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“Alguém tem que fazer” Sentidos e percepções do trabalho entre sepultadores no centro-oeste brasileiro

“Alguien tiene que hacerlo”: sentidos y percepciones del trabajo entre sepultureros en el centro-oeste de Brasil

“Somebody has to do it”: meanings and perceptions of work between gravediggers in central-west Brazil

Priscila Lini
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Museu Nacional / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil

“Alguém tem que fazer” Sentidos e percepções do trabalho entre sepultadores no centro-oeste brasileiro

Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 7, núm. 16, 2023

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)

Los autores conservan sus derechos

Recepción: 24 Octubre 2022

Aprobación: 23 Enero 2023

Resumo: O presente artigo propõe o estudo das percepções e estratégias de trabalho e sociabilidade de profissionais sepultadores, dentro e fora do seu ofício. Considerando que é uma profissão de alta exigência física e emocional, imersa em um tema cercado de tabus e reservas – o óbito – esses trabalhadores executam formas de adaptação e atribuição de múltiplos sentidos à sua rotina laboral. A metodologia empregada consistiu em análise teórica sobre o tema, mediante consulta em fontes bibliográficas, combinada à coleta de dados em campo realizado junto a profissionais sepultadores de cemitérios públicos de Campo Grande, uma cidade de grande porte localizada na região Centro-Oeste brasileira. Os resultados apontam para uma adaptação às condições de vida, tomadas como temporárias até a obtenção de um posto de trabalho menos desgastante, que procede na construção de trajetórias de justificação e resistência às múltiplas demandas da profissão de sepultador. Suscita também as diferenças geracionais na significação do ofício, dos processos de adoecimento físico e mental, e as diferentes estratégias de posicionamento social dos trabalhadores, entre si e em relação a seu entorno.

Palavras-chave: Trabalho, sepultadores, reconhecimento, sentido.

Resumen: Este artículo propone el estudio de las percepciones y estrategias de trabajo y sociabilidad de los profesionales de los cementerios, dentro y fuera de su profesión. Considerando que es una profesión de alta exigencia física y emocional, inmersa en un tema rodeado de tabúes y reservas -la muerte-, estos trabajadores realizan formas de adaptación y atribución de múltiples significados a su rutina de trabajo. La metodología utilizada consistió en el análisis teórico sobre el tema, a través de la consulta de fuentes bibliográficas, combinado con la recolección de datos de campo realizada con profesionales sepultureros de cementerios públicos en Campo Grande, una gran ciudad ubicada en la región Centro-Oeste de Brasil. Los resultados apuntan para una adaptación a las condiciones de vida, tomadas como temporales hasta la obtención de un trabajo menos estresante, que procede en la construcción de trayectorias de justificación y resistencia a las múltiples exigencias de la profesión funeraria. También plantea las diferencias generacionales en el significado del trabajo, los procesos de enfermedad física y mental, y las distintas estrategias de posicionamiento social de los trabajadores, entre sí y en relación con su entorno.

Palabras clave: trabajo, sepultureros, reconocimiento, sentido.

Abstract: This article proposes the study of the perceptions of work and sociability strategies of gravediggers, inside and outside their profession. Considering that it is a profession of high physical and emotional demand, immersed in a subject surrounded by taboos and reservations - death - these workers perform forms of adaptation and attribution of multiple meanings to their work routine. The methodology consisted of theoretical analysis on the theme, by consulting bibliographic sources, combined with field data collection carried out with burial professionals in the public cemeteries of a large city, located in the Brazilian Middle West. The results point to an adaptation to living conditions, taken as temporary until obtaining a less stressful job, which proceeds in the construction of trajectories of justification and resistance to the multiple demands of the burial profession. It also raises generational differences in the meaning of the job, the processes of physical and mental illness, and the different strategies of social positioning of workers, among themselves and in relation to their surroundings.

Keywords: Work, gravediggers, recognition, meaning.

Introdução

Ao analisarmos o mundo do trabalho, seja pela perspectiva macro da sociologia ou pela visão mais fragmentária e plural dos indivíduos, percebemos que é um tema que suscita grandes debates (Becker, 1966; Besse et al, 2013) especialmente quando dedicado ao estudo dos trabalhadores em suas trajetórias pessoais ou coletivas (Leite Lopes e Heredia, 2019; Hugues, 1971). As categorias empregadas nem sempre têm respostas satisfatórias, e, seguidamente, as armadilhas científicas de uma visão totalizante de trabalhadores, muitas vezes sedimentadas em categorias como classe operária ou massa trabalhadora, não contemplam o mosaico de vivências que se constroem nas múltiplas formas de obtenção de recursos materiais para a reprodução da vida (BECKER, 1960).

