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Formas de sujeição dos motoristas da Uber no Brasil: uma etnografia pela ótica da participação observante

Formas de sometimiento de los conductores de Uber en Brasil: una etnografía desde la perspectiva de la participación observadora

Forms of subjection of Uber drivers in Brazil: an ethnography from the perspective of observant participation

Ilan Fonseca de Souza
Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil

Formas de sujeição dos motoristas da Uber no Brasil: uma etnografia pela ótica da participação observante

Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 7, núm. 15, 2023

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)

Los autores conservan los derechos

Recepción: 19 Agosto 2022

Aprobación: 28 Noviembre 2022

Resumo: O artigo tem por objetivo investigar as formas de sujeição dos motoristas da Uber. Para tanto, utiliza-se do método etnográfico da participação observante, através da qual o pesquisador exerceu a função de motorista de aplicativo na região metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Durante quatro meses (dezembro 2021 a março de 2022) foram realizadas 350 viagens com passageiros, a fim de identificar a subordinação existente entre estes trabalhadores e a plataforma, bem como as condições de trabalho e a cosmovisão deste grupo social. Os resultados sugerem um ambiente competitivo, isolado do ponto de vista social, e com forte ideologia neoliberal entre estes profissionais, mas que convive, paradoxalmente, com a solidariedade e o exercício de formas de resistência. Por sua vez, a plataforma digital faz uso de uma hierarquia acentuada e busca obter lucros dos trabalhadores das mais variadas formas, não restrita à exploração capitalista. A etnografia discute a existência da subordinação, concluindo que o trabalho atualmente realizado por motoristas de aplicativo pode ser enquadrado como uma relação de emprego, tendo em vista tratar-se de relação de assalariamento.

Palavras-chave: uberização, subordinação, participação observante.

Resumen: El artículo tiene como objetivo investigar las formas de subordinación de los conductores de Uber. Para eso, utiliza el método etnográfico de participación observadora, a través del cual el investigador actuó como conductor de la aplicación en la región metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Durante cuatro meses (diciembre de 2021 a marzo de 2022) se realizaron 350 viajes de pasajeros con el fin de identificar la subordinación de estos trabajadores a la plataforma, así como las condiciones de trabajo y cosmovisión de este grupo social. Los resultados sugieren un ambiente competitivo, aislado desde el punto de vista social y con una fuerte ideología neoliberal entre estos profesionales, pero que, paradójicamente, convive con la solidaridad y el ejercicio de formas de resistencia. A su vez, la plataforma digital hace uso de una acentuada jerarquía y busca obtener ganancias de los trabajadores de las más variadas formas, no restringidas a la explotación capitalista. La etnografía discute la existencia de subordinación, concluyendo que el trabajo que actualmente realizan los conductores de aplicaciones puede enmarcarse como una relación laboral, dado que se trata de una relación salarial.

Palabras clave: uberización, subordinación, participación observadora.

Abstract: The article aims to investigate the subordination of Uber drivers. For that, we use the ethnographic method of observant participation, through which the researcher acted as an app driver in the metropolitan region of Salvador, Bahia, Brazil. During four months (December 2021 to March 2022) 350 passenger trips were carried out in order to identify the subordination between these workers and the platform, as well as the working conditions and cosmovision of this social group. The results suggest a competitive environment, isolated from the social point of view, and with a strong neoliberal ideology among these professionals, but which coexists, paradoxically, with solidarity and the exercise of forms of resistance. In turn, the digital platform makes use of an accentuated hierarchy and seeks to obtain profits from workers in the most varied ways, not restricted to capitalist exploitation. The ethnography discusses the existence of subordination, concluding that the work currently performed by app drivers can be framed as an employment relationship, given that is a wage relationship.

Keywords: uberization, subordination, observant participation.

INTRODUÇÃO

Etnografia é o relato sobre o mundo do ponto de vista da observação participante em sentido amplo (Burawoy, 2014). Através dela o pesquisador atua como parte do grupo investigado ao mesmo tempo em que o observa (Peruzzo, 2017), ou seja, o observador une-se aos participantes no ritmo de vida, no espaço e no tempo deles, como um membro engajado, seja de forma declarada e aberta, ou incógnita e coberta (Burawoy, 2014). É também o método utilizado pela Antropologia na coleta de dados, baseando-se no contato intersubjetivo entre o sujeito e o seu objeto; seja ele qualquer grupo social sob o qual se faz o recorte analítico, sua base é o trabalho de campo (Uriarte, 2012). Em sentido amplo, produzir dados, capturar percepções e descrevê-los densamente a ponto de conseguir entender o funcionamento de um determinado grupo ou comunidade é a finalidade última de uma etnografia (Soares e Stengel, 2021).

Neste artigo, apresento os resultados de um trabalho de campo realizado entre os meses de dezembro de 2021 e março de 2022 na condição de pesquisador que conduziu um veículo enquanto motorista de aplicativo através da plataforma digital Uber. O objetivo foi empreender uma antropologia do trabalho subalterno a fim de identificar a subordinação existente no trabalho dos motoristas de aplicativo e suas respectivas condições de trabalho inseridas na dinâmica da plataforma. Em outras palavras, mais do que participar, busquei trabalhar junto ao grupo social pesquisado. Apesar da etnografia ocupar lugar de destaque nesta pesquisa, diferentes técnicas foram empregadas, tais como análise de documentos, decisões judiciais, bancos de dados oficiais, redes sociais, além da netnografia e revisão bibliográfica.

Métodos de pesquisa participativa envolvendo motoristas de aplicativo não tem sido objeto de maiores estudos nesta seara. Por essas razões, a participação observante se justificou enquanto técnica capaz de acessar aspectos obscurecidos pela uberização e evidenciar processos internos invisibilizados.

Este estudo buscou aprofundar a investigação acerca do poder diretivo exercido pela Uber sobre os motoristas de aplicativo. Ainda que essa pesquisa tivesse, inicialmente, substância qualitativa limitada, ao priorizar os elementos da relação de emprego que evidenciassem a subordinação e as condições de trabalho, ela pôde servir também para evidenciar a cosmovisão desse grupo social. Fazendo uso de uma etnografia online com duração de 350 horas ao volante, o foco investigativo não foi exclusivamente o grupo social dos motoristas de aplicativos e seus símbolos identitários, mas também a relação pessoal intermediada pela tecnologia entre o pesquisador enquanto motorista e a plataforma, passando pelo necessário contato de curta duração com todos os passageiros e personagens deste percurso metodológico: motoristas de outros apps, taxistas, policiais, agentes de trânsito, motoristas de ônibus, vendedores ambulantes, pedintes, lavadores de carro, donas de lanchonete, porteiros de prédios e vigilantes de empresas. São categorias profissionais cujo convívio é parte intrínseca da observação participante de motoristas da plataforma Uber.

Enquanto soteropolitano, residente em Camaçari, município situado na Região Metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil, optei por conduzir o automóvel cadastrado nesta região. Acredito que a localidade escolhida, em seu perímetro urbano, veio a ser suficientemente representativa das condições de trabalho enfrentadas pela categoria em geral em grandes metrópoles, tendo em vista que o transporte de passageiros mediado por aplicativos está concentrado em grandes capitais do país.

