Resumo: O presente ensaio é parte integrante do resultado de uma pesquisa de campo em desenvolvimento com a comunidade dos entregadores brasileiros de aplicativo de comida, os autodenominados “Deliveroos” em Dublin, capital da Irlanda. Buscou-se construir um horizonte imagético competente para apresentar um vislumbre do cotidiano da prática do espaço exercida por esses sujeitos, na qual se apropriam e são apropriados pela cidade criando a noção difundida no grupo de “uma Irlanda Brasileira”.
Palavras-chave: Irlanda, Deliveroo, Espaço, Paisagem Urbana.
Abstract: The present essay is an integral part of the result of a field research under development with the community of Brazilian food app deliverers, the self-styled “Deliveroos” in Dublin, the capital of Ireland. We sought to build a competent imaginary horizon to present a glimpse of the daily practice of space exercised by these subjects, in which they appropriate and are appropriated by the city creating the notion disseminated in the group of “a Brazilian Ireland”.
Keywords: Ireland, Deliveroo, Space, Urban Landscape.
Ensayos fotográficos
Deliveroo, uma Irlanda Brasileira
Deliveroo, a Brazilian Ireland

O presente ensaio é parte integrante de uma pesquisa de campo que tem sido conduzida por mim com a comunidade dos entregadores de aplicativo de comida em Dublin, capital da Irlanda. Quando me mudei para essa cidade o primeiro fenômeno que me saltou aos olhos em relação aos brasileiros que aqui vivem foi a extrema adesão ao trabalho de “rider” que nada mais é do que um ciclista que percorre a urbe entregando a comida que é pedida por pessoas em aplicativos de celular. Com efeito, embora a uberização do mundo do trabalho (Antunes, 2018; Antunes; Filgueiras, 2020) seja um fenômeno global decorrente das metamorfoses do próprio sistema capitalista a idiossincrasia em Dublin é que nessa cidade esse é um trabalho quase exclusivamente feito por brasileiros. A ponto de quando numa entrevista com um rider, o mesmo se referir a esse universo laboral como “a Irlanda Brasileira”.
Essa é apenas uma fala exemplar entre tantas outras que poderiam ser citadas para ilustrar o sentido de pertencimento entre os migrantes que se reconhecem e se autodenominam como “os brasileiros do Deliveroo[1]”. Ao se definirem assim, esses sujeitos apresentam os dois constituintes referenciais básicos de seu status, primeiro são brasileiros, segundo são Deliveroo. Essa ordem hierárquica me pareceu clara, sobretudo, nas narrativas da divisão territorial com riders de outras nacionalidades, os brasileiros sempre se posicionam em blocos etnicamente fechados com pontos mais ou menos fixos ao longo da cidade, não havendo o hábito de congraçar com estrangeiros. De sorte, nas imagens aqui presentes, ofereço um panorama sobre a confluência entre esse sentimento primário de identificação de grupo acionado pela noção de nacionalidade e o ato de praticar o espaço (Certeau, 2008) contido na apropriação cotidiana da cidade.
Tal como argonautas modernos os riders navegam pela paisagem da cidade estabelecendo pontos de sociabilidade; explorando, reinventando as melhores rotas para a lida diária e construindo interditos coletivos sobre locais a serem evitados. Criam assim a sua própria versão do ambiente, fonte conceitual de suas percepções sobre si mesmos e sobre o complexo de objetos animados e inanimados que os circunda. Numa dinâmica parecida com a da ontologia do habitar dos caçadores-coletores de Tim Ingold que, no engajamento, construindo e partilhando os significados de sua experiência no mundo, produzem reconhecimento mútuo num jogo dialógico em que habitando a cidade ela também os habita numa relação em que ambos saem transformados (Ingold, 2000).
Em termos etnográficos, acredito francamente na linguagem imagética como instrumento privilegiado para expressar de forma imediata e contundente a tenacidade desses atores ante o enfretamento diário de sua invisibilidade social em condições precárias de labor, seus espaços de afeto e seu exercício territorial que criam essa “Irlanda brasileira”, pois que, a força metafórica e a expressividade da imagem possuem imenso potencial sintetizador da noção de códigos e representações que formam o social (Peixoto, 2019). De sorte, a sequência de imagens foi pensada considerando esse complexo de dados de maneira a representar o roteiro do cotidiano narrado a mim pelos Deliveroos que compreende basicamente três momentos: a) espera ao celular; b) recebimento da chamada para fazer uma entrega; c) saída para fazer a entrega (muitas vezes sob condições absurdamente agrestes de frio, chuva, rajadas de vento e neve); por fim, a volta a um dos pontos territorializados por brasileiros ao longo da cidade para repetir o mesmo ciclo durante dez ou doze horas diárias.
Contudo, foi especialmente levado em consideração também os momentos de respiro, que são parte do substrato que compõe a noção de comunidade e de pertencimento étnico dos atores da pesquisa. Nesses momentos, entre uma corrida e outra eles conversam, sorriem e se apoiam mutuamente fortalecendo o sentido de solidariedade e de articulação interna do grupo, combatendo muitas vezes – segundo relatos de entrevistados – a solidão existencial que os acomete por viver em ambiente tão hostil. Grato sublinhar também que, busquei retratar esse sentimento de solidão emocional dialogando com a sensação solidão física flagrantemente agravada pelo deserto das ruas em tempos pandêmicos que, de acordo com os riders é mais sentida ao final do dia. Esclarecidas as intenções de narrativa, no sentido mecânico do trabalho utilizei em todas as fotos a minha velha câmera Sony A58 em par com uma lente fixa de 50mm com abertura de 1.8, o ISO foi variável de 100 a 800 com velocidade do obturador também variável dependendo das condições de iluminação e do desfoque ou não que desejei produzir, sempre tomando imagens em formato RAW. Na pós-produção que se limitou à correção de luz e cor utilizei o software Adobe Lightroom. Considero essa última medida de mor importância uma vez que, optei pela foto em preto e branco para ressaltar o ar de invisibilidade urbana dos envolvidos – aliado às técnicas de desfoque do rosto e do corpo quando olhados de frente –, bem como para intentar imprimir um caráter de atemporalidade às imagens uma vez que creio, esse é também o registro de um fragmento do movimento do desbravador que remonta à aurora da humanidade.





























