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O emprego da sorte: o trabalho com a loteria do jogo do bicho nas ruas do Rio de Janeiro
El oficio de la suerte: trabajar en la lotería del jogo do bicho en las calles de Río de Janeiro
The job of luck: working with the jogo do bicho lottery in the streets of Rio de Janeiro
Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, vol. 8, núm. 17, 2024
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)

Convocatoria temática

Los autores conservan los derechos

Recepción: 05 Febrero 2024

Aprobación: 24 Mayo 2024

Resumo: Nas ruas do Rio de Janeiro, o trabalho de escrever apostas da loteria do jogo do bicho é uma atividade que esteve inserida no cotidiano urbano carioca há mais de um século. Aqui, busca-se explorar algumas das formas, dinâmicas e sentidos deste ofício a partir de sua característica contraditória: de uma contravenção penal e de uma atividade tradicional amplamente aceita. A loteria é, em muitos sentidos, entendida como uma prática cujos significados estariam de acordo com a estrutura da tradição brasileira, detentora de um status ambíguo, entre o empreendimento capitalista, o parasitismo e a corrupção. Nas ruas, os trabalhadores desta loteria encontram-se articulados com outras atividades, que fazem com que o trabalho com as apostas seja considerado mais uma dentre as muitas possíveis formas de se ganhar a vida. Deste modo, este trabalho se baseia em dados etnográficos construídos a partir de um acompanhamento em pontos de jogo espalhados pela cidade, inserindo o foco na compreensão de como esses processos são vivenciados pelos próprios atores. Com isso, visa compreender como a própria categoria “trabalho” encontra-se em disputa na construção de modos legítimos de subsistir.

Palavras-chave: Jogo do bicho, bicheiro, trabalho, ilegalismo, cidade.

Resumen: En las calles de Río de Janeiro, el trabajo de recibir apuestas para la lotería del jogo do bicho es una actividad que ha estado inserta en el cotidiano urbano carioca durante más de un siglo. Aquí se busca explorar algunas de las formas, dinámicas y sentidos de este oficio a partir de su característica contradictoria: tanto una contravención penal como una actividad tradicional ampliamente aceptada. La lotería es, en muchos sentidos, entendida como una práctica cuyos significados estarían de acuerdo con la estructura de la tradición brasileña, la cual posee un estatus ambiguo, entre emprendimiento capitalista, parasitismo y corrupción. En las calles, los trabajadores de esta lotería se encuentran articulados con otras actividades que hacen que el trabajo con las apuestas sea considerado como una más entre las muchas formas posibles de ganarse la vida. Este trabajo se basa en datos etnográficos construidos a partir de un seguimiento en puntos de juego dispersos por la ciudad, centrándose en la comprensión de cómo estos procesos son vividos por los propios actores. Con ello, se busca comprender cómo la propia categoría "trabajo" se encuentra en disputa en la construcción de modos legítimos de subsistir.

Palabras clave: jogo do bicho, bicheiro, trabajo, ilegalismo, ciudad.

Abstract: . In the streets of Rio de Janeiro, the job of writing bets for the "jogo do bicho" lottery has been a part of urban life in Rio for over a century. Here, we aim to explore some of the forms, dynamics, and meanings of this profession based on its contradictory nature: being both a criminal offense and a widely accepted traditional activity. The lottery is, in many ways, understood as a practice whose meanings align with the structure of Brazilian tradition, holding an ambiguous status between capitalist enterprise, parasitism, and corruption. In the streets, workers in this lottery are interconnected with other activities, making betting work considered just one of many possible ways to earn a living. Thus, this work is based on ethnographic data gathered through observation at various gambling spots throughout the city, focusing on understanding how these processes are experienced by the actors themselves. Consequently, it aims to comprehend how the category of "work" itself is contested in the construction of legitimate ways of subsistence.

Keywords: Jogo do bicho, bicheiro, work, illegalism, city.

INTRODUÇÃO

A noção do trabalho tornou-se uma das mais importantes na constituição do capitalismo moderno, pois é, ao mesmo tempo, produtora de sobrevivências cotidianas dos sujeitos, sistemas de significados, moralidades e princípios organizadores da sociedade. Nas ruas dos grandes centros das cidades, as atividades laborais são visíveis sob as mais diversas formas, abarcando espaços variados, com temporalidades específicas, e adquirem sentidos e moralidades próprias. No Rio de Janeiro, uma tem tido destaque por mais de um século: a de “apontador” de jogo do bicho[1] (ou simplesmente bicheiro). Um jogo popular que, como apontou a antropóloga Simone Soares (1993), articula: “(...) o permitido e o proibido, o erudito e popular, o oficial e o não oficial, gerando, assim, uma teia de contradições que torna a contravenção mais controvertida do país” (Soares, 1993: 24). Assim, aqui, busca-se explorar algumas das formas, dinâmicas e sentidos de se estar nas ruas anotando apostas da loteria do bicho. Uma função que é aqui entendida como uma atividade cujos sentidos são atribuídos a partir de sua característica ambígua, em alguns momentos paradoxal, de se constituir uma prática legalmente tipificada como uma contravenção penal[2], porém socialmente aceita, amplamente difundida e jogada por sujeitos dos mais diversos estratos sociais.

A loteria do jogo do bicho é, em muitos sentidos, entendida como uma prática cujos significados estariam de acordo com a estrutura da tradição brasileira, detentora de um status ambíguo, entre o empreendimento capitalista, o parasitismo e a corrupção do Estado (Damatta & Soárez, 1999). Pensado e jogado no cotidiano das cidades a partir de uma dupla face, a de "vício" e de "jogo inocente", na interface entre uma sociedade tradicional e uma nação moderna. Inserido em um “regime de tolerância” constituído por “espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infrações são sancionadas” (Foucault, 1994: 716). A porosidade entre o formal e informal, legal e ilegal, coloca o jogo do bicho nesta posição aparentemente ambígua, tal como é explícito em seus jogos de poder, relações de força e campos de disputa. A transitividade do jogo do bicho, mascarada por uma moralidade consensual, permite que a lei seja aplicada seletivamente. Estas múltiplas imbricações entre o legal e o ilegal nas economias e finanças atuais são evidenciadas por relações e práticas que se constituem em um continuum entre uma e outra característica (Barbosa, Renoldi & Verissimo, 2013; Álvarez & Maldonado Aranda, 2017) e que fazem com que atividades, mesmo inseridas na ilegalidade, possam ser consideradas, por queles que as praticam, como formas legítimas e dignas de se ganhar a vida (Figueiro, 2020).

Deste modo, este trabalho busca, com base em dados etnográficos (Labronici, 2012) construídos a partir de um acompanhamento ostensivo em diferentes pontos de jogo do bicho espalhados por diversos bairros da cidade, produzir uma reflexão referente ao cotidiano da atividade de se trabalhar na rua com apostas.Uma abordagem que coloca no centro os sujeitos que se situam na linha de frente do jogo, correndo os riscos diários que a profissão acarreta. Riscos estes atrelados ao exercício de uma atividade que é pautada por intersecções entre o lazer e vício, trabalho e o jogo, a lei e a ilegalidade, a moral e a imoralidade; e insere estes sujeitos em situações de liminaridades legais, simbólicas e morais. Entrelaçando relações hierárquicas que apontam para uma encruzilhada de significados entre atividades que expressam o sentido de profissionalização e lazer, ou o sentido de profissionalização com o lazer (Adelman, 2016).Com isso, meu interesse em abordar as significações dos atores enquanto trabalhadores remete, por um lado, ao que Grassi e Danani (2009: 15) destacaram, que "o mundo da vida não é alheio à estruturação pelo trabalho, mas parte integrante de sua naturalização e domínio real". Mas, acima de tudo, porque os próprios atores com os quais o trabalho de campo foi conduzido problematizavam sua existência como trabalhadores.

