Resumo: O objeto de estudo do presente trabalho é enfrentar a problemática das condições e possibilidades de políticas públicas de segurança com o uso de inteligência artificial e tecnologias de informação, levando em conta direitos e garantias fundamentais individuais e sociais demarcadas pelo Estado Democrático de Direito, nomeadamente no Brasil. A hipótese e proposta de enfrentamento destas questões se dá a partir do estabelecimento de marcos normativos claros e políticas de garantias por parte do Estado, a partir do que tais políticas podem se instituir e desenvolver, com permanente controle interno e externo, notadamente social.
Palavras-chave: segurança pública, políticas públicas, direitos fundamentais: Estado de Direito, controle de políticas públicas.
Abstract: The object of study of this work is to confront the problem of the conditions and possibilities of public security policies with the use of artificial intelligence and information technologies, taking into account fundamental individual and social rights and guarantees demarcated by the Democratic Rule of Law, namely in Brazil. The hypothesis and proposal for tackling these issues is based on the establishment of clear normative frameworks and guarantee policies by the State, from which such policies can be instituted and developed, with permanent internal and external control, notably social.
Keywords: public security, public policies, fundamental rights, rule of law, control of public policies.
Segurança pública e inteligência artificial: novos paradigmas Public security and artificial intelligence: new paradigms
Public security and artificial intelligence: new paradigms
Recepción: 29 Junio 2024
Aprobación: 18 Septiembre 2024
É inegável que, em todas as áreas da vida, a Inteligência Artificial (IA) tem se mostrado cada vez mais presente e com mais funcionalidades, que facilitam nas tarefas do cotidiano.[1] Por apresentar sofisticação e otimização tecnológica, pode facilmente ser percebida como ferramenta que é destituída de erros, não apresentando preconceitos e estereótipos, características comumente atreladas ao ser humano. Todavia, se vivemos numa sociedade na qual tudo que (re)produzimos é atravessado por fatores históricos, de natureza cultural e social, por que as IAs — criadas pelo homem — também não replicariam estigmas relacionados à classe, raça, gênero, etnias, dentre outros?[2]
A algoritmização da vida,[3] que está presente nas redes sociais e streamings, e tem ganhado espaço em inúmeros campos, tem influenciado cada vez mais políticas de segurança pública. A despeito disto, problemas de discriminação e preconceito estrutural em determinadas políticas desta natureza continuam os mesmos, e o uso discriminatório e preconceituoso da IA não pode tirar a responsabilidade do Estado no ponto (porque se houve erro foi culpa do algoritmo, e não de quem programou).[4]
É interessante perceber esse paralelo: por um lado, a tecnologia é colocada como solução, mas ao mesmo tempo a sociedade civil em diferentes momentos vai contestar isso.
É sobre estes cenários e seus riscos, assim como iniciativas para controla-los, que este trabalho pretende abordar. Para tanto, elegemos como objetivos específicos: (i) demarcar as relações entre sociedade do conhecimento e sociedade da vigilância; (ii) as reações institucionais e políticas à sociedade de vigilância; (iii) propor premissas viabilizadoras de politicas de segurança pública democráticas para o uso de novas tecnologias com o uso de IA no âmbito da segurança pública.
Pretendemos utilizar neste trabalho o método dedutivo, testando nossas hipóteses com os fundamentos que passam a ser declinados. Utilizaremos para tanto técnica de pesquisa com documentação indireta, nomeadamente bibliográfica.
O termo “Sociedade da Informação” foi incorporado nos últimos anos no discurso político, acadêmico e midiático global. Manuel Castells afirma que esta Sociedade é um novo sistema tecnológico, económico e social; uma economia na qual o incremento de produtividade não depende do incremento quantitativo dos fatores de produção (capital, trabalho, recursos naturais), mas de aplicação de conhecimentos e informação na gestão, produção e distribuição, tanto nos processos como nos produtos.[5]
Estas sociedades se caracterizam por serem baseadas no conhecimento e nos esforços para converter informação em conhecimento. Quanto maior a quantidade de informação gerada por uma sociedade, maior será a necessidade de convertê-la em conhecimento.
Um aspecto de singular relevância no desenvolvimento das “Sociedades da Informação e do Conhecimento”, pois, é a velocidade com que a informação é gerada, transmitida e processada. Hoje, a informação pode ser obtida de forma praticamente instantânea e, muitas vezes, da mesma fonte que a produz, transcendendo fronteiras e limitações de espaço e tempo.
