informação.
No final da década de 1980 começaram a ser implantados os primeiros serviços eletrônicos pelas Administrações Públicas e, de modo global, as tecnologias da informação e comunicação (TICs) passaram a ser inseridas nas políticas públicas dos governos a partir da década de 1990. O desenvolvimento do comércio eletrônico foi propulsor da ideia de governo eletrônico, com uso de tecnologias da informação e comunicação (TICs) pelos governos.[30] Em razão das evoluções tecnológicas, que tornam obsoletos os meios e processos analógicos, é inevitável a digitalização da Administração Pública.[31] Fala-se em “transformação digital” da Administração Pública, cuja evolução iniciou com o governo eletrônico, o uso dos serviços online, seguido pelo governo aberto, marcado pela transparência, participação e colaboração, e que leva ao governo digital, considerado como o modelo mais evoluído na transição ou “transformação digital” da Administração Pública.[32]
Em suma, a expressão “governo eletrônico” significa o uso de ferramentas baseadas em tecnologias da informação e comunicação (TICs) para a execução das funções e atividades de entidades da Administração Pública.[33] O modelo do governo eletrônico pauta-se pelo uso instrumentalista das tecnologias, isto é, com caráter tecnológico incremental, especialmente com a intenção de aprimorar a rotina administrativa, bem como possibilitar o acesso dos cidadãos às informações.[34]
Nessa evolução da transformação digital, não se pode deixar de falar no governo aberto, na medida em que o governo digital “pressupõe um governo aberto, inovador e promotor da participação dos cidadãos”.[35] Quanto ao tema, Irène Boudahana e William Gilles falam também de “gouvernance ouverte”, ou administração aberta, com aplicações concretas na sociedade digital do século XXI, a partir da transformação da concepção das administrações e seu funcionamento, e da renovação das relações entre gestores e a administração dos servidores públicos.[36]
A seu turno, o governo digital “designa o uso das TICs como meio de contato do Estado com a população”.[37] É necessário manter a higidez das “garantias ao interesse público e, ao mesmo tempo, ressubstancializar a relação jurídica administrativa para viabilizar o progresso e a satisfação dos direitos sociais realizados através da prestação de serviços públicos”.[38]
Mostra-se insuficiente o modelo de governo eletrônico, que tem caráter incremental, com a necessidade de uma verdadeira quebra de paradigmas, especialmente para que se leve em consideração os direitos fundamentais, o acesso, controle e participação social.[39] De acordo com Juan Gustavo Corvalán, o governo digital “pressupõe um governo aberto, inovador e promotor da participação dos cidadãos”.[40] Portanto, o governo digital não deve perder de vista que a Administração Pública deve se adaptar às demandas sociais e ao atual contexto tecnológico, sob pena de não corresponder às demandas da sociedade contemporânea.[41]
No Brasil, a Lei n. 14.129, de 29 de março de 2021, que dispõe dos princípios, regras e instrumentos o governo digital, e seu art. 1º deixa claro que visa o “aumento da eficiência na Administração Pública, especialmente por meio da desburocratização, da inovação, da transformação digital e da participação do cidadão.”[42] E ainda, em seu art. 3º prevê o uso de tecnologias na Administração Pública, o incentivo à participação social, possibilidade de se demandar e acessar serviços públicos por meio digital, prestação de serviços digitais acessíveis até por dispositivos móveis, proteção dos dados pessoais, entre outros princípios e diretrizes.
Além da desburocratização, a Lei n. 14.129/2021 menciona a eficiência como um dos estandartes do governo digital. Contudo, a eficiência estatal deve visar a eficiência social e satisfação dos usuários dos serviços públicos, sendo distintas as concepções de “eficiência social” e “eficiência lucrativa”.[43] A Administração Pública deve atuar com máxima velocidade, rapidez, produtividade, bem como com redução de custos, sempre em atenção às normas jurídicas e ao interesse público. Além disso, a eficiência administrativa deve levar em conta a satisfação e respeito aos direitos fundamentais e princípios orientadores da atividade administrativa.[44]
Desse modo, compreende-se que a Lei n. 14.129/2021 (Lei do Governo Digital) tem ideias e dispositivos excelentes, mas é importante ponderar que o governo digital não pode se reduzir à simples ideia de desburocratização e de busca incessante pela eficiência como nos moldes privados. Ao invés de se limitar o governo digital aos ideais de desburocratização e eficiência (especialmente a lucrativa), deve-se ter como norte a inovação, de modo que a Administração Pública acompanhe as evoluções tecnológicas e sociais, sem perder de vista as necessidades dos cidadãos e a satisfação dos direitos sociais.[45]
Com a transformação digital, o governo passa a concentrar expressiva quantidade de dados dos cidadãos, seja em razão da digitalização de documentos e procedimentos, processos eletrônicos, realização de cadastros nas plataformas, smart cities, uso de câmeras com reconhecimento facial em espaços públicos e por concessionárias de serviços públicos. Como consequência, deve-se ter em mente a necessidade de respeitar o princípio da autodeterminação informativa (art. 2º, II, da Lei n. 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD),[46] a legalidade e ética nesses comportamentos.