Ao analisarmos o mundo do trabalho, seja pela perspectiva macro da sociologia ou pela visão mais fragmentária e plural dos indivíduos, percebemos que é um tema que suscita grandes debates (Becker, 1966; Besse et al, 2013) especialmente quando dedicado ao estudo dos trabalhadores em suas trajetórias pessoais ou coletivas (Leite Lopes e Heredia, 2019; Hugues, 1971). As categorias empregadas nem sempre têm respostas satisfatórias, e, seguidamente, as armadilhas científicas de uma visão totalizante de trabalhadores, muitas vezes sedimentadas em categorias como classe operária ou massa trabalhadora, não contemplam o mosaico de vivências que se constroem nas múltiplas formas de obtenção de recursos materiais para a reprodução da vida (BECKER, 1960).

A discussão aqui desenvolvida buscou uma análise delimitada, focada nas percepções de trabalhadores de um setor bastante demarcado: os sepultadores de cemitérios públicos. Propõe-se a exposição do panorama geral da profissão, os desafios físicos e mentais inerentes à função de sepultador, as implicações sociais, bem como traçar um perfil dos interlocutores consultados durante a realização do campo: idade, compleição física e corporalidade, interesses em comum e aspirações pessoais e profissionais.

A partir de tais informações e relatos, em conjunto com a análise bibliográfica, compreender a autopercepção construída por estes trabalhadores, em relação aos múltiplos desafios enfrentados neste ofício cercado de estigmas, com alta exigência física e emocional, que afeta diretamente os aspectos biopsicossociais dos sujeitos. A formação do sentido de honra e dignidade, as qualificadoras de um trabalho honesto, necessário à sociedade como um todo, mas que não se configura como uma profissão dotada de prestígio e reconhecimento social, constituem o escopo das reflexões aqui propostas.

Ademais, em um comparativo etário entre os interlocutores, verifica-se uma mudança de comportamento geracional, ligada à estabilidade e previsibilidade do serviço, que outrora possuía um peso maior que aconsideração e a aprovação social, mas valorizadas pelas gerações mais jovens. Também, os agravos de saúde, a opinião de familiares e conhecidos, as estratégias de sociabilidade modificam-se com o passar do tempo, assim como o próprio ofício que, de “coveiro” passa a ser denominado “sepultador”.

As entrevistas foram realizadas ao longo de trabalhos de campo e pesquisas realizadas pela autora na área de bioantropologia e antropologia forense, nos meses de março e abril de 2022, em Campo Grande,cidade de grande porte da região Centro-Oeste do Brasil, ocasiões em que teve contato com sepultadores de cemitérios públicos, em situações de exumações e análise de materiais bioantropológicos para fins acadêmico-científicos. Os nomes foram intencionalmente omitidos, a pedido dos próprios, constando somente iniciais – não necessariamente correspondentes aos nomes reais –, idade e breve descrição do tipo físico, unicamente a título de caracterização da corporalidade e suas implicações ao exercício da função.

1. Ser sepultador

O ofício de sepultador está vinculado às atividades de natureza fúnebre, assim como os tanatopraxistas, médicos e odontolegistas, antropólogos forenses e auxiliares de necropsia. Em comum, todos lidam cotidianamente com o tema morte, um assunto sensível social e culturalmente para a população em geral. Com a chamada ‘mercantilização da morte’, o que antes era um assunto privado e reservado às práticas religiosas e de âmbito familiar, atualmente – seja por razões de saúde pública e higiene, ou mesmo por questões práticas – foi terceirizada a outros sujeitos que não os parentes (Damatta, 1997: 138), realizando-se seus ritos em locais específicos como funerárias, crematórios e cemitérios, e não mais no recôndito do lar.

O setor mortuário possui agentes tanto em nível privado – funerárias, cemitérios e crematórios particulares – como em nível público, vinculados aos cemitérios que prestam o atendimento também às camadas mais carentes, realizando os sepultamentos denominados de ‘interesse social’. Assim, essa atividade é operacionalizada tanto de forma direta, pelas próprias prefeituras, ou mediante concessões de serviço oportunizadas a particulares mediante procedimento licitatório.

Para ingressar no ofício, o mais comum é a realização de processos seletivos e concursos públicos junto às prefeituras, sendo a exigência para o candidato que seja alfabetizado ou tenha o ensino fundamental completo, a depender do certame. A remuneração inicial é pouco acima de um salário mínimo, e a justificativa para a Administração Pública é justamente a pouca qualificação e escolaridade exigidas para o posto.

No presente estudo, os sepultadores entrevistados atuam em cemitérios públicos, que realizam tanto sepultamentos em jazigos familiares, que são comercializados às famílias por tempo determinado ou indeterminado (nesse caso, denominado ‘perpétuo’), mas também reservam espaço para as inumações sem custos, voltadas à população economicamente vulnerável. Neste caso, a inumação tem período determinado, que, quando expirado, demanda a realização de exumação e sequente custódia dos materiais biológicos restantes no ossuário comum.

É um trabalho bastante extenuante, que exige força e resistência física, pois é necessário cavar as sepulturas, construir os jazigos (subterrâneos, horizontais ou verticais), proceder às inumações e exumações, sejam as periódicas ou as solicitadas por interesse processual – mediante mandado judicial –, manter o gramado e a paisagem local, organizar o ossuário, realizar a manutenção nas lápides, etc, e, todas estas atividades devem ser realizadas sob circunstâncias climáticas bastante variadas, tanto em dias de sol forte quanto em dias chuvosos.

Os serviços funerários públicos têm de funcionar 24 horas, todos os dias do ano. Há também um número crescente de enterros a serem realizados em certas épocas, o que impede aos sepultadores e outros profissionais funerários o contato com a família. Os profissionais funerários constituem-se assim como um grupo de profissionais em situação frequente de vulnerabilidade física e psíquica. (Kovács, Vaiciunase Alves 2014, 944)

Como mencionado, não são somente as questões de saúde física que possuem implicações ao ofício. O próprio tema morte carrega uma conotação muito severa para boa parte da população, imerso em tabus religiosos e culturais (Freud, 1996), colocando assim a profissão de sepultador em uma categoria cercada de estigmas.

O medo da morte manifesta-se pela repugnância no seu próprio representar e no imaginar o morto, seu cadáver e a sequente decomposição. Assim, as imagens da morte traduzem as atitudes dos homens diante dela, numa linguagem nem simples, nem direta, mas cheia de artimanhas (Ariès, 2017). Com a medicalização da morte e o discurso do higienismo urbano, este rito de passagem, entendido como ritual de separação, margem e integração, tanto do morto quanto dos parentes e amigos enlutados (Van Gennep, 2018), a tendência da terceirização das etapas fúnebres foi delegada às empresas funerárias, aos cemitérios e crematórios.

De tal sorte que, embora os familiares sejam cada vez mais distanciados dos preparativos e providências com o corpo da pessoa falecida, os profissionais que lidam cotidianamente nestes setores – pois sim, o funeral passa de rito familiar e privado para um setor da economia, tema de saúde pública e preocupação do Estado com a higiene e planejamento urbano – têm como tarefa manter o evento óbito distante do olhar e da mórbida curiosidade do público, devendo ser exercida de forma neutra, séria e distanciada de quaisquer sentimentos.

Neste estudo, foram entrevistados cinco sepultadores, quatro jovens adultos e um idoso, que compartilharam suas impressões e os desafios da profissão. Em comum, foram unânimes tanto as demandas de ordem física, mas também emocional e social inerentes a esta posição, sendo igualmente observada uma diferença relativa entre a percepção do interlocutor mais idoso em relação às impressões dos mais jovens. Relativamente ao ofício, L., 23 anos, bastante alto, e, embora magro, apresenta musculatura bem evidente, afirma:

Ninguém gosta, mas alguém tem que fazer. É serviço mesmo, não tem moleza, tem que saber fazer a parte que é meio de pedreiro, ter força no muque pra enxada, pá, picareta. E não pode ficar amolecido quando tem o enterro, a hora de fechar o jazigo. Quando a gente desce o caixão acho que é uma das horas mais difíceis pra família. É, é sim. Quando fecham o caixão na capela e quando desce pro jazigo. Fica aquela coisa “agora acabou”. Só que não tem como ficar levando isso muito pro sentimento, a gente faz o serviço e pronto, não fala, não olha muito, vai só assentando tijolo, botando massa e fazendo o que tem que fazer.

Os trabalhadores têm consciência das implicações que o ofício suscita em relação aos demais. O próprio ambiente cemiterial pode ser considerado um local de hostilidades, seja pelarevolta das famílias enlutadas, pelos temores de origem religiosa e dos múltiplos sistemas de crenças arraigadas na população em geral. Este sentimento é compartilhado por M., um rapaz robusto, de pele avermelhada pelo sol e estatura mediana, de 31 anos:

É ruim que as vezes parece que os parentes tão com raiva da gente, mas acho que a raiva deles é com Deus, com quem tirou aquela pessoa deles. Aquela hora que tá todo mundo reunido, chorando, tem quem passa mal. Mas não dá pra dar muita bola pra isso, pra nós acontece todo dia. E eu tô ali só trabalhando.

Entre os trabalhadores em cemitérios, a maioria édo sexo masculino, e, no caso do recorte do campo, predominantemente jovens e de compleição física atlética, que mantêm um semblante permanente de seriedade e de certo distanciamento, não sendo permitidas em tais situações demonstrações exacerbadas de emoções, seja de tristeza, indignação ou revolta, seja de felicidade ou descontração. A contenção de sentimentos, a força física e a impassibilidade são condições intrínsecas exigidas dos sepultadores pelos superiores e pelas administrações cemiteriais, sejam públicas ou particulares. Tais características tiveram implicações na própria coleta de dados, nas respostas evasivas, na dificuldade em estabelecer contato visual e nos vários ‘não ditos’ presentes nos relatos.