Sendo assim, neste artigo, busco apresentar análises dos locais onde se fazem apostas no jogo do bicho, os então chamados “pontos” de jogo. Além disso, apresento o jogo como uma prática social que se encontra em constante estado de (re)configuração e modernização. Uma atividade que permanece interligada por uma estrutura hierarquizada, segmentada em diferentes cargos e funções, mas ao mesmo tempo em que se espalha pela cidade com características “rizomáticas[3]” (Deleuze & Guattari, [1980], 2011) para a produção de seu território. O que, por um lado, é pautada por uma estrutura unificada e ramificada, que se espalha para diferentes pontos a partir de um centro de organização e que, através de seus processos históricos de construção, permite enxergar o jogo como algo substantivado, unitário e totalizado: “O Jogo do Bicho”. Por outro lado, é possível observar a distribuição de pontos de jogo pelas ruas e esquinas da cidade como uma multiplicidade sem começo nem fim, como linhas segmentares que se interconectam, produzindo distintos “jogos de bichos” espalhados pelas ruas e esquinas da cidade.

A atividade de se anotar apostas desta loteria em geral é realizada por sujeitos cuja origem pobre e assalariada, em muitos casos,os coloca em uma posição de dependência dos recursos oriundos da loteria[4]. Em outros casos, a atividade se encontra como uma das poucas possíveis de ser realizada por sujeitos egressos do sistema penitenciário (Soares, 1993: 76), ou por possuírem uma baixa escolaridade que restringe o alcance de suas possibilidades (Labronici, 2012: 113).Uma dentre muitas possíveis explicações para tal ocorrência se dá por conta do caráter precário da relação trabalhador empregado, que estipula a natureza jurídica incerta dessa autorização laboral. Para Lenin Pires (2019: 289) essa precariedade “funda-se numa desconfiança sistemática por parte das oligarquias dominantes brasileiras em relação aos segmentos mais subalternos da população”. Para combater essa desconfiança, no bicho, muitos se apóiam na idéia oriunda do imaginário da tradição e da cultura popular que inserem os bicheiros como tipos ideais urbanos da cidade carioca, que “sempre” estiveram presentes nas ruas da cidade. Além disso,reforçam o tratamento da atividade com a loteria como a de uma prática inofensiva pois “não obrigam ninguém a jogar” (Labronici,2012:28). Com isso tentam “limpar” a marca indelével da clandestinidade, e reforçar a idéia de que a atividade de se anotar apostas nas ruas se constitui enquanto um “trabalho”. A relação precária antecipa aos trabalhadores do bicho o rompimento do vínculo que, cedo ou tarde, todos esperam que aconteça (Pires, 2017).

Assim, como buscarei demonstrar, aquilo que um jogador[5]observa nos pontos espalhados pelas ruas da cidade é, na verdade, a ponta do iceberg de toda uma estrutura voltada para um único propósito: o funcionamento desta loteria popular. A figura um tanto insólita de um sujeito sentado em uma cadeira estrategicamente alocada em um local “de passagem” não nos é suficiente para dar conta de quantos cargos e funções existem no jogo; esse é apenas o início de todo um processo relacionado a essa loteria. Com isso, de modo a obter uma visão ampliada das redes que possibilitam o funcionamento do jogo,seguirei aqui as associações entre elementos heterogêneos organizados em redes sociotécnicas (Latour, 2005) que articulam números, dinheiro, técnicas de jogo, simbolismo e moralidades; em uma tentativa de destacar as redes sociais vinculadas a cadeia de apostas do jogo do bicho.Com isso, procura-se demonstrar que a noção de especialização, profissionalização e divisão de tarefas nesta loteria possibilita um olhar que vai além dos simples traços de uma atividade relacionada ao folclore e a cultura popular, mas que sua organização também se encontra voltada para o trabalho e para o lucro.

UM PONTO DO JOGO

Um ponto, por definição, é um elemento no espaço que indica uma posição específica. Esta posição, no caso da loteria do jogo do bicho, é um local onde é possível fazer uma aposta. Para os mais desatentos, o jogo do bicho não demandaria muitas funções para além daquelas facilmente perceptíveis nas ruas e esquinas da cidade, com os responsáveis pelo recebimento das apostas no cotidiano do jogo. Entretanto, em torno desta loteria existe cerca de uma dezena de ofícios, com diferentes graus de especialização, hierarquia e organização, para a captação de apostas, distribuição de resultados e entrega de prêmios a seus ganhadores.

O mais conhecido de todos os ofícios é o de “bicheiro”, que tem a função de anotar os palpites[6] dos apostadores, receber o pagamento e entregar os prêmios aos ganhadores. Em muitos casos, o seu condicionamento nas ruas atravessa estruturas fixadas em relações com comerciantes e moradores locais. Situado no meio urbano, a todo o momento, diversas pessoas atravessam o ponto do bicho, em um fluxo constante. Em sua grande maioria não demonstram interesse ou até mesmo ignoram ou desconhecem o papel que o bicheiro exerce no local. Não existe um uniforme ou um padrão para esses trabalhadores. O jogador, caso deseje fazer uma aposta, deve saber reconhecer os traços do que é, quem são, e onde estão alocados os encarregados desta função. Geralmente são pessoas entre seus 40-70 anos de idade. Ao seu redor, pequenos pedaços de papel podem ser vistos, podendo ser bilhetes não premiados (pules)[7] ou resultados de sorteios anteriores. O talão (ou a máquina em alguns pontos) e os resultados atualizados permanecem à mostra para que todos tenham a capacidade de ver e reconhecer quem são os vendedores de sorte no bicho.

Cada local de venda de bilhetes da loteria possui uma dinâmica própria. Além da venda do jogo em si, cada ponto contém algumas variáveis importantes. De início, o número de funcionários trabalhando em cada ponto é diversificado. Podem existir pontos com um, três até mesmo dez funcionários trabalhando de uma só vez, e suas funções podem ser as mais diversas na organização da loteria. O número de trabalhadores é dado em função do movimento de fregueses em cada localidade. Os horários de funcionamento dos pontos também variam. Um ponto pequeno geralmente “abre” às 9 da manhã e “fecha” às cinco e meia da tarde. Diferentemente de uma loja, como afirma o antropólogo Fernando Rabossi (2004: 102), que abre suas portas diariamente ao público, o trabalho na rua com vendas [e neste caso apostas] é realizado em um espaço que, em geral, não pode ser aberto e fechado ao público diariamente. As noções de “abrir” e “fechar” aqui estão ligadas estritamente a presença do bicheiro. Em alguns pontos, o jogo se desenvolve na calçada e os mecanismos que possibilitariam uma abertura ou um fechamento stricto sensu não se fazem presentes[8]. Outros pontos maiores e com mais bicheiros ficam “abertos” em geral de 8 da manhã às 9 da noite, com um pequeno revezamento entre os bicheiros. Fecham neste horário para a realização do sorteio das 21 horas, conhecida também como “corujinha”[9]. Aqueles jogadores que jogam a essa hora geralmente recolhem o resultado e o prêmio, em caso de acerto, nos dias seguintes.

Os locais preferenciais para a instalação dos pontos são também as esquinas. “A esquina surge como metáfora do próprio jogo, estando entre a ordem e a desordem, na tênue fronteira entre estes dois mundos, os bicheiros poderiam ora estar de um lado, ora do outro” (Magalhães, 2005: 136). Tal localização geográfica facilita a visão e a fuga. Numa encruzilhada aberta, a possibilidade do bicheiro ser cercado por policiais é menor, devido ao maior número de opções para uma corrida. Entretanto, a fuga nunca é uma boa opção; a negociação com membros do poder público é considerada, na maioria das vezes, a alternativa mais vantajosa. Além disso, os pontos instalam-se geralmente às portas de algum estabelecimento comercial, principalmente bares e botequins. A forma como a disposição dos bicheiros se apresenta na rua e seus elementos, com cadeiras e placas com resultados, é muitas vezes utilizada como mediadora e facilitadora de suas relações com os comerciantes locais. O bicheiro não leva sua cadeira paraa casa no final de seu trabalho, bem como não há um local próprio pertencente a estrutura do bicho para que esses objetos sejam guardados e armazenados. Em geral, a dependência de boas relações com os donos dos estabelecimentos próximos se faz mais necessária do que para uma simples boa convivência. Se não é este o caso, as cadeiras podem ficar de madrugada na rua presas em um poste ou árvore, ou simplesmente abandonadas a própria sorte. Um dos pontos em que o campo foi realizado, não havia sequer a mesa própria com a qual o bicheiro pudesse trabalhar, o dono do bar se encarregava de emprestar uma de suas mesas e uma de suas cadeiras de plástico para o bicheiro.

Fica assim evidente como uma relação de confiança entre o bicheiro e demais atores urbanos locais (como comerciantes, moradores, porteiros, garçons, empregadas domésticas etc.) faz parte da dinâmica da gestão do próprio jogo nas ruas, demonstrando que a loteria do bicho se entrelaça com estabelecimentos formais ou “legais” na medida em que é jogado. Assim, as dinâmicas adotadas pelo jogo nas ruas dependem das circunstâncias e dos agentes envolvidos. Conflitos e desavenças entre algum deles pode ser o suficiente para mudar o ponto de lugar.

Ao longo da rotina de seu ofício o importante para um bicheiro é não deixar de coletar apostas e repassar os resultados para os fregueses, mas seus elementos de disposição nas ruas são também variados. Apenas a forma de se jogar o jogo se mantém igual em todos os pontos de modo que o apostador não perca o seu referencial. Todo jogo, segundo Roger Callois (1990: 11), é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Estas convenções são simultaneamente arbitrárias, imperativas e inapeláveis. Não podem ser violadas, pois, se assim for, o jogo termina. Assim, o que muda nos pontos é a maneira com a qual o bicheiro se apresenta para o apostador e sua disposição nas ruas e calçadas da cidade. Até mesmo o tradicional talão com papel carbono frequentemente associado ao bicho pode ser alterado, como veremos adiante.

Além disso, também é necessário frisar uma acentuada ligação do bicheiro com a “banca”[10]. No caso de “Zé”, um bicheiro solitário, acumulava em um de seus pontos a função de “bicheiro” e “caixa”, o que dava a ele um acréscimo de 3 reais em sua diária por esse acúmulo de funções. Assim, é possível considerá-lo apenas mais um empregado do jogo. Qualquer eventual prestação de contas, seu ponto responde diretamente ao ponto principal (se caso existir um) ou diretamente a banca. Os salários pagos variam de acordo com a região. Nos bairros da zona Sul e partes do centro da cidade um bicheiro de ponto recebe em diárias, enquanto na região Norte e nas outras partes do centro recebe porcentagens das apostas recolhidas no dia (10% a 15%). Em outros pontos são pagos adicionais chamados de “lança perfume” no carnaval, “peixe” na semana santa e “bacalhau” no Natal, nomes dados as diárias referentes a períodos do ano em que o bicheiro não trabalha. Em alguns pontos também é costume pagar o “décimo terceiro” salário. Assim, a remuneração do jogo do bicho também varia de ponto para ponto, de banca para banca.

Para o controle de pessoal, existe a figura do “gerente”, que é encarregado de administrar e supervisionar o andamento dos jogos nos pontos, além de cuidar do comportamento e da aparência dos bicheiros. Na hierarquia específica do local, o gerente assume a posição de maior destaque, pois é sobre ele que recai a responsabilidade operacional do jogo. Um gerente controla e administra vários pontos espalhados pelas ruas. A banca na qualo bicheiro “Zé” trabalha possui mais de 15 pontos além do dele. Além disso, gerentes devem fiscalizar para que bicheiros não se embriaguem,[11] ou que apliquem possíveis golpes a fim de ganhar dinheiro indevidamente sobre os apostadores ou sobre a banca[12].A ele cabe o recolhimento de todo o dinheiro apostado, dos pagamentos das diárias ao fim do dia, e do pagamento do prêmio aos ganhadores, se a quantia for considerada alta. O gerente do ponto é o responsável por todo o dinheiro ali movimentado, se tornando o eixo de ligação dos pontos com a banca e com o banqueiro dono do negócio. Ao fim de cada turno, é sua obrigação fazer uma guia informando sobre as receitas e as despesas dos pontos, incluindo aí os gastos com salários dos demais bicheiros. Ao fim de cada dia de trabalho, o gerente passa todas as informações sobre a “contabilidade” dos pontos a um gerente geral na banca ou ao próprio banqueiro. Com isso, a estruturação do jogo do bicho conseguiu montar ao seu redor uma organização voltada para a obtenção do lucro. Mimetizando critérios formais de uma empresa, os banqueiros de bicho reelaboraram práticas comerciais e de organização de empreendimentos para estruturar e explorar o jogo. Ultrapassando a dicotomia legal/ilegal, o bicho conseguiu estabelecer uma organização lucrativa, sólida e rentável.

ENTRE NÚMEROS E BICHOS

Como apontado acima, dentro da estrutura organizacional do jogo, existem diferentes funções que vão permitir que a loteria se desenvolva nas ruas da cidade. Aqui, a figura que se torna a peça-chave entre o jogo do bicho e seu público é o papel exercido por sujeitos na função de “bicheiro”. É ele quem vai ser o principal elo entre os agentes do bicho e os jogadores. São, de certa forma, os principais responsáveis pela continuidade e a regularidade das apostas, pois são a parte mais aparente que o jogo possui a seus fregueses em potencial. Seu trabalho rotineiro com as vendas de uma loteria ilegal nas ruas da cidade é o que permite que o jogo tenha tido sucesso ao longo dos anos.

“Quem trabalha no bicho é bicheiro”, me afirmou “Zé”. Disso, seria possível assumir que todo aquele que cumpre alguma função no jogo seria denominado “bicheiro”. Entretanto, segundo ele,apenas aquele que escreve as apostas do bicho no seu dia a dia é tratado como tal; os demais são denominados por suas respectivas funções. De tal modo, é possível conceber o termo como uma categoria que representa, além da função em si, como a de um tipo social específico que transita entre o lúdico e o vício, o oficial e o marginal, o legal e o ilegal, o clandestino e o tradicional e o real e o imaginário. Trabalhadores que exercem uma função em uma atividade que, em alguns casos, é entendida como oposta ao mundo do trabalho (Caillois, 1990: 29-30). Podem assim ser percebidos como sujeitos liminares cuja transitividade entre mundos distintos encontra-se as vistas de todos. O simbolismo e o caráter mágico-religioso vinculado as apostas contribui com o reforço de que a função é mais do que um simples ofício no imaginário popular. O trabalho com as apostas e a sorte, assim, é entendido como uma categoria que o diferencia dos demais trabalhadores urbanos, contribui com o reforço de que o “ser bicheiro” encontra-se inserido dentro de uma identidade típica ideal no imaginário popular.

No jogo, o bicheiro é uma autoridade. Independentemente do que seja dito, pelo seu conhecimento adquirido através de seu acúmulo de experiências na função, seu discurso possui uma força diferenciada para o entendimento e reconhecimento de um jogo a ser apostado. Sua posição é sempre ouvida e respeitada quando o assunto referente são as apostas. Se algum jogador tiver dúvidas sobre o jogo, a pessoa a recorrer é o bicheiro mais próximo. A autoridade geralmente se faz presente quando o bicheiro é capaz de fazer com que o apostador modifique seu jogo pois suas estratégias e interpretações são consideradas as mais eficazes quando o assunto é acertar o bicho que vai dar.

Dentre as funções em sua rotina de trabalho, o mais importante é saber anotar o jogo corretamente, e, posteriormente, avaliar quanto vale cada jogo e quanto se paga a cada um deles. Não importa o que aconteça, o jogo tem que continuar, e seus ganhadores têm o “direito” de receber e reclamar por seu merecido prêmio, como parte de um verdadeiro “código de ética” compartilhado pelos bicheiros. Além de trabalhar escrevendo, ou simplesmente coletando apostas, um bicheiro é também um vendedor. Um vendedor de sorte. É a partir dele que se dará início a todo processo de construção de uma aposta. Ele possui posicionamento, conhecimento e respeito dos seus fregueses apostadores. Como disse anteriormente, a sua visibilidade para o público é essencial, pois, do contrário menos pessoas saberiam onde ou com quem seria possível fazer um jogo. Deste modo, na cidade do Rio em geral, o bicheiro fica posicionado nas calçadas ou esquinas. Locais de grande fluxo de pessoas são preferencialmente onde se poderá encontrar um bicheiro. Mais pessoas equivalem a mais fregueses em potencial. Entretanto, tais localidades devem contemplar uma “visibilidade invisível”, ou um compósito de “dizibilidades” (Barbosa, 2011: 14) que expressam determinados contextos e situações que deixam o jogo mais ou menos transparente tanto nos discursos quanto aos olhos de transeuntes. Existiria assim locais e situações específicas onde se pode jogar e falar sobre o jogo do bicho. Sendo algo legalmente passível de punição, o bicheiro não deve deixar que seu posicionamento seja de alguma forma extravagante ou excessiva. Não chamando atenção para si, ou fazendo propaganda do jogo. “Joga quem quer” afirmam. Caso contrário, problemas com o poder público e a lei podem ser intensificados[13].As relações e negociações nas ruas com agentes do estado, em muitos casos, levam a um rearranjo das dinâmicas estabelecidas pelos envolvido, de modo a equalizar os distintos interesses e permitir a construção de formas de se ganhar a vida sem a produção constante de conflitos diretos (Pires, 2020). Por outro lado, o bicheiro não pode simplesmente permanecer fora do alcance da visão de seus fregueses em potencial. Um afastamento do público, como em qualquer comércio nas ruas, seria muito ruim para os negócios. Portanto, na cidade do Rio de janeiro, sair da rua não é aqui uma opção razoável.

Caso um bicheiro tente se esconder, por algum motivo, sua primeira reação será guardar, ocultar ou em casos mais extremos, se livrar definitivamente de seu talão (máquina ou aplicativo). Não haveria como ser um bicheiro sem que um esteja anotando e escrevendo apostas do bicho. Apesar disso, podem existir outros traços menores de identificação do jogo em um ponto. Resultados do jogo pendurados ou colados em árvores, postes, pilastras ou paredes próximas, assim como pules não premiadas de jogadores frustrados, rasgadas espalhadas ao redor seriam alguns dos pequenos traços sutis, mais gerais e comuns entre os pontos pesquisados. Deste modo, é possível afirmar que, no trabalho de um bicheiro há a demanda por uma dosagem entre a sua exposição (visibilidade) e a sua amalgamação (invisibilidade) com os demais sujeitos urbanos, na rua, e esta é essencial para que o trabalho se tenha continuidade sem grandes transtornos.

DE PONTO EM PONTO

Como cada ponto é um ponto, em alguns casos, a banca pode determinar que o bicheiro mude por alguma razão específica. A mobilidade de bicheiros entre pontos não é algo incomum. Ao longo do campo, pude acompanhar várias destas mudanças. Em Vila Isabel, acompanhei o bicheiro “Robinho” em um ponto em frente a um bar. Posteriormente, foi mudado para frente de uma padaria e terminou em frente a um segundo bar em outra rua a alguns quarteirões de distância. “É sempre assim, precisa de alguém pra tapar buraco, chama o “Robinho!”costumava reclamar de forma descontraída.

Do outro lado da cidade, o bicheiro “Zé” trabalhava em frente a um bar, passou para frente de uma galeria, depois para frente de um banco e posteriormente voltou ao bar inicial. Afirmava que o ponto em frente ao banco era o melhor lugar que já havia trabalhado dentre todos os pontos da região. Um lugar relativamente grande e que fazia esquina com uma das ruas mais movimentadas do bairro. Em média, três a quatro outros bicheiros trabalham juntos, e uma pessoa realizava a função de “caixa” das apostas coletadas. Mesmo perdendo o acréscimo em sua diária pelo acúmulo de funções (3,00 reais a mais por dia como caixa) que o bicheiro ganhava nos outros pontos, “Zé” afirmava que conseguia mais com as comissões dos jogadores, sem contar que não tinha a responsabilidade de ter que cuidar do dinheiro da banca. Já o ponto da galeria era, segundo “Zé”, o pior dos que havia trabalhado recentemente. O bicheiro anterior deste ponto estava “de castigo” e havia sido reposicionado temporariamente para outra função, pois havia deixado de ir trabalhar dois dias seguidos, sem aviso, deixando o ponto vazio. Na frente da galeria havia um quiosque que realizava serviços de cópia de chaves e amolador de facas. Um pouco mais afastado existia uma casa lotérica e um bar. A rua não era das maiores, mas devido a uma pequena concentração comercial gerava um fluxo considerável de pessoas. A galeria era grande com dois andares e com outra saída para uma das ruas principais do bairro. O administrador do local a todo o momento pedia que “Zé” se afastasse da entrada da galeria, pois nela havia uma porta automática que não se fechava caso alguém ou alguma coisa relativamente grande permanecesse na frente de seus sensores de movimento. Com isso, “Zé” não se protegia com a cobertura que havia em cima da porta ficando à mercê das boas condições do tempo. Nos dias chuvosos, ficava espremido em um pequeno espaço entre um poste e a quina da cobertura que lhe restava. Além disso, “Zé” precisava organizar as filas de apostadores nos horários de maior movimento, pois eles também ativavam a porta da galeria, causando novos transtornos entre a administração da galeria e o bicheiro.Assim, apesar de existirem pontos preferenciais,a decisão final onde cada bicheiro trabalha recaía sobre a gerência da banca

O jogo da “corujinha”, que não é feita em todos os pontos, evidencia mais explicitamente este revezamento de bicheiros, pois ela somente é jogada nos pontos de maior movimento e de melhor estrutura. “Estar na corujinha” para um bicheiro significa que durante uma semana específica ele trabalhará em pontos nos quais tal sorteio é realizado. Os bicheiros de uma mesma banca podem revezar em turnos quinzenais ou semanais nos pontos onde a corujinha é feita. Quando isso acontece, em geral, o bicheiro permanece trabalhando em seu ponto costumeiro até o horário em que terá que se deslocar para pontos com o sorteio noturno.

A localização dos pontos depende da perspicácia dos banqueiros de bicho no sentido de avaliar as potencialidades e os perigos de cada local dentro de seu território de controle. Deste modo, um ponto aberto num dado lugar poderia ser transferido para outro local em função do movimento ali apurado, ou mais comum, um ponto com pouco movimento não demandaria muitos funcionários e pode até mesmo ser “fechado” temporariamente ou definitivamente. Mas, ao que parece, não existe uma regra fixa. Locais com pouca movimentação podem possuir pontos de jogo e outros com mais público podem não ter pontos a disposição.

Casos contrastivos são os do bicheiro “Robinho” e “Zé” e que auxiliam no entendimento sobre como ocorre a distribuição de pontos pela cidade. “Robinho” permanecia posicionado em frente a um bar na zona Norte da cidade. O número efetivo de jogadores pela parte da manhã não chegava a dez. Uma de suas vontades era ser realocado para outro ponto onde tivesse um maior movimento. “Eles querem que eu levante o ponto[14], mas como que eu vou fazer se ninguém vem aqui jogar?”, costumava resmungar. Já no caso de “Zé”, bicheiro de outro ponto na zona Sul, tinha o problema oposto. Pequenas filas de fregueses chegavam a se formar na espera pacientemente que “Zé” escrevesse seu jogo. Por motivos distintos ambos os pontos atualmente permanecem “fechados”. Assim, é possível apontar para um revezamento de bicheiros entre os pontos de uma banca ao frequentar pontos do bicho por certo período. Em geral, a constante mudança de bicheiros ocorre ou por falta de mão-de-obra ou como uma tentativa de capitalizar por mais tempo os pontos que estejam com um melhor movimento durante um determinado período. No entanto, é necessário deixar claro que, por mais que a mobilidade ocorra regularmente, ela acontece em períodos espaçados. Dificilmente um bicheiro mudará de ponto todos os dias de uma mesma semana, a tendência é sempre que um mesmo bicheiro permaneça por um período maior em um mesmo ponto, de modo que ele passe a conhecer os comerciantes locais, as pessoas residentes das proximidades e principalmente seus jogadores.

Mesmo estando ciente da instabilidade de sua situação, e que pode vir a mudar da noite para o dia sem aviso prévio, o bicheiro gera para si sentimentos de posse para com o ponto em que trabalha. Ao longo do campo, era possível ouvir frases do tipo: “o meu ponto”, ou “o ponto do bicheiro fulano”. Assim, os pontos também são rotulados em um sistema de classificação específico. Com valorações estratificadas de melhores e piores entre eles. Cada ponto trabalhado é considerado melhor ou pior que outros trabalhados recentemente pelo bicheiro. São mais ou menos: visíveis, lucrativos, com bons jogadores, com boa estrutura local etc. O mesmo acontece com a representação que os bicheiros possuem da distribuição dos pontos pela cidade. Zona norte, sul, centro e oeste, possuem classificações de melhores ou piores locais para se trabalhar, pautado por uma série de variáveis como: salários, suporte da banca, visibilidade para a polícia, movimento de jogadores, proximidade com o banqueiro, uso da “maquininha” etc.

CIRCUITOS DA INFORMALIDADE

Ao longo do trabalho de campo,foi possível perceber que na maioria das histórias de vida,o trabalho na função de bicheiro não foi exclusivo. Estavam articulados com outras atividades, que fazem com que o trabalho com as apostas seja mais uma dentre as muitas possíveis “formas de se ganhar a vida” (Perelman, 2014: 48). A entrada e saída no jogo do bicho é um movimento comum e recorrente. De todos os bicheiros estudados, “Robinho” foi o único que manteve regularmente um segundo trabalho conjuntamente com a loteria. Acordava mais cedo alguns dias da semana para comprar, a preço de custo, tradicionais biscoitos Globo[15] polvilhados para revendê-los nos bares da cidade após seu dia com o bicho. Quando, por alguma razão, não podia comprá-los, mandava seu filho. Quartas e sábados eram seus dias preferidos para vender biscoitos, devido a uma maior concentração de pessoas nos bares e restaurantes, em função de jogos de futebol transmitidos nestes estabelecimentos. Ele havia voltado a trabalhar com o jogo do bicho recentemente, após ter resolvido algumas complicações com a gerência de sua banca. Começou a trabalhar no jogo há mais de dez anos, mas, de tempos em tempos, buscava outras fontes de renda, sempre no mercado informal. As últimas notícias que tive de “Robinho” eram que, mais uma vez havia deixado o trabalho no jogo do bicho e estava trabalhando integralmente como vendedor de biscoitos pelas ruas do bairro.

O tempo de carreira dos bicheiros costuma ser longo; alguns relataram ter mais de 40 anos de jogo do bicho, mas geralmente atrelado a idas e vindas com outras atividades. Muitos bicheiros estão inseridos em circuitos de informalidade, que os permite pular de uma atividade à outra, porém sempre fora do mercado formal de trabalho. De todo modo, no bicho não é possível enxergar a questão da informalidade como marginal ao sistema econômico. Encontra-se inserido nas redes que passam pelo lado oficial e formal,que transbordam para os dispositivos sociotécnicos acionados nas fronteiras incertas do informal e ilegal, para se enredar nos múltiplos circuitos do comércio ambulante, para então se condensar nas miríades de pontos de venda espalhados pela cidade (Telles, 2009: 154).Do mesmo modo, bicheiros inserem-se tanto no jogo como dentro de outros mercados informais com avaliações morais equivalentes. O comércio informal e o jogo seriam profissões, na visão de um bicheiro, praticamente equivalentes. Em uma, vende-se bens materiais; na outra, vende-se sorte, bichos e esperança. O ofício exercido por bicheiros é entendido aqui como uma forma válida de se ganhar a vida, e compartilha traços com outras práticas exercidas no espaço público. A compreensão desse ofício como uma atividade denominada de “trabalho” circunscreve características e precariedades semelhantes de outras funções exercidas no meio urbano, e que atribui maior legitimidade para a loteria. Isso implicou reconhecer a heterogeneização das maneiras pelas quais as pessoas "ganham a vida", particularmente em contextos de crise (Villareal, 2014; Narotzky & Besnier, 2014), assim como a emergência de novos sentidos (sempre em disputa) sobre o que se entende por trabalho, o que implica uma vida digna, as esperanças a ela associadas e as estratégias individuais e coletivas para o reconhecimento dessas atividades como produtivas e socialmente valiosas (Fernández Álvarez, 2018).

MÁQUINA DE APOSTAS: DO ANALÓGICO AO DIGITAL

Na era digital, o jogo do bicho não ficou para trás, e sua organização buscou usufruir das vantagens que a revolução digital e a “indústria 4.0” (Antunes, 2020: 13) trouxeram. As máquinas do bicho, ou simplesmente “maquininhas”, como também foram conhecidas, foram a primeira tentativa de informatização do jogo. Estas, atualmente substituídas por aplicativos de celulares e impressoras Bluetooth, que estão cada vez mais populares nos pontos de jogo de bicho da cidade e de outras capitais do país[16]. Entretanto, esta inovação não foi implementada automaticamente em todos os pontos, nem sequer em todos os pontos de um único banqueiro.

A mudança do papel pela máquina não se deu de forma simples. Inicialmente, bicheiros recebiam a máquina com uma curta antecedência para praticar e aprender como operá-la. O manual[17] era improvisado, copiado a mão em uma folha de papel em branco. Qualquer dúvida que ocorresse, teria que ser resolvida no dia seguinte, antes do horário de trabalho. Todavia, antes de receber a máquina, rumores sobre o equipamento e seu funcionamento já se espalhavam pelos pontos. Nada era completamente esclarecido e discutido com os bicheiros. A inovação seria, como muitas outras coisas no jogo, imposta de cima para baixo e sem muitas explicações. O bicheiro “Zé” foi um dos que não estavam satisfeitos e nem confiantes de que permaneceria no jogo por conta desta inovação. Na semana seguinte ao recebimento da “maquininha”, “Zé” saiu do bicho. Tempos depois, por intermédio de outro bicheiro, fui informado que ele havia conseguido sua transferência para o bairro onde reside e que ainda não havia projeções para a implementação das mudanças tecnológicas. Apesar do grande movimento, seu antigo ponto permanece “fechado”, sem bicheiros para substituí-lo.

Já no bairro de Vila Isabel, o bicheiro “Robinho” teve uma verdadeira “odisseia” tecnológica. O seu mais novo “brinquedinho”[18] vinha lhe tirando o sono. A máquina se assemelha em muito com uma das que se encontram no comércio varejista. Como uma máquina de pagamento com cartão de crédito, entretanto sem espaços para a entrada do cartão. Não possui a necessidade de qualquer fio ou cabo para seu funcionamento. Apesar de não possuir qualquer tipo de marca ou logo de operadora ou fabricante, se tornava um equipamento bastante familiar devido ao seu tamanho e formato. Seu sistema permanece interligado com uma central e tudo o que está sendo digitado pode ser conferido pela “apuração[19]” na hora. As apostas agora são enviadas em tempo real, sem a necessidade de envelopes ou de “fechadores[20]” para transportá-las de um lado para o outro.

No Rio de Janeiro, a “maquininha” do bicho começou no bairro de Madureira, três anos antes do início da pesquisa. O bicheiro “Carlinhos” conta que a primeira experiência com a máquina foi no estado da Bahia, no nordeste do país, e vem sendo introduzida aos poucos em pontos de diferentes banqueiros da cidade. No final de 2011, completava um ano em que o novo sistema havia sido implantado no bairro de Vila Isabel e estava sendo gradualmente expandido para outros bairros.

No primeiro dia em que tive contato com a máquina de “Robinho”, ela “cuspia” papel sem que nenhum botão fosse pressionado. No visor uma mensagem pedia uma “senha do administrador” que somente os superiores de “Robinho” possuíam. Assim, o bicheiro planejava realizar as apostas do dia em um guardanapo de papel comum do bar, deixando “na promessa e confiança” dos fregueses de que este papel teria alguma garantia futura. “Robinho esperava que ao terminar o problema da “geringonça”, ele pudesse digitalizar as apostas e enfim seguir com seu trabalho. Felizmente, o dia não estava para muitas apostas, e não foi necessário escrevê-las de maneira improvisada como planejava o bicheiro. Este problema somente servia para deixar “Robinho” mais frustrado com o novo sistema: acreditava ele que o número de fregueses havia diminuído muito com a implementação da máquina. Antes da hora do almoço, sua gerente, que geralmente surgia montada em uma bicicleta, tentou solucionar o problema. Assim que a máquina foi ligada novamente, começou a “cuspir” papel de forma enlouquecida. Visto que, o problema era mais sério do que parecia, a gerente constatou que não teria como consertá-la ali, no meio da rua. Afirmou que a máquina seria levada para a banca para que o problema fosse solucionado. “Robinho” foi então enviado para outro ponto, perto do corpo de bombeiros para substituir uma bicheira que normalmente trabalhava no local.

Ao realizar a aposta na máquina, o operador deve estar familiarizado com uma nova série de códigos a serem inseridos para as distintas modalidades de jogo desejadas. Ao longo das primeiras semanas, “Robinho” se mostrou realmente confuso e com extrema dificuldade para escrever as apostas. Até mesmo com uma tabela, correspondente a modalidade específica de jogo, e uma espécie de manual-guia improvisado escrito à mão em uma folha de papel, para ele a dificuldade era imensa. Já com certa idade, “Robinho”, não possuía nenhuma familiaridade com eletrônicos. “Eu nunca mexi num computador e agora me dão esse negócio aqui pra trabalhar”, afirmava. Sua confusão era tanta que chegou a entregar a máquina para mim de modo que eu tentasse “descobrir” como ela funcionava. Outras vezes “Robinho” me pedia para ficar próximo caso a máquina desse algum problema.

O relato descrito acima reforça que, com os desafios e problemas enfrentados no cotidiano das apostas com a implementação da nova máquina,a gestão do jogo nas ruas e esquinas da cidade, por mais que tenha um grau elevado de articulação, permanece como uma gestão pautada pela precariedade e improviso. O sistema de apostas eletrônico, como qualquer outro, não era a prova de falhas e pode ser encarado com o espírito do novo modelo de gestão atual. No atual mundo do trabalho a noção de “precariado”, ou precariedade pode ser empregada aqui tanto no sentido das condições de trabalho quanto na experiência subjetiva de insegurança vivida tanto por empresas quanto por trabalhadores. Se, por um lado, as empresas forçam os trabalhadores à precariedade, elas também operam precariamente (Filgueiras & Antunes, 2020). Entretanto, no bicho a inovação vai além de um aspecto modernizante e se apresenta enquanto um maior controle da banca sobre o cotidiano do trabalho do bicheiro. Com a entrada da “maquininha” a banca passa a controlar em tempo real todas as apostas realizadas em cada ponto. Tarefas que antes eram dependentes do trabalho do bicheiro passa a ser completamente automatizada. Uma forma de se enxergar isso é como uma melhoria facilitadora no cotidiano do gerenciamento e administração da loteria do bicho. Entretanto, para a maioria dos bicheiros estudados, que tiveram a oportunidade de trabalhar com talões, as inovações são entendidas como uma inevitável perda de autonomia em seu trabalho. O bicheiro deixa de ser “o escrevente”, ou “o apontador” e passa a ser um “operador” do bicho. Seu trabalho agora está pautado por diversas situações que estão fora de seu controle. Caso ocorra algum problema com a máquina, como ocorrido no caso de “Robinho”, as apostas do dia não poderão ser escritas causando um prejuízo tanto à banca como ao bicheiro. Principalmente se ele for comissionado.

Além disso, o próprio jogo vem sofrendo com a transição. Tanto ele como outros bicheiros reclamam da diminuição do número de apostas realizadas diariamente. “Só em dia de Federal que continua bom”[21]. Com as mudanças surgem também a crença de que há manipulação direta de resultados. A melhor vantagem que o bicheiro “Nensinho” enxerga é que ao final do dia suas mãos permaneciam limpas. “Eles nos davam cada carbono vagabundo que na terceira ou quarta vez que usávamos já ficava ruim. Agora, com a máquina eu fico limpinho”, comenta, ao mesmo tempo em que mostra seus dedos livres de manchas azuis.

Dos anos que se passaram, a máquina do bicho foi gradativamente entrando em desuso. Muitos pontos, como os da banca de “Zé”, deixaram de utilizar a máquina e voltaram temporariamente com os velhos talões. Apesar disso, o jogo não permaneceu estagnado tecnologicamente e continuou buscando acompanhar as inovações que a revolução digital tem proporcionado. Assim, apesar do desuso das máquinas nos pontos de jogo, o talão não voltou a durar. Com as recentes inovações da revolução digital e dependências que as facilidades que o sistema de telecomunicações proporciona, o bicho logo iria adentrar em meio a era dos aplicativos de celular (estilo smart-phones). Atualmente, as novas “máquinas” do bicho se encontram no formato de aplicativos de celular ligados a uma central administrada pela banca. O bicheiro agora escreve o jogo no celular e envia a aposta diretamente para uma mini impressora Bluetooth que imprime a pule para ser entregue ao jogador. Deste modo, o bicho segue se modernizando e acompanhando as tendências e facilidades trazidas pelas novas tecnologias e introduzindo-as para o universo dos jogos (Cassidy, 2020).

Além disso, o bicho agora passa a partilhar, assim como as mais variadas atividades, da infraestrutura ofertada pela rede de telecomunicações. Para se jogar no bicho, nestes casos, se tornou necessário o funcionamento de toda uma rede urbana de infraestrutura que permita que o jogo, outrora jogado em bares e botequins (Magalhães, 2005; Chazkel, 2014), agora esteja inserido em uma rede sociotécnica (Latour, 2005) mais ampla. Por um lado, ganhando força e legitimidade com as novas gerações, se adequando nos caminhos que a revolução digital proporciona. Por outros, bicheiros, como outros diversos profissionais, necessitaram se adaptaràs mudanças proporcionadas pela implementação de novas tecnologias e técnicas que modificaram a funcionalidade e operacionalidade do cotidiano de seu trabalho.

CONCLUSÃO

O meio urbano se apresenta como um palco entrelaçado por distintos atores que compartilham deste mesmo espaço, aparentemente caótico e diverso, que é a rua. Cada qual afetando o jogo de diferentes maneiras. Em diferentes momentos, era possível ver ambulantes alvoroçados correndo a fim de evitar um “esculacho” do “rapa[22]”, comerciantes interagindo com fregueses, jogadores do bicho interagindo com comerciantes e ambulantes etc. Esta questão se torna um dos principais desafios para uma sistematização da realidade social complexa como a do universo urbano, ao pesquisador que se lance em desvendar os distintos circuitos das tramas das cidades grandes latino-americanas (Telles, 2009).

Nas ruas cariocas, bicheiros descrevem sua função de modo similar ao que são feitas por funcionários de empresas em um mercado convencional. Isso faz com que estar nas ruas e esquinas escrevendo apostas do jogo do bicho insere a atividade em meio ao campo de disputas do reconhecimento da atividade enquanto um “trabalho”. O valor da atividade passa a ser reconhecido, independentemente de uma perspectiva pejorativa, moral e legal.Grassi e Danani (2009: 17) propõem a noção de "mundo do trabalho" para expressar a suposição de que, sob diferentes modalidades, a maioria das pessoas “vive do seu trabalho”: da aplicação ou emprego de suas capacidades, quer sejam valorizadas, reconhecidas, desconsideradas, mal remuneradas ou consideradas supérfluas. É a relação com o capital que impõe as condições gerais em que “se trabalha para viver”. Ao contrário da "ética do trabalho", as autoras enfatizam as múltiplas formas que constroem o mundo da reprodução social. Ambas as questões são centrais para o trabalho do bicheiro, pois tanto a ética do trabalho reflete certos modos de reprodução "socialmente aceitos" quanto supostamente "culturalmente consensuais". No entanto, ao mesmo tempo, as pessoas nesse "viver do seu trabalho" estão produzindo significados, vivendo e expressando formas diferentes de existência que têm implicações nas identidades e nos modos de inserção social. Nem todos os trabalhos dignificam, e para diferentes pessoas são diferentes tarefas que produzem dignidade. Assim, “ganhar a vida” e “formas de vida”– constituem uma porta de entrada para repensar “a economia” e discutir seu alcance, reivindicando a produtividade de uma compreensão holística da vida social (Fernández Álvarez & Perelman, 2020).

A sorte, o simbolismo, os números e a subjetividade atrelada às apostas seriam alguns dos aspectos que contribuem com o reforço de que a função é mais do que um simples ofício no imaginário popular das ruas cariocas. Bicheiros são entendidos como uma categoria que o diferencia dos demais trabalhadores urbanos e contribui com o reforço de que está inserido dentro de uma identidade típica ideal no imaginário popular. Porém, com uma visibilidade clandestina, que, dotada de preceitos éticos e com etiquetas próprias, os insere dentro de uma relação cotidiana entre a lei e a transgressão.

Nesta perspectiva, analisar o trabalho com apostas da loteria do bicho aqui vai ao encontro com o antropólogo Mariano Perelman (2014: 48),que argumenta que seria necessário observar as atividades laborais nas ruas das grandes cidades sob dois pontos de vista: A primeira, referindo-se às formas de ganhar a vida, aos modos de exploração e às relações no capitalismo; a outra, é inserir o foco na compreensão de como esses processos são vivenciados pelos próprios atores, se concentrando não apenas no âmbito da necessidade (de ganhar a vida), mas, ao mesmo tempo, na construção de modos legítimos e razoáveis de fazê-lo.

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Notas

* Pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia - UFF (FAPERJ) bem como do Instituto de investigaciones Gino Germani - UBA (CONICET). É pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT/InEAC). Doutor em Antropologia UFF.
[1] Há diversas formas de se nomear alguém que trabalha nas ruas anotando apostas do bicho: apontador, cambista, anotador, escrevente, lápis, aranha, porém o mais frequente de todos é simplesmente bicheiro (Labronici, 2012: 21).
[2] O Jogo do bicho foi inicialmente posto na ilegalidade com a legislação (art. 51, Lei Executiva nº 3.688, de 2 de outubro de 1941; art. 58, Lei Executiva nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944) que classifica o jogo do bicho como contravenção penal.
[3] Deleuze e Guattari ([1980], 2011) se apropriam da definição de rizoma originário da botânica para aplicá-la à filosofia. Assim, o rizoma é um modelo de resistência ético-estético-político, trata-se de linhas e não de formas. Por isso o rizoma pode fugir, se esconder, confundir, sabotar, cortar caminho. Não que existam caminhos certos, talvez o correto seja o mais intensivo. Nele as linhas de fuga são aquelas que escapam da tentativa totalizadora e fazem contato com outras raízes, seguem outras direções. Não é uma forma fechada, não há ligação definitiva
[4] Seu sustento pode ser sob a forma de salário, diária, ou percentual de apostas recolhidas no ponto, porém nunca há uma formalização empregatícia de funcionários. Entretanto, em outros casos estudados, existiu um processo “mais formal” e uma relação com um grau maior de estabilidade entre o jogo e seus funcionários (Araújo, 2017).
[5] Nas ruas o jogador em potencial também é chamado de “freguês” (Labronici, 2012:21).
[6] No jogo do bicho, os animais permitem transformar acontecimentos aleatórios, desagradáveis e aparentemente sem sentido, como os pesadelos, acidentes, mortes súbitas, em “palpites” que lhes dão ordem, estrutura, “valor moral” e, eventualmente, fortuna (Damatta & Soárez, 1999: 30).
[7] Uma pule (ou poule) é a materialização das apostas no jogo do bicho. Qualquer jogador que tentar a sorte terá sua aposta escrita em um pedaço de papel onde uma ou duas cópias são automaticamente feitas com uma folha de papel carbono (ou uma via impressa no caso das máquinas). O papel das apostas é assim conhecido: pule, e é nele onde a máxima do jogo está presente para todos os jogadores: “vale o escrito; 3 dias” (Labronici,2012: 86).
[8] Em algumas localidades esta presença de bicheiros na rua não é tão frequente. Na cidade de Juiz de Fora por exemplo, existem verdadeiras “casas lotéricas” (Casas Tio Patinhas) voltadas exclusivamente para o jogo do bicho. Na cidade de Fortaleza (CE), Soares nos apresenta uma padronização de bancas de bicho espalhadas pela cidade. Ver: (SOARES, 1993, p.61).Já no estado deAlagoas a estrutura se confunde com as de loterias oficiais ou detentoras de uma legitimidade distinta da que é adotada na capital carioca (Ver: Carmo, 2021).
[9] Na época em que Simone Simões (1993) realizava seu trabalho de campo esta modalidade de sorteio havia sido recém-inaugurada.
[10] A “banca” é, assim, a provedora e o suporte que dá garantia para que os bicheiros se mantenham nas ruas. Já que o pagamento de suborno depende de relações outras que estão além do próprio bicheiro. “É a banca quem decide isso” afirmavam os bicheiros. Se porventura a banca vetar o pagamento, ela assume os riscos do bicheiro fornecendo telefones de advogados que estarão de sobreaviso a uma eventual apreensão. Diante de qualquer problema ocasional, não só com policiais, um bicheiro prontamente se disponibilizará a ligar para a banca para esclarecimentos ou auxílio. Os tamanhos das bancas também podem ser variados (Labronici, 2012: 83).
[11] Segundo a máxima escutada em mais de um ponto por bicheiros distintos que afirmavam que: “Todo bicheiro bebe, se não bebesse ponto de bicho não ficava na frente do bar” (Labronici, 2012: 33).
[12] O exemplo da prática de “sentar na pule”. Isso significa que um bicheiro não repassa a segunda via da pule para a banca fazendo com que a aposta não seja contabilizada pela apuração do bicho. Assim ele adquire para si o dinheiro integral da aposta feita. É considerada uma falta extremamente grave e muito arriscada. Nem o apostador nem a banca ficariam cientes de que a aposta nunca foi contabilizada fazendo com que o bicheiro fique com o dinheiro para si. (Labronici, 2012: 109).
[13] Foram comuns casos em que, na presença de agentes do Estado, o bicheiro tivesse que interromper a escrita de apostas evitando fazer contato visual com os policiais que porventura passassem em frente ao ponto. Após a passagem deles pelo ponto o jogo continuava a ser feito sem maiores cerimônias (Labronici, 2012: 131).
[14] “Levantar o ponto” significa fazer com que ele seja mais rentável com mais apostadores. Esta é também uma parte da responsabilidade dos bicheiros.
[15] O biscoito Globo é uma marca de biscoitos de polvilho (podendo ser doces ou salgados) comumente vendidos por ambulantes nas paias da cidade. Seu pacote com rótulo amarelo se tornou um dos símbolos das praias cariocas sendo estampado também em cangas vendidas aos banhistas.
[16] Devido as múltiplas formas com a qual o jogo é gerido. Foi possível observar pontos nos quais os recursos tecnológicos tinham sido implementados convivendo com pontos em que tais recursos não tinham sido inseridos. Do mesmo modo que, devido ao fato do jogo ser tipificado como uma contravenção, os dados referentes as eventuais mudanças e inovações não puderam ser precisados, para além das experiências acumuladas ao longo do trabalho de campo desenvolvido.
[17] Ver: (Labronici, 2012:Anexo: Manual On-line).
[18] Ao referir a máquina do bicho, bicheiros foram capazes de criar uma grande gama de apelidos, em sua maioria com intuito pejorativo. “Brinquedinho”, “essa coisa”, “engenhoca”, “geringonça” foram alguns nomes atribuídos a nova máquina.
[19] Para se calcular valores, apostas, contabilizar pules, formar guias de pagamento, valores das diárias e o balanço geral das bancas se estruturam locais denominados de “apuração”. São responsáveis em apurar os jogos realizados nas pules de um número definido de pontos. As apurações podem trabalhar com até trinta pontos de uma só vez, se estes forem muito movimentados, podendo a chegar a apurar até sessenta pontos (Labronici, 2012: 82).
[20] Os responsáveis de interligar toda a estrutura no bicho são denominados “fechadores”. As listas e os talões são fundamentais para o controle do movimento da loteria e se contabilizar quanto de dinheiro entrou e saiu no dia. Em pontos onde se tem apenas uma segunda via de pule, os “fechadores” as levam direto para a “apuração” onde é levantado se houve ganhadores e quanto de dinheiro a banca recebeu ou premiou no dia. Sempre próximo ao fechamento das apostas os rapazes, geralmente com suas bicicletas, ou até mesmo motocicletas, passam de ponto em ponto recolhendo as listas do jogo (Labronici, 2012: 80).
[21] A extração se divide em uma loteria clandestina conhecida no Rio como “Paratodos” e se baseia no sorteio dos números da Loteria Federal para os jogos das 18 horas nas quartas e sábados. Nestes dias os bicheiros trabalham uma hora a mais, já que o resultado é liberado apenas as 19horas. Ver: (Labronici, 2012: 90).
[22] Como é chamada a Guarda Municipal por ambulantes e bicheiros nas ruas da cidade.Ver também: (Pires, 2011)

Información adicional

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