Reseñas críticas

A greve antes da “grève”: trabalho, raça e classe no Brasil escravista. Reis, João José (2019). Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia

Berlano Andrade
Mestre e doutorando em Antropologia pelo PPGA da Universidade Federal de Pernambuco., Brasil

A greve antes da “grève”: trabalho, raça e classe no Brasil escravista. Reis, João José (2019). Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia

Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 6, núm. 13, pp. 1-4, 2022

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Reis João José. Ganhadores. A greve negra de 1857 na Bahia. 2019. São Paulo. Companhia das Letras. 456pp.

Ganhadores e ganhadeiras. Denominavam-se assim, na Bahia oitocentista, os trabalhadores de rua formados tanto por escravizados como por libertos (ex-escravos) e livres. Eram os homens que se ocupavam no transporte de pessoas e objetos além de mulheres que transitando pelo espaço urbano iam às ruas para vender mercadorias das mais variadas, dentre outros afazeres. Os escravizados faziam uso de um sistema, o ganho, em que contratavam com seus senhores a entrega semanal de determinada quantia e o que sobrasse, podiam embolsar. Assim, muitos puderam poupar para comprar suas alforrias. Em 1857 os ganhadores se viram confrontados por tentativas de controle sobre si no espaço de trabalho, levando-os a reagir de forma inédita: uma greve de cerca de dez dias que atingiu praticamente toda a população de Salvador, capital da então província.

O historiador João José Reis procura neste livro entender o que foi o primeiro movimento grevista envolvendo todo um setor da classe trabalhadora urbana no Brasil. Como ele afirma, as autoridades à época ficaram desnorteadas: não se tratava de revolta e nem de quilombo (formas clássicas de resistência escrava); muito menos era um protesto contra a escravidão. Tratava-se da supressão do trabalhador africano, e não apenas escravizado, contra o Estado. Bem antes de, no Brasil, adaptar-se a palavra francesa “grève” para se referir a esse tipo de movimento, “parede” seria naquele momento o termo usado. Movimento paredista, vale lembrar, ainda hoje é uma expressão usada por alguns setores do movimento sindical brasileiro, embora poucas vezes se elucidem suas origens.

Reis procura entender como esse movimento foi possível por meio da compreensão da natureza do trabalho africano e os próprios africanos que paralisaram as suas atividades. Assim, debruçando-se sobre os aglomerados étnicos que se fizeram presentes, nomeados de nações, observa a formação de uma estrutura social que unificava na Bahia grupos que em África não experienciaram tal unidade, a exemplo dos iorubás. Destaca-se que em meados do século XIX africanos natos (fosse escravo ou liberto) serão hegemônicos entre os trabalhadores de rua e as mudanças que levarão ao declínio da presença desses, fazendo com que às vésperas da abolição os nascidos no Brasil se tornassem predominantes, não deixa de ter a atenção do autor.

Atendo-se à estrutura organizacional dos ganhadores, é destacada as formas em que o trabalho se constitui em torno de elementos étnicos-culturais característicos dos africanos. Entre os aspectos que permitiram a conformação de uma cultura escrava urbana mais autônoma estava o tempo de trabalho medido pela tarefa cumprida ao invés de unidade de tempo. Trata-se de uma noção de tempo vinda da África em que os africanos resistiram ao seu aniquilamento uma vez que lhes oferecia sentido no esforço para pôr algum freio à exploração escravista.

Importante à organização dos ganhadores foram os cantos: ajuntamento de determinado número de africanos, localizados geralmente numa esquina de rua, que obedeciam a um chefe denominado capitão de canto. O autor argumenta que os cantos eram a representação mais acabada da solidariedade e do espírito comunitário do trabalhador africano de rua na Bahia oitocentista. No seu entender, muito mais do que mera estação de trabalho, era um nicho cultural, um conjunto de sociabilidades em que etnia, classe, gênero e territorialidade convergiam, se entrelaçavam e se transformavam. Era no interior de muitos cantos que outra instituição africana funcionava: a junta, ou caixa de crédito. Aqui, escravos e libertos se reuniam para depositar quantias que poderiam ser resgatadas para a compra da alforria como também para outros fins, como para a ajuda mútua. Importante destacar que o autor pondera que tais aspectos explorados não pretendem apontar permanências culturais ou institucionais africanas, mas sim imaginar possíveis modelos organizacionais que os africanos pudessem lançar mão dentro de um conjunto de estratégias de sobrevivência e resistência sob a escravidão.

