Reseñas críticas

Reseña de Ravenelle, Alexandrea J. (2019). Hustle and Gig: struggling and surviving in the sharing economy

Cristina T. Marins
Doutora em Antropologia, Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora FAPERJ/PPGA/INCT InEAC, Brasil

Reseña de Ravenelle, Alexandrea J. (2019). Hustle and Gig: struggling and surviving in the sharing economy

Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 5, núm. 10, 2021

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Los autores conservan sus derechos
Ravenelle Alexandrea J.. Hustle and Gig: struggling and surviving in the sharing economy.. 2019. California. University of California Press. 273pp.

A “gig economy” e a degradação do trabalho no início do século XXI

A presente resenha é escrita enquanto atravessamos a mais grave pandemia do último século que, nos primeiros meses de 2020, tem impactado profundamente a vida social em todo o globo. Se o coronavírus vem produzindo uma crise humanitária de proporções extraordinárias, suas consequências sobre a parcela da população cujos rendimentos provêm do setor de trabalho informal tem sido particularmente devastadoras (Fairwork, 2020). O livro escrito por Alexandrea Ravenelle, cujo título poderia ser traduzido como “Confusão e improviso: batalhando e sobrevivendo na economia do compartilhamento”, já em 2019 chamava atenção para a vulnerabilidade em que se situava esta crescente massa de trabalhadores excluída do sistema de proteções laborais construído no século XX. Tratando, em especial, do cotidiano dos prestadores de serviços mediados por aplicativos, a pesquisa de Ravenelle ganha ainda mais relevância no contexto da pandemia.

Ainda que, de acordo com a socióloga, a chamada “economia do compartilhamento” tenha sido saudada por muitos como uma nova ordem que reduziria desigualdades ao levar empreendedorismo para as massas, sua pesquisa aponta uma série de promessas frustradas. Em lugar de encontrar horários flexíveis, autonomia e possibilidade de ganhos financeiros superlativos apregoados por empresas do Vale do Silício, as histórias ouvidas de seus interlocutores revelavam jornadas de trabalho longas e mal pagas, além de grande instabilidade. O argumento central de “Hustle and Gig” é de que a economia impulsionada por aplicativos tem aumentado a desigualdade e produzido condições de vida e de emprego tão precárias quanto aquelas do início da revolução industrial.

A fim de explorar as contradições entre discursos entusiastas que partem sobre a “economia do compartilhamento” e as experiências dos trabalhadores, Ravenelle fundamenta sua análise em relatos de indivíduos que prestam serviços mediados por quatro plataformas digitais: Airbnb, Uber, TaskRabbit e Kitchensurfing. A escolha das empresas, esclarece a autora, seguiu um critério de diversidade em termos de importância dentro do setor (Uber . Airbnb eram, no momento da pesquisa, companhias com bilhões de dólares em valor de mercado, enquanto TaskRabbit e Kitchensurfing eram substancialmente menores). Sua análise é baseada, fundamentalmente, em material de campo construído a partir de cerca de oitenta entrevistas em profundidade, realizadas com trabalhadoras e trabalhadores da gig economy.

O livro é dividido em oito capítulos. No primeiro deles, introdutório, além de apresentar brevemente o contexto de surgimento da economia do compartilhamento, a autora divide os trabalhadores das plataformas em três grupos. O primeiro, chamado pela autora de “histórias de sucesso” (Success Stories) abriga os indivíduos que contam ter obtido, através do trabalho em plataformas, um estilo de vida almejado por muitos, isto é, alta remuneração, sem as amarras de um emprego tradicional. Já o segundo grupo, que traduzirei como “aspirantes” (Strivers), é formado por indivíduos que possuem bons empregos e vidas estáveis, mas encontram nas plataformas um meio de obter renda extra ou, em certos casos, a distração de um “trabalho paralelo” para fazer uma aproximação com o conceito de Florence Weber (2009[1989]). O terceiro grupo, dos “batalhadores” (strugglers) abarca os trabalhadores que recorreram à economia do compartilhamento por necessidade. São pessoas há muito desempregadas, em situação migratória irregular ou, ainda, que enfrentam crises pessoais de naturezas diversas. Ravenelle considera batalhadores também os portadores de diploma de ensino superior incapazes de arcar com custos básico de vida (tais como moradia, alimentação, etc.).