Este distanciamento, o agir alienado das causas primordiais do trabalho – lidar com os mortos e com os sentimentos dos familiares – é uma tática de resistência e de facilitação do cotidiano. Expressões “não pensar”, “fazer o que deve ser feito”, “trabalhar e pronto” são recorrentes nos discursos dos sepultadores. Demonstram uma necessidade de dissociação entre o ofício necessário à obtenção de recursos materiais – digno, mas desafiador –, e o que, de fato, a realidade impõe: o trato com a óbito de forma cotidiana, realizando inumações e exumações de pessoas falecidas, muitas vezes tendo que manusear e tratar de materiais bioarquelógicos como ossadas humanas e matéria em decomposição.

2. Autopercepção, estratégias de trabalho e sociabilidade

Conforme Hugues (1971) o trabalho determina o status, e é fato que algumas profissões têm mais prestígio que outras. O trabalho, assim, não é somente meio material de vida, mas é algo que qualifica o sujeito perante os demais, e também a si próprio. A profissão age como identificador dos sujeitos, formando parte da identidade social, suscitando tanto uma dimensão sociológica quanto psicológica do trabalho.

Em se tratando de uma profissão fortemente estigmatizada, que lida diuturnamente com situações limite, os trabalhadores acabam encontrando subterfúgios para amenizar o sofrimento físico e psíquico decorrente de suas funções. Ademais, considerando a imersão dos sujeitos no atual cenário neoliberal, que alimenta constantemente as ambições pessoais (Castel, 2013), é visível entre os sepultadores o caráter temporário que atribuem à tarefa. Ela será apenas meio para a subsistência até a ocupação de uma profissão de maior prestígio e remuneração. Assim relata, R., jovem alto, moreno e longilíneo, de porte atlético e apenas 19 anos, enquanto abria com uma picareta a tampa de um jazigo para uma exumação que ocorreria horas depois:

Eu não vou trabalhar nisso pra sempre, é um serviço puxado, e não é uma coisa assim, que a gente goste de fazer. Faz porque tem conta pra pagar (risos). Eu queria mesmo era entrar na faculdade de Educação Física, sou bom no vôlei, no gol [quando joga futebol]. Mas como que eu vou estudar, me matricular? Tem essas coisas de ENEM pra fazer, cursinho antes, precisa dinheiro e tempo. Fora que acho que não ia fazer muita amizade, quem vai querer ser amigo do coveiro, né? Mas isso aqui eu não quero pra vida toda não.

Nessa mesma intenção, M., 31 anos, afirma: “Eu quero mesmo ser policial. Qualquer polícia pode ser. Tenho nenê pequena agora, mas sobrando um extra eu vou pagar cursinho e começar a tentar concurso”. Esse anseio pela mudança de profissão, o alcance de outra modalidade de ocupação que possua mais prestígio, esbarra em questões de ordem prática, de viabilidade de capacitação e possibilidades de acesso a ensino e questões de natureza material, mantendo os interlocutores na instalação de uma condição permanentemente precária, no provisório como modo de existência. Considerando que o ingresso na profissão não exige alta escolarização, são os indivíduos dos estratos sociais menos favorecidos que o ocupam, buscando a qualificação ao longo da própria trajetória como sepultador, até que possam mudar de vida.

A palavra de ordem “mudar a vida” exprime a exigência de recuperar o exercício de uma soberania do indivíduo diluída nas ideologias do progresso (Castel, 2013: 504), e assim, ser sepultador é um ‘mal necessário’, é um ofício que garante a subsistência no tempo presente, mas sempre permanece no horizonte o desejo de uma mobilidade social e de câmbio de categoria profissional.

A própria construção do self, do “ser sepultador” é intercambiável, substituída pelo “estar sepultador”, uma condição temporária, que perdura enquanto existentes as limitações econômicas, uma vez que, despossuídos de reservas que garantiriam a dedicação integral à preparação e estudos,esperam a chance de obter uma função de maior qualificação, menor desgaste físico e menos estigmas sociais.

Pendente esta condição, realizam estratégias de comportamento e de mimetização social que permitem um posicionamento menos exposto em suas relações cotidianas, especialmente fora do ambiente de trabalho. W., jovem de 26 anos, de estatura baixa e bastante forte, expressa essas formas de relativização:

Não saio por aí contando pro primeiro que aparece que eu sou coveiro. Mas se me perguntam eu falo né? É um trabalho digno, assim que eu vivo minha vida, é um serviço como qualquer outro. Só que também depende, se é coisa de cadastro de loja, de formulário ou para falar com alguém mais importante, digo que trabalho para a Prefeitura e só. O que não é mentira. (risos)

Em comum, existe o discurso da dignidade do trabalho, de ser uma ocupação honesta, sem vínculos com crimes ou contravenções, e que, embora tenha seus dissabores, garante um valor mensal determinado, mesmo que modesto. Assim, reclama-se também a categoria que Pierre Bourdieu (1965) denomina como “economia moral”, ou seja, remete a valores outros que não os puramente monetários. Existe tanto um nível de colaboração interna, uma partilha do cansaço cotidiano típico das tarefas refletido em um certo espírito de coleguismo, quanto externa, uma espécie de micropoder (Foucault, 1993), como pode-se verificar nos dizeres de R., 19 anos: “um dia todo mundo vai precisar de nós, até você”.