Há muito a doutrina reconhece a fundamentalidade do direito à proteção de dados,[47] também reconhecida pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal na confirmação da medida cautelar deferida pela Ministra Rosa Weber nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6389, 6390, 6393,6388 e 6387.[48] E ainda, em 2022 foi editada a Emenda Constitucional n. 115, que acrescentou o inciso LXXIX ao artigo 5º da Constituição Federal, com reconhecimento expresso do direito à proteção de dados como direito fundamental.
No auge da pandemia do COVID-19, houve visível ampliação no consumo da internet e do tráfego de dados, seja para a realização de teletrabalho ou para a aquisição de produtos por meio de sites e plataformas, sem sair de casa, para evitar contatos com outras pessoas e reduzir as chances de contágio. Muitas vezes, havia a opção para os particulares configurarem o modo de uso de seus dados (como no caso de se habilitar ou não o uso de cookies nos sites), o que chama a atenção para a necessidade de atuação do poder regulatório e de controle do Estado quanto ao armazenamento e tratamento dos dados. Tais fatos demonstram a sensibilidade das fronteiras entre a vigilância e os direitos e liberdades dos indivíduos,[49] o que acentua o desafio imposto ao Estado regulador para a proteção dos direitos fundamentais, sem ignorar o interesse público.[50]
Existem diversas notícias a respeito do compartilhamento de dados com finalidades diversas das que houve a coleta (a exemplo do compartilhamento de informações das receitas estaduais e federal com outros órgãos,[51] inclusive com Ministério Público e Ministério Público Federal para deflagração de operações, instauração de inquéritos e instrução processual;[52] ou até mesmo de outras entidades como a Fazenda, com finalidade arrecadatória). Tais notícias demonstram a urgência na preocupação com a ética no tratamento, armazenamento e compartilhamento dos dados pela Administração Pública, para evitar que os cidadãos tenham seus dados indevidamente expostos ou compartilhados, em desobediência ao que dispõe a Lei n. 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
José Sérgio da Silva Cristóvam e Tatiana Meinhart Hahn alertam sobre a necessidade de mudança na mentalidade, pautada na confiança como elemento sensível, para apresentar boas práticas sobre o uso de dados.[53] Além de investimentos com a segurança dos sistemas e sites, é imprescindível que a Administração Pública capacite seus servidores para que façam uso responsável dos dados dos particulares, em atenção à autodeterminação informativa e ao direito fundamental à proteção de dados.[54]
Vanice Lírio do Valle propõe três axiomas para orientar a implementação de um agir administrativo fundado nas tecnologias da informação e comunicação: 1) o desenvolvimento de uma cultura de dados como um ativo institucional, o que exige pesados investimentos para a alfabetização dos usuários quanto aos sistemas, para além das funcionalidades básicas; 2) superação da aura de “fixidez” das soluções baseadas em NTICs,[55] isto é, uma certa definitividade, com a crença de que aquela solução tecnológica é a solução para as necessidades da Administração Pública, passando também por questões inerentes à contratação externa de desenvolvedores de soluções; 3) internalização de que o aprendizado digital é um processo interativo e incessante.[56]
Essa “cultura de dados” torna-se ainda mais importante na realidade “phygital”, que, como visto, impacta também na Administração Pública, e parece ganhar contornos ainda maiores com a possível expansão do metaverso, que pode inclusive vir a ser utilizado pela Administração Pública para a realização de suas atividades. No entanto, não se pode perder de vista que, assim como a exclusão digital de uma parte dos cidadãos, dificuldades no acesso às TICs e internet, sobretudo pela população mais carente, existem desigualdades tecnológicas também na própria Administração Pública pode haver distanciamento da Administração Pública e as novas tecnologias, com destaque à disparidade entre as “ilhas de excelência” (como as estruturas de controle, advocacia pública e Fazenda) em relação à “repartição pública ordinária, aquela que executa diretamente o serviço público e trava contato diário com a cidadania, [que] normalmente está desparelhada no que toca à incorporação de NTICs”.[57]
