Convocatoria temática
“Um apego que faz mal”: reflexões sobre o trabalho do cuidado e os discursos sobre o amor (Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil)
"Un apego que duele": reflexiones sobre el trabajo de cuidados y los discursos sobre el amor (Región Metropolitana de Río de Janeiro, Brasil)
"An attachment that hurts": reflections on care work and discourses on love (Rio de Janeiro Metropolitan Region, Brazil)
“Um apego que faz mal”: reflexões sobre o trabalho do cuidado e os discursos sobre o amor (Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil)
Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 5, núm. 10, 2021
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Recepción: 15 Enero 2021
Aprobación: 10 Marzo 2021
Resumen: Este artículo intenta demostrar cómo el discurso sobre el sentimiento moral “amor” agrava la precariedad del trabajo de cuidado. Para tal, fue utilizado un análisis construido en dos técnicas distintas de campo de investigación: el primer observando audiencias sobre trabajo doméstico remunerado en “Varas do Trabalho” y otro realizando una observación participante en un Centro Comunitario de Mayores. Ambos se llevaron a cabo en la Región Metropolitana de Río de Janeiro. Cabe señalar también que este artículo dialoga con estudios de género, con el fin de demostrar cómo los discursos sobre la amistad y la caridad han generado justificaciones para extraer una gran cantidad de trabajo no remunerado o mal remunerado de las mujeres. En este sentido, la informalidad y la precariedad deben considerarse en conjunto con los discursos sobre las emociones. Finalmente, el artículo analiza cómo la familiaridad y el género afectan esta relación de trabajo doméstico remunerado.
Palabras clave: amor, trabajo del cuidado, emociones.
Resumo: No presente artigo busca-se demonstrar como o discurso sobre o sentimento moral “amor” agudiza a precariedade do trabalho do cuidado. Para isso, valeu-se de análise construídas em dois trabalhos de campo, um observando audiências sobre trabalho doméstico remunerado nas Varas do Trabalho, órgão do Judiciário Trabalhista brasileiro e outro realizando uma observação participante em um Centro de Convivência para idoso. Ambas realizadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Importa ressaltar ainda que esse artigo dialoga com os estudos de gênero, no sentido de demonstrar como os discursos sobre amizade e caridade têm gerado justificativas para extração de uma grande quantidade de trabalho não pago ou pago precariamente para as mulheres. Nesse sentido, a informalidade e a precariedade devem ser pensadas em conjunto com os discursos sobre as emoções. Por fim, o artigo analisa como a familiaridade e o gênero afetam essa relação de trabalho doméstico remunerado.
Palavras-chave: amor, trabalho do cuidado, emoções.
Abstract: This article seeks to demonstrate how the discourse about the moral feeling “love” aggravates the precariousness of care work. For that, it used analysis built in two field works, one observing hearings on paid domestic work in Varas do Trabalho and another performing a participant observation in a Community Center for the elderly. Both were held in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. It should also be noted that this article dialogues with gender studies, in order to demonstrate how the speeches about friendship and charity have generated justifications for extracting a large amount of unpaid or poorly paid work from women. In this sense, informality and precariousness must be considered in conjunction with discourses on emotions. Finally, the article analyzes how familiarity and gender affect this relationship of paid domestic work.
Keywords: love, care work, emotions.
INTRODUÇÃO
As reflexões trazidas aqui advêm das minhas pesquisas realizadas anteriormente. Empreendi, em duas ocasiões, dois trabalhos de campo, realizados nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói1. Em ambos, busquei compreender as relações entre os afetos e o dinheiro, tentando entender como diferentes discursos morais articulam esses elementos. Para o presente artigo, descreverei como os discursos sobre o sentimento moral “amor” se relacionam com a informalidade e a precariedade no caso do trabalho do cuidado2. Como demonstrarei adiante, pude perceber a existência de uma narrativa por parte dos empregadores e “patrões” de que “quem cuida bem, cuida por amor e não por dinheiro”, tal como me disse certa vez uma interlocutora.
O sentido de tal assertiva3, sempre repetida por empregadores, significava que tais trabalhos devem ser realizados porque se sente afeto e não porque se deseja o dinheiro. O dinheiro não poderia ser o objetivo principal dessas trabalhadoras, elas deveriam realizar todas as suas tarefas por um sentimento de apreço. Qualquer menção ao dinheiro como central na relação entre quem presta e quem recebe os serviços era tido como um sentimento de “interesse”. Figurava como o antônimo da ideia de amor, simbolizando extremo egoísmo. Segundo esse discurso, as pessoas “interesseiras” cuidam mal, não exercendo a devida atenção ao cuidado da casa ou dos idosos.
O que pretendo demonstrar no presente artigo, utilizando análise dos dados construídos em trabalhos de campo, são as diversas relações entre os discursos do amor e a precariedade inerente às profissões ligadas ao cuidado. Os estudos de gênero têm apontado para a reprodução como um aspecto importante da economia. Muitas teóricas, dentre elas Carole Pateman (1988), Helena Hirata (2002) e Silvia Federici (2017,2019) explicaram como o contrato sexual, ou seja, como relações domésticas que se desenvolveram como um espelho do contrato social são responsáveis pela extração da grande quantidade de trabalho feminino nos lares. Nesse sentido, exploram o discurso do amor, ou seja, o discurso que naturaliza esse trabalho como algo feminino e gratuito, como parte da natureza das mulheres. Essas e outras autoras, como Jurema Brites (2007) e Encarnacion Gutiérrez-Rodríguez (2013) relembram determinado debate sobre trabalho doméstico e emoções e de como esses discursos são utilizados em diversas partes do mundo. O amor, esse sentimento moral, deve figurar sempre como o objetivo principal desse trabalho.