Aspectos como a imagem e a estima de si, o orgulho, o dom, o reconhecimento, a consideração, assim como os atributos negativos, afloram de forma privilegiada no discurso sobre si mesmo e sobre os outros (CIOCCARI, 2012: 86), e entre os sepultadores não é diferente. O próprio fenômeno morte se torna um elemento de força para esta categoria, criando uma noção de que, uma vez que este é o destino de todos, não há porque uns se considerarem superiores que os outros, e assim, mitigam um certo senso de inferioridade. Ou conforme L., 23 anos, define: “todo mundo vira osso, o caixão é o destino do rico e do pobre, do importante e do zé-ninguém”.

3. Honra e sentido

O sentimento da honra é o código comum e íntimo com referência ao qual o indivíduo julga as suas ações e as dos demais (...) O essencial é talvez que as normas se enraízem no sistema das categorias mais fundamentais da cultura, aquelas que definem a visão mútua do mundo. Soa difícil, e até mesmo inútil tentar distinguir entre o domínio direto do consciente e do inconsciente nestas circunstâncias (Bourdieu, 1965: 187). No caso dos sepultadores, chama a atenção a própria alteração contemporânea do termo, que antes era denominada, popularmente, como ‘coveiro’. O mais idoso dos interlocutores salientou em sua fala tal mudança terminológica: “Essa rapaziada agora anda cheia de manha (risos). Fui coveiro a vida toda. Quer dizer, de um tempo pra cá tem que chamar de sepultador” (H., 68 anos).

Percebe-se que a alteração da denominação de ‘coveiro’ para ‘sepultador’ guarda o significado a que Everett Hugues denomina como blinder, ou ocultador. Ou seja, retira, ainda que em parte, a carga pejorativa de um ofício até então não profissionalizado e cercado de estigmas para uma nova nomenclatura, mais profissional e asséptica. Isso porque, mesmo nas ocupações menos prestigiosas, as pessoas têm a pretensão coletiva de dar valor e dignidade ao trabalho, tanto entre si quanto em relação ao entorno social (Hugues, 1971).

Os sepultadores têm plena consciência da seriedade necessária ao exercício da profissão, e para isso desenvolvem um senso de dever bastante restrito. Ainda, a fim de tornar o cotidiano mais suportável, entabulam relações de confiança entre os colegas, permitindo-se extravasar – dentro de limites pré-estabelecidos e autorizados entre os pares – astensões em momentos de alguma descontração. W. 26 anos, afirma:

A gente brinca, dá umas risadas, porque tem coisa que não é bonita de ver, tem que dar uma aliviada. Não tem desrespeito, isso cuida, porque sabe que lida com coisas que é difícil, que tem as famílias, tem tudo isso. Ninguém aqui é “sem noção”, só brinca e faz uma troça volta e meia, quando não tem ninguém de fora,pra tirar o estresse. Porque olha, exumação – a normal ou as de menos tempo, que a justiça manda – é meio feio, tem horas que a gente faz quase no automático. Mas uma coisa eu digo: não tem quem não fique meio mexido quando é enterro ou exumação de criança.

Importante observar que, mesmo nos breves momentos em que são autorizadas as brincadeiras e pilhérias, estas devem ser rápidas e na exata medida para o desafogar da rotina. Extrapolar os limites do socialmente aceito costuma gerar censuras entre os pares e os superiores, e alguns temas – como acima mencionado, o óbito infantil – são ainda mais interditos que outros. E é a própria vivência na profissão, as experiências que vão se acumulando e permitindo que o trabalhador se habitue com tais circunstâncias, que a princípio são bastante incômodas para a grande parte da população, é que vão estabelecer os códigos entre os colegas.

Este limite do agir também tem conexões com a vigilância a que são submetidos os sepultadores por parte das administrações dos cemitérios, além das demandas sucessivas de inumações, exumações, obras de construção e manutenção das estruturas também são parte do esgotamento a que estão submetidos. Assim, a lida constante com a morte, de forma bastante próxima, é somente uma das implicações do trabalho do sepultador, cercado de estresse e de desgaste biopsicológico.

(...) trabalhadores da morte, também estão na categoria de profissionais que vivem situações de estresse prolongado e podem apresentar a síndrome laboral do “burnout”. Não têm seu trabalho valorizado, nem pessoalmente nem financeiramente. Mais do que isso, vivem a rejeição social, estendida a seus familiares (...) Esses profissionais têm risco de adoecimento e esgotamento físico e mental por não terem capacitação e preparo, falta de materiais adequados, baixa remuneração e pouco reconhecimento e valorização do trabalho. É queixa frequente a sobrecarga de trabalho, sem descanso, pois há ausências, faltas, aposentadoria e não reposição de profissionais.(Kovács, Vaiciunase Alves 2014,944)

Observa-se ainda uma espécie de conflito geracional, o que pôde ser percebido pelos relatos de um dos sepultadores, pessoa de mais idade e que trabalha nesta atividade há vários anos. Em parte, as mudanças nas regras e na natureza do trabalho são fundamentais para estes atritos, cujos efeitos sobre todo o universo das representações operárias é algo importante a ser considerado. Junto com as transformações no plano do trabalho, são processos que desestabilizaram profundamente as formas de identificação trabalhadora, o modo como os trabalhadores percebem a si próprios, como se relacionam com o mundo social (Pialoux, 2006).