Embora existam várias interpretações sobre a amplitude e o significado do conceito desta Sociedade, o certo é que nela são reconfiguradas as formas como todas as pessoas realizam a maior parte das suas atividades, a partir de novas formas de empreender e realizar ações quotidianas; portanto, podemos afirmar que ela é também síntese de mudanças de paradigmas estruturais em múltiplos campos da vida.[6]
Alvin Toffler, no início da década de 1980, antecipou com singular clareza o advento da Sociedade da Informação, lembrando que, há mais de 10 mil anos, a primeira onda introduziu mudanças importantes na história, impulsionada pela revolução agrícola, transformando as condições de vida dos primitivos caçadores e coletores, que formaram sociedades camponesas nas quais a produtividade dependia principalmente da demonstração de força humana e animal, bem como do sol, vento e água. Os beneficiários desta transformação foram aqueles que entenderam que a nova organização estaria focada no campo.[7]
Com a segunda onda, a revolução industrial desencadeou mudanças profundas na história,[8] dando origem a uma nova civilização centrada na indústria e na produção em grande escala. A produtividade dependia da relação que o homem estabelecia com as máquinas. Aqueles que não compreenderam o significado e o alcance da racionalidade imposta pela nova ordem ficaram para trás, significativamente limitados nas suas capacidades de produção.
A terceira onda introduz, por sua vez, uma nova sociedade, que se assenta na informação, no conhecimento e na criatividade. Nestas Sociedades, a produtividade depende do desenvolvimento de novas tecnologias, que – afirma Toffler – permitiriam ao homem fazer menos e pensar mais. Ou seja, o desenvolvimento de tecnologias avançadas de informação e comunicação permite a configuração de novo espaço social, como um terceiro ambiente, marcado por inéditos modelos de mercados, culturas e percepções do mundo.[9]
Imaginava-se que, neste Novo Mundo de possibilidades infinitas de conhecimento/ilustração, a racionalidade humana chegaria a um nível de excelência que seria capaz de desenvolver a vida e relações humanas de forma mais civilizada e sustentavelmente, com harmonia, justiça social e segurança. Ledo engano!
Um inédito marco paradigmático de colapso desta Sociedade do Conhecimento/Informação: os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 das torres gêmeas, de New York (EUA), inauguraram o que podemos chamar de Quarta Onda civilizatória: a Era Panóptica da Sociedade da Vigilância.
Quando imaginávamos que as novas tecnologias geradas pela Sociedade da Informação poderiam nos assegurar a prevenção de problemas das mais diversas ordens, estas tem se revelado impotentes diante de contínuas situações de emergências, riscos e perigos que vão se criando hodiernamente em todo o globo, provocadas por atos terroristas e de violência imensos, bem como por fatores ambientais, de consumo, energéticos, raciais, étnicos, biológicos, de criminalidades, dentre outros, atestando ser ilusória a crença de que, por meio do conhecimento e das inovações tecnológicas, nos libertaríamos de quaisquer medos, deixaríamos de ser criaturas e passaríamos a ser criadores da comunidade em que vivemos.[10]
Em outras palavras, medos e incertezas, como nos indica Mongardini, continuam a ser traços cada vez mais característicos de nossos quotidianos[11], e bastou um vírus microscópico, gerador da COVID-19,[12] para voltarmos a nos encontrar sozinhos e desesperados! De repente regressamos ao tempo da terrível gripe espanhola[13], com as mesmas máscaras, com os mesmos medos, mas sobretudo com os mesmos erros, como, por exemplo, o de não revelar à sociedade a propagação da doença em tempo certo; ou, pior ainda, o de comunicar notícias manipuladas e muitas vezes até falsas,[14]nomeadamente por redes sociais virtuais, justamente aquelas que poderiam em muito auxiliar os cenários trágicos que passamos.