Conforme pude observar e analisar dados construídos no campo, a circulação do dinheiro deveria obedecer às regras de um sentimento moral muito específico: o amor. Meus interlocutores (trabalhadoras domésticas, empregadores, juízes, advogados, voluntários, cuidadores e outros) estavam muito acostumados com uma ideia prévia sobre quais são os sentimentos apropriados, ou seja, eles possuíam um “dicionário moral”. Ao mesmo tempo, eles tinham consciência quando deveriam sentir algo, quem deveria sentir e qual importância teria cada um desses sentimentos; quer dizer, eles também tinham uma “bíblia moral”. (Hochschild, 2011). E é exatamente esse conjunto moral de regras bem estabelecidas que guiavam as moralidades do dinheiro que circulava. Desse modo, o amor surgia como um atributo muito bem definido de um tipo específico de dinheiro que pagava os serviços das trabalhadoras, sendo fixado nos acordos judiciais, cobrado pelos cuidadores e que circulava na instituição de caridade.
Em minha abordagem tenho como referência a maneira como Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod (1990) negaram essas formas reificadas de compreensão das emoções para enfocar em uma análise cuidadosa das situações sociais específicas, lendo as emoções como um construto sociocultural. Ambas são antropólogas tributárias dos estudos de Michel Foucault. Segundo elas, seria mais produtivo um estudo sobre a genealogia das emoções, de forma similar às pesquisas do filósofo sobre a produção de uma sexualidade na modernidade, considerando as emoções como uma força fisiológica localizada no indivíduo, sustentando um senso de singularidade. As emoções, na modernidade, são compreendidas como o que propicia um acesso a um senso de verdade sobre um si mesmo4, embasando a própria ideia de moral.
Michel Foucault (2007) buscou realizar como “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos” (p. 8-9). Na sua aula inaugural no College de France, em 1970, ele enfatiza a relação entre as práticas discursivas e o poder que os rodeiam e enfoca, também, a criação de mecanismos para controlar os discursos. Dessa forma, eu pretendo entender as diversas formas de circulação e controle de discursos sobre amor observado nos dois trabalhos de campo. Quero demonstrar, assim, a centralidade da dimensão do controle sobre a produção do discurso do amor para a efetivação da troca de cuidado por dinheiro. Para pensar sobre essas questões todas, quero trazer alguns estratos dos trabalhos de campo empreendidos nesse período.
ALGUMAS CATEGORIAS E PROBLEMATIZAÇÕES
Muitos autores estudaram aquilo que se têm chamado de trabalho do care, categoria intimamente próxima das ideias de bem-estar e de reprodução social5. Guimarães, Hirata e Sugita (2011) exploram os conceitos de care, explicando certa aproximação entre cuidado (em português e espanhol), soin (em francês) e kaigo (em japonês). Esses conceitos conotam um campo muito vasto de ações e atitudes. As autoras sublinham que, entre os falantes do português e do espanhol, a melhor tradução de care é o verbo cuidar e não o substantivo cuidado, designando uma ação, portanto
“Assim, se é certo que ‘cuidado’, ou ‘atividade do cuidado’, ou mesmo ‘ocupações relacionadas ao cuidado’, como substantivos, foram introduzidos mais recentemente na língua corrente, as noções de ‘cuidar’ ou de ‘tomar conta’ têm vários significados, sendo expressões de uso cotidiano. Elas designam, no Brasil, um espectro de ações plenas de significado nativo, longa e amplamente difundidas, muito embora difusas no seu significado prático. O ‘cuidar da casa’ (ou ‘tomar conta da casa’), assim como o ‘cuidar das crianças’ (ou ‘tomar conta das crianças’) ou até mesmo o ‘cuidar do marido’, ou ‘dos pais’, têm sido tarefas exercidas por agentes subalternos e femininos, os quais (talvez por isso mesmo) no léxico brasileiro têm estado associados com a submissão, seja dos escravos (inicialmente), seja das mulheres, brancas ou negras (posteriormente).” (p. 154)
Nota-se, assim, um distanciamento do conceito francês de soin, que pode denotar tanto uma solicitude expressando uma relação afetiva pelo outro ou mesmo as ações estatais de assistência e previdência social. Do mesmo modo, têm-se uma diferença entre cuidado e a palavra japonesa kaigo que abarca uma ideia de cuidado de longo prazo, geralmente associado ao cuidado de idosos e de pessoas deficientes. Kaigo refere-se a um aspecto muito menor do que care, soin ou cuidado.
No mesmo sentido, Carrasco, Borderías e Torns (2011) também enfatizam a diferença entre care e cuidado. As autoras destacaram uma perspectiva histórica do trabalho do cuidado. Afirmam que o lugar social ocupado por esse trabalho remonta à transição para o capitalismo liberal. Assim, o trabalho do cuidado suscitou toda uma redefinição de relações de gênero. As autoras asseveram que:
“El desplazamiento de los cuidados desde el servicio doméstico o “la comunidad” al ámbito privado de la familia, y de las redes femeninas de cuidados, asalariadas o no, a la madre, fue un proceso ciertamente lento y dificultoso, máxime entre las clases trabajadoras dadas las altas tasas de actividad femenina de la época (Rose, 1992; Canning, 1996; Borderías, 2009). (p. 21)
Corina Rodríguez Enríquez (2017) estudou a situação do trabalho do cuidado, e afirma que na América Latina, o termo cuidado é polissêmico. Entre os seus vários significados estão: o indispensável para satisfação de necessidades mais básicas; o autocuidado; o cuidado do outro; a provisão das condições em que o cuidado se realiza, como o cuidado da casa; e mesmo a gestão do cuidado. Partindo dessa perspectiva, ela entende o cuidado como toda atenção à necessidade de pessoas dependentes, seja por idade ou por incapacidade. Para a autora, as evidências têm demonstrado que o cuidado é realizado dentro dos lares e por mulheres6. A autora ressalta a injusta divisão sexual do trabalho doméstico sobrecarregando as mulheres latino-americanas, dado o discurso de naturalização das suas capacidades especiais para o cuidado. Hirata (2016) assegura a centralidade, no Brasil, de diversas redes sociais no fornecimento do cuidado, entre elas encontram-se: redes familiares, de vizinhança ou até mesmo mais ampla.