Isso se explica, neste caso em concreto, pelas transformações ocorridas nas regras da classe. A partir do final dos anos 1980, com a Constituição de 1988 mais precisamente, ficou regulamentada a admissão mediante concurso público, nos níveis de cargos A e B, que exigiam menor grau de instrução. Mesmo com a remuneração modesta, nesta modalidade eram garantidos direitos como estabilidade, irredutibilidade de salário, progressões de carreira e demais benefícios.

Porém, com a tendência de precarização do trabalho, resultante das medidas liberalizantes em curso desde a década de 1990, seja pela terceirização das contratações – que a partir das medidas da Reforma Trabalhista e demais leis de fragilização dos vínculos ocorridas no ano de 2017 (Lei 13.249/2017) se tornou possível inclusive para atividades fim – seja pela concessão de exploração das atividades cemiteriais a particulares, mediante contratos de concessão, o ofício de sepultador sequer possui as características que o tornavam mais estável.

Assim, as gerações mais jovens de sepultadores não vislumbram um vínculo com o ofício, pois já não é mais dotado de estabilidade e previsibilidade. Acabam por experimentar todos os dissabores típicos da profissão, sem sequer obter os benefícios trabalhistas das gerações anteriores. Para esses trabalhadores mais novos e precarizados, os sepultadores mais antigos se percebem como gente que teve a oportunidade de um emprego estável, que conseguiu se arranjar na vida, mas que não se preocupaem nada com a sorte dos jovens, que não está nem aí com eles (Beaud, 2006), em verdade, os desclassifica como ‘frouxos’, ‘indolentes’ e que ‘não aguentam o tranco’.

De forma que, nesta soma de fatores, o ofício resta muito pouco atrativo, tendo por função somente a obtenção de recursos mínimos de sobrevivência, não constituindo uma carreira em si ou, conforme Becker (1960), um ‘compromisso’. É somente o posto de trabalho a ser temporariamente ocupado até que alguma oportunidade melhor de colocação seja obtida.

4. Conflito de gerações

Ao conversar com H., 68 anos, um senhor de cabelos brancos, estatura alta, mas com uma curvatura já pronunciada na região da coluna cervical, o perfil argumentativo foi bastante distinto dos demais sepultadores. Segundo ele mesmo menciona, faz parte de “outra geração, um pessoal que não tinha boca para reclamar e não tinha medo de nada, nem de fantasma nem do batente”. Queixa-se de algumas dores, menciona que as atividades que realiza não são mais as mesmas, mas isso muito mais pela idade ou por uma certa hierarquia, do que necessariamente por agravos de saúde de natureza ocupacional.

Para ele, sua atual condição, de estar próximo à aposentadoria, e experimentar tais restrições à sua saúde musculoesquelética, possui um caráter qualificador e moralizador em sua auto percepção como sujeito trabalhador, e, ao demonstrar essa resistência, indica uma espécie de habitus marcado pela valorização desse esforço e dessa disposição de enfrentar todos os desafios impostos por uma jornada extremamente extenuante (Carriço, 2019: 49).

Em comparação às memórias que tem de seu tempo de juventude, já trabalhando como ‘coveiro’, H. seguidamente faz menção às qualidades de resistência física, destemor e preparo psicológico. A dor e a deformidade osteoarticularque atualmente experimenta ganham um caráter redentor, de demonstrar no corpo o passado laborioso de um funcionário exemplar.

Então assim, eu sou coveiro, ou sepultador, que agora tem que falar assim.Comecei faz tempo, agora que já tô mais velho não tem como ficar no sol e fazer muito esforço, fiquei com um problema no ombro e na coluna, aí não consigo mais fazer tanta coisa. Ficar velho é uma desgraça (risos). Mas antes até era mais judiado, tinha que capinar mais, tinha mais coisa pra fazer, não parava. Não que os meninos não sejam bons, a cidade cresceu, tem muito mais enterro pra fazer.

Nessa situação particular — a da dor — os sujeitos fazem aflorar erefletem sobre práticas normalmente naturalizadas, estabelecendo uma série de relações significativas entre “antes e depois”, entre “ontem e hoje”, entre“passado e presente”. Há que se considerar, também, um efeito de“reciprocidade“ em que a dor transforma o cotidiano e esse, por suavez, atualiza de forma continua a percepção da dor — através da utilização do “método comparativo” para a análise das práticas —, extrainão apenas as relações dessas entre si, mas também com os mais variados aspectos da existência (Antonaz e Carriço 2020: 409).