Estes fatos têm nos demonstrado como a construção social dos riscos e perigos que nos cercam (entendidos como atributos socialmente construídos) tem fornecido bases teóricas e empíricas sólidas para o desenho de políticas muitas vezes autoritárias (inclusive de segurança pública). Daí porque autores como Ferrajoli insistem na tese de que o neoconstitucionalismo, para estar à altura destes novos desafios, deve construir garantias capazes de criar alternativas racionais e credíveis às previsões de um futuro caracterizado pela incerteza, violência, desigualdade e devastação ambiental.[15]
Mesmo que as Constituições contemporâneas tenham se ocupado de criar instrumentos de gestão de crises, é preciso permanentemente refletir sobre possível paradoxo de regimes democráticos que conseguem se autodestruir usando processos e procedimentos (por eles criados) de forma antidemocrática. Como nos dizem D’Agostini e Ferrera, em tempos de crise é fácil superestimar a necessidade de segurança e subestimar o valor da liberdade; e isto porque, sem segurança, não há liberdade.[16] Mas também é verdade que a história constitucional hodierna nos mostra claramente como a ruptura da proteção dos direitos e liberdades em nome da defesa da segurança está presente desde há muito.[17]
Por isto podemos dizer que a segurança, enquanto bem constitucional multifacetado e polissêmico, pode se dar em sentido material e ideal; objetivo e subjetivo; individual e coletivo; interno e externo, submetendo-se cada vez mais, e de forma ordinária, a juízos de ponderação com outros interesses de importância constitucional, mesmo além de ambientes de emergência tradicionais. Como nos diz Walzer, sem segurança nenhuma forma de representação política baseada no consenso é possível; e a liberdade, aqui, figura como aquela tranquilidade de espírito decorrente da convicção de se estar seguro.[18]
Por todas estas razões, a prevenção e a precaução tornaram-se, nos dias atuais, as règles de droit[19]por excelência, o mantra de todas políticas públicas preocupadas em minimizar riscos, perigos e medos capazes de prevalecer sobre outros direitos, e conformar a ação da administração pública como um todo. E em nome de tudo isto foram se criando políticas públicas globais – físicas e virtuais - de segurança máxima contra riscos e perigos conhecidos e desconhecidos, mesmo que em detrimentos de alguns direitos e garantias fundamentais individuais a duras penas conquistados, como privacidade e intimidade.
Lembremos que foi sob o pretexto de sua cruzada contra o terrorismo internacional que o governo do Presidente Bush promoveu, pós 11 de setembro/2001, iniciativas legislativas que impuseram restrições significativas à liberdade de expressão e aos direitos relacionados com a privacidade pessoal, dentre as quais: estatuto de escuta telefônica, Lei de Privacidade de Comunicações Eletrônicas, Lei de Fraude e Abuso de Computadores, Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira, Lei de Direitos e Privacidade de Educação Familiar, Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei de Imigração e Nacionalidade, Lei de Sigilo Bancário, Lei de Direito à Privacidade Financeira, Lei Patriótica dos EUA, e Lei Antiterrorismo de 2001.[20]
Para exercer funções panópticas eficazes sobre a informações que circulam pela internet, o governo do Presidente Bush promoveu a adaptação do quadro regulamentar referido, nomeadamente através do USA Patriotic Act, concedendo amplos poderes às áreas de segurança do governo para fiscalizar as informações que circulam na internet, autorizando a interceptar todas as comunicações que considerassem “suspeitas”.[21] Ao lado destas, criou também o programa CAPPS II (Computer Assisted Passenger Pre-Screening), pré-inspeção assistida por computador de passageiros.[22] Este sistema provém das informações que as companhias aéreas armazenam no registo dos passageiros, e inclui dados relativos às viagens realizadas, bem como possíveis antecedentes criminais e informações não especificadas.