“A família é ainda o lugar predominante do cuidado, que é da responsabilidade de seus membros, sobretudo das mulheres, mas também das empregadas domésticas e das diaristas que são recrutadas para as tarefas domésticas, mas também são levadas a cuidar das pessoas idosas e das crianças da família.” (p. 60)
Além disso, a autora assevera que o mercado representa um grande provedor de cuidado, sobretudo quando pensado nas trabalhadoras domésticas remuneradas. Quanto ao cuidado de crianças ou de idosos, o Estado brasileiro, sobretudo depois da década de 1990, tem se esforçado para suprir essas necessidades, sem, no entanto, chegar a uma construção sólida de equipamentos como creches ou instituições de longa permanência para o idoso em quantidade suficiente.
Como referi, as reflexões praticadas nesse artigo são frutos de dois trabalhos de campo. No primeiro, realizei uma observação direta de audiências trabalhistas e conheci muitas trabalhadoras domésticas remuneradas, ou seja, um conjunto de mulheres contratadas por “patrões”, os empregadores. Esses empregadores podem ser solteiros ou constituir uma família formada pela “patroa, pelo “patrão” e por seus filhos. Geralmente, os empregadores eram uma família, raramente eram homens ou mulheres solteiras. Essas trabalhadoras domésticas remuneradas tinham a obrigação de cuidar da casa dos seus “patrões”, realizando atividades como varrer a casa, faxinar, lavar a roupa e a louça e cozinhar.7 Uma parte dessas trabalhadoras também tinha a incumbência exclusiva de cuidar de crianças, idosos e de adultos dependentes. Como será exposto adiante, as trabalhadoras domésticas remuneradas poderiam ser empregadas domésticas, com uma série de direitos reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 e por uma lei federal de 2015 ou eram diaristas, mulheres com vínculos precários e quase sem nenhum direito a não ser o pagamento de um valor acordado informalmente com os patrões.8
Durante esse trabalho de campo na Justiça do Trabalho, eu observava que algumas dessas trabalhadoras domésticas remuneradas se chamavam de cuidadoras profissionais. Havia tanto cuidadoras profissionais de crianças como de idosos. Embora a Justiça as reconhecesse como trabalhadoras domésticas remuneradas, elas me explicaram que como fizeram um curso e nas suas palavras, “detinham um conhecimento específico do cuidado”, podiam cobrar valores mais altos do que o de uma “empregada doméstica”.
No intuito de entender melhor os discursos sobre os cuidadores profissionais, iniciei meu segundo trabalho de campo, realizando uma etnografia em um Centro de Referência para pessoas idosas. Nesse Centro, tive a oportunidade de conhecer outros trabalhadores do cuidado, tratava-se de cuidadores voluntários e familiares. Esses dois grupos não recebiam remuneração por seu trabalho. Eles não eram trabalhadores domésticos remunerados, como aqueles que eu havia conhecido no tribunal.
Embora ajude a esclarecer melhor o texto, na prática, havia certa confusão, dado que não se tratava de identidade muito fixas. No caso das trabalhadoras domésticas, do primeiro trabalho de campo, elas compareciam ao tribunal sem saber se seriam reconhecidas como empregadas domésticas ou diaristas, pelo direito. Geralmente, eram contratadas como diaristas e queriam reconhecimento legal de que na verdade eram empregadas domésticas, fazendo jus a inúmeros direitos. Além disso, cuidadoras de criança e de idoso, que trabalhavam no âmbito residencial e sem finalidade lucrativa, eram caracterizadas como trabalhadoras domésticas remuneradas, podendo ser empregadas domésticas ou cuidadoras. Elas quando compareciam à Justiça também pretendiam, muito comumente, o reconhecimento do vínculo de emprego doméstico.
Por fim, uma última classificação diz respeito aos cuidadores familiares e os familiares de idosos, presentes no segundo trabalho de campo, no Centro de Referência para idosos. Eles eram pessoas que cuidavam, portanto, podendo ser caracterizados como trabalhadores do cuidado, mas que não recebiam nenhum valor monetário em troca por seu trabalho.
Todos esses trabalhadores, ou seja, empregadas domésticas, diaristas, cuidadores profissionais, voluntários e familiares eram atravessados por um discurso muito específico, sobre o amor caritativo. Os seus trabalhos sempre deveriam levar em conta o ato de amar e nunca o seu próprio interesse, que era considerado uma mácula ou até mesmo um erro severo, justificando diversas punições, como atraso de salário, no caso das trabalhadoras domésticas remuneradas, ou como desconsiderações morais, como no caso dos cuidadores voluntários e familiares.
O fio condutor dos casos que narro nesse artigo é a exigência do amor por parte de um sem-número de atores, como os patrões das trabalhadoras domésticas remuneradas, os juízes que julgavam essas causas e as lideranças religiosas do Centro de Referência para quem os cuidadores voluntários trabalhavam. O discurso do amor era uma cobrança intensa desses atores, gerando uma grande quantidade de trabalho obtido a título precário, com um pagamento menor do que aquilo estipulado em lei, como no caso das empregadas domésticas.