H. reconhece o aumento da carga de trabalho, mas ao mesmo tempo coloca em pauta uma inaptidão das gerações mais novas, uma resistência menor às dificuldades, o que ele traduz como ‘manha’, ou ‘corpo-mole’, o que não lhe era dado fazer quando na mesma idade, segundo suas memórias. Conforme Antônio Carriço (2019: 53) em circunstâncias de alta exigência laboral, a capacidade de suportar a dureza do trabalho, as dores e o cansaço, faz parte da constituição dessa referência identitária do trabalhador.

Os mais jovens, na ausência de um vínculo ou um compromisso de longa duração com o ofício de sepultador, não atribuem o mesmo significado aos agravos proporcionados pela rotina laboral, e não raro procuram tratamento médico nas unidades básicas de saúde, solicitam os afastamentos previstos pela legislação trabalhista e fazem tratamentos com medicamentos conforme necessário – mas, ainda assim, permanece uma certa noção de força e resiliência no suportar a dor.

Percebe-se que, tanto para os trabalhadores mais jovens quanto para o mais idoso, a dor funciona como um tradutor dos eventos externos, para a realidade da pessoa e na linguagem da pessoa, mostrando que algo mudou — algo impossível de ser verbalizado, e que vai, portanto, passar pela mediação do corpo (Antonaz e Carriço 2020,413). O que se modifica é a forma de lidar com essa dor.

Uma vez que os sepultadores de menos idade, cujas aspirações passam pela obtenção de uma nova colocação no mercado de trabalho, manter a saúde e a corporalidade é importante, pois fundamental ao sucesso nos processos de recrutamento e seleção futuros. Note-se que, os dois rapazes que mencionaram quais postos almejavam, em ambos os casos a profissão demanda boa saúde – profissional de Educação Física e policial – o que muitas vezes exige também provas de aptidão física.

Assim, existe uma atenção imediata pela saúde, de fato, mas também um interesse mediato: seguir os planos de sair do ofício de sepultador. Ao fazer o paralelo entre o perfil dos trabalhadores da atualidade e seus contemporâneos do tempo de juventude, H. assevera:

Tudo esses guri reclama. Dia de chuva? Reclama. Dia de sol forte? Reclama. Exumação judicial, é um Deus me acuda, ninguém quer fazer. Ia eu nessa idade fazer esse corpo-mole? Imagina só! Agora é assim, ficou meio ruim, deu uma fisgada aqui ou ali, já mete um atestado e falta dois, três dias.

Ainda no comparativo entre as gerações, H. demonstra muito mais familiaridade e uma certa conformação ao ofício que exerce. Não é possível perscrutar as motivações, se somente pertinentes às questões de trabalho, ou se, de fato, outros elementos de sua sociabilidade contribuíram para esta forma de considerar sua trajetória profissional. Mas fica bastante evidente em sua fala que a categoria profissional não é algo que detenha o mesmo peso em sua construção como sujeito. Em verdade, a questão reverbera mais entre a família e a comunidade em seu entorno do que necessariamente em uma postura própria.

Nunca tive problema em ser coveiro não, isso sempre sustentou a família. Um ou outro mais impressionado fica meio assim quando eu falo que sou coveiro, teve uma época que minha filha teve vergonha, quando era mocinha. Vê se pode? Aqui é um serviço meio igual sempre. Só não pode ter medo nem preguiça. Tem uns que ficam com medo de assombração, de fantasma. Aí sim que eu dou uns sustos, faço umas brincadeiras. Porque no mundo do jeito que tá, a gente tem é que ter medo dos vivos, isso sim.

Ao mencionar que com o salário de sepultador manteve sua família de forma digna, e, considerando que faz parte de um grupo que ingressou no ofício em circunstâncias mais estáveis e previsíveis que as atuais, H. incorpora em si o fato de ser ‘coveiro’, de ter sido este uma espécie de destino ao qual aderiu e se manteve.

Para ele, foi graças às suas qualidades individuais, seu caráter trabalhador e dedicado que teve uma carreira tão longa, ainda que modesta, mas que manteve a si e a seus familiares, e assim será até sua aposentadoria, que já se avizinha. Neste caso, quando faz uma autoavaliação de sua trajetória, em comparação aos rapazes que agora trabalham no cemitério, não leva em conta todas as condicionantes de nível macro que estes enfrentam: mudanças na conjuntura econômica, alterações nas regras laborais ou transformações sociais. Segundo ele, os jovens devem conformar-se às dificuldades e aos benefícios da profissão, ainda que bastante limitados, e se forem esforçados, serão recompensados.

Da parte dos quatro sepultadores, entre 19 a 31 anos, as perspectivas são muito distintas, pois eles se sentem muito distanciados dos mais velhos, tanto do ponto de vista de seus interesses como nas maneiras de pensar (Pialoux, 2006: 21). Conscientes de todas as limitações que o trabalho de sepultador impõe: baixa remuneração, altos níveis de desgaste físico e psicológico e estigma social, sem perspectivas de mobilidade social, impossibilitada a estabilidade profissional e demais benefícios até então atinentes a sepultadores contratados por certame público, a situação de precariedade se torna regra.

Não há maiores atrativos neste setor de trabalho, de forma que a maior motivação para estar nele é justamente sair dele. “Ser” sepultador é diferente de “estar” sepultador, porque o segundo caso consiste em somente ver a possibilidade de receber periodicamente um salário, em um posto de trabalho que exige baixa escolaridade e habilitação, e, neste ínterim, buscar a capacitação que falta para a obtenção de um cargo que desfrute de maior previsibilidade, prestígio e reconhecimento. R., do alto de seu 1,92m e de seus breves 19 anos, ilustra isso de forma categórica, ao a fazer a seguinte afirmação, olhando para um jazigo recém desocupado após uma exumação: “depois que eu arranjar outro serviço, só volto aqui assim, no caixão” e ainda fez uma advertência aos colegas: “e ai de vocês se ainda estiverem aqui trabalhando de coveiro para me enterrar, hein? ”.

Considerações Finais

Conforme discorrido ao longo deste escrito, o trabalho de sepultador é um ofício de alto desgaste físico e emocional, que possui repercussões na esfera pessoal e social dos indivíduos. Por lidar com um tema considerado tabu, a morte, seus locais e rituais, é uma profissão raramente exercida mediante escolha prévia e planejada, resultando muito mais da conjugação de elementos como baixa escolaridade, poucas exigências de qualificação e mera disposição de população supranumerária para trabalhos braçais.

Dos cinco sepultadores entrevistados para este trabalho, quatro possuem um perfil relativamente homogêneo: jovens, de compleição física vigorosa e ingressantes neste setor de atividade em razão da falta de oportunidades em trabalhos de maior reconhecimento e prestígio. Somente um interlocutor de mais idade possui perfil distinto, e, por conseguinte, diferentes percepções acerca do trabalho e suas transformações ao longo do tempo.

Em comum, os interlocutores mais jovens manifestam que o exercício da função é encarado como uma ocupação temporária, uma profissão a ser cumprida até que lhes seja possibilitado o ingresso em outra tarefa menos extenuante e mais qualificada. Porém, este desejo encontra uma série de limitantes, especialmente por razões de ordem prática e econômica, como a necessidade de cumprir uma etapa de estudos, investimento de tempo em recursos em capacitação profissional, e até mesmo o receio da rejeição pública que a profissão de sepultador suscita na coletividade.

Importante mencionar que, enquanto imersos neste mundo tão específico do trabalho, os sepultadores criam mecanismos de sociabilidade e códigos de conduta que permitem uma convivência cotidiana menos penosa, tanto entre si quanto em relação à comunidade em que se inserem. Assim, enquanto realizam este trabalho não almejado, criam formas de resistência para que o dia a dia no ambiente hostil do cemitério seja mais brando, mantendo no horizonte a perspectiva de obter uma colocação melhor em outro trabalho.

Nestas formas de realização do trabalho, foi perceptível também a diferença no caráter atribuídoà profissão de sepultador – ou coveiro, como em tempos anteriores – por parte do interlocutor de 68 anos, já próximo à aposentadoria. Em seu relato, fica evidente que a continuidade do trabalho e a significação conferida possuem diferentes importâncias, especialmente quando comparadas às vivências dos mais jovens. Também fica evidente uma espécie de conflito de gerações, ilustrado no distinto significado para a honra atribuída ao indivíduo em sua capacidade laborativa e seu compromisso com a função, em que dores e agravos de saúde se tornam marcadores sociais e qualificadores do sujeito comprometido com seu labor.

Este conflito resulta também da percepção sobre a vulnerabilidade da função, explicitando que tais universos heterogêneos não são aleatórios, mas resultado dos efeitos de precarização do trabalho do sistema capitalista. A precariedade também implica a falta de uma identidade segura baseada no trabalho (Standing, 2014: 37), e assim permanece a busca por estratégias para se manter competitivo para alçar melhores oportunidades de colocação, que gozem de maior prestígio e segurança, o que para o interlocutor mais idoso é compreendido como falta de dedicação ao trabalho. É nesta rivalidade do trivial que fica perceptível a desagregação de classe desejada pelo neoliberalismo, pois neste caso a diferença entre garantia de vínculo e segurança no emprego, é vital.

Desta maneira, e, consciente das limitações e particularidades do universo de pesquisa, observa-se no presente artigo uma tendência à adaptação e negociação de categorias sociais, de formas de pensar e agir, no âmbito do ofício dos sepultadores de cemitérios públicos municipais, que demonstram que termos como “honra”, “prestígio”, “memória” e “sentido” são expressões dotadas de múltiplos significados, atribuídos conforme a percepção dos sujeitos e variando conforme a atividade, o local e a temporalidade escolhida para a análise.

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Notas

* Docente na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre, doutora e pós-doutora em D ireito pelo PPGAS/PUC-PR.
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