O segundo capítulo apresenta uma reflexão crítica sobre a “gig economy”, tratada no texto como correlata das expressões “economia sob demanda” e “economia do compartilhamento” – ainda que a autora dialogue com literatura que faça distinção entre elas. Desvelando as condições históricas que favoreceram o florescimento da gig economy, Ravenelle destaca o papel do crescente endividamento da população norte-americana, da estagnação salarial naquele país entre o final da década de 1970 e o início dos anos 2000, bem como do impacto da crise iniciada em 2008 sobre jovens trabalhadores que, em 2019, formavam a maior parte da mão de obra das plataformas digitais. Ainda no segundo capítulo, despontam debates teóricos em torno de noções como confiança, risco e empreendedorismo.

O argumento de que mudanças no mundo do trabalho acarretadas pelas plataformas digitais produzem importantes retrocessos em termos sociais é desenvolvido no terceiro capítulo. Com este objetivo, Ravenelle recupera a história do trabalho e dos movimentos trabalhistas nos Estados Unidos, contemplando desde os primeiros registros de greves nos séculos XVII e XVIII, os subsequentes processos de criminalização, resistência e ressurgimento dos sindicatos, o cotidiano do trabalho nas fábricas têxteis marcado por lutas e violência e as conquistas trabalhistas que seguiram a depressão econômica de 1929. A partir desta recapitulação, a socióloga observa que aos trabalhadores da gig economy são negados direitos basilares do mundo do trabalho convencional. A ação deliberada de empresas para prevenir formas de sindicalização e organização coletiva é um exemplo de como companhias sediadas no Vale do Silício agem nesta direção. Neste capítulo também são enumeradas as diversas formas de violação de direitos trabalhistas praticadas na “economia do compartilhamento”, tais como remunerações mais baixas do que o salário mínimo estabelecido por lei, mudanças bruscas nas políticas de bônus e taxas promocionais ou insuficiente transparência nas regras estipuladas pelas empresas. O reflexo deste modus operandi das plataformas digitais no cotidiano dos trabalhadores encontra-se bem documentado no texto.

O quarto capítulo expõe os inúmeros transtornos e riscos experimentados no ambiente de trabalho pelos prestadores de serviço, tanto como consequência do sistema de avaliação por parte dos clientes, quanto pelo gerenciamento da força de trabalho através de algoritmos. A autora demonstra, com base em descrições do dia-a-dia de seus interlocutores, como avaliações negativas geram prejuízos consideráveis aos trabalhadores (que correm o risco até mesmo de banimento das plataformas), colocando-os sob intensa e constante vigilância. Como resultado do gerenciamento automatizado e opaco das plataformas, a autora verifica a recorrência de longas jornadas de trabalho, sem direito a intervalos de descanso ou alimentação, além de revelar dados preocupantes sobre a vulnerabilidade dos trabalhadores em relação a acidentes. Num contexto de dependência financeira do serviço mediado pelas plataformas digitais, o grau de exposição dos “batalhadores” é especialmente alto. A não responsabilização das empresas pelos indivíduos que, caso se tornem impossibilitados de trabalhar em decorrência de lesões e acidentes laborais, arcam sozinhos com prejuízos, é interpretada por Ravenelle como efetiva destruição das proteções de segurança estabelecidas pelo órgão federal de segurança no trabalho americano (Occupational Safety and Health Administration).

Ainda sobre o tema da segurança no trabalho, os Estados Unidos contam com proteções especificamente voltadas à questão do assédio sexual. Dedicando o quinto capítulo ao tema, Ravenelle demonstra que também sob este aspecto, as trabalhadoras e, em menor medida, também os trabalhadores da gig economy encontram-se em situação de vulnerabilidade. Segundo a socióloga, relatos de situações desconfortáveis surgiam nas conversas com seus interlocutores, ainda que o tema do assédio sexual não fizesse parte originalmente de seus interesses de pesquisa. Outra questão que surge ao longo da pesquisa é da sujeição dos prestadores de serviços a participarem, inadvertidamente, de atividades ilegais. Histórias de indivíduos que se viram nesta situação são exploradas no sexto capítulo, mas não só. Ali, Ravenelle trata também da discussão em torno da legalidade dos negócios da gig economy, a exemplo das locações irregulares operadas pelo Airbnb.