Uma relação social intermediada pela tecnologia possui peculiaridades. Tentei explorar o lugar da técnica na mediação entre motoristas e aplicativo. Este debate na Antropologia clássica remonta a Marcel Mauss e, mais recentemente, a Bruno Latour. A discussão leva em consideração a maneira com que diferentes relações humanas são conduzidas, especialmente a partir de limites ou condições postas por objetos técnicos. Discussões sobre cibercultura e tecnologias digitais também exploram o lugar dos objetos técnicos na mediação entre humanos e computadores/dispositivos digitais (Rifiotis, 2012).

Ao planejar o trabalho de campo, eu já tinha uma hipótese, mas durante a sua execução não tive a intenção de procurar a sua confirmação, mas sim refutações que me inspirassem a aprofundar aquela teoria (Burawoy, 2014). Viveiros de Castro (2002) afirma que a relação entre o antropólogo e o nativo é uma relação de conhecimento e como tal, uma relação de sentido transformadora. Para um operador do direito, como eu, que se propõe a analisar um fenômeno contemporâneo e seu possível enquadramento legal, essa premissa é inteiramente aplicável: ao se aproximar dos fatos e das relações pessoais, da lei e da sua interpretação, e de dados que demonstrem sua aplicação, está-se de alguma forma em processo de transformação do próprio pesquisador.

ENTRANDO NA PISTA

Imagine-se o leitor agora, sozinho, apenas com seu automóvel, vendo a tela do celular apontar a primeira corrida do dia. Vou ao encontro do desconhecido. Antes de ligar a chave do carro e dar a partida para meu trabalho de campo, meu maior receio era me deparar com um passageiro desaforado, o que não aconteceu.

Entro na pista[1] em 1º de dezembro de 2021, uma quarta-feira, dia em que, normalmente, há pouco movimento, como fui descobrir com o passar do tempo. Às 8 horas, recebo a primeira solicitação, após ficar online no aplicativo por 5 minutos.

Print de tela do aplicativo. Solicitação exemplificativa. Data: dezembro de 2021.
Figura 1.
Print de tela do aplicativo. Solicitação exemplificativa. Data: dezembro de 2021.
Fonte: própria.

Uma janela estoura na tela do aplicativo meu celular, mas a solicitação não indica a região exata de destino da corrida. Somente identifica o município/bairro de destino, não fornecendo qualquer pista sobre a rua para onde o(a) passageiro(a) pretende ir. Me sinto inseguro, mas, mesmo assim, aceito o chamado. A solicitação emite um som muito semelhante ao de jogos de videogame. Observo que as cores usadas na solicitação da viagem são básicas, branco, preto e cinza, e há simplicidade nas fontes utilizadas. O tempo de deslocamento que aparece na tela para chegada a(o) passageiro(a) tem um tamanho de fonte muito superior ao tamanho da fonte das informações sobre a nota do passageiro ou a distância até o mesmo. Longas distâncias – e muito combustível – são dados menos destacados pelo app. Há ainda a indicação da categoria da viagem e a informação eventual de se tratar de passageiro com menos de cinco viagens. O aplicativo somente indica se o pagamento será em dinheiro ou no cartão após a solicitação ser aceita.

Clicando-se em qualquer espaço da janela, a corrida é aceita, momento em que surge uma nova obrigação para mim: dirigir-me ao ponto de encontro sem demora. Ao chegar ao local indicado, faço contato visual com a passageira que me confirma o seu nome antes do embarque.

A primeira passageira tinha o nome de Laís[2], que ingressou no carro e me deu “Bom dia”. A partir do embarque da usuária, surge outra obrigação: dirigir em direção ao destino por ela indicado, não deixando a cliente em local diverso do combinado. Foi uma viagem com trajeto curto e uma comunicação protocolar. A usuária aparentava estar saindo de casa, dirigindo-se para o restaurante onde trabalha. Ainda que a Uber se esforce para que motoristas evitem ideias pré-concebidas dos passageiros, é quase impossível que o trabalhador não faça essa leitura do contexto e da aparência do usuário para tentar entender o que está se passando e, com isso, no mais das vezes, evitar ou se precaver de situações de perigo.

A obrigação trabalhista de estar em determinado ponto de origem e de destino, juntamente com um dever de pontualidade, não são meras sugestões. Não posso, por exemplo, abandonar o passageiro enquanto a corrida está em curso, e o mesmo vale para o horário em que devo me apresentar para o embarque, pois apesar do motorista ser “livre” para se conectar ao app, a partir do momento em que aceita a corrida, ele tem poucos minutos para se fazer presente ao ponto de origem, sob pena da solicitação ser cancelada e uma taxa de cancelamento ser cobrada.

O trabalho de motorista de app envolve muita submissão. Antes de ficar online, a Uber exige que eu tire uma foto do meu rosto (selfie) sem máscara para confirmação da minha identidade (“para confirmar que esta é a sua conta”), exigência que se repetiria muitas outras vezes ao longo dos quatro meses do estudo etnográfico. Em seguida, foi necessária a captura de outra foto, desta vez com máscara, para comprovar que eu estou usando essa medida de proteção sanitária, além de me obrigar a assistir a um treinamento em vídeo sobre como usar uma máscara.

Exige também que eu confirme a leitura de todos os documentos e a concordância futura em relação a novos contratos, cujo teor eu ainda não conheço. Concordo, ainda, que não irei conduzir o veículo se estiver diagnosticado com covid-19 ou com sintomas relacionados, e que desinfetarei o veículo depois de cada viagem; que terei álcool em gel disponível; que não levarei mais de três usuários, todos eles sempre no banco de trás e com as janelas abertas. É uma ordem clara, repetida algumas vezes durante o trabalho de campo, materializada em uma tela com os dizeres “Obrigatório” abaixo de cada uma das abas.

Nas primeiras semanas, observo que os passageiros passam a maior parte do tempo mexendo no celular, mas, quando são turistas, surgem perguntas sobre pontos turísticos da cidade. Nesta época do ano, a zona central de Salvador costuma ter muita demanda por corridas por conta desse fluxo de forasteiros, mas no local onde normalmente aguardo as corridas, não há chamadas e, ao me ativar, a plataforma ordena através do ícone Solicitações que eu saia dali, siga o roteiro traçado no mapa digital e vá para a margem da Estrada do Coco, mais próximo ao centro da cidade.

Ao ficar online no app, em outro dia em dezembro, aparece a mensagem “Você pode receber mais solicitações neste trajeto, vamos lá!”, que fica a 12,2 km de minha residência, com indicação do local para onde devo me dirigir. Eu recuso o comando, mas como consequência as solicitações não chegam: exercer essa pretensa autonomia cobra um preço. Mas nem tudo são desvantagens, pois a plataforma afirma que um dos benefícios desta profissão consiste em desbravar todos os recantos da cidade e conhecer pessoas! Demorei para perceber que conhecer pessoas não é o mesmo que fazer amizade com elas.

Somente após as primeiras 100 corridas, um passageiro pergunta minha formação e puxa conversa também sobre política: “Não sou nem bolsonarista, nem petista” diz ele. Esclareço ao usuário que a Uber proíbe conversas sobre assuntos polêmicos, mas ele se faz de desentendido, continua tagarelando e afirma que a situação está difícil para todo mundo, quando eu digo que a minha formação é em Direito: ele me deseja sorte e sucesso, quando o deixo no aeroporto.