Desse modo, não se pode perder de vista a discussão com relação à desigualdade no acesso à internet e tecnologias, sobretudo em um país com dimensões continentais como o Brasil, como demonstrado na pesquisa TIC Domicílios. A desigualdade no acesso à internet é um problema para os países em desenvolvimento, e o governo brasileiro precisa incrementar os investimentos em internet banda larga para que, de fato, os cidadãos tenham acesso à internet e sejam incluídos no mundo digital. Para tanto, devem ser criadas políticas de inclusão,[58] o que não parece ser um problema a países como o Brasil, em que o problema não é o produto interno bruto (PIB), mas sim a desigualdade de distribuição dos recursos.[59]
Existem programas para inclusão digital no Brasil, como o Cidades Digitais, voltado aos Municípios, com o objetivo de “modernizar a gestão, ampliar o acesso aos serviços públicos e promover o desenvolvimento dos municípios”.[60] Há também o Programa Internet Brasil, criado com a Lei n. 14.351, de 25 de maio de 2022, resultante da conversão da Medida Provisória n. 1.077, de 2021, para estimular e facilitar o acesso à internet pelos alunos da educação básica, bem como ações de governo digital.[61]
Além do acesso à internet e tecnologias, na transformação digital da Administração Pública a palavra de ordem não deve ser apenas a desburocratização e nem a eficiência lucrativa, mas sim a inovação aliada à eficiência administrativa, isto é, com respeito aos direitos fundamentais e atenção ao interesse público. É justamente nessa ordem, e especialmente diante do rápido desenvolvimento das tecnologias e das consequentes demandas sociais resultantes da sociedade da informação e da tendência “phygital”, deve haver preocupação para o fortalecimento de uma cultura de dados em todas as esferas da Administração Pública, em alinhamento com as expectativas e diretrizes do governo digital.
A evolução das tecnologias da informação e comunicação (TICs), cada vez mais ubíquas e presentes no cotidiano, impacta em mudanças na sociedade e, por conseguinte, a Administração Pública deve tentar acompanhá-las, ainda que não consiga na mesma velocidade que a evolução tecnológica, para tentar atender os anseios e demandas sociais. Fala-se em transformação digital da Administração Pública, com evolução do governo eletrônico para o governo digital.
Diante dessa transformação e inserção da Administração Pública na era digital, na realidade da sociedade da informação e do mundo “phygital” (ou “figital”, para indicar a junção do físico com o digital), é inevitável o fluxo, tratamento e armazenamento cada vez maior de dados pela Administração Pública. Há a necessidade da implantação e difusão de uma cultura de dados na Administração, para que os agentes públicos tenham ciência da importância do correto e ético tratamento dos dados armazenados, de modo a incrementar a segurança e o compromisso ético, para que não aconteçam vazamentos e compartilhamentos indevidos e ilegais.
No entanto, não se pode perder de vista as desigualdades existentes no Brasil, que não são apenas sociais, mas também digitais e se espraiam para os diversos níveis da Administração Pública. Existem aquelas entidades e órgãos com melhores condições de aparelhamento e capacitação digital, como é o caso das controladorias, procuradorias e no âmbito federal. Contudo, infelizmente essa não é a realidade em todas as repartições públicas, visto que muitas ainda têm condições precárias de instalações, e mais ainda de acesso à internet e tecnologias, especialmente no âmbito dos municípios menores. E são justamente nestes locais que muitas vezes há a prestação do serviço público de fato e do maior contato com a população.
É imprescindível a atenção aos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, no governo digital, de modo que este não deve se limitar à desburocratização e eficiência administrativa, mas sim à verdadeira inovação e inclusão das diversas camadas sociais e da Administração Pública na verdadeira inclusão digital. E, como consequência, para que sejam atendidos os direitos fundamentais, deve haver atenção especial ao direito fundamental à proteção de dados, inclusive no âmbito do governo digital, com constante atenção à segurança dos dados e capacitação dos agentes públicos, com reforço da ética no armazenamento e tratamento dos dados, para que não ocorram vazamentos e nem compartilhamentos ilegais.
Como citar este artículo | How to cite this article: PHILIPPI, Juliana Horn Machado. Transformação digital e urgência da cultura de dados na Administração Pública brasileira. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 10, n. 1, e232, ene./jun. 2023. DOI: 10.14409/redoeda.v10i1.12401.