Ao lado dessas articulações, pretendo demonstrar algumas ressignificações sobre as noções de precariedade. Essas últimas reflexões também foram desenvolvidas no decorrer desses dois trabalhos de campo, sendo na realidade um trabalho construído coletivamente no Laboratório9 o qual faço parte. Nesse sentido, publicamos conjuntamente, eu e outro integrante desse mesmo laboratório, Gabriel Borges, um artigo debatendo a suspeição10 e a precarização como elementos centrais na lógica hierárquica na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ao passo que entendemos por precariedade,
“ uma série de justificativas que vêm permitindo a manutenção das hierarquias no espaço público brasileiro, legitimando a atuação desses atores de forma arbitrária, sobretudo frente às demandas sociais daqueles considerados precários. Aqui, a relação de juízes e policiais com empregadas domésticas, diaristas e seus filhos, seguirá como recorte, para refletir a relação entre suspeição e precarização, demonstradas na categoria ‘doméstica’ e na figura do ‘cria’.“ (Gomes, Silva, 2020, p. 190)
Dessa forma, manejo a ideia de precariedade não apenas como ela tem sido pensada na Sociologia do Trabalho, mas tentando compreende-la além, de como uma ferramenta para entender esse contexto específico da Região metropolitana do Rio de Janeiro. Ou seja, meu intento é, partindo de várias construções empíricas, demonstrar desequilíbrios entre atores do Estado, pessoas mais aquinhoadas e aqueles considerados suspeitos, expressão do que chamo de precariedade à brasileira. Se, durante a citada publicação, colocamos relevância no caráter de suspeição que compõe essa precariedade, no presente artigo, enfatizo as relações entre o discurso sobre o amor e a precariedade.
AS EMOÇÕES DA JUSTIÇA
Como citado anteriormente, realizei dois trabalhos de campo, que guardam identidade entre si. Num primeiro momento, eu pretendi entender o papel dos juízes do trabalho do município de Niterói na administração institucional do conflito entre “patroas”11 e trabalhadoras domésticas. Grande parte da pesquisa de campo se deu assistindo audiências, que chamei de “audiências sobre domésticas12”. Elas ocorreram na Justiça do Trabalho de Niterói, parte integrante de um sistema o Tribunal Regional do Trabalho, órgão do Poder Judiciário brasileiro. Essa pesquisa deu origem à minha dissertação de mestrado. Antes de começar esse trabalho de campo propriamente dito, quando trabalhava como assistente jurídico no Centro de Referências de Mulheres da Maré13, observei uma série de discursos sobre empregadas domésticas postulando em juízo contra seus empregadores. Em uma determinada situação de trabalho, tive a oportunidade de conhecer muitas empregadas domésticas que procuravam aquele serviço do Centro de Referência. Não raro, atendia mulheres procurando ajuda porque “trabalhou em casa de família” e não recebeu “tudo o que deveria”. Muitas não queriam “colocar a patroa na justiça”, uma vez que “eram quase da família”.
A pesquisa se desenvolveu entre 2013 e 2014. Assisti a muitas audiências nas Varas do Trabalho de Niterói, boa parte se tratava de “audiências sobre domésticas”. Além disso, conheci outros espaços como os sindicatos laboral e patronal da categoria profissional, e pude entrevistar “patroas”, domésticas, advogados, juízes e sindicalistas. Nessas audiências sobre domésticas, registrei muitos acordos.
Conversando com as trabalhadoras domésticas, ouvia o mesmo discurso. Sobre as dificuldades emocionais de propor uma ação contra seus empregadores, certa vez ouvi de uma empregada que só propôs ação por conta de uma situação de penúria que passava e precisava do dinheiro. Por outro lado, também escutei de muitas “patroas” que tratavam o ato de ser demandada em juízo pela sua empregada era uma traição. A gramática dos afetos estava muito presente.
Por sua vez, juízes e advogados também acionavam as linguagens das emoções. Muitos advogados ensinavam suas clientes, tanto “patrões” como trabalhadoras, que deveriam chorar na hora da audiência. Que essas lágrimas seriam importantes no momento da fixação dos valores dos acordos judiciais. Então não era incomum assistir pessoas chorando durante as audiências. Os juízes também certificavam, em entrevistas, que tanto a relação do trabalho doméstico como as audiências sobre domésticas eram momentos em que imperavam emoções distintas. Emoções que podiam ditar inclusive o valor dos acordos.
O CASO DE JOANA E O APEGO MALDOSO
Numa das minhas visitas a campo, presenciei certa audiência referente a um processo antigo, proposto por uma trabalhadora doméstica em 2010. Posteriormente, houve um acordo homologado pelo juiz. A “patroa”, no entanto, deixou de pagar as últimas parcelas. Nesse dia, estavam presentes, além da juíza, apenas a empregada, Joana14, e o seu advogado. A antiga “patroa” não compareceu. Após a rápida audiência, procurei pela empregada nos corredores do tribunal.
Joana resolveu conversar comigo, sendo extremamente solícita. Trabalhou como diarista e empregada doméstica durante toda a sua vida, desde os seus dez anos. Segundo ela, em todas as casas foi humilhada. Diz, ainda, ser muito penoso o ofício de doméstica. Diferentemente de muitas pessoas entrevistadas no campo, diz que nunca se considerou “da família”. Logo a informei que sua percepção parecia diferente de muitas domésticas e “patroas”. Ela disse tratar-se de uma ingenuidade das pessoas. Informou-me que, atualmente, prefere ser diarista15. Perguntei o porquê dessa preferência. Ela me afirmou que o convívio entre “patroa” e empregada doméstica é negativo justamente pelo vínculo de “afetividade”.
Realmente, as empregadas eram nomeadas como pessoas íntimas das dessas famílias, contudo nem sempre esse convívio era representado como amigável. Por vezes, como no caso de Joana, se acordavam prestações e contraprestações que vão além daquilo estipulado pelo direito. A “patroa” dela a chamou para ser cuidadora de seu bebê. O seu papel era cuidar de uma criança, em troca disso receberia mensalmente um salário-mínimo, contudo não teria sua “carteira assinada”16. Desenvolveu-se uma relação entre ela e essa família. Segundo a doméstica, um “apego maldoso”. Uma “intimidade que faz mal”. Contou que, com o tempo, passou a também fazer faxinas, passar roupa e cozinhar. Queixou-se de ficar sobrecarregada, queixa recorrente das empregadas domésticas. Ela sabia que não era da família, embora fosse de uso corrente a adjetivação “quase da família”, conta.