Diariamente, a plataforma também exige que eu confirme qual veículo estou dirigindo e a cada três dias que eu tire uma foto do meu rosto (com ou sem máscara). É um detalhe pequeno em si, mas doloroso por seu significado simbólico: por que ela imagina que eu estou burlando o app? Em algumas ocasiões, a exigência da selfie ocorre após o término das primeiras corridas do dia, e não no início da jornada como é de costume. A estratégia da empresa visa impedir que motoristas não cadastrados façam uso da conta de motoristas legítimos através da manipulação do aplicativo.

Um motorista pode ser punido porque conduziu terceiros, extrapolou o limite de passageiros ou conduziu passageiros sem máscaras, mas a Uber não tem essa mesma preocupação em regular a conduta adequada dos passageiros. Ao invés disso, transfere o ônus dessa responsabilidade ao trabalhador. Em muitas ocasiões transporto mais de três passageiros, aceito terceiros não cadastrados na corrida, crianças sem cadeirinha infantil ou passageiros sem máscara. Em uma circunstância, permiti o embarque de cinco passageiros de uma mesma família, sendo duas delas crianças sem o necessário bebê conforto, que estavam indo à praia na manhã de um domingo, saindo de um sítio. A mãe entrou no carro sem máscara, eu solicitei que ela fizesse uso, e ela prontamente se desculpou e pôs o equipamento. Após um longo deslocamento e gasto de combustível, e diante de passageiros que moram em localidades distantes e insistem para que a corrida seja feita “porque já estão esperando um Uber há meia hora”, o risco do negócio fica apenas para o motorista que, se não aceitar o embarque, terá ainda mais prejuízo.

Nas viagens iniciais continuo atrapalhado com o aplicativo. Em um dia, me esqueço de iniciar a corrida e conduzo os passageiros por quase 2 km sem confirmar a viagem na aba do aplicativo (“Iniciar UberX”) e, como resultado, esse trajeto não foi remunerado. Noutro dia, ao desembarcar uma passageira, eu preciso clicar em um botão específico para informar que a corrida foi encerrada, mas não lembro de fazer isso e fico parado esperando outra chamada: após dez minutos, recebo uma mensagem do sistema de segurança U-Ajuda, perguntando se estava acontecendo alguma coisa estranha, oferecendo a opção de ligar para a polícia ou solicitar ajuda, como um guincho. Essa fiscalização também tem um viés positivo, por gerar uma sensação de maior confiança para motoristas, mas não descaracteriza a sua natureza jurídica de supervisão para fins trabalhistas. Com esse incidente, tenho a confirmação de que a empresa está comigo o tempo todo. Neste mesmo dia, ao fim da jornada, chego em casa, mas não lembro de ficar offline, ocasião em que a Uber me pergunta: “Ainda está aceitando solicitações?”

No dia seguinte, a plataforma sugere que eu rode aos domingos para melhorar minha rotina, pois se trata de um dos melhores dias para ganho: “Um parceiro que dirige aos domingos normalmente ganha 40% a mais por hora do que em um dia comum. Use a flexibilidade de ser um motorista parceiro e fique online com mais qualidade de vida” (Uber, 2022a). A plataforma afirma que trabalhar em um dia da semana em que a maioria das pessoas não trabalha me tornará mais flexível e com melhor qualidade de vida ... (os melhores horários são das 14 às 22 horas). O comunicado sugere que eu troque meus dias úteis de trabalho, durante a semana, pelo domingo. As mensagens reforçam ainda que sou meu próprio chefe, que irei ganhar mais e que trabalhar pela plataforma é uma oportunidade de conhecer pessoas bem-humoradas, o que vai gerar mais diversidade e qualidade de vida para mim, pois irei trabalhar em um dia com tráfego reduzido.

De forma contraditória, nos dias e horários em que eu escolho me desconectar, a empresa me incentiva a permanecer ativado, sugerindo que “os preços estão aumentando na região!”.

Nesta fase de estreia ao volante, redes sociais como YouTube e Instagram me ajudam muito em dicas para uma direção segura e sobre como usar o app. Em consulta ao perfil da empresa no Instagram, observo que motoristas são chamados de heróis pela plataforma, como a “Vovó Uber” Maria Albina, que não aceita ficar parada:

Print de tela do Instagram da Uber.
Figura 2.
Print de tela do Instagram da Uber.
Fonte: autor. Data: 25.12.2021.

Descubro, também, que a plataforma trabalha com o sistema de pontuações Uber Pro, semelhante a programas de companhias aéreas, em que o motorista vai evoluindo para níveis mais elevados, com mais vantagens em tarifas, promoções e ofertas de corridas, tudo com a finalidade de gerar maior engajamento. Somente no último nível é que o motorista sabe o tempo de duração da viagem com antecedência. Informações que deveriam ser básicas são oferecidas como uma moeda de troca para mais labor. A cada três meses, a empresa promove uma reavaliação desse motorista para permitir acesso a novas categorias. A plataforma não exige que todas as corridas sejam aceitas, mas para que se avance para uma categoria superior, uma taxa mínima de aceitação de 60% é uma condição necessária, bem como uma alta avaliação pelos passageiros e uma taxa de cancelamento inferior a 10%.

Taxas de aceitação e de cancelamento são coisas distintas, pois o cancelamento consiste na desistência da solicitação após a sua aceitação. Assim, a taxa de aceitação leva em conta o percentual de solicitações aceitas em relação ao total de corridas/tarefas oferecidas pela Uber.

Recusar solicitações, ou cancelar corridas após aceitá-las, não gera bloqueio ou banimento automático, mas: a) interfere nas taxas de aceitação/cancelamento como um todo; b) impede o acesso a categorias superiores do Uber Pro; c) promove a perda da prioridade por mais e melhores corridas; d) além de ensejar a desativação da conta a longo prazo.

Minha taxa de aceitação média girou em torno de 85% ao longo dos quatro meses, mas no começo, em dezembro de 2021, estava em torno de 23% e com isso fiquei estagnado na fase inicial do programa (Azul). Esse nível só me garante descontos na academia de ginástica SmartFit, direito ao cashback dos Postos Ipiranga, ou promoções em universidades e clínicas conveniadas. Ironicamente, esse plano de cargos e salários consiste em empurrar o motorista para consumir mais em empresas parceiras. A comunicação com a plataforma (suporte ao usuário) também melhora se o motorista trabalha mais e evolui para categorias superiores.

Se os motoristas aderem a esse comando (60% de taxa de aceitação e menos de 10% de cancelamentos), e aceitam a maioria das corridas, no entanto, diminuirão suas margens de ganho e podem ter prejuízos, como vivenciei em muitos episódios. Se o tempo e a distância de deslocamento do motorista em direção ao ponto de partida do passageiro for muito longo, provavelmente boa parte do combustível será gasto em quilometragem e tempo de espera no trânsito, sem que haja a remuneração da Uber em relação a este trajeto. Aceitar muitas corridas pode gerar transtornos causados por passageiros com notas ruins, geralmente mal avaliados por não seguirem as normas de conduta da Uber. Manter uma alta taxa de aceitação pode ocasionar, ainda, despesas adicionais, pois corridas cujo destino sejam localidades distantes, ainda que aparentemente vantajosas, podem implicar um retorno com o carro vazio, sem passageiros, ou o pagamento de pedágios não reembolsáveis, além de situações em que o motorista simplesmente não encontra o passageiro no local de embarque. Assim, os supostos benefícios oferecidos pelo Uber Pro com a manutenção de taxas elevadas por parte dos motoristas acabam sendo mal compensados pelas maiores despesas e dissabores que trarão.

Nestas situações, como experimentei, o motorista pode até pedir reembolso à plataforma, mas esse será negado pelo Suporte do Usuário, sob a afirmação de que “nossa política atual permite apenas o reembolso de pedágios pelos quais você passar quando estiver em viagem com um passageiro”. A informação contraria o disposto no Guia para Usar a Uber voltado para os usuários, mas o que eu posso fazer? O aprendizado como motorista da Uber exige que você descubra, no dia a dia, quais são as verdades e as mentiras que a empresa propaga em seus conteúdos digitais. Em uma circunstância, por exemplo, tive que me deslocar 14 km para um ponto de embarque, mas, ao chegar lá, fui obrigado a cancelar a corrida porque o local fora indicado incorretamente e não havia ninguém no destino.

Por esses motivos, essas taxas são muito difíceis de serem alcançadas, de forma que a exigência da plataforma acaba sendo constrangedora. É preciso ficar o tempo todo online, circulando em locais de alta demanda e aceitando quase todas as corridas. Por outro lado, se o motorista não entra nesse jogo, ele fica com poucas corridas, não consegue subir de nível e fica muito tempo parado esperando uma corrida, sem auferir renda. Motoristas experientes parecem ter encontrado este ponto ótimo, mas não há muitos nesta confortável condição.

É preciso certa experiência para identificar que ordens acatar ou negar, e arcar com as consequências dessa decisão. Somente uma sistemática rotina de trabalho pôde me ajudar nessa tarefa. Com a prática, começo a adquirir familiaridade com as pessoas e com os trajetos da cidade: locais onde costuma ter blitz policial (ações de fiscalização preventiva), onde há buracos ou recapeamento recente da pista, onde é mais frequente a ocorrência de acidentes ou há muito engarrafamento. Vou reconhecendo os rostos de vendedores, alunos de academia de ginástica, a jovem varredora com tranças rastafári que fica nas imediações do bairro do Caji, o trio de policiais negros que fica na entrada de Vilas do Atlântico, além de porteiros de condomínios.

Pela aparência de ruas abandonadas, esburacadas, sujas e mal iluminadas de alguns bairros e localidades, o motorista tem uma maior sensação de criminalidade e eu evito estar próximo destes locais nas primeiras semanas. Com o tempo, porém, isso já não tem tanta importância, pois me acostumo com o risco, até mesmo porque outros motoristas mais experientes me dizem que não há perigo e “nem todo lugar pobre é perigoso”, ou seja, a experiência cotidiana e a conversa com os pares vão normalizando minha sensação de insegurança.

Há um aprendizado da profissão que somente vem com a observação. Eles me ensinam, por exemplo, que há formas de se precaver contra assaltos: ao encontrar um passageiro, deve ser feito um reconhecimento visual dele, para ver se é do tipo “malandro”: – Se tiver uma boa aparência, pode deixar entrar – dizem.

Não apenas situações de risco para o motorista implicam maior cuidado. O trabalho de motoristas de app demanda muitas responsabilidades, afinal de contas, vidas estão sendo transportadas. Dirigir profissionalmente com estranhos no automóvel é algo que exige total atenção e prudência no trânsito, e quando os passageiros são crianças, esse cuidado redobra. Nesse sentido, é uma temeridade a Uber não submeter seus motoristas ao exame médico admissional, para aferir as condições de saúde dos trabalhadores para o delicado serviço de transporte.

Muitos motoristas adotam em sua rotina de trabalho a permanência em determinados pontos fixos aguardando uma solicitação. No entanto, ficar parado em um ponto pode não ser a melhor opção, pois aguardar muito tempo por uma boa corrida implica risco de assaltos, além de ser tedioso e contraproducente, caso o local não tenha muita demanda por viagens. Por outro lado, ficar em movimento o tempo todo, apesar de potencializar mais corridas e evitar infortúnios, gera mais gasto de combustível. Ou seja, o motorista experimentado deve pegar um passageiro que esteja próximo com a intenção de realizar uma viagem longa, mas ninguém sabe ao certo quão próximo esse usuário deve estar para que a corrida seja direcionada para você.

Mesmo o critério de proximidade é relativizado em muitas ocasiões, pois motoristas da melhor categoria (Diamante) ou que realizam o desembarque de passageiros em aeroportos, são priorizados em relação a motoristas mais próximos dos usuários. É preciso selecionar as melhores corridas, mas somente a práxis permite essa filtragem. Deve-se ficar parado em locais estratégicos, como zonas residenciais populosas e seguras nos horários de ida ao trabalho e zonas comerciais movimentadas nos horários de retorno para casa.

Adoto, como estratégia pessoal, a fixação em um posto de gasolina situado em um bairro de classe média de Lauro de Freitas, limítrofe com Salvador, por supostamente atender a estes critérios. O local não oferece nenhum luxo, mas pelo menos permite que eu interaja com outros motoristas de app, compre água e utilize o sanitário gratuitamente. A maioria dos motoristas com quem converso neste ponto adota apenas a plataforma Uber para trabalhar, pois a rotina de trabalho não permite que se trabalhe simultaneamente com mais de um aplicativo. Benício, por exemplo, costuma trabalhar também com o 99 Pop, no entanto, isto não se dá de forma simultânea. Trabalhar com mais de um aplicativo de forma intercalada parece ser a forma ótima de obter melhores corridas e coordenar os tempos máximo ao volante de ambas as plataformas (até 24 horas por dia de trabalho podem ser assim empreendidas). Ele esclarece que é muito difícil trabalhar com dois apps ao mesmo tempo, pois a Uber por si só já demanda muita atenção: a partir do momento em que se fica online é preciso estar atento às chamadas e, quando a corrida é aceita, é preciso ser diligente quanto à rota para chegar ao ponto de embarque. Quando o usuário entra no carro, além de prestar atenção ao mapa do GPS, deve-se ser cortês e ter um bom comportamento, de forma que não dá para manipular dois aplicativos ao mesmo tempo, pois um ficará em segundo plano.

A dificuldade na utilização desse mapa digital (GPS) também foi muito grande nas corridas iniciais e percebo que o know-how de uma direção profissional é muito diferente do conhecimento pessoal de trânsito que normalmente utilizo em deslocamentos para ir ao trabalho ou levar meus filhos à escola. Uma coisa é conduzir o automóvel para locais onde se planeja ir e onde já se tem o hábito de ir, mas outra coisa bem diferente é saber, em pouco segundos após iniciar a corrida, para qual destino seguir com o(a) passageiro(a). O resultado disso é que conduzi na contramão muitas vezes, recebi buzinadas deselegantes, avancei em sinais vermelhos e peguei retornos equivocados que foram objeto de correção verbal e instantânea por parte dos usuários, mais conhecedores da rota do que eu. Um motorista iniciante jamais poderia conduzir passageiros por meio de um aplicativo se não fosse a tecnologia da plataforma que fornece mapa e geolocalizaçao em tempo integral. Essa facilidade torna os motoristas dependentes tecnologicamente da plataforma.

Para ter mais segurança, seleciono no aplicativo a opção de somente aceitar pagamento por meio de cartão de crédito, algo que precisei alterar nos meses posteriores, pois a demanda na região para pagamentos em dinheiro é muito maior, ainda que também incremente o risco de assaltos. Durante toda a experiência, mantive um diálogo curto e objetivo com os passageiros. Após o convívio com mais de 350 passageiros durante o experimento etnográfico, não fiz amizade com nenhum deles. Entre todas as corridas, houve apenas dois elogios. Nem todos os usuários são obrigados avaliar a qualidade dos meus serviços: houve 218 avaliações com 5 estrelas e apenas uma com 1 estrela (nota mínima). Na pesquisa/ofício que durou quatro meses, apenas quatro usuários solicitaram corridas não mediadas pelo aplicativo, o que sugere que a confiança dos usuários está na relação com a empresa Uber e não com seus motoristas, o que impede a formação, na prática, de qualquer clientela fixa estável.