Como descrito por Reis, os trabalhadores negros, principalmente africanos, conformaram-se como a principal força de mão de obra na capital baiana. Tal aspecto, contudo, irá se chocar com a mudança de mentalidade das elites locais que, imbuídos por uma nova sensibilidade burguesa, começavam a argumentar pela “desafricanização da cidade”. Almejando fazê-los abandonar “espontaneamente” a capital via mecanismos de coerção que estivessem à mão, seja para trabalhar como dependentes no campo como retornando a África, havia também o temor recorrente de rebeliões escravas que ameaçassem a ordem social vigente. O espectro da Revolta dos Malês, ocorrida pouco antes em Salvador, em 1835, em que os ganhadores desempenharam um papel fundamental, ainda atemorizava essas elites.

É nesse sentido que em 1857 foram tomadas medidas no sentido de ampliar o controle sobre os ganhadores: a obrigação de registro junto a Câmara Municipal, o pagamento de um imposto profissional e uma série de medidas de controle profissional. Entende-se essas medidas como parte de um conjunto de iniciativas que já vinham sendo tomadas desde a Revolta dos Malês, mas que muitas vezes foram sistemática e pacificamente vencidos. A guerra fiscal deflagrada agora, no entanto, acarretaria uma reação nunca vista.

Em 1º de junho o movimento paredista entrou em ação. Como nosso autor relata, “a dependência dos comerciantes e dos passageiros em relação aos ganhadores talvez nunca tivesse ficado tão clara como em 1857” (p.176). Atendo-se aos dias de paralisação, vemos os impactos sendo sentido em toda a cidade e as pressões que já no segundo dia levaram a derrota da parte fiscal da postura municipal. Fazendo-se notar as primeiras baixas por parte dos escravizados, que pressionados pelos seus senhores retornavam as atividades, os grevistas procuraram reagir antecipando o que seriam as modernas táticas de piquetes: ao saírem às ruas, eram constrangidos não só por seus companheiros que os maltratavam como pelos moleques e as mulheres ganhadeiras que os escarneavam. Estas últimas virariam aliadas, revelando que o quadro de resistência em determinado momento se ampliou em número e gênero.

Os capítulos finais do livro procuram analisar os possíveis impactos desse evento e as transformações na sociedade nas décadas seguintes. A greve negra de 1857 não apresentou uma queixa formal, petição ou manifesto. “Simplesmente pararam, se retiram das ruas, correm a notícia de boca em boca e fizeram a cidade gemer de sofrimento” (p.216). A paralisação levou a algumas conquistas. Mas não suprimiu os intuitos de controlar os serviços de ganho posteriormente. Na década de 1880 o número de escravos empregados nessas atividades reduzia-se a quase nada. E embora em 1857 os africanos natos representassem praticamente a totalidade dos ganhadores de Salvador, com o fim do tráfico transatlântico, em 1850, fazia com que não houvesse renovação desse contingente que com o passar do tempo estava envelhecendo e desaparecendo. Às vésperas da abolição, Salvador era completamente diferente dos dias do movimento paredista.

João José Reis destaca que os cantos, nos últimos quinze anos do sistema escravista, deixavam de ser instituições exclusivamente africanas. Nascia nesse momento uma nova ordem, não mais etnicizada, mas racializada e com acentuado sotaque de classe. Porém, essa instituição africana, o canto de trabalho, seria, nas suas palavras “a servir de escola sob cuja égide, na Bahia, os ganhadores brasileiros começariam a se entender como classe trabalhadora, sem esquecer que eram também negros de cor” (p.356).

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