O discurso do amor, nesse caso, como esclareceu a interlocutora, permitiu aos “patrões” extraírem grande quantidade de trabalho por um valor inferior àquele legalmente devido. Esse “apego maldoso” que contou, aliado à dificuldade financeira, se mantinha pelo discurso dessa empregada ser uma amiga da família. Com o tempo essa amizade se mostrou muito problemática para Joana. A sua sobrecarga era também narrada constantemente por outras empregadas, dizendo que várias vezes tinham que acordar durante a madrugada para fazer um lanche.
É nesse sentido, que Lenin Pires (2011), estudando a circulação dos ambulantes nos trens da Central do Brasil, pensou sobre a dicotomia esculacha e esculhamba. A primeira categoria “esculhamba” fazia referência a um insulto, ou a algo previsto dentro das expectativas daquelas pessoas e que era, em certa medida, aceitável. Como por exemplo, quando os fiscais confiscavam mercadorias. Já o esculacho, se referia sempre a uma violência que combinava aspectos físicos e morais, de forma inaceitável, como por exemplo um tapa na face de um dos ambulantes.
Essa dicotomia esculhamba e esculacha serve para pensar o caso de Joana. Ela, como diversas outras trabalhadoras domésticas não tiveram sua “carteira assinada”, ou seja, seu vínculo de emprego não foi formalizado, para além disso, acordar de madrugada para servir seus “patrões”. Tratava-se de uma esculhambação. Por outro lado, segundo ela, o fato de sua “patroa” ter obrigado ela a lavar os rejuntes do banheiro foi um esculacho. Segundo ela, um dia, a “patroa” comunicou a ela que deveria lavar melhor o rejunte do banheiro, pois estava cinza. Ela então, me explicando que aquele rejunte era escuro e não tinha como limpá-lo para ficar branco, disse ser aquilo um esculacho, passando dos limites do aceitável.
Muitas trabalhadoras domésticas motivaram a procura do Poder Judiciário por conta de um esculacho, como o caso de Joana ou de Mariana. Essa última, trabalhadora doméstica não registrada, informal, me contou que apenas procurou a justiça quando começou a sofrer assédio sexual por parte de seu “patrão”. Assim, os diversos casos de esculacho dentro de relações as quais imperavam discursos sobre o amor, fizeram com que essas mulheres entendessem pela necessidade de procurar o judiciário. Como me disse certa vez um dos advogados que atuava em casos de empregadas domésticas, “elas não procuram seus direitos, elas procuram causar problema.” E por “causar problema”, quer dizer justamente romper com uma relação, dizer que não se sentia bem e, que aquela relação tinha algumas questões.
Interessante perceber que o caso das relações brasileiras de trabalho do cuidado, e especificamente sobre as relações entre trabalhadoras domésticas remuneradas e seus “patrões” há aquilo que alguns chamam de “ambiguidade afetiva” (BRITTES, 2007), esses afetos “quase da família” reforçando relações hierárquica. Santiago Canevaro (2009), vai estabelecer importante contraste com o caso argentino, uma vez que
“La especificad que reviste el caso argentino (y más específicamente de Buenos Aires) refiere a que mientras que en Brasil esta "ambigüedad afectiva" (Goldstein, 2003; Brites, 2007)2 refuerza un sistema jerárquico existente, en el caso de Buenos Aires ciertos componentes - que podrían aparecer para otros análisis como incompatibles o contrastantes (laboral/afectivo, contractual/relacional, reciprocidad /intercambio)- son al mismo tiempo complementarios y generan relaciones donde la ambigüedad, la complicidad y el antagonismo entre empleadores y empleadas se actualizan contextualmente. Este punto articula una ambición mayor en relación con las tensiones que procesan oposiciones entre sociedades jerárquicas e igualitarias (Dumont, 1991), y de las complejas confluencias entre persona e individuo que coexisten en la realidad latinoamericana (Da Matta, 1979). Más específicamente, será interesante reconocer aquella configuración elástica de la 'ideología moderna del individuo' que expuso Dumont (1987:52). A partir del análisis de las historias y reflexiones de las empleadoras cómo en el "sistema individualista" -liberal e igualitario - que manejan éstas empleadoras daremos cuenta de distintas formas de percepción, categorización y argumentación que ayudan a naturalizar, cuestionar y/o legitimar la desigualdad.” (p. 3)
Depois desse trabalho de campo, desenvolvi muitos dados, além desses trazidos aqui, e passei a me interessar por essa troca entre afetos, amores e dinheiro. Desenvolvi então um trabalho de campo numa instituição para idosos, com intuito de entender as diversas relações entre trabalhadores, idosos e outros atores.
O CENTRO DE CONVIVÊNCIA E O DISCURSO DO AMOR
A segunda pesquisa foi desenvolvida numa instituição conhecida como Centro de Convivência para pessoas idosas na mesma cidade, entre 2015 e 2018. Para realizá-la, fui voluntário nessa instituição, de cunho caritativo e de orientação católica e franciscana. Durante esse período, eu pude participar de atividades dentro da instituição e em outros espaços, como em reuniões de vizinhança em diversos prédios residenciais para acolher pessoas idosas e numa empresa de cuidadores de idosos. Assim, eu pude conviver e conversar com muitos idosos, bem como com cuidadores familiares e profissionais. Nesse sentido, também construí dados sobre as moralidades impingidas nas trocas de cuidado por dinheiro, realizadas por essas pessoas.
A instituição pesquisada era um centro diurno, ou seja, um lugar onde os idosos não passavam as noites, apenas haviam atividades durante manhãs e tardes. Os idosos, que recebiam os cuidados, chegavam ao Centro no período da manhã. Eles tinham diversas atividades, elaboradas por voluntários e pela direção da instituição, composta por uma freira, que chamarei de Irmã Fátima e mais algumas pessoas. Eles rezavam o terço em conjunto, tinham duas oficinas por dia, e recebiam três refeições diárias. Tudo isso era oferecido àquele público a título gratuito.