FORMAS DE SUJEIÇÃO DOS motoristas de aplicativo

A atividade essencial dos motoristas de aplicativo pode ser enquadrada como um modelo de trabalho flexível atípico e subordinado que contempla trabalhadores de todos os gêneros, faixas etárias e cores de pele.

Durante a etnografia, eu pude dialogar com mulheres motoristas de aplicativo, uma força de trabalho que precisa conviver com maiores limitações por causa dos riscos de assalto, assédio e violência, além de questões fisiológicas que se apresentam para esse gênero que trabalha nas ruas (Santos e Matos, 2021).

Quanto ao aspecto racial, a proporção de negros entre os motoristas, em maio de 2020, era de 58,8%, segundo dados da PNAD covid-19, auferindo renda média de R$ 1.954,00 (Manzano e Krein, 2019), trabalhando mais horas do que a média do total de ocupados, mas com rendimentos inferiores[3].

O trabalho de campo permitiu tecer considerações sobre como se dá na prática o trabalho desse grupo social e como isso impacta o conjunto dos trabalhadores dessa categoria profissional, a começar pelos parâmetros jurídicos que permitem o enquadramento desta relação social como relação de emprego.

No ordenamento jurídico brasileiro, para a caracterização de um contrato de trabalho a subordinação jurídica é um elemento determinante[4], que pode ser subdividido em aspectos como hierarquia, supervisão e poder disciplinar patronal.

Subordinação

A participação observante demonstrou que o trabalho de motoristas de aplicativo é um trabalho realizado de acordo com o poder de mando, controle e disciplina da plataforma, o que envolve, necessariamente, a integração do trabalhador na organização e regulamentação da empresa. Neste sentido, pode-se afirmar que é uma relação social marcada por forte subordinação entre a Uber e seus motoristas.

Esse comando hierárquico é inferido de forma contundente, individualizada, e sistemática, por exemplo, pela imposição de selfies para conferência da identidade dos trabalhadores ou confirmação de seus veículos, pela obrigatoriedade do uso de equipamentos de proteção individual (EPI), pela proibição quanto a determinados temas em conversas com passageiros, ou pela exigência de protocolos para embarque e desembarque de usuários. Como o trabalho de campo constatou, essas ordens concretas, transmitidas através do app, eram renovadas como pressuposto para iniciar o trabalho. Ademais, não se podia embarcar qualquer passageiro, mas apenas aqueles indicados pelas instruções do app. A rota deve ser obedecida fielmente, sob pena de não se obter ascensão profissional. Ademais, a partir do aceite da corrida, uma série de ordens são emanadas ao motorista, relacionadas ao tempo, ao espaço e ao comportamento esperado, cujo descumprimento implica o pagamento de multas ou mesmo a rescisão contratual.

Quanto ao segundo aspecto subordinativo, o controle e a supervisão da Uber em relação aos seus motoristas se dá em todas as ações executadas no carro, durante ou após as viagens e mesmo fora deste espaço – na proibição de uma comunicação posterior com usuários, por exemplo. As transações financeiras, jornada de trabalho, momentos de intervalo e também o histórico de viagens, com nome, pontuação, forma de pagamento e categoria dos passageiros, tudo é registrado. Há monitoramento do estilo de direção, índices de frenagem e aceleração do veículo e até mesmo o acompanhamento de multas de trânsito. A supervisão exercida pela plataforma é o elemento do poder diretivo patronal que é mais perceptível pelos motoristas e é, também, aquele exercido de forma mais abusiva, porque em muitos aspectos invade a própria esfera de intimidade dos trabalhadores.

Hierarquia e supervisão, por si sós, não permitem a configuração do vínculo de emprego. Sem o elemento disciplinar, o poder empregatício e a subordinação não se completam.

A punição, ainda que potencial, já carrega consigo o medo do trabalhador em ser penalizado, e o temor é o mais forte estímulo à obediência e subordinação. No caso da Uber, no entanto, o desligamento somente se aplica para ocorrências graves, só devendo ser utilizado em último caso, diante da vantagem da plataforma de manter empregados inteiramente à disposição, mas sem a necessidade de efetuar qualquer contraprestação salarial. A estrutura de um salário que somente é pago de acordo com a produtividade do motorista autoriza que as demissões sejam suavizadas pela empresa, ainda que tudo isso possa ser modificado em um cenário futuro, uma vez que os poderes contratuais da Uber autorizam quaisquer mudanças na forma de tratamento de seus empregados, a qualquer tempo, de forma unilateral, e sem prévio aviso.

Uma drástica desativação só deve ser aplicada, portanto, em face de motoristas inveterados que põem em risco a dinâmica da plataforma como um todo. Por isso, uma simples ameaça ou advertência parece ser tão eficaz quanto uma sanção em concreto. E também por isso a quantidade de advertências, suspensões e penalidades pecuniárias aplicadas se sobrepõe, em muito, à taxa de desligamentos.

Riscos do negócio

A pesquisa empírica sugere, também, que a Uber se aproveita da ignorância educacional e financeira dos motoristas. Com o término do trabalho de campo, ao computar todos os gastos e ganhos obtidos, me dei conta de que o empreendimento de pesquisa havia sido quase deficitário.

Somente após alguns meses, os motoristas percebem o total de gastos efetivos que realizam, e a solução para estas perdas financeiras consiste em trabalhar mais. Há custos de uso do veículo, mas também custos de sua propriedade. Vinculados ao tempo, tem-se: depreciação do automóvel, juros do financiamento do veículo, taxas de licença e registro, e seguro automotivo. Vinculados à quilometragem, tem-se: gastos com combustível, com óleo, com pneus, com manutenção, com depreciação referente ao desgaste da máquina, potenciais gastos com quebras ou acidentes envolvendo o automóvel (seguro, medicamentos em caso de danos à saúde e reparo do veículo) e custos de colisão (Prassas e Roess, 2013). Segue quadro esquemático:

Tabela 1
Quadro esquemático comparativo horas x remuneração.
Total de horas trabalhadasValor obtidoJornada mensal regularSalário mínimo nacional
350 horasR$ 1.854,74220 horasR$ 1.212,00
Fonte: própria.

O trabalho de campo evidencia que tais gastos são desconhecidos ou deliberadamente ignorados. Em contrapartida, a regra básica do motorista é: quanto mais tempo em viagens, maior será o seu faturamento. A plataforma, por sua vez, omite informações sobre ganhos mais realistas e não dá uma ênfase adequada às despesas diferidas, sejam elas variáveis ou extraordinárias.

O valor que a pesquisa de campo logrou obter (R$ 1.854,74[5]) após a realização de 350 horas online em exatas 350 corridas, permite entender, por exemplo, porque alguns motoristas com quem conversei afirmaram que abandonariam a plataforma para trabalhar em um emprego que pagasse um salário superior a R$ 2.000,00.