Por outro lado, instrumentos de IA e novas tecnologias de acesso, coleta e gestão da informação podem ser, ao mesmo tempo, viabilizadores de espaços democráticos; mas também autoritário, basta vermos os regimes no Irã e da China, usando-as para suprimir a liberdade de expressão, aprimorar técnicas de vigilância, disseminar propaganda de ponta e pacificar suas populações com entretenimento digital alienante.[23] Para além disto, tem se formado um capitalismo da vigilância[24]a partir da IA e das redes sociais, com a instalação de grandes monopólios econômicos caracterizadores do que se tem chamado de feudalismo tecnológico[25], o que se percebe em corporações como Facebook, Google, Amazon, Apple, Microsoft, Netflix, governantes autocráticos e sem controle de cidadãos que ocuparam um espaço que se pensava ser coletivo.[26]
Por conta disto é que a Lei dos Mercados Digitais, recentemente aprovada pela Europa, estabelece um conjunto de critérios objetivos claramente definidos para qualificar grandes plataformas online como gatekeepers[27], visando garantir que elas se comportem de modo a respeitar direitos e garantias individuais e sociais.[28]
A despeito disto, é em nome da segurança pública contra atos de terrorismo e de criminalidade organizada que vários governos têm desenvolvido programas de vigilância de seus cidadãos ao redor do mundo, como nos informa Federico Kukso, ao referir que, na China, bancos, aeroportos, hotéis e até banheiros públicos verificam a identidade das pessoas inspecionando seus rostos, através do software chamado Xue Liang (olhos agudos), que analisa milhões de imagens para rastrear pessoas, detectar comportamentos suspeitos e até prever crimes.[29] Demonstra o autor iniciativas governamentais – isoladas ou em colaboração global – para acessar dados e informações privados e públicos, de pessoas físicas e jurídicas, em nome da segurança preventiva e curativa, sem qualquer informação e prestação de contas àqueles que são atingidos por suas políticas.[30]
Lembremos ainda da ferramenta de espionagem digital chamada Pegasus, criada pela empresa israelense NSO Group, usada para grampear smartphones, computadores e redes de comunicação e gestão de dados de forma global, tudo isto em nome da promoção da segurança da democracia e dos povos democráticos.[31]
E mais, estes recursos tecnológicos utilizados pelo setor público (Estado) e privado (Mercado), por se valerem, em regra, de software com códigos fechados, impossibilitam níveis de transparência e visibilidade dos elementos constitutivos neurais de suas operações, inviabilizando controles sociais, políticos e jurídicos mais eficazes.[32]
Por conta destes cenários, tem se tornado cada vez mais comum falarmos na emergência de uma sociedade da vigilância e de uma Democracia vigiada, chegando ao ponto de alguns jornalistas afirmarem que privacidade e intimidade configuram já direitos e garantias em certa medida ultrapassados, nomeadamente em tempos de níveis de insegurança global crescente.[33] Daí porque haver muita preocupação disseminada no tecido social em face das dinâmicas de quotidiana expansão incontrolável da vigilância comunitária, que conta com arquitetura e logística sem precedentes na história da civilização, basta atentarmos para o contingente de câmeras de monitoramento em espaços públicos e privados os mais diversos (lojas, bancos, praças públicas, ruas, etc.).[34]
A despeito de todos estes cenários, a Sociedade tem reagido a movimentos panópticos como os anteriormente referidos e bem demarcado por Ryan McKinley, investigador do MIT Media Lab[35], ao desenvolver um sistema denominado Government Information Awareness (GIA)[36], que se apresenta como resposta dos cidadãos às iniciativas de controles digitais de governos.
A iniciativa do GIA baseia-se num raciocínio simples: se o governo tem o direito de saber detalhes pessoais dos cidadãos, os cidadãos também têm o direito de saber informações críticas sobre os seus governos. O projeto GIA desenvolveu tecnologias amigáveis que permitem as pessoas criar as suas próprias agências de inteligência para obter, classificar e agir com base nas informações que obtêm sobre os seus governos, bem como documentar assuntos de interesse público, como informações relacionadas com o financiamento de campanhas eleitorais, os currículos dos funcionários públicos, documentando a existência de reclamações, as relações secretas ou confidenciais de grandes corporações, informações que têm sido mantidas classificadas, e até um sistema de construção de perfis baseado no estudo de padrões.