Nessa etnografia, que deu origem à minha tese de doutorado, procurei compreender como diversos trabalhadores (voluntários, cuidadores de idosos profissionais e empregados do Centro de Referência) entendiam a relação entre o dinheiro com esses trabalhos, sempre simbolizados como demandantes de afetos. Durante esse trabalho de campo, muitas pessoas falavam de dinheiro e de afeto, na maioria das vezes condenando aqueles que cuidavam exclusivamente por dinheiro.
Na realidade, dizia-se muito a frase, “nós não cuidamos por dinheiro, cuidamos por amor, por isso cuidamos bem”. Neste sentido, a pobreza, a simplicidade, a austeridade e até mesmo certo ascetismo apareciam como aspectos extremamente valorizados. Com o passar do tempo, fui entendendo uma relação mais complexa entre cuidado e dinheiro. Na realidade, essa afinidade é mediada pela noção de amor, chamado expressamente de caridade. Ocorre que esse sentimento legitima a troca de cuidado por dinheiro, criando um intercâmbio possível e moralmente aceito por aquele grupo de pessoas. O dinheiro era quase sempre representado como algo negativo, dado que havia uma proibição moral ao cuidado empreendido unicamente com o intuito de ganhar dinheiro. Enquanto isso, o dinheiro aferido numa relação onde há afeto e não apenas o interesse no “dinheiro pelo dinheiro” era representado de forma positiva ou seja, tal relação era moralmente aceita.
Posteriormente, dentro do Centro de Referência para idosos, conheci o Projeto Condomínios, uma articulação dessa instituição para realizar uma reunião com diversas atividades para que os idosos moradores dos prédios da cidade não vivessem numa situação de solidão. A ideia seria fomentar, por meio desses encontros, grupos de apoio para essas pessoas. Esses espaços foram centrais para compreender como esses discursos de amor caritativo eram compreendidos nas práticas daquelas pessoas. As reuniões de condomínio eram lideradas sempre por cuidadores voluntários do Centro de Referência, com o intuito de aumentar a rede de cuidado estabelecida na cidade, voltando a um passado idílico onde o cuidado era praticado por membros da vizinhança e por caridade. O discurso do amor, portanto, ganhava a roupagem do amor caridade. Nessas reuniões participavam muitos voluntários da instituição, como também alguns moradores dos prédios.
OS CASOS DE ANA: O AMOR E O DIAMANTE DO CUIDADO
Nas reuniões do “Projeto Condomínio”, as pessoas faziam muitos debates sobre qual seria a melhor alternativa para cuidar de um idoso: se uma casa de repouso ou se um cuidador profissional. Muitas pessoas, tanto os moradores dos condomínios, voluntários e idosos lembram-se da trabalhadora doméstica como figura importante no cuidado familiar. Em agosto de 2018, me dirigi a uma reunião de condomínio, para determinada atividade, uma oficina de artesanato. Havia nove moradoras do condomínio e algumas voluntárias e eu. Uma mulher idosa, Ana, moradora do prédio, começou a falar sobre sua mãe, morta em decorrência da Doença de Alzheimer. Contou que com a doença, ela passou a não conseguir mais se cuidar sozinha, então teve que contar com apoio de Ana e de seu outro filho. Com a piora de sua situação, ela foi viver numa instituição para idosos. Ana comentou querer envelhecer numa casa de repouso, porque sua mãe foi muito bem tratada em uma. Na época, procurou por várias instituições em Niterói e conheceu “de tudo, das melhores às piores residências para idosos”.
Essa família preferia a internação numa casa de repouso ao invés de ter um cuidador em casa. Ela via com receio ter alguém estranho vivendo dentro de sua casa e logo o equiparou os cuidadores profissionais às trabalhadoras domésticas. Contou-me várias histórias sobre empregadas domésticas que trabalharam para ela, todas envolvendo o tema da privacidade. Elogiou o quartinho e o banheiro de empregada, porque criava uma separação “inclusive higiênica dos donos da casa com os empregados”. Seguiu explicando que era uma mulher na menopausa e várias vezes teria contraído infecção urinária de alguma empregada.
A mulher logo foi interrompida por outra senhora moradora do prédio, explicando que tinha uma empregada doméstica “de confiança”. As duas passaram a infância juntas, porque a atual empregada era filha da trabalhadora doméstica da família. Tempos mais tarde, elas cuidaram de sua mãe que morreu muito doente. Sua mãe passou os últimos meses de vida numa casa de repouso, embora preferisse ficar em casa, sob o cuidado de sua família.
Durante o trabalho de campo, entendi que existiam diversas formas de administrar o cuidado. Como referi, existe um diamante do cuidado. Razavi et al. (2007) utilizam-se dessa metáfora para explicar a atividade do cuidado como algo compartilhado por uma grande diversidade de atores. Nesse sentido, percebi que alguns viviam em casas de repouso, outras moravam em suas casas e viviam com auxílio de uma empregada doméstica, um cuidador ou um familiar.
O cuidado residencial exercido pela empregada doméstica era lembrado como um dos mais antigos deles. “Antigamente era a empregada doméstica quem cuidava”, me disse certa vez uma interlocutora moradora de um dos condomínios. Segundo muitas interlocutoras, tratavam-se de pessoas “quase da família”. A empregada doméstica não era apenas responsável por passar ou faxinar, era também quem tinha a obrigação de dar afeto, cozinhar com amor e cuidar de crianças e idosos como se fossem seus parentes.