Ainda assim, essa remuneração pode parecer vantajosa para muitos. Levando-se em conta o atual salário-mínimo nacional do Brasil de R$ 1.212,00, ganha-se mais do que a média dos trabalhadores, em uma atividade onde há uma relativa flexibilidade de horário, realizando-se horas extraordinárias à vontade, e que permite a compra de um automóvel a longo prazo.

Motoristas de aplicativo vêm percebendo uma remuneração muito baixa, próxima ao limite do prejuízo no exercício desta atividade por conta dos riscos do negócio. A Uber reconhece, inclusive, que esta é uma possibilidade real em sua Nota Informativa sobre Imposto de Renda Pessoa Física para Motoristas Parceiros (Ernst Young, 2021).

Porque motoristas de aplicativo não desistem logo? Em verdade, há tantos fatores de estímulo positivos envolvidos que a pergunta correta deveria ser ao contrário: porque trabalhadores ainda abandonam a plataforma Uber?

Um dos fatores que permite a continuidade do labor é que muitos motoristas não tratam a direção como um trabalho, mas como uma forma de compensar alguns dos custos de propriedade do veículo (Zoepf et al., 2018). Algumas entrevistas realizadas nesta pesquisa demonstram que podem ser ambas as alternativas, ou seja, trabalho e/ou compensação dos custos do veículo são fatores aliados para esse tipo de atividade profissional. Outra possível explicação para aqueles que dirigem enquanto perdem dinheiro é que eles deixam de fazer uma contabilidade completa dos custos de direção.

Embora os motoristas considerem os custos da atividade, diante do atual cenário de desemprego, é preferível que não levem isso em conta, pois implicaria retirar toda a esperança desses trabalhadores. A invisibilidade dos gastos indiretos pode decorrer, ainda, do desconto hiperbólico enquanto conceito da economia comportamental. Despesas anteriormente realizadas (aquisição do veículo, custeio do seguro) ou posteriores e diferidas no tempo (manutenção, avarias, depreciação e multas) dificilmente são captadas por quem não tem o hábito de trabalhar com este raciocínio intertemporal. Em outras palavras, vantagens imediatas costumam ter um peso maior se comparadas a benefícios futuros, ao passo que dívidas futuras tendem a ser relativizadas, porque parecem pesar menos no bolso. Ganhos e despesas que se apresentam com parâmetros temporais distintos exigem um maior planejamento e educação financeira, que nem todos os trabalhadores de aplicativo possuem.

Há também uma crença entre os motoristas de que há custos que fazem parte da sua vida cotidiana pessoal e que, portanto, não podem ser imputados exclusivamente ao fato de trabalharem para a Uber. São gastos com a aquisição de aparelho celular, planos de dados móveis, pagamento de impostos e seguro do veículo, multas de trânsito e a própria depreciação do automóvel, de forma que para eles seria injusto tratar tais despesas exclusivamente como decorrentes da condução de automóveis para a plataforma.

Outra hipótese para que sigam trabalhando no virtual prejuízo é que têm medo de reconhecer a própria indignidade, pois tomar consciência das condições de opressão e humilhação pode ser doloroso, quando não paralisante. Melhor propalar o discurso de um motorista autônomo “que se vira” do que ser visto como um trabalhador sem direitos que reclama de tudo. Querem ter dignidade, mas temem ser trabalhadores com carteira assinada, pois podem estar diante de um horizonte impossível.

Ideologia econdições de trabalho

A concepção de ser produtivo e exercer um trabalho remunerado é, por si só, geradora de reconhecimento social. A recusa em admitir que está tendo prejuízos ao rodar Uber pode ter como base, portanto, a premissa de que o trabalho dignifica o homem, e está lastreada no fato de que o labor é algo altamente valorizado pelo trabalhador brasileiro, ainda que não gere muito lucro.

O trabalho de campo permitiu também confirmar o fascínio que a tecnologia e os automóveis exercem sobre os motoristas de aplicativo. Tão familiarizados com dispositivos digitais, há um certo fetiche sobre as potencialidades dessa tecnologia e maquinaria que acaba por incentivar e corroborar a dominação da Uber sobre os trabalhadores de plataformas. As máquinas e aplicativos os atraem imensamente: o algoritmo se apresenta como um mistério prestes a ser desvendado. Diante da força tecnológica desse aplicativo/algoritmo, os motoristas se sentem impotentes para lutar contra a plataforma e parecem se conformar com o amálgama em que se transformaram: trabalhador/automóvel/aplicativo.

Se, para os motoristas, a Uber é apenas um aplicativo, parece ser uma estratégia deliberada da empresa manter-se invisível. Essa aparência é reforçada pela mediação tecnológica e fantasmagórica de aplicativos como a Uber.

Através da etnografia, verifica-se que o grupo dos motoristas de aplicativo, ainda que não se possa afirmar que seja uma maioria, está sujeito a influências de um pensamento neoliberal que prega o individualismo, a meritocracia e a competitividade, em um contexto evangélico e homofóbico, e com críticas contundentes a governos petistas, tudo isso misturado a uma desconfiança e desalento em relação às desonestas plataformas que os empregam. Há, assim, uma valorização do trabalho, da estrutura familiar e do respeito religioso, que se mistura com aspectos econômicos e políticos mais amplos. A lógica neoliberal é tão forte que a responsabilização individual do trabalhador se dá não apenas no aspecto financeiro, mas também em casos de criminalidade ou de acidentes de trabalho/trânsito, posicionando-se pela responsabilização e imposição de culpa ao motorista que foi a própria vítima.

Os trabalhadores do capitalismo de plataforma também têm suas teorias populares. Se o motorista da Uber se identifica muito mais como empreendedor do que como trabalhador, o conceito de classe também fica prejudicado. Com o desaparecimento da possibilidade de identificação com o trabalho, desaparece o sentimento de pertencer a uma classe (Gorz, 1982). A pesquisa etnográfica aqui empreendida constatou esse isolamento, o não reconhecimento como empregado, e essa competividade invisível dentro do grupo social estudado, algo imposto pelas baixíssimas remunerações dessa categoria dos “sem tempo” (Gomez, 2019), o que inviabiliza qualquer nível de organização profissional contestadora de caráter mais estrutural. A forma como o controle patronal é exercido através dos aplicativos bloqueou uma maior força política para a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 2011).

O trabalho de campo coletou, ainda, dados que permitem conhecer outras condições de trabalho de motoristas da Uber. O que se evidenciou foi um trabalho com pouca interação presencial entre os motoristas, privilegiando a comunicação por meio de redes sociais, mas mesmo essa forma de interação parece estar perdendo fôlego, e o isolamento foi um fenômeno comumente encontrado. A extrema individualização da atividade do motorista de aplicativo é algo que somente favorece a plataforma.

É um trabalho isolado, cujo breve contato, via de regra, restringe-se aos passageiros. A exceção para encontros em grupo ocorre em pontos de espera em poucos lugares específicos das cidades, em locais próximos a aeroportos, rodoviárias ou onde há grande fluxo de passageiros. Ainda assim, o diálogo com os pares ocorre até o momento em que a próxima solicitação é aceita, de forma que o tempo dos encontros são sempre imprevisíveis e precários.

Saúde física e mental do trabalhador digital

O trabalho realizado em sedestação (posição sentada) é prejudicial à saúde, o que somente se agrava pela vibração emitida pela condução do automóvel nas congestionadas vias das metrópoles, em ruas esburacadas que só potencializam o problema.