Nesta mesma linha temos a criação dos chamados weblogs.[37]Inicialmente os weblogs foram concebidos como sistemas estruturados na internet que permitiam a qualquer pessoa publicar informações pessoais, de forma semelhante a um diário, com capacidade de cadastro de endereços eletrônicos, inclusão de imagens e interação assíncrona. Porém, rapidamente evoluíram para verdadeiros jornais digitais, nos quais é possível encontrar diferentes pontos de vista sobre determinado acontecimento. Estas ferramentas competem hoje – no espaço virtual – com as mídias informativas convencionais.[38]
Como a mudança tecnológica é ecológica e não aditiva, tudo é redefinido, incluindo antigas práticas criminosas, que descobrem inéditas oportunidades com a introdução de novas tecnologias de informação e comunicação a partir da IA.[39] Um exemplo disto é o Cibercrime, atividade que representa ameaça real ao desenvolvimento da economia (física e digital) e da sociedade da informação, razão pela qual foi instituída a Convenção sobre o Crime Cibernético, em Budapeste, em 23/11/2001, firmada por inúmeros países do Conselho da Europa.[40]
O problema é que este documento implicou diminuição significativa de algumas garantias em termos de direitos fundamentais, dentre as quais, a sugestão de que fornecedores de acesso e serviços de internet mantenham registos das atividades realizadas pelos seus clientes no ciberespaço (artigos 17, 18, 24, 25), violando a privacidade e outros direitos dos usuários da internet, além de ser contrárias aos princípios estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.[41]
As estruturas institucionais dos Estados têm aumentado também para o enfrentamento destes problemas, como podemos ver no Chile, com a criação da Brigada Investigadora del Cibercrimen- BRICIB[42], vinculada à polícia de investigações; no México, com a Polícia Cibernética[43], vinculada à Polícia Federal Preventiva; na Espanha, com a Brigada Central de Investigación Tecnológica[44], vinculada a Direção Geral da Policia espanhola; em Portugal, com a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica, vinculada à Polícia Judiciária; no Brasil, coma Unidade Especial de Investigação de Crimes Cibernéticos, vinculado à Policia Federal[45]. Todos estes órgãos desenvolvem políticas de vigilância da internet, com foco nas ações de hackers, sites da internet, comunidades e salas de chat onde a pornografia infantil é promovida (analisando as atividades de organizações pedófilas locais e internacionais, redes de prostituição infantil e redes de tráfico de crianças que as exploram em outros países), crimes contra a propriedade intelectual, fraudes eletrônicas, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, pessoas e drogas.
No Brasil temos avançado nestes temas, nomeadamente a partir da edição de algumas legislações focadas no uso de novas tecnologias, a saber:
Lei nº 12.258/2010, que modificou a Lei de Execuções Penais no sentido de promover a possibilidade de utilização de equipamentos de vigilância pelos condenados pela justiça – monitoração eletrônica – para as hipóteses de saída temporária no regime semiaberto e cumprimento de pena em regime domiciliar;
Lei nº 12.403/2011, que modificou o Código de Processo Penal e instituiu o monitoramento eletrônico como medida cautelar, nos termos do art. 319, inciso IX, desta norma[46];
Lei nº 12.681/2012, instituindo o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (SINESP), o qual utiliza plataforma de informações integradas das bases de dados do Governo Federal e dos Estados, com o escopo de criar estrutura de gestão de informações em nível nacional, produzindo, coletando, sistematizando e disponibilizando informações para a segurança pública;
Lei nº12.737/2012, criando a tipificação criminal de delitos informáticos, com penas baixas de detenção de três meses até dois anos;
Lei nº12.965/2014, que cria o Marco Civil da Internet no Brasil;
Lei nº 13.675/2018, regulamentada pelo Decreto nº 9.489/2018, criando o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), instituindo políticas de governança, através da padronização de dados, integração tecnológica, de inteligência e operacional entre os agentes de segurança do país;
Lei nº13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais;[47]
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), base de dados e sistema eletrônico em que constam os dados cadastrais das pessoas presas no sistema carcerário do Brasil, com o objetivo de centralização das informações e contribuição para o acesso às informações pelas autoridades judiciárias e policiais, auxiliando as autoridades judiciárias da justiça criminal na gestão de documentos atinentes às ordens de prisão/internação e soltura expedidas em todo o território nacional, materializando um Cadastro Nacional de Presos;
O Plano Nacional de Segurança Pública de 2018 introduziu como estratégia nº 8, o videomonitoramento com reconhecimento facial biométrico, destacando-se as habilidades que softwares de computados possuem de analisar rostos humanos constante de uma base de dados específica, utilizando de conexões de internet para catalogar indivíduos, via captação de sua biometria extraída por smartphones, computadores e câmeras de vigilância.[48] Esta política pública, no Brasil, estava voltada precipuamente para a fiscalização de fronteiras, divisas interestaduais, portos, aeroportos, rodoviárias e ferrovias[49]. Mas agora também espaços públicos urbanos estão sendo tomados por estes mecanismos, como ocorre na experiência da plataforma de videomonitoramento Smart Sampa, em São Paulo, que tem previsão de integrar mais de 20 mil câmeras até 2024 na capital.[50] As polêmicas acerca do projeto são muitas: questionamentos judiciais[51], edital suspenso, muita resistência da sociedade e histórico de corrupção pela empresa responsável.[52]