O discurso da amizade e do amor reaparecia nesses casos, podendo ser entendido como amizade ou familiaridade. Novamente, o discurso do amor era a própria mediação entre cuidado e dinheiro, entre a dádiva e o mercado ou entre afeto e mercadoria. Era uma relação muito pessoal, de intimidade. Os empregadores vem, utilizando-se do discurso do amor explorando grande quantidade de trabalho por um preço baixo. A relação das trabalhadoras como pessoas que labutam em troca de salários baixos, mas vivem nas casas das famílias empregadoras e recebem presentes é um tema muito sensível. No Brasil, o próprio direito fabricava discursos sobre isso. Durante as minhas pesquisas busquei entender como os juristas compreendiam as problemáticas envolvendo vínculos empregatícias dessas mulheres. Para isso, procurei por livros de direitos, fazendo uma vasta pesquisa dos anos de 1940 até a atualidade. Um desses autores, José de Segadas Viana et al. (1957), escreveu sobre o direito e a relação de:
“amizade entre a empregada doméstica e a família, permitindo que a vida não seja rude e que o repouso semanal e o descanso seja mais ou menos respeitado. Isso somado ao acréscimo ao salário feito pelas prestações como residência, vestiário de trabalho e alimentação de maneira a permitir que suas condições de vida não sejam miseráveis” (p. 182).
Quero regressar à relação específica do trabalho doméstico, remetendo-me ao trabalho de Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho (2013). Ela estudou as trocas de presentes entre “patroas” e empregadas domésticas na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro. Entendeu a gratidão pelos presentes dados pelas “patroas” às empregadas como um reforço dos vínculos hierárquicos. Por outro lado, a ingratidão, representada pelo ressentimento ou pela indiferença, pareceu-lhe apontar para uma insubordinação.
No mesmo sentido, Heleieth Saffioti (1978), valeu-se da articulação entre “modo de produção capitalista e formas não-capitalistas de trabalho” (p.17) para entender o trabalho doméstico remunerado. Essa coexistência dá-se de forma dinâmica e integrada, sendo certo haver “mobilidade de parcela de mão-de-obra que se desloca das atividades não capitalistas para as capitalistas em momentos de expansão do capitalismo e das últimas para as primeiras em momentos de retração”. (p. 184).
É importante repetir, como disse a autora, que as ditas formas não-capitalistas de trabalho sobrevivem na sociedade brasileira. Boa parte das pessoas desse trabalho de campo ou em alguma época da sua vida tinham sido empregadas domésticas ou foram empregadoras. Essas formas diferenciadas de trabalho não circulam sem a dimensão do afeto. Os discursos do amor servem, em boa medida para manejar essas relações.
Interessa observar como essas duas literaturas, tanto a de Maria Claudia Coelho quanto aquela produzida por Heleieth Saffioti, juntas dão conta das explicações dessas relações muito complexas entre famílias empregadoras e trabalhadoras domésticas. A relação entre economia, dinheiro e afetos, emoções e amor dão conta de explicar essa produção de moralidades sobre o trabalho doméstico remunerado.
Saffioti (1978) recorda que do ponto de vista do capital, não há interesse na eliminação dessas formas, chamadas pela autora no seu tempo de não-capitalistas de trabalho, dado que nela está contida uma força de trabalho absorvível por atividades capitalistas, ao menos em parte. Do mesmo modo, trata-se de uma ocupação que pode ser uma alternativa quando da expulsão de mão-de-obra do setor capitalista. Essa problemática aponta para muito além da circulação de mercadorias, mas, segundo a autora, “os trabalhadores dos setores não-capitalistas apropriam-se de parcelas relativamente menores do produto social e não usufruem integralmente dos benefícios proporcionados pelo sistema capitalista.” (p. 186)
O texto de Saffioti (1978) faz lembrar das reclamações constantes das empregadoras de que “conseguir empregada estava muito difícil, há alguns anos, por conta dessa coisa de Bolsa-Família17 e tudo mais, mas agora, melhorou”, disse certa vez Antônia, familiar de um idoso da instituição. Durante o período de expansão econômica brasileira recente com o governo do Partido dos Trabalhadores muitas empregadas domésticas estavam em outros trabalhos, isso gerou um aumento no preço cobrado pelas trabalhadoras domésticas, à época, me contaram esses interlocutores.
A autora, imbuída de uma leitura marxista, afirma que a produção de mais-valia pelos proletariados na economia só é possível quando o trabalho de mulheres do lar é transferido para uma criação da mais-valia através do assalariamento. Em outras palavras, o trabalho das trabalhadoras domésticas concretiza-se em mercadorias, “em riqueza material destinada ao mercado, o que não se passa com o fruto do trabalho da empregada doméstica” (p. 195). A autora explica que essas atividades das empregadas domésticas contribuem para a produção de uma mercadoria, a força de trabalho.
O CASO DE SOFIA E O TRABALHO DO CUIDADO
Assim que comecei esse segundo trabalho de campo, por intermédio do Centro de Referência de idosos, tive contato com uma situação que julgo relevante para compreender melhor essa relação entre amor, caridade e as relações de trabalho doméstico. Trata-se de uma história que foi contada por um dos familiares de um idoso cuidado pela instituição citada. Ele estava muito contente com a minha pesquisa e decidiu me contar um fato ocorrido com sua família.
Há algum tempo sua tia Bete, moradora de um bairro nobre da cidade, faleceu. Ela foi acometida por um câncer. Na sua casa, viviam ela, Betânia e Sofia, todas idosas, com mais de setenta anos. Betânia era freira, mas estava numa espécie de licença para cuidar de Bete, sua irmã, que sofria de esquizofrenia. As senhoras da igreja, amigas da família muito preocupadas com a situação, juntaram algum dinheiro e, mensalmente, pagavam menos do que um salário-mínimo a Sofia, que trabalhava sem carteira assinada, como uma espécie de cuidadora da Bete e empregada doméstica. A amizade entre as três era de longa data, mas apenas há poucos anos Sofia passou a receber algum dinheiro. Até então, ela cuidava de Bete voluntariamente. Quando esta se foi, Betânia tomou conhecimento de ser beneficiária de um seguro de vida no valor de uma boa quantia em dinheiro. Ela, contudo, por ter realizado voto de pobreza, doou toda a importância para a fraternidade religiosa que fazia parte. Também deu para esta última o apartamento em que as três viviam. Nas suas palavras, ela “devia muito à igreja”.