As longas horas de jornada, sem consumo satisfatório de água (causando desidratação), foram relatadas pelo grupo social pesquisado, o que permite a relativização do argumento de que os trabalhadores digitais não quantificam sua jornada mediada por aplicativos e smartphones, e que há porosidade do tempo de trabalho. É bem verdade que, quando está no seu domicílio aguardando corridas, o motorista está à disposição da plataforma, mas essa se mostrou uma prática incomum em motoristas de app e, além disso, decerto que há limites claros entre o que seja horário de trabalho profissional ou tempo destinado às atividades pessoais. A jornada de trabalho começa mesmo quando o motorista ingressa no seu automóvel e faz login no aplicativo.

A rotina de trabalho promove um cansaço fisiológico pela jornada exaustiva cumulada com a falta de intervalos de repouso, outro fator que agrava problemas ergonômicos e de outras dimensões. A falta de sanitários ou pontos de apoio que deveriam ser fornecidos pela plataforma prejudica a realização de necessidades fisiológicas e incrementa a chance de doenças do sistema urinário. Do ponto de vista psicológico, o temor de ser abordado pela polícia para apresentar documentos e o medo de imposição de multas de trânsito é uma constante que pode causar stress, prejuízos financeiros ou até interromper a atividade do motorista. Tudo isso aliado ao fato de que passageiros e outros personagens do cotidiano podem ser grosseiros, inadimplentes ou mesmo criminosos. Além do risco de acidentes de trânsito/trabalho e do assédio moral/sexual, o deslocamento para localidades dominadas pelo tráfico de drogas representa perigo de vida real ocasionado pela falta de segurança pública. Há igualmente riscos físicos e ambientais, como radiação solar e vibrações, e riscos biológicos no ofício do motorista de aplicativo, pois há muita proximidade com passageiros potencialmente contaminados em um ambiente fechado e em contato permanente com fluidos que são deixados no banco dos passageiros, pois são comuns viagens com passageiros adoecidos em direção a clínicas, hospitais ou laboratórios.

Esse mesmo tipo de conclusão tem sido encontrada na América Latina. No Equador, por exemplo, Kruskaya Cordero e Carolina Daza (2020) chamam a atenção para as consequências sobre a saúde das trabalhadoras digitais: a inexistência de sanitários e pontos de apoio nesta modalidade de trabalho impede a realização de necessidades fisiológicas por motoristas do gênero feminino, o que, por sua vez, pode causar infecções urinárias e cistites, isto sem falar no desconforto e constrangimento causado nos períodos menstruais.

No Peru, pesquisa de campo feita por Alejandra Martinez (2020, p. 74), utilizando-se de metodologia de observação participante de curta duração através de entrega por meio de uma bicicleta, além de entrevistas, observou as mesmas condições: abordou um grupo de entregadores jovens que busca fugir do desemprego, grande parte dele migrante da Venezuela, reconhecendo-se, porém, como empregados e não como colaboradores, relatando muitos conflitos com empresas e clientes, mas sem direito ao exercício do contraditório. Os entregadores noticiam problemas quanto à saúde no trabalho, xenofobia e insegurança quanto à sua cidadania (MARTINEZ, 2020, p. 76).

Solidariedade e resistência

Um outro aspecto que foi encontrado pela etnografia diz respeito à gentileza e solidariedade dos pequenos gestos existentes entre profissionais da pista. Há um código secreto entre profissionais de trânsito que praticamente os obriga a serem gentis. Ceder passagem, dar jogo de luz para alertar sobre perigos, buzinar em agradecimento, passar informações sobre vias fechadas, são atos de fraternidade cotidiana. Simone Weil realizou pesquisa etnográfica de participação observante com operários na fábrica da Renault, na década de 1930, em Paris, constatando que os atos de gentileza são obstáculos difíceis de serem vencidos por quem está exausto, mas conferem uma dimensão de esperança a quem os recebe:

“O menor ato de benevolência, desde um simples sorriso até qualquer serviço prestado, exige que se vença o cansaço, a obsessão do salário, e tudo o que esmaga e leva a viver fechado dentro de si mesmo” (Weil, 1996: 85).

Por outro lado, quem não é gentil com seus colegas de trânsito, acabará sendo punido com xingamentos ou isolamento pelo grupo. Essa gentileza impositiva, de certa forma, não se estende para motoristas que não exercem essa atividade profissionalmente.

No aspecto macro, no entanto, observa-se uma competição que não é originária do comportamento individual de cada motorista, mas sim engendrada de forma estrutural pela plataforma, ou seja, há uma microsolidariedade dentro de uma macroconcorrência.

A Uber precisa manter um alto padrão de qualidade nos serviços de transportes que oferece, padrão esse que precisa atender a expectativas globais. Por isso, há um percentual de motoristas que será descartado depois de um período de testes, como uma espécie de estágio probatório. Na outra ponta, haverá um contingente de especialistas, em um percentual reduzido, que faz muito dinheiro e incentiva os demais, pois são os melhores e mais dedicados estrategistas. No meio de ambos, haverá um grande grupo constituído por aqueles que realmente fazem a plataforma funcionar cotidianamente. Esse motorista médio será sempre estimulado, sancionado e premiado pela plataforma para tentar manter esse padrão o mais alto possível, subordinando-o do começo ao fim de sua jornada. O sistema se completa numa espécie de darwinismo social, onde os motoristas inaptos deixarão a plataforma e os melhores, além de perdurar, irão influenciar os demais.

Investiguei, também, a existência de movimentos sociais organizados para promover a defesa dos direitos humanos desses trabalhadores precarizados. Nesse contexto, o grupo social estudado tem pouca familiaridade com instituições trabalhistas (tribunais, sindicatos, órgãos públicos) e desacredita das mesmas. O padrão de aplicação das normas trabalhistas em favor dessa categoria também não é favorável à conclusão de que haverá chances de vitória em eventual litígio contra a Uber, pelo histórico de notícias pessimistas que são divulgadas. Tudo isso faz o motorista pensar que, no seu caso concreto, pelo fato de não trabalhar em um ambiente confinado com uma jornada definida e com um patrão de “carne e osso” dando ordens (arquétipo do operário), não terá sucesso na empreitada judicial.

O trabalho em plataformas de transporte não possui apenas desvantagens, por óbvio. Para os motoristas, há aspectos facilitadores que acabam por permitir a reprodução social desse comportamento de classe. A Uber facilita e oferece vantagens a motoristas de aplicativo na medida em que os remunera diariamente e oferece sua base de milhões de passageiros cadastrados no Brasil para a oferta do serviço de transporte: dinheiro rápido, horas extras quase ilimitadas, acesso fácil ao mercado de trabalho em uma atividade que detém uma imagem social positiva. As empresas do capitalismo de vigilância fazem uso desse quid pro quo, pois a relutância do usuário (motorista) pode ser superada com ofertas que vão desde incentivos financeiros significativos até um monitoramento comportamental que apresente a ideia/trabalho vendida pela plataforma como algo divertido (Zuboff, 2020).

Na experiência etnográfica, foram encontradas algumas formas de resistência, entre elas a negociação direta com passageiros para corridas “por fora”, a manipulação de funcionalidades do app, o cancelamento de corridas indesejadas e a formulação de perguntas diretamente aos passageiros sobre o destino. Isto sem falar nas discussões acaloradas sobre o comportamento da plataforma nos encontros presenciais, no grupo de WhatsApp e nos protestos coletivos incipientes que testemunhei. Os motoristas têm consciência de que são forçados pela Uber a adotar essas técnicas de defesa diante da total falta de autonomia e que isso viola, teoricamente, as regras da plataforma, mas argumentam que, se houvesse uma mudança na política interna da empresa, não seria necessário agir assim. Trata-se, portanto, de uma tentativa de tornar simétrica uma relação extremamente desigual entre o motorista e plataforma.