O sétimo capítulo do livro é dedicado aos trabalhadores de plataformas que dispõem de maior nível de capital cultural e financeiro e, portanto, são capazes de lidar com o trabalho de maneira mais livre, atuando de modo que lhes parece mais vantajoso, sem ter que se sujeitar a situações de trabalho constrangedoras ou que implicam riscos. Assim, Ravenelle demonstra que diferentes plataformas, pela natureza dos serviços que intermediam, apresentam distintos custos, barreiras e benefícios aos trabalhadores. Para prestar serviços intermediados por plataformas como o Airbnb, por exemplo, é necessário que o indivíduo tenha a sua disposição um espaço a ser alugado e que este pareça desejável aos clientes. Já no caso do Kitchensurfing, a prestação de serviço requer competências culinárias. Não por acaso, a pesquisa de Ravenelle aponta que trabalhadores da gig economy com maior capital financeiro e cultural são aqueles que tendem a guardar maior identificação com o discurso empreendedor do qual as empresas lançam mão. Para eles, a “economia do compartilhamento” pode sim ser fonte de trabalho flexível, exercido com autonomia e controle. Por outro lado, sublinha Ravenelle, para as massas de trabalhadores desprovidos de tais capitais, a gig economy simplesmente torna as possibilidades de trabalho ainda mais precárias do que na era industrial.

Na nova “economia do compartilhamento”, trabalhadores são estimulados a aumentar seu valor de mercado, desenvolvendo estratégias de comercialização de si como marca ou negócio. Neste modelo econômico, impera o ethos empreendedor embalado por um novo espírito capitalista (Boltanski e Chapello, 2007[1999]) vocalizado nas narrativas das empresas que anunciam o empreendedorismo como algo ao alcance de todos. A pesquisa realizada por Ravenelle evidencia, contudo, que tal mensagem ignora o elemento da (im)possibilidade de escolha. O discurso do empreendedorismo não se sustenta entre aqueles que recorrem as plataformas digitais como último recurso. E, diante de um cenário de estagnação econômica e altas taxas de endividamento, casos assim não são exceção.

O teor predominantemente crítico adotado ao longo do livro é parcialmente deslocado no capítulo de conclusão, no qual a autora esboça possíveis soluções para as preocupantes consequências da gig economy nas condições de vida dos trabalhadores. Segundo Alexandrea Ravenelle, as plataformas on-demand não necessariamente devem significar o fim de oportunidades de trabalho estáveis e a destruição de redes de segurança. Para amparar esta ideia, contudo, a socióloga se concentra em casos de plataformas que oferecem (ao menos supostamente) condições de trabalho distintas das que observou em campo – como a Hello Alfred que buscaria equilibrar a demanda e a oferta de prestadores de serviço, a fim de assegurar taxas de remuneração mínimas e certo grau de estabilidade aos trabalhadores. Chama atenção, portanto, a acanhada discussão sobre o papel do Estado no cenário de expressivo aumento do que Standing chama de precariado, ou seja, indivíduos desprovidos de identidade ocupacional duradoura e proteções trabalhistas, sujeitos a contratos de trabalho intermitente ou de tempo parcial (Standing, 2014). Ainda assim, se é verdade que a economia digital produz o isolamento de trabalhadores e uma força de trabalho marcada pela heterogeneidade, a pesquisa de Ravenelle apresenta uma preciosa contribuição ao desvelar os impactos das plataformas nas vidas dos trabalhadores a partir de seus próprios relatos. Através de um competente trabalho de pesquisa, a socióloga permite que acessemos alguns dos benefícios e, sobretudo, dos custos ocultos neste novo movimento econômico batizado de “economia digital”. Hustle and Gig pode ser lido como um convite para que sejam ampliadas para outros contextos, inclusive Latino-americanos, as investigações sobre novas formas de trabalho no século XXI.

Referências bibliográficas

Boltanski, L. & Chiapello, E. (2007). The New Spirit of Capitalism. Londres: Verso.

Fairwork (2020). The Gig Economy and Covid-19: Fairwork Report on Platform Policies. Oxford.

Standing, G. (2014). The Precariat. Contexts 13(4), 10–12.

Weber, F. (2009). Trabalho fora do trabalho: uma etnografia das percepções. Rio de Janeiro: Garamond.

Información adicional

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