Decreto no 10.882/2021, criando o Plano Nacional de Segurança Pública – 2021/2030, e visando, dentre outras metas, promover a expansão tecnológica na promoção de políticas de segurança pública, utilizando-se para tanto de padronização, integração e interoperabilidade dos dados sobre segurança pública entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (estratégia nº7)[53];
Também em 2021 foi instituída a política de adoção de câmeras corporais nos uniformes dos policiais (body-worn), instaladas na farda, capacete ou óculos dos policiais, com capacidade de captar e gravar, vídeo e áudio das atividades desenvolvidas pelos agentes em sua rotina policial, a exemplo de gravações de trânsito, detenções, revistas, interrogatórios.[54]
O problema é que, modo geral, estas políticas de segurança pública virtuais estão estruturadas a partir de ferramentas tecnológicas de software fechado, o que tem aumentado em nível global as pressões sociais e politicas à regulamentação das big tech, assim como se amplie o uso de sistemas de fonte aberta, já tendo algumas que fazem parte da Software Choice Initiative, avançado neste sentido, dentre as quais: Intel (EUA), Linux (EUA), Open Solutions (Argentina), Paradigma (Brasil), Associação Peruana de Software (Peru), Siam Commercial Bank (Tailândia), VSI (Alemanha).[55] E estes modelos abertos ao menos dariam maiores garantias técnicas de monitoramento e visibilidade dos processos de acesso e gestão de dados, tanto as pessoas como ao Estado.[56]
Em nível de judicialização destas discussões, vale lembrar as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 6.649, e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 695, entendendo que o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos públicos – mesmo para fins de segurança pública - pressupõe propósitos legítimos e específicos,[57] e o procedimento deve cumprir todos os requisitos da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018).[58] Se forem desobedecidas as diretrizes da LGPD, o Estado responderá objetivamente pelos danos causados às pessoas. E o funcionário que dolosamente violar o dever de publicidade estabelecido no artigo 23, I, da LGPD responderá por ato de improbidade administrativa.[59]
De igual sorte, no Tema 977,[60] o STF está enfrentando o tormentoso tema de se o acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida, e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade[61] e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos.
Temos, pois, como conclusão destas reflexões, que algumas premissas se fazem importantes para viabilizar politicas de segurança pública democráticas com o uso de tecnologias virtuais, a saber:
Quadros Legais e Regulamentares: com a aplicação e harmonização dos quadros jurídicos e regulamentares atuais para promover um ambiente de certeza e confiança na adoção, utilização e promoção das tecnologias;
Interoperabilidade: em torno das capacidades estruturais, técnicas, organizacionais e de governança necessárias para compartilhar informações e gerar conhecimento, com transparência e prestação de contas pública;
Dados abertos: disponibilização de informação governamental em formatos úteis e reutilizáveis por diferentes entidades governamentais, população, organizações da sociedade civil, cooperadores e universidades, entre outros, para promover o empreendedorismo e a governação a partir da ideia de segurança cidadã;
Conectividade e ferramentas digitais adequadas: fortalecimento e desenvolvimento das redes (governamentais e cidadãs), e expansão de melhores infraestruturas nos territórios, a expansão da capacidade das redes existentes, e o desenvolvimento de (i) competências no setor das tecnologias para estimular aplicações principalmente em redes celulares massivas, e (ii) ferramentas virtuais que viabilizem aplicações para a denúncias/demandas/respostas em múltiplas plataformas[62];
Participação Cidadã e Competências Digitais: desenvolvimento equitativo de competências para desenvolver e operar tecnologias e serviços digitais, contemplando a cobertura social e o desenvolvimento de competências em sistemas comunitários;
Comunicação digital e Redes Sociais: como instrumento de capacitação e consciência social para apoiar estratégias digitais, comunicação digital focada nos cidadãos e nas suas necessidades como demandantes de Segurança e Convivência, prestando serviços baseados na gestão do conhecimento, e não apenas na informação.
Nomeadamente no Brasil estes elementos não se fazem ainda exaustivamente presentes, o que nos vai demandar ainda muito tempo.
Como citar este artículo | How to cite this article: LEAL, Rodrigo Gesta. Segurança pública e inteligência artificial: novos paradigmas. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, Santa Fe, vol. 11, n. 2, e266, jul./dez. 2024. DOI: 10.14409/redoeda.v11i2.13693.