No entanto, os trabalhadores encontram-se isolados, impossibilitados de reagir de forma coletiva ampliada, algo que só piora diante da falta de legitimidade do sindicato da categoria na Bahia e da desconfiança que esse grupo tem em relação a associações deste tipo, hoje com uma atuação basicamente assistencialista. Este grupo ainda não se deu conta de que, se o vínculo entre trabalhadores uberizados é totalmente esporádico e sem qualquer sentimento de gratidão ou fidelidade do empregado para com a plataforma, nada impede uma paralisação coletiva ou desligamentos massivos da plataforma a qualquer momento (CANT, 2020)[6]. A empresa não visualizou, ainda, os riscos de ter essa mão de obra supostamente autônoma como um fator que desencadeie greves generalizadas que poderão causar sérios prejuízos financeiros e desconfiança permanente por parte dos seus usuários.

Trabalho-consumo-servidão

A base de dados dos motoristas cadastrados parece ter um potencial muito grande para comercializar produtos e serviços e também para fidelizar consumidores, por parte de outras empresas associadas. A Uber não apenas lucra com a mais-valia dos trabalhadores e com a exploração de sua força de trabalho, mas também com sua conversão em consumidores através da oferta de produtos de empresas parceiras ou o uso mercantilizado de suas outras plataformas: mesclar a figura do consumidor com a do trabalhador é extremamente benéfico para empresas capitalistas.

Os métodos de pesquisa empreendidos não encontraram dados que permitam afirmar um crescimento dos índices de fidelidade ou lealdade do trabalhador que remontam à servidão feudal (Supiot, 2020, MPT, 2017). Em verdade, essa fidelização parece muito mais típica das características do assalariamento e do empobrecimento da população brasileira, vivenciado nos últimos anos. O resultado desse “jogo” já está praticamente definido quando um carro é comprado através de um empréstimo bancário por um trabalhador desempregado que se cadastra em uma plataforma de transporte. Trabalhar para outro empregador, no entanto, está em um horizonte possível para essa categoria, o que irá acontecer quando o desemprego arrefecer e a economia oferecer boas perspectivas de ganhos. A fidelidade que os prende à plataforma decorre muito mais da necessidade de quitar as parcelas do financiamento bancário e do virtual monopólio que a Uber exerce juntamente com a 99 Pop.

Finalmente, o afastamento e precariedade dos serviços públicos de transporte coletivo oferecidos pelo Estado tem intensa relação com a ascensão de plataformas digitais como a Uber, ao menos no Brasil e na região metropolitana de Salvador. Esmagados entre um transporte coletivo que não oferece rotas suficientes e adequadas de deslocamento, principalmente durante a pandemia, e os serviços de taxi, em geral mais caros, há um grande contingente de passageiros que são usuários das plataformas de transporte por absoluta necessidade, e não por luxo (Chaves, 2020, Amobitec, 2021).

CONCLUSÃO

O fenômeno da uberização está amplamente conectado com políticas neoliberais que pugnam a redução do tamanho do Estado e seu afastamento das relações sociais, o que pôde ser visualizado na virtual desregulação do setor de transporte de passageiros por aplicativos e na autorregulação empreendida pela Uber com caráter marcadamente despótico.

A execução desse trabalho de campo sugere, desde já, a premente necessidade da utilização de perícias etnográficas pela Justiça do Trabalho em ações que tenham temas relacionados a uma subordinação jurídica que se apresenta como cinzenta ou nebulosa. Não apenas o chão de fábrica é palco de lutas, mas também os tribunais trabalhistas e espaços acadêmicos, diante do poder de convencimento ideológico do neoliberalismo.

Com a ideia de escapar desta zona de conforto jurídico, este artigo discutiu a existência da subordinação e das condições de trabalho de motoristas de aplicativo, concluindo que o trabalho atualmente realizado por essa categoria pode ser enquadrado como uma relação de emprego, tendo em vista se tratar de relação de assalariamento, ou seja, de venda de força de trabalho. Mais do que isso, o trabalho uberizado tem a hierarquia, a supervisão e o poder disciplinar enquanto destacados elementos determinantes. A intermediação das ordens através da inovação tecnológica dos aplicativos não diminui a intensidade do poder diretivo patronal e não se deve legitimar o mito da neutralidade tecnológica. A inovação digital, ao contrário, apenas reforça o poder de mando patronal ao permitir uma vigilância constante, simultânea e absoluta de milhões de trabalhadores em uma relação jurídica cuja modalidade de remuneração revive o longínquo salário por peça.

Todo o procedimento de ingresso, manuseio do aplicativo e realização de corridas é descrito em termos de uso e exigido em detalhes pela plataforma. A interação com o algoritmo pela pesquisa de campo constatou a emissão de ordens diárias, uma total supervisão e um poder disciplinar que se mostra discricionário, quando punições drásticas não são oportunas ou convenientes.

A capacidade da empresa de fornecer corridas a milhões de usuários com relativa praticidade, e a manutenção estável de toda uma rede de motoristas intitulados autônomos, sugeriam relações jurídicas complexas, impeditivas de uma interpretação mais técnica e consentânea com as premissas tradicionais do direito do trabalho. Mas, quando se analisou o fenômeno sob o prisma da participação observante, os contornos de uma típica subordinação jurídica ficaram evidentes. Esta pesquisa serviu, assim, para demonstrar a subserviência dos motoristas de aplicativo ao atenderem aos aspectos jurídico-contratuais exigidos pela Uber, concentrando-se nas relações dominantes-subordinadas que são contempladas pela legislação brasileira, analisando a dinâmica de trabalho existente entre a Uber e seus motoristas, bem como a forma através da qual ela afeta esses trabalhadores no Brasil, em seus aspectos sanitários, políticos, sociais, culturais e econômicos.

A pesquisa etnográfica, neste caso concreto, pôde projetar, assim, aspectos da estrutura social na qual estão inseridos esses profissionais e suas relações com as empresas do capitalismo de plataforma.

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Notas

* Ilan Fonseca de Souza é graduado em direito, com mestrado em direito pela Universidade Católica de Brasília, e doutorando em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Brasil.
[1] “Na pista” é uma expressão nativa, de uso comum no cotidiano dos motoristas de aplicativo, referindo-se ao momento em que estão em plena atividade laboral, já no interior do veículo, transitando nas ruas da cidade, seja aguardando chamadas ou conduzindo passageiros.
[2] Assim como motoristas entrevistados, os nomes dos passageiros também são fictícios.
[3] Na qualidade de homem branco, este pesquisador enfrentou menos dificuldades diante do machismo e do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira.
[4] Dentre outros, como a pessoalidade, a onerosidade, e a não-eventualidade da prestação de serviços.
[5] Este valor foi obtido pela diferença entre o faturamento bruto e os custos com combustível. Não foram deduzidos outros gastos indiretos.
[6] Callum Cant (2020) desenvolveu pesquisa de campo na Deliveroo, em Brighton, Inglaterra, trabalhando em um aplicativo de entrega. O autor identificou esse perfil que conduz motoristas de app para o espectro político à direita.

Información adicional

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