O sobrinho de Bete, Gabriel, advogado, com pena de Sofia, foi conversar com a Madre Superiora da Ordem, Irmã Marilia. Sofia não tinha outros meios de sobreviver e andava pedindo comida para conhecidos. Explicando toda a situação de carência da idosa, Gabriel interveio no sentido de conseguir uma moradia para Sofia no convento. Embora a religiosa se mostrasse disposta a auxiliar a situação, explicou não ser essa a solução mais adequada. Eles terminaram a conversa com Marilia afirmando que nunca deixaria a mulher desamparada. Algumas semanas se passaram. Enquanto isso, Sofia permanecia almoçando no convento, mas dormia no chão da sala do antigo apartamento de Betânia, já que a igreja tinha recolhido os móveis para vender. Sem muitos recursos, seus problemas de saúde se agravaram, dentre eles um que lhe causava forte odor na boca.
Gabriel soube, nesse tempo, que a igreja pretendia vender o apartamento e assim foi feito. Sofia perdeu o teto. Solano, amigo de Sofia, tentou conversar com ela sobre propor uma ação judicial contra a igreja. Ela, porém, se negou e disse ser isso um absurdo. Nesse intervalo, Gabriel procurou Marilia, novamente. Ela disse já saber do problema, mas afirmou que ele não deveria se atormentar. “Deus proverá”, afiançou.
Essa história nos ajuda a compreender as relações entre afeitos e dinheiro, e compreender quais as moralidades são impingidas na troca de cuidado por dinheiro no trabalho doméstico remunerado. A relação entre Bete, Sofia e Betânia não era incomum. Segundos relatos do interlocutor, no bairro moravam muitas “pessoas que ajudam as famílias”, ou seja, trabalhadoras domésticas remuneradas, tal como a literatura especializada as define. Sofia não se dizia alguém que trabalhava, ela apenas “ajudava, auxiliava”. Expressões que eu ouvi muito nos meus trabalhos de campo.
Os estudos de gênero têm se dedicado à pesquisa sobre a domesticidade. Silvia Federeci (2019) faz parte de toda uma tradição de estudiosas que vão afirmar o trabalho reprodutivo como “fator crucial na exploração na definição da exploração das mulheres no capitalismo” (p. 23). Em seus trabalhos, ela demonstra como os atributos de feminilidade, como a afetividade, são, em realidade, funções de trabalho, dadas como naturalmente femininas. Argumenta que, o trabalho doméstico representa “a manipulação mais disseminada e da violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora” (p. 42)
O salário, prossegue a autora, cria uma ideia de justiça, numa relação onde o proletário pode, inclusive, barganhar o seu aumento. O salário sublinha uma condição daquele que precisa sobreviver, e não daquele que trabalha simplesmente porque gosta ou porque é uma condição natural. O trabalho exercido por Sofia não estava sendo visto como uma condição de sobrevivência. Não era como se ela pudesse ser uma lojista amanhã e depois uma manicure, o discurso do amor informava que era natural que ela se dedicasse ao trabalho doméstico, porque isso brotava da sua condição de mulher.
Silvia Federeci (2019) explica que o capital teve, em determinado momento histórico, que convencer às pessoas que o trabalho doméstico é algo natural, uma parte da personalidade feminina, dessa forma, a “condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que trabalho doméstico não é trabalho.” (p. 43)
Sofia não chegava realizar um trabalho a título gratuito, mas o interlocutor, sobrinho de Bete, conta que existiam muitas falas em sua família no sentido de desqualificar Sofia uma vez que “além de viver na casa dos outros, dormir e comer, ainda recebia dinheiro por isso”. A história posterior à morte de Bete parece confirmar isso, com a atitude da fraternidade à qual fazia parte. Afinal, nem Betânia e nem a Madre resolveram partilhar o dinheiro do seguro de vida ou da venda do apartamento com Sofia, e nem mesmo aderiram à solução criada por Gabriel de deixar que Sofia vivesse no convento. A ideia que imperou é que Sofia merecia um auxílio por amor e não um pagamento pelo trabalho.
Para Silvia Federeci (2019), o capital, ao criar a ideia de um trabalho desenvolvido por amor, obteve uma grande quantidade de trabalho não pago e assegurou que mulheres não lutassem contra essa situação, procurando desenvolver esse trabalho como se fosse a realização da sua natureza. O discurso sobre uma atividade exercida por amor, nesse caso de Sofia, além de produzir esse trabalho exercido a título informal, impediu-a de buscar seus direitos no judiciário. O interlocutor terminou essa história dizendo ter visto Sofia sem casa e com sérios problemas de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais do que simples falas, os discursos são compreendidos por sua capacidade de agência. E, nesse artigo procurei demonstrar como esses discursos sobre o amor e o interesse foram referências relacionadas a tipos específicos e diferenciados de dinheiros. Tentei, assim, entender como uma referida compreensão sobre os discursos das emoções criam realidades econômicas distintas. Minha pretensão não foi desenvolver um estudo sobre as emoções como algo que os sujeitos guardam dentro de si, numa antiga compreensão essencialista ou reificadora dos sentimentos. O meu intento foi, antes, o de demonstrar como os discursos sobre emoções geram realidades sociais.
Esses diversos casos trazidos ao texto ajudaram a uma melhor compreensão das dinâmicas de precariedade e do gênero que devem ser pensadas juntos com o discurso sobre o amor, seja na forma de amizade ou de caridade. Como quer Silvia Federici (2019), o capital tem arrancado dessas mulheres uma grande quantidade de trabalho gratuito ou remunerados de forma precária. Essas trabalhadoras têm sido ensinadas a sentir afeto pelas famílias empregadoras.
E isso não é novo, no Brasil, os textos clássicos de Gilberto Freyre (2019, 2015) refletem a figura da mucama como uma mulher negra e escravizada muito próxima à família do senhor, realizando os trabalhos domésticos. Essa realidade de mulheres negras que prestavam serviços de forma gratuita ou mal remunerada, como no início da república (TELLES,2013) é de certa forma muito presente na atualidade.
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Notas
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