Resumo: O presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar as mudanças das moralidades dos vendedores ambulantes do comércio informal em relação a cidadania a partir do microempreendedor individual, figura jurídica que popularizou a forma empresarial como expediente de formalização. A pesquisa, de caráter etnográfico, foi realizada por meio de um grupo focal e de observação participante junto aos comerciantes ambulantes formais e informais. A partir dos dados coletados no campo de pesquisa é possível descrever os dilemas e divergências dos camelôs que acreditam, e os que não acreditam, nas eventuais vantagens da formalização e do caráter de ser um empresário. A atividade de vender nas ruas, historicamente, é associada à informalidade e à marginalidade. Por meio da figura jurídica empresarial, alguns interlocutores creem que é possível, tornando-se empresário, realizar uma limpeza moral dessa atividade econômica. Um dos fatores cruciais para sustentar essa ideia é o pagamento de impostos proporcionado pela formalização, tornando-se assim um cidadão pagador de impostos. A etnografia realizada demostra que, embora juridicamente formais, os camelôs formalizados em microempreendedores individuais não gozam do mesmo prestígio que os demais pequenos empresários em virtude do estigma que estes carregam por exercerem suas atividades econômicas nas ruas.
Palavras-chave: comércio ambulante, cidadania, empreendedorismo.
Abstract: The aim of this paper is to describe and analyze the changes in the morality of informal street vendors in relation to citizenship since the introduction of the individual micro-entrepreneur, a legal figure that has popularized the business form as an expedient for formalization. The ethnographic research was carried out through a focus group and participant observation with formal and informal street traders. Based on the data collected in the field, it is possible to describe the dilemmas and differences between street vendors who believe, and those who don't, in the possible advantages of formalization and being an entrepreneur. Historically, street vending has been associated with informality and marginalization. Through the legal figure of an entrepreneur, some interlocutors believe that it is possible, by becoming an entrepreneur, to morally cleanse this economic activity. One of the crucial factors in supporting this idea is the tax payment provided by formalization, thus becoming a tax-paying citizen. The ethnography carried out shows that, although they are legally formal, street vendors who are formalized as individual micro-entrepreneurs do not enjoy the same prestige as other small business owners due to the stigma they carry for carrying out their economic activities on the streets.
Keywords: street commerce, citizenship, entrepreneurship.
Resumen: .El objetivo de este estudio es describir y analizar los cambios en la moralidad de los vendedores ambulantes informales en relación con la ciudadanía desde la introducción del microempresario individual, una figura jurídica que ha popularizado la forma empresarial como un expediente para la formalización. La investigación etnográfica se llevó a cabo mediante un grupo de discusión y observación participante con vendedores ambulantes formales e informales. A partir de los datos recogidos sobre el terreno, es posible describir los dilemas y las diferencias entre los comerciantes ambulantes que creen y los que no creen en las posibles ventajas de la formalización y de ser empresario. Históricamente, la venta ambulante ha estado asociada a la informalidad y a la marginación. A través de la figura jurídica del empresario, algunos interlocutores creen que es posible, al convertirse en empresario, limpiar moralmente esta actividad económica. Uno de los factores cruciales para apoyar esta idea es el pago de impuestos que proporciona la formalización, convirtiéndose así en un ciudadano que paga impuestos. La etnografía realizada muestra que, a pesar de ser legalmente formales, los vendedores ambulantes formalizados como microempresarios individuales no gozan del mismo prestigio que otros pequeños empresarios debido al estigma que conlleva el hecho de realizar sus actividades económicas en la calle.
Palabras clave: comercio callejero, ciudadanía, emprendimiento.
Convocatoria temática
Do pagador de promessas ao pagador de impostos: cidadania e moralidades na venda nas ruas brasileiras
From the promise payer to the tax payer: citizenship and moralities in Brazilian street sales
Del pagador de promesas al pagador de impuestos: ciudadanía y moralidades en la venta ambulante brasileña

Recepción: 04 Abril 2024
Aprobación: 10 Mayo 2024
A cena urbana brasileira sempre foi povoada com a venda de serviços e produtos nas ruas e calçadas. No século XIX, a presença de escravizados de ganho, ou ganhadores, garantia essa oferta nas ruas. Tal atividade econômica exercia um importante papel na economia política da escravidão ao remunerar os senhores desses escravizados e também para que estes mesmos pudessem arrecadar dinheiro para sua alforria. Após a abolição, a prática de venda nas ruas persistiu e durante o século XX foi vista como uma atividade informal. Recentemente, essa atividade tem sido assimilada como empreendedorismo, apoiada por reformas legais que garantem novas figuras jurídicas para o comércio ambulante.
O presente artigo tem como objetivo analisar as recentes alterações na dinâmica do comércio ambulante brasileiro e suas consequências subjetivas nas moralidades desses sujeitos e o desenvolvimento da ideia de cidadania a partir dessa atividade econômica. Tais transformações se intensificaram a partir do Microempreendedor Individual (MEI), implementada pelo Lei Complementar 128 de 2008, que possibilita de modo fácil e rápido que trabalhadores por conta própria se formalizam como pessoa jurídica, ou seja, empresa, e assim, possam recolher os impostos de forma simplificada e unificada. O interesse da pesquisa não focará nos aspectos jurídicos-formais, mas, na descrição etnográfica das moralidades desses indivíduos que se formalizaram. Nesse sentido, pretende-se discutir e analisar a dimensão de cidadania que esses indivíduos elaboram a partir da possibilidade jurídica de um camelô poder ser um empresário ao se formalizar em MEI.
Tal etnografia ocorre num momento de transformação da camelotagem. O comércio ambulante, historicamente, foi elencado como problema social, ora associado à vadiagem, ora associado à marginalidade. De modo superficial, governos e autoridades abordavam o comércio ambulante como uma atividade econômica informal transitória na medida que era percebida como uma alternativa para quem estava desempregado (Hart, 1973; Hirata, 2020). Contudo, os dados no campo, e um mosaico de pesquisas, revelam que a atividade de vender nas ruas constitui como um verdadeiro modo de ganhar a vida e não meramente como algo transitório (Perelman, 2017; Pires, 2010) .
A pesquisa foi realizada por meio de dois expedientes metodológicos com os comerciantes ambulantes do centro de Niterói, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. O primeiro foi a realização de dois grupos focais em março de 2019 com comerciantes ambulantes licenciados e não licenciados. O objetivo dos grupos focais tinha como meta a elaboração de um diagnóstico de demandas para um projeto de extensão universitário de assessoria popular junto aos camelôs da cidade. Na dinâmica desses grupos focais ficou latente o contraste da visão e percepção dos ambulantes licenciados para com aqueles que não tinham a licença e, em especial, uma certa hierarquização daqueles que agora eram formalizados em MEI. A principal distinção dos camelôs-MEI era: “agora, eu pago imposto, eu contribuo.”
Após conduzir grupos focais, realizei uma imersão de observação participante(Foote-Whyte, 1975). entre os camelôs. Essa prática, que envolve "viver e conviver com os universos pesquisados, participando de suas dificuldades e dramas por períodos mais extensos" (Foote-Whyte, 1975: 215) buscou evitar a armadilha do senso comum, estereótipos e preconceitos. Outro aspecto importante é que a minha inserção no campo foi “facilitada” por meio das ações extensionistas, iniciadas em 2019, a qual se prolonga até os dias atuais, atuando como advogado pro bono da Associação de Camelôs Niterói. Assim, a longa permanência no campo de pesquisa proporcionou a criação de vínculos de confiança com interlocutores chaves, além de poder acompanhar a trajetória deles.
A fim de conduzir a presente análise da pesquisa, criei dois personagens fictícios que são uma síntese dos interlocutores no campo de pesquisa. Esses dois representam tipos ideais sobre a percepção da formalização. Maria é comerciante ambulante licenciada e uma entusiasta do MEI e de ser empresária. Enquanto Marçal é um camelô sem licença que não acredita que ser formalizado em “micro”, uma alcunha dos interlocutores para o MEI, irá alterar a sua situação nas ruas. Os interlocutores chamam os ambulantes licenciados de barraqueiros, por conta da barraca que a licença proporciona. Aqueles que vendem nas calçadas sem licença - portanto, de forma clandestina -, são chamados de perde-e-ganha, por conta do risco de se perder essa mercadoria por conta da fiscalização.
Com o escopo de fazer uma análise entre formalização e cidadania brasileira utilizei omeio dramatúrgico para uma análise em relação à formalização dos comerciantes ambulantes. A proposta é utilizar de uma peça teatral - O Pagador de Promessas - a fim de utilizar a narrativa desenvolvida por seus principais personagens para, mimeticamente, analisar a postura dos camelôs em relação ao poder público e a lógica de formalização via MEI.
O roteiro da peça desponta do contexto da luta pela sobrevivência de seus personagens: a maneira e formas de ganhar a vida e a relação com os estabelecimentos oficiais. No desenrolar da peça há situações de embate entre os personagens e a Igreja. Esse ponto de tensão é o alvo de minha análise e a partir da trajetória de Zé do Burro, em O Pagador de Promessas, a fim de traçar um paralelo com os camelôs e o “micro”. Tal laço é estabelecido pela ideia que interlocutores e o personagem da peça tem no ímpeto da ideia de honra, de pagar sua promessa, ou, no caso do campo de pesquisa, pagar os seus impostos. Por outro lado, ambos compartilham a ideia de precariedade (Pires, 2017), na qual Zé do Burro tem um vício de origem, ao fazer a sua promessa num terreiro de candomblé, e os camelôs carregam o traço indelével da marginalidade a serem considerados pessoas suspeitas, seja pela sua origem social, seja pela cor da sua pele, seja pelo seu local de moradia (as favelas), seja pelo modo como ganham a vida.
A abordagem analítica a ser adotada consiste em extrair reflexões da realidade brasileira, apoiando-me em obras cênicas. Esse método foi utilizado por DaMatta (1997) ao observar a partir da trajetória de Pedro Malasartes e Augusto Matraga para analisar a malandragem e heroísmo da sociedade brasileira. Hirata (2018b) realiza algo semelhante ao utilizar a letra da música dos Racionais MC’s para discorrer sobre a vida incerta nas periferias (vidas lokas), sobre a “percepção da vida como guerra”, do “proceder”. Nesse sentido, o objetivo é utilizar a peça a fim de “atar os fios de todo o texto apresentado” (Hirata, 2018b: 226).
O que considero relevante tratar é a especificidade dessa obra dramatúrgica ao elaborar quase que um roteiro etnográfico sobre a vida das classes subalternas. Nesse sentido, as semelhanças e intercessões da postura desses personagens será o fio condutor dessa análise.
Arte e sociedade caminham juntas. Não há possibilidade de dissociar uma obra de sua realidade, a não ser que haja uma intenção concreta do autor nisso. Outrossim, não poderíamos imaginar que “O Capote” de Nikolai Gogol fosse possível ser escrita por um brasileiro, uma vez que é impensável um drama que circule ao redor do impasse entre a necessidade de um capote novo para enfrentar o rigoroso de um inverno.
Zé do Burro, portanto, dificilmente existiriam se não fosse no sertão brasileiro. E esse ambiente é a principal origem daqueles que migraram no processo de êxodo rural que ocorreu no Brasil cujo destino eram as grandes cidades metropolitanas e o seu encontro com a informalidade. O Pagador de Promessas é uma fábula vivida na capital baiana (Gomes, 1985: 20). Apesar da história ser totalmente imaginada, “ela é construída sobre elementos folclóricos ou sociológicos que exprimem uma realidade” (Gomes, 1985: 20). Logo, a peça possui uma autenticidade, à parte os exageros e uso de expedientes metafísicos, que conseguem retratar a luta pela sobrevivência desses indivíduos e a relação deles com os estabelecimentos oficiais e suas autoridades.
Mesmo a obra de arte mais sublime adopta uma posição determinada em relação à realidade empírica, ao mesmo tempo que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de modo inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito do momento histórico. Que as obras de arte, como mônadas sem janelas, «representem» o que elas próprias não são, só se pode compreender pelo facto de que a sua dinâmica própria, a sua historicidade imanente enquanto dialéctica da natureza e do domínio da natureza não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se lhe assemelha em si, sem a imitar. A força produtiva estética é a mesma que a do trabalho útil e possui em si a mesma teleologia; e o que se deve chamar a relação de produção estética, tudo aquilo em que a força produtiva se encontra inserida e em que se exerce, são sedimentos ou moldagens da força social. (Adorno, 1982: 16)
A primeira seção do presente trabalho irá apresentar um panorama sobre a lógica de organização das cidades brasileiras, por meio das posturas municipais, a partir da especificidade da escravidão e como tal fator histórico engendrou uma arquitetura institucional em oposição a cidadania. Na segunda seção, será abordada as perspectivas dos interlocutores acerca da formalização, seja os dados dos grupos focais, seja na descrição feita da atividade econômica de vender nas ruas e a sua relação com a ideia de cidadania.
“Lá nos 70 e 80 o camelô não era legalizado, a polícia abordava mais por vadiagem. Você tinha que vender sozinho. Se reunisse duas, três pessoas, passava a polícia e prendia todo mundo por vadiagem”, me diz Maria quando começa a sua recordação em relação a sua primeira licença. Ela começou a vender nas ruas seguindo os passos de seu pai já aos 14 anos, na metade dos anos de 1970. Vendia doces, depois passou a vender bijuterias e hoje comercializa óculos. Na década de 1980, Maria conquistou a sua primeira licença.
O licenciamento do ato de vender nas ruas não foi algo inédito. Pesquisas apontam que a disputa em torno da licença e da regulamentação pública já foram motivos e pautas de movimento grevistas como o caso dos ganhadores de Salvador em 1857 que paralisaram suas atividades a fim de reclamar do aumento da taxa e da força de licença exigida pela Câmara de Vereadores (Reis, 2019). Soa um tanto contraditório um movimento paredista realizado por escravizados, contudo, a dinâmica do “ganho”, na qual os proprietários são remunerados e as atividades essenciais que estes escravizados realizavam fez com que fosse possível uma greve em torno da disputa do Código de Posturas municipais. (Reis, 2019)
A criação de posturas municipais, enquanto regramento normativo do uso das cidades, pode ser um pontapé inicial para analisarmos a influência da escravidão de ganho na dinâmica de regulação e ocupação da cidade. Primeiro por conta da sua natureza disciplinadora e repressiva. Influenciado pelo “haitianismo” e o receio de uma nova revolta dos malês, muitas Câmaras de Vereadores endureceram as posturas municipais a fim de mitigar os espaços de sociabilidade dos escravizados. Assim, os “administradores da cidade tentaram evitar de todas as formas que ela se transformasse num esconderijo” (Challoub, 1988: 91). Nota-se que a maior preocupação em si não era coibir essa atividade econômica nas ruas, que remuneram os proprietários de escravizados, mas de repreender espaços de conspiração que possibilitassem revoltas. Assim, as posturas municipais do século XIX revelam “a fórmula utilizada por esses códigos - elaborados por administradores-proprietários em defesa de seus bens - contra os despossuídos dessa sociedade.”(Challoub. 1988: 96) Esses despossuídos, no Brasil oitocentista, eram aqueles que eram propriedade de alguém, os escravizados, ou aqueles que, sendo libertos, nada possuíam e, assim, se constituíam igualmente como pessoas suspeitas. Desse modo, “a cidade que escondia ensejava aos poucos a construção da cidade que desconfiava, e que para desconfiar transformava todos os negros em suspeitos” (Challoub, 1988: 91).
A construção de posturas municipais a partir do problema em manter uma atividade econômica nas ruas desempenhadas por pessoas escravizadas, e com o medo de uma possível rebelião, se contrasta com códigos legais de outros países que não vivenciaram a escravidão urbana de uma forma tão enraizada quanto a brasileira. Em Buenos Aires, por exemplo, o código que se assemelha com a vocação de um código de postura se chama “código de convivência”, colocando no centro do seu título a dimensão de uma cidadania (Pires, 2010). Não quero dizer que os nomes e rótulos expressam tudo. Entretanto, eles nos dizem algo e dão pistas para se pensar se seria possível algo como Código de Convivência nas principais cidades brasileiras no século XIX, uma vez que a sociabilidade negra era temida como um fantasma de rebelião que ficava sempre à espreita, sendo o negro assimilado como perigoso e alguém que precisa ser vigiado e disciplinado. Os legisladores e administradores brasileiros do século XIX receavam uma convivência, poque espaços de convivência eram vistos como espaços de conspiração, e exigiam disciplina e postura para a massa de negros que ocupavam a cidade com sua atividade econômica. Desse modo,“perseguir capoeiras, demolir cortiços, reprimir a vadiagem - o que geralmente equivalia amputar opções indesejáveis de sobrevivência - era desferir golpes deliberados contra a cidade negra.” (Challoub, 1988:105)
No período pós-abolição e republicano foram editadas novas normas que seriam instrumentalizadas para regulamentar o uso da cidade. O Código Penal de 1890 dedicava um capítulo (XIII) apenas para tipificar as condutas de vadiagem que era descrita em seu artigo 399 como “deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida.” Importante observar que nesse mesmo capítulo também era criminalizado a “capoeiragem”, prática usual dos ex-escravizados. O que possibilitava, no curso cotidiano de vigilância das agências policiais, associar práticas sociais e sujeitos dentro de um padrão classificatório que naturaliza a assimetria e convalida o racismo institucionalizado.
Ao criminalizar a capoeiragem, o Estado republicano já anunciava a ideia que estava por vir: a implementação de um verdadeiro ‘processo civilizatório’, no mau sentido, por compulsório e etnocêntrico” (Lima, 1991: 162), o qual modulava a cidade a partir de uma “identidade branca, europeia, em que negava-se toda e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade culturalmente dominante, aliada a uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade”(Lima, 1991: 162).
Esse tipo penal, a capoeiragem, ganha uma nova modelagem ao ser descriminalizado no contexto estadonovista, em 1941, inserida na lei de contravenções penais e está em vigência até hoje[1]. Nessa mesma conjuntura é que se promulga a Consolidação das Leis Trabalhistas e ocorre o advento da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Tal movimento estava conjugado com a era fordista, de início da industrialização do país e criação de leis a fim de regulamentar as relações de trabalho. A carteira de trabalho moldou a nossa cidadania ao criar uma clivagem entre os que tinham uma ocupação lícita formalmente constituída para com outros trabalhadores que não tinham registro na carteira de trabalho.
Assim, o processo de urbanização brasileiro, na segunda metade do século XX, foi edificado a partir do paradigma da cidadania regulada (Santos, 1979), no qual a prática autônoma de vender nas calçadas sujeitava os indivíduos a abordagem policial por vadiagem, dada a falta do salvo conduto cívico representado pela carteira de trabalho, e à repressão baseada no discurso de ordenamento urbano.
Conforme aponta matéria d’O Globo, o balanço das estatísticas policiais da cidade do Rio de Janeiro em 1975 mostrava que “vadiagem” era o segundo crime mais “praticado” na região metropolitana, com 1.956 casos, superando os “flagrantes de tóxicos” e perdendo apenas para lesão corporal culposa. Na mesma reportagem há um dado interessante: ao analisar a anulação da prisão em flagrante realizada pela autoridade policial, o juiz percebia que o ‘“vadio” era um comerciário que estava sem documentos, um biscateiro sem carteira assinada ou até mesmo doentes em tratamento.”(Villela: 2014, online).
Ocasiões como essas proporcionaram a emergência de figuras como a do “delegado Chico Palha'', eternizado na canção de Zeca Pagodinho, em que dizia que esse delegado “não prendia, só batia” aqueles que ele considerava vagabundos[2]. Em outras palavras, portar uma carteira de trabalho agia como fator crucial para evitar uma prisão arbitrária e, principalmente, o esculacho[3] (Pires, 2011). Os camelôs, como pequenos comerciantes, não têm acesso à Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) pela natureza de suas atividades econômicas.
Portanto, ser informal nesse contexto histórico fordista era não estar enquadrado nas regras celetistas e, portando, despojado do espectro da cidadania. Como foi observado, os movimentos migratórios acentuaram os problemas ligados à incorporação produtiva desse contingente de trabalhadores que chegavam nos centros urbanos em busca de uma forma de sobreviver (Machado Da Silva, 2002). Pela prática de comércio - comprar para depois revender - muitos seguiram pela camelotagem que, naquela época, não havia qualquer documento que lhe assegurasse a comprovação de suas atividades, uma vez que a regularização dessa atividade econômica na junta comercial era bastante onerosa e extremamente burocrática.
Esse vácuo legal, no qual não havia como comprovar a ocupação lícita dos ambulantes, sempre agiu como um déficit de cidadania aos camelôs. Assim, as autoridades públicas agiam com suspeição para quem se dedicava a essa atividade de vender nas calçadas, primeiro como vadios e depois como alguém que se camufla para cometer crimes ou causa desordem urbana com sua informalidade. Nesse sentido, o estereótipo que o camelô carrega - das classes subalternas, oriundo da periferia e composto majoritariamente de pessoas negras - endossa a ideia de sujeição criminal, na qual se realiza a partir de indivíduos que são socialmente marcados como"propensos a cometer um crime” (Misse, 2015: 14). Dentro de uma lógica de que para esses indivíduos, o crime é inevitável e quase como uma questão de tempo.
A vadiagem estava no centro do discurso da repressão contra o comércio ambulante. A administração pública se organizava em torno dessa ideia de combater vadios e a partir disso irradiava as suas políticas públicas de segurança. A utilização da calçada pelos ambulantes não era, nesse momento histórico, associada à desordem urbana, mas sim à vadiagem. Em entrevista ao Jornal O Pasquim na edição número 367 de julho de 1976, Sivuca, delegado de polícia famoso por pertencer ao grupo de extermínio Le Cocq[4], comentou sobre a prática de seus colegas delegados em realizar prisões por vadiagem para fazer estatística. Ao comentar isto, o jornalista Jaguar retruca: “e os camelôs?”, ao passo que Sivuca responde:
Não prendo camelôs para autuar por vadiagem. Tem delegacias que dão cerca de 100 vadiagens mensais nesse tipo de classe. Alguns colegas alegam que muitos camelôs tem fichas pregressas de assaltos, tráfico de tóxicos. Trabalha de camelô apenas para disfarçar a sua verdadeira função. Uma espécie de vitrine, né? Prendo o camelô para apurar a sua possível fonte de renda. Se porventura, tá vendendo lápis, deixo o homem continuar trabalhando, embora sempre vigiado. Ele realmente pode terdeixado de assaltar ou traficar. Tá tentando encontrar um meio para se sustentar. Não pode ser detido, retornar pra prisão. Em um ano e meio em Madureira deu apenas 3 vadiagens.
A visão do delegado é de associar o camelô à criminalidade utilizando disso para esconder a sua verdadeira intenção. O ambulante, como se percebe, fica totalmente à mercê de abordagens policiais por uma mera suspeição. Principalmente por não encontrar uma ocupação regular no mercado formal de trabalho e não ter documentos que comprovem a sua condição de comerciante. Para se desvencilhar de tal empecilho, é fundamental ter a carteira de trabalho ou de estudante para assim comprovar a ocupação.
Kant de Lima analisa a atuação da polícia frente a questão legal da criminalização da vadiagem. O autor percebe que antes das autoridades policiais se debruçaram acerca dos fatos da ocorrência, analisam as condições sociais dos envolvidos, em especial, do suspeito. Desse modo, a partir da capacidade econômica a polícia presume a consequência lógica do bom relacionamento deste com a lei. Ao passo que para os empobrecidos são vistos como um perigo potencial à sociedade, o qual a prisão por vadiagem funcionava como um recurso para retirar esse elemento de circulação (Lima, 2019: 108)
Esta prática discriminadora manifesta-se pela exigência: seus documentos!, habitual quando a polícia, por qualquer motivo, aborda um cidadão comum na rua. As pessoas de classe baixa, além daidentidade comum, têm de apresentar prova de estarem trabalhando para não serem taxadas de vadias (Lima, 2019: 108)
Atualmente, essa desconfiança é sentida na pele pelos camelôs em virtude de toda trajetória de suspeição e perseguição pelo poder público de sua atividade econômica que impõe a atividade econômica de vender nas ruas um estigma (Goffman, 1963). O próprio processo de formalização via MEI desses comerciantes é insuficiente para dirimir essa estigmatização, uma vez que essas discriminações se realizam a partir do contraste entre a identidade social virtual e a identidade social real (Goffman, 1963) do que é ser empresário e do que é ser um camelô. Marçal sempre caçoa com a ideia de que sendo MEI é também um empresário na medida de que, para ele, “camelô é tudo favelado”.
A caracterização como favelado remete a um lugar chamado favela, na qual perpassa a dimensão da sujeição criminal (Misse, 2010) e da precariedade (Silva, 2019; Pires, 2017).Por isso, é um local que ativa uma precarização da cidadania “por meio de um direito desigual aplicado em lugares que a chancela de favela classifica o espaço e os sujeitos que esse espaço produz” (Silva, 2019: 121). Nesse sentido, a sujeição criminal também se territorializa, ganhando contornos espaciais e amplificando-se nos sujeitos locais. Assim, simplesmente pelo fato das pessoas morarem nesse território, recai sob ela o espectro de perigosas ou propensas a cometerem um crime. Por meio dessa ideia Marçal vê a incompatibilidade de um favelado ser empresário.
Maria já pensa o contrário. Para ela, não há diferença na medida em que o MEI oferece um CNPJ e, assim, “você pode falar de empresa para empresa". Tal raciocínio estipula a ideia de igualdade formal dos sujeitos pleiteada pela cidadania, na qual, por meio da trajetória dos camelôs, eles compreendem que para ser cidadão é necessário se tornar uma empresa. Desse modo, para Maria, é como se o camelô não pudesse ser cidadão pois este carrega a marca da informalidade e da marginalidade. Por outro lado, sendo formal é como essa marca se apagasse, como se o MEI agisse por meio de uma limpeza moral que proporciona ao indivíduo formalizado a oportunidade de ingressar no espectro da cidadania. Entretanto, esse ingresso não é gratuito: “agora eu pago meus impostos”, repete sempre Maria. A ideia de que o camelô não paga impostos, “não contribui com a sociedade”, está cristalizada entre os interlocutores. Por isso que o MEI age de uma forma tão direta na moralidade desses sujeitos, pois com o pagamento simplificado de seus tributos, por meio de um recolhimento simplificado, tem-se a ideia de que agora “eu estou quite com a sociedade” como sempre diz Maria. A promessa de ser um “cidadão pagador de impostos” é o que move Maria, e outros ambulantes entusiasmados com a formalização, a acreditarem no MEI e na ideia de serem empresários.
Eu acho que a questão do MEI foi importante pelo seguinte: o ambulante é muito associado à informalidade. Quando se fala de camelô, se pensa em informalidade. A questão é não ligar o ambulante à informalidade. Então eu acho que o MEI veio para isso, para mostrar que o ambulante não é todo ele informal. (Comerciante Ambulante licenciado participante do Grupo Focal)
O espectro da sujeição criminal que paira sobre a camelotagem é sentida pelos interlocutores de múltiplas maneiras. Todavia, duas delas se expressam de forma mais relevante: a ideia de que vender nas ruas é uma espécie de camuflagem para a prática de crimes e a suspeita da procedência das mercadorias, em geral, associadas como fruto de atividades criminosas.
A licença ao comércio ambulante, como uma autorização do poder público para o exercício das vendas nas calçadas, foi o primeiro passo para a regulação dessa atividade econômica. Todavia, essa autorização é caracterizada pelo direito administrativo como um título precário, ou seja, pode ser revogada pela prefeitura a qualquer momento e sem indenização ao seu titular. Isso, por si só, já ilustra o caráter transitório desse ofício. Ademais, a ideia geral dos primeiros licenciamentos estava fundamentada justamente na ideia de que o comércio ambulante era uma atividade provisória, na qual atas primeiras licenças estariam vocacionadas àqueles que não conseguiam ser absorvidos pelo mercado formal.
Além disso, essa dimensão precária não se limita apenas ao título jurídico, mas também ao próprio indivíduo o qual possui essa autorização. As permanências da matriz escravocrata estão inseridas na formatação de uma sociedade desigual, na qual o Estado age sempre a partir de uma fórmula de suspeição, ativando a precariedade dos indivíduos com a finalidade desigualá-los. Assim, precário também significa “o próprio sujeito em seu direito a se reproduzir socialmente, através do acesso igualitário à utilização do espaço público.” (Pires, 2017: 383)
A dinâmica da precariedade reflete diretamente na cidadania desses indivíduos e como eles assimilam o fato de ser cidadão. Conversando acerca da cidadania com meus interlocutores é que observei essa diferença. Enquanto Marçal não conseguia compreender como ser “cidadão” é associado a uma coisa boa, Maria insistia que é cidadã por ser formalizado em MEI, pois agora ela paga os seus impostos.
Eles explicam suas razões: Marçal argumenta que nunca viu “cidadão” ser coisa boa porque é sempre assim que as autoridades públicas o chamam para fazer abordagem, seja de policial para averiguar uma atitude suspeita, seja dos guardas e fiscais para apreender a mercadoria. Para ele, “trabalhador” é quem age dentro da lei e é sujeito de direitos. Maria ri e caçoa dessa ideia. Ela diz que não dá para ser cidadão se não quiser contribuir e pagar os seus impostos. Assim, ela diz que com o “micro”, ela se torna uma cidadã pagadora de impostos. Porque, após estar formalizada, ninguém pode mais dizer que ela não contribui e, cumprindo os seus deveres, também agora merece os seus direitos.
Para Maria ser “micro” garante direitos. Ela elenca dois motivos principais. O primeiro é o fato de que agora, sendo MEI, pode-se exigir a nota fiscal do fornecedor e assim comprovar a licitude da mercadoria.
O ambulante tem hábito de não pedir nota fiscal. Ele compra nos comércios estabelecidos e não pede a nota fiscal. Isso abre brecha para o poder público marginalizar porque não tem como provar a procedência da mercadoria. Mas com o MEI agora a gente fala de CNPJ para CNPJ, de empresa para empresa, e aí a gente pode exigir essa nota fiscal. (Maria)
A segunda, é que recolhendo impostos via MEI, as autoridades públicas precisam ser mais zelosas na abordagem com os “micros” porque “nós pagamos impostos também e, consequentemente, os salários dos servidores públicos.Agora, quando o guarda vem aqui achacar, eu já falo assim: me respeita porque eu pago o seu salário. Porque agora nós pagamos imposto. Não pode falar de qualquer jeito com a gente não.” (Maria).
A mesma dinâmica dos impostos ocorre com os empresários lojistas. Maria diz que “eles (lojistas) sempre jogavam na nossa cara que estávamos atrapalhando, que a gente não pagava imposto, que a concorrência era desleal. Hoje eu já falo: eu sou micro. Eu estou pagando imposto também.” O discurso da concorrência desleal, de supostas mercadorias de camelôs oriundas de contrabando e sem o devido pagamento dos impostos, é instrumentalizado pelos lojistas para pressionar as autoridades a coibir esse tipo de comércio.
Para Maria, com o pagamento de impostos simplificado pelo MEI, o ambulante pode pagar seus impostos e estar quite com a sociedade. Logo, para ela, todo camelô é um devedor à sociedade e, por isso, poderia estar sujeito à arbitrariedade. Entretanto, o pagamento dos tributos é capaz de quitar essa dívida e de transformá-la numa empresária que paga seus impostos e, consequentemente, numa “cidadã pagadora de impostos”.
No meio dessa conversa, que acontecia na calçada entre as barracas dos ambulantes, Marçal começou a pedir para que Maria contasse a história dela na CDL (Câmara de Dirigentes Lojistas), que é um sindicato patronal dos comerciantes. Nós estávamos num meio de uma “entrevista”, o qual não era uma entrevista propriamente dita, mas como eles gostavam de falar quando conversávamos sobre os assuntos pertinentes a minha pesquisa. Nesses momentos, especialmente quando era ao fim do dia, era comum juntar camelôs, principalmente para contrapor e debater as histórias e versões que cada uma apresentava
“Então conta pra ele a sua ida lá à CDL então!” insistia Marçal. Maria, com relutância, começou a contar a história com a advertência de que a culpa era da direção da CDL que não entendia a importância do MEI no comércio ambulante.
Um dia fomos num evento da CDL, o convite era para os MEI em geral. Aí quando chegamos lá começaram a falar mal dos ambulantes. Eles não sabiam que nós éramos ambulantes né! Falaram que é tudo mulambo, que vende pirataria, contrabando. Ele começou a dizer que essas pessoas não podem se associar à CDL porque muita gente que é camelô, mora na comunidade e aí não paga IPTU. Aí, por conta disso, não poderiam se associar. Mas eu sempre discordei disso. Já falei que o micro veio para todos, que a gente teria direito mesmo sendo de comunidade. (Maria)
“Tô te falando, ela insiste com essa coisa de achar que é empresária”, caçoa Marçal depois de Maria ter contado a história. “Tu é mesmo é favelada!”, repetia ele, rindo. Essa divergência era comum no campo de pesquisa. Principalmente porque no começo do MEI havia uma expectativa grande da regularização que ele prometia, na qual muitos acreditavam que essa “formalização” dispensava a necessidade de licença da prefeitura que autorizasse a venda. Desse modo, muitos vendedores “perde-e-ganha”, como são chamados os vendedores clandestinos, se formalizaram enquanto MEI e colocaram seus tabuleiros na rua. Quando chegou a fiscalização, tiveram a sua mercadoria apreendida e a frustração em saber que apenas o MEI era insuficiente para legalizar a sua venda na rua e impedir a apreensão de mercadorias. Ainda é necessário a licença da prefeitura.
A ideia de formalização, para esses interlocutores, está ligada diretamente à ideia de direito e cidadania. Assim, alguns camelôs acreditam que é necessário pagar os impostos para ingressar no sistema de dádivas trocadas (Mauss, 2017: 245) e assim entrar no seleto grupo de contribuintes e no sistema de crédito e honra. Ao pagar os tributos, avaliam que estão sendo honestos com o restante da sociedade e, em contrapartida, esperam o retorno da sociedade com esse reconhecimento, cessando assim a desconfiança em relação a sua mercadoria e a sua atividade econômica.
Do mesmo modo, a formalização em MEI permite essa metamorfose do comerciante ambulante para um microempreendedor, tanto no nivelamento formal, como pessoa jurídica, realizado pelo direito em tornar indivíduos desiguais formalmente iguais, quanto na subjetividade desses interlocutores. Assim, há uma elevação da autoestima de cada camelô que com o seu número de CNPJ pode se autoproclamar empresário/empreendedor por ter um documento que comprove tal condição e assim uma expectativa gozar de uma maior prestígio e respeito da sociedade.
Enquanto antes, no espectro fordista, só podia ser considerado trabalhador quem tinha a sua carteira de trabalho assinada, agora, no espectro neoliberal, o empreendedor assume esse lugar com maior valor para a sociedade em detrimento a visão do “trabalhador por conta própria” que antes caracterizava esse tipo de empreendimento.
Assim, o empreendedor é assimilado - nessa nova formatação neoliberal - como alguém destemidoe, por outro lado, o empregado formal é “pra quem tem medo, preguiçoso e acomodado” conforme narra um interlocutor entusiasta do MEI. A todo instante ele tenta me convencer que vender nas ruas e ter sua liberdade, seu próprio horário, dá mais dinheiro do que ficar suportando o patrão. Esses discursos caracterizam o sujeito neoliberal ou neosujeito, conforme dissertam Dardot e Laval (2016). O “micro” age justamente para dar uma roupagem jurídica a essa nova subjetividade em que o ideário neoliberal estimula ser mais exposto ao risco, fundado numa concorrência contínua e viver nas incertezas. Fatos que, de certo modo, sempre caracterizaram a camelotagem. Esse raciocínio empresarial, em que ser patrão de si mesmo é melhor que ser empregado de alguém, mesmo que isso resulte na perda de direitos e garantias, é o mote central dessa nova racionalidade liberal.
Por neoliberalismo de baixo para cima, entendo, portanto, um conjunto de condições que se concretizam para além da vontade de um governo, de sua legitimidade ou não, mas que se transformam diante das condições sobre as quais opera uma rede de práticas e saberes que assume o cálculo como matriz subjetiva primordial, e funciona como motor de uma poderosa economia popular que mistura saberes comunitários de autogestão e intimidade com o saber-fazer na crise como tecnologia de uma autoempresarialidade de massas. A força do neoliberalismo pensado dessa maneira acaba se enraizando nos setores que protagonizam a chamada economia informal como uma pragmática vitalista. (Gago: 2019: 15-16)
Nesse sentido, as diretrizes do neoliberalismo agem também no modo de vida das pessoas e, em especial, nas estratégias de ganhar a vida. A atividade econômica do comércio ambulante ilustra bem a forma como esse ofício é visto. Da vadiagem, para a informalidade e depois uma atividade empreendedora. Tais mudanças têm reflexo também na lógica de governança que se realiza a partir do “empresariamento” do comércio ambulante. Nesse aspecto, o MEI tem um papel relevante ao simplificar todo o processo de formalização. Assim, ao menos no território jurídico, a questão da informalidade, marcada principalmente pelo não pagamento de impostos, estaria solucionada com o recolhimento dos tributos com essa nova “roupagem” empresarial a partir do CNPJ. Com essa personalidade jurídica, muitos assumem a persona de empresário e assimilam esse ethos empreendedor para pleitear acesso à direitos. Assim, “a incidência governamental deixa de atuar apontando apenas os limites, normalmente jurídicos e policiais para a atuação dos vendedores ambulantes, e passam a incidir no sentido de mobilização dos camelôs através do diagrama empreendedor” (Hirata, 2018: 105)
A trama a ser mobilizada na presente análise envolve pessoas das classes subalternas: pequenos agricultores e gente que ganha a vida como “faz-tudo”, por meio de “bicos” e pequenas prestações de serviços. A Igreja - enquanto uma instituição oficial - age como reguladora desses espaços com presença central na peça. N’O Pagador de Promessas, o destino de Zé do Burro é a Igreja dedicada à Santa Bárbara em Salvador. Lá ele é barrado e impedido de ingressar com a sua cruz a fim de cumprir com o prometido. Como adverte Dias Gomes, “não nos interessa o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa - é a crueldade de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade.” (1985: 20). Assim, o Padre Olavo retratado na peça pode ser sintetizado não apenas em relação à intolerância religiosa, mas sim à “intolerância universal. Veste batina, podia vestir farda ou toga.” (Gomes, 1985: 20) O martírio de Zé do Burro ao requerer algo supostamente simples, entrar na igreja para cumprir sua promessa, leva a uma espiral de acontecimentos que acaba por trucidar esse personagem. A premissa para tal impedimento é simples: a autoridade compreende que a promessa não é católica, portanto, estaria viciada e impedida de ser cumprida. De outro lado, está Zé do Burro, obstinado em cumprir a sua promessa à Santa Bárbara/Iansã, movido pelo sentimento de que “promessa é dívida” e, assim, estar livre com suas obrigações.
Somente o povo das ruas se identifica com aquela história. Confraterniza ao lado de Zé do Burro e dá o suporte necessário: “incialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte” (Gomes, 1985: 20). O desfecho da peça - com os capoeiristas levando em seus braços o corpo de Zé do Burro com a sua cruz - aponta para um sentido de vitória popular e a ruptura de uma engrenagem social que, sem dúvidas, a Igreja - como instituição - faz parte. Os capoeiristas não estão presentes de forma gratuita. Na realidade brasileira, foram assimilados como problema social e de criminalidade, elencados no período pós abolição como problema crucial da segurança pública das cidades (Kant, 1991).
A peça tem como mote central a promessa. O juramento à Insã para salvar o seu burro é o fio condutor n’O Pagador de Promessas. Por isso, a fim de fazer a análise dos camelôs em relação à formalização proporcionada pelo MEI, dialogo com os episódios narrados pelo dramaturgo. A Igreja é comparada com o papel da administração pública, seus regulamentos, requerimentos, burocracias e - principalmente - o papel de seus agentes públicos. A promessa presente na peça, será relacionada na análise de como os camelôs agem com a promessa realizada pelo MEI, à narrativa ideológica do empreendedorismo, e toda resistência da sociedade e autoridades em relação a isso.
Ao ter seu burro atingido por um raio, Zé do Burro decide fazer uma promessa para Santa Bárbara, conhecida como a protetora contra raios, trovões. Por conta de sua pequena cidade não contar com a imagem da santa em igreja, Zé do Burro realiza a sua promessa num terreiro de candomblé, onde tinha a imagem da santa, que no sincretismo religioso tem como correspondente Iansã, senhora dos raios e da tempestade. Este é justamente o ponto de tensão da peça e por onde se desenvolve todo o drama. Ao descobrir que Zé do Burro realizou a promessa num terreiro de candomblé, o diácono da paróquia, Padre Olavo, impede imediatamente a efetivação da promessa com a entrada de Zé do Burro na Igreja.
A partir disso, o pagador de promessa é envolto por sucessivos acontecimentos pela sua postura inexorável em insistir na entrada da Igreja com a cruz a fim de honrar o seu compromisso com a santa. Zé do Burro acredita que na autenticidade de sua promessa, pois, para ele, não há diferença da imagem estar numa igreja ou num terreiro. Contudo, essa diferença é assimilada de forma implacável pelo padre.
A marca de Padre Olavo é a intolerância, ao não ceder os suplícios de Zé do Burro. O sacerdote questiona o seu catolicismo, a sua fé, pelo fato de Zé do Burro ter jurado em um terreiro de candomblé. Essa fronteira tão nítida para Padre Olavo, entre os territórios da igreja católica e do terreiro de candomblé, é imperceptível para Zé do Burro, o qual acredita poder transitar livremente. De certo modo, compreende-se aqui a fronteira porosa da qual disserta Telles e Hirata (2007), na qual a transitividade entre legal e ilegal, formal e informal, é imperceptível para quem atua nos mercados populares.
Assim, de tal modo como Zé do Burro crê que ter feito a promessa em um terreiro de candomblé é uma questão menor, muitos ambulantes assimilam a informalidade como algo inerente a sua atividade econômica sem compreender mácula nenhuma nisso. A questão que entra no cerne da peça, ena presente análise, é que essa promessa não é convalidada pelas autoridades, que os impede de entrar na igreja ou de assimilar as benesses de ser empresário.
Considera sua promessa cem por cento católica, dentro de sua visão rústica, e, mais de uma vez, recusa a adesão ao terreiro. Diante de Padre Olavo defende a identidade (Santa Bárbara-Iansã), mas diante dos convites da negra baiana defende a diferença: ir ao terreiro cumprir apromessa "não é a mesma coisa" e está na igreja o seu destino. (Xavier, 1983: .67)
A promessa do MEI em proporcionar aos ambulantes licenciados o ingresso no empresariado com o número do seu CNPJ é visto por alguns formalizados como um divisor de águas com aqueles que rejeitam o “micro” e atuam como “perde e ganha”. Essa identificação de que “agora não sou mais camelô, sou ‘micro’”, ensejada na cristalização de um “ethos empreendedor” faz com que esse comerciante ambulante renegue os seus pares "informais''. Por outro lado, assim como Zé do Burro, quando tentam ingressar nos estabelecimentos oficiais para efetivar a promessa da formalização, são impedidos de entrar, seja pelos empresários, seja pelo Estado. “A gente só não é empresário porque o governo não deixa”, diz Maria sobre essa situação. Mesmo sendo MEI, a precariedade da permissão administrativa impõe ao camelô uma situação de “quase empresário”, ao passo que a efetivação de seu comércio jamais se tornará plena nas ruas, uma vez que nessa situação sempre estará cercada pela precariedade.
A assimilação da ética capitalista é reforçada pela sua comprovação da pessoa jurídica. Ao pleitearem condições dignas para exercerem a sua atividade econômica nas ruas, reivindicando a identidade de trabalhadores, falta a eles justamente o documento que comprove essa condição: a carteira de trabalho. Na medida em que o “micro” atesta o exercício de suas atividades, não mais como trabalhador, mas como empresário, a introspecção do receituário neoliberal ganha força e maior identidade para com esses indivíduos. Assim, estes buscam legitimar a sua atividade como empresários e, dessa maneira, pregam a própria liberdade econômica tão característica do comércio informal. A alteração do modelo de produção, com o realinhamento produtivo da passagem do fordismo para o toyotismo, enfraquece o padrão de assalariamento tão bem estabelecido com o mercado formal do capitalismo do século XX e abre espaço para a formação desse sujeito neoliberal empresário de si mesmo que permite uma “nova racionalidade governamental” (Dardot; Laval, 2016: 33)
Mesmo que o trabalho informal seja, indubitavelmente, fruto da maneira desigual com que o capitalismo se expande, não podemos negar que ele também tem sua origem na própria ética capitalista. O desemprego, nesse sentido, não constitui o único fator explicativo para o fenômeno da informalidade. Em última instância, é o ethos que faz com que os sujeitos legitimem-na socialmente, no momento em que estão imbuídos do desejo de ser patrão, de estar no topo da cadeia, de trabalhar por si próprio e, principalmente, de mandar. Podemos dizer, lato sensu, que o trabalho informal é resultado tanto das condições materiais produtoras de desigualdade, como da subjetividade dos indivíduos, motivados por um espírito empreendedor. (Pinheiro Machado, 2008: 120)
Assim, tanto o camelô quanto Zé do Burro são devedores de uma dívida impagável, pois a tentativa de quitá-la é intransponível. A promessa de Zé do Burro e a promessa do MEI são irrealizáveis por um vício de origem. O que impede Zé de cumprir a sua promessa é o terreiro de candomblé. O sincretismo religioso não o impediu de pedir a graça a Iansan-Santa Bárbara, ao passo que acreditando nessa unidade, desejava efetivá-la no dia da Santa e na sua Igreja. Para Zé do Burro a sua promessa é integralmente católica, mas para as autoridades eclesiásticas ela está maculada pela sua origem feita em terreiro. Do mesmo modo estão os camelôs-MEI que acreditam fielmente na sua condição de empresário. Entretanto, a sua origem com a camelotagem nas ruas faz com que recaia uma suspeição permanente entre os demais empresários e o poder público. O comércio informal é visto por essas pessoas como um ambiente de descaminho e contrabando, na qual a própria mercadoria fica em suspeita.
A boa vontade de Zé é católica em sua inspiração. São as condições sociais e o desdobramento do episódio que trazem, à sua revelia, o papel de contestador da autoridade da Igreja e o de representante de uma reivindicação de natureza mais ampla. Como um fluxo e refluxo da maré, todo o ritmo do filme se estrutura em torno do vaivém de Zé diante da porta da igreja. Entrar é a meta indiscutível, ponto de acumulação do drama cuja regra é a amplificação: da primeira frustração, quando chega à noite e verifica que a porta está simplesmente trancada momento de experiência isolada cuja significação é doméstica-, até a entrada heróica depois de morto momento de ritual coletivo cuja significação é social e política. A cada tentativa, aumenta a concentração de povo a seu redor, havendo um desenvolvimento orgânico nessa progressão que começa com todos fora e termina com todos dentro da igreja. Concentrada no debate "entra ou não entra", a luta de Zé e o apoio que recebe da massa não caminham em direção ao questionamento radical dos valores católicos e à afirmação de um rito alternativo. Temos um movimento que pede a integração, onde a legitimidade do popular é reivindicada aos olhos da própria Igreja. Reclama-se dela uma fidelidade aos princípios de tolerância e compreensão, um exercício efetivo do espírito ecumênico.(Xavier, 1983: 71)
Conforme Ismael Xavier analisa na película “O Pagador de Promessas”, a intransigência de Zé do Burro em acreditar na inspiração católica de sua promessa realiza uma mobilização à sua revelia. O protagonista apenas deseja efetivar o seu juramento à Santa Bárbara em agradecimento à salvação de seu animal, mas o povo que aglomera ao seu redor tem uma identificação com aquela negação. Após o seu assassinato, são os capoeiristas que tomam o corpo, colocam-no na cruz, e adentram com a Igreja para efetivar a promessa postumamente. A eles também é negada a entrada na Igreja. Ao passo que a ideia da procissão é invertida, ao invés de sair da Igreja para as ruas, é a rua que adentra a Igreja, subvertendo a lógica de homenagem e prece à Santa. Os sons do berimbau e dos sinos, antes rivalizados, agora se harmonizam numa convivência suave, como que reconciliados (Xavier, 1983). Os excluídos são assimilados à força, em virtude de uma posição intransigente daquele que acreditava em seu intento, mas sequer se identificava com estes.
A mobilização dos camelôs que são MEI para o ingresso da “cidadania regulada” desperta esse mesmo tipo de reação, ainda que essa - como Zé do Burro - não seja a real intenção destes ambulantes. A efetivação da promessa “ser formal, é ser cidadão” é a meta a ser alcançada para aqueles que buscam o “micro”. Ocorre que essa regularização é fragilizada pelo ato administrativo precário, que é a licença, impondo para esses indivíduos não a cidadania regulada desejada, mas uma cidadania precária. Esta é cercada de regramentos administrativos no qual o direito age num movimento de cerceamento das possibilidades desse indivíduo. Essa situação jurídica marcada pela instabilidade foi por muito tempo utilizada por agentes administrativos para “encharcar” os ambulantes, dando a licença ao comércio ambulante um caráter de mercadoria política (Misse, 2015). Assim, o medo de perder a licença por ato discricionário da gestão pública fazia com que muitos cedessem à extorsão e pagassem propina.
A chegada do MEI alterou essa dinâmica na medida em que muitos consideravam a cobrança da propina injusta. O motivo? Agora eles pagam os seus impostos e, consequentemente, os salários desses servidores. O MEI interagiu na maneira subjetiva de como esses ambulantes viam o pagamento da propina. “Se agora eu pago imposto, por que devo pagar a propina?” - Esse era o questionamento de muitos barraqueiros que começaram a não aceitar mais o “encharque”. A maior repressão e a queda das vendas foram outros fatores determinantes para o fim da cobrança de propina de maneira abusiva e explícita no comércio informal.
Quem paga é porque deve: esse é o raciocínio do camelô em relação ao imposto. Assim, otributo é visto como uma dívida a ser paga com a sociedade, a qual, estando quite com ela, prevê a retribuição de reconhecimento. Daí o paralelo entre o pagador de promessas com o pagador de impostos. O primeiro tem um sentimento de dívida com a santidade por causa da graça obtida. O segundo, tem um sentimento de dívida com a sociedade, por ser caracterizado como informal por não recolher seus impostos. Ambos são ávidos pelo desejo de estarem desembaraçados com as suas obrigações, mas são negados pelos órgãos oficiais que os tratam com desconfiança. A postura insistente dos camelôs-MEI e de Zé do Burro age como uma mola propulsora das manifestações populares. A identificação é com a classe opressora. Zé renega a mãe de santo para insistir ao padre. Os ambulantes formalizados renegam os camelôs para se identificarem com os empresários. A origem da classe subalterna é que impõe essa percepção. Tal qual o vício de origem da promessa de Zé do Burro no terreiro de candomblé por não haver alternativas, os camelôs não são reconhecidos como empresários por serem empobrecidos e caracterizados como “favelados”.
Numa conjuntura na qual o receituário neoliberal se cristaliza com a ideia de que todos podem (e devem) ser empresários, estes que foram empreendedores da escassez durante toda a vida denunciam um sistema que perpetua a desigualdade e nega a eles a liberdade que, em tese, é concedida. Essa insistência é que impulsiona o desejo por uma vida digna a partir de um trabalho honesto, o qual, para os camelôs, é a melhor tradução de ser “trabalhador”. A alcunha de “trabalhador” é a que eles mobilizam no momento de repressão, quando estão sendo alvos de arbitrariedade. Quando conversava com os interlocutores sobre o que é cidadania, Marçal me interrompeu e disse: “Eu pensava que esse aí era o trabalhador! Porque sempre quando nos chamam de cidadão, é porque desconfiam que estamos fazendo algo de errado.” Assim, há uma espécie de mal-entendido no que é ser cidadão. A cidadania não é vista como portadora de direitos, ao passo que sendo empreendedor, o que significa, principalmente, pagar os impostos, é assimilado como garantidor de respeito.
Ser MEI é ser formal e ser formal é ser cidadão, esse é o raciocínio que guia uma parte dos interlocutores que se entusiasmam com o MEI. Os ambulantes, com o “micro”, possuem um documento para se defender diante das autoridades e se posicionarem dentro da lógica da cidadania regulada. Entretanto, para estes que desempenham a sua atividade nas ruas, no espaço público, essa cidadania é submetida à precariedade e com ela todos os significados que essa palavra carrega.
A trajetória da venda nas ruas e calçadas do Brasil está marcada pela mácula da precariedade. Ao longo da história, tal atividade ficou relegada àqueles que estão à margem da sociedade, vistas como pessoas perigosas e, portanto, que precisam ser vigiadas. Tal raciocínio conduziu a lógica de organização das cidades brasileiras por meio das posturas municipais.
Desse modo, os indivíduos engajados na camelotagem sempre foram estigmatizados (Goffman, 2004) vistos como informais e indesejáveis. Alvos de repressão e extorsão das autoridades públicas. Para elevar a estima, buscar consideração e se protegerem contra a arbitrariedade, mobilizam a categoria de “trabalhador”. Contudo, não possuem o salvo conduto cívico, que é a carteira de trabalho, para comprovar a ocupação lícita e, dessa maneira, a sua cidadania (Santos, 1979).
A figura do MEI age para suprir um vácuo de comprovação das atividades do camelô e confere a ele uma identidade como empresário a partir da inscrição no CNPJ. O discurso empreendedor realiza nesses sujeitos uma transição da percepção da camelotagem, antes associada à vadiagem ou carência e agora assimilada como empreendedorismo. Nesse sentido, muitos ao ingressarem nesse prisma da formalidade, compreendem-se como “cidadão pagadores de impostos”, como se fosse possível pagar pelo ingresso à cidadania com os tributos. Por outro lado, o CNPJ do MEI e a consideração pela ideia de empreender, faz com que haja uma estima na ideia de empreendedor e empresário. Ademais, há a possibilidade, que não havia antes, de comprovar tal condição de ocupação econômica lícita.
Assim, o MEI tornou-se uma espécie de remédio legal contra a informalidade e, para os camelôs, uma oportunidade de “limpeza moral” contra o estigma de informal ou “de quem não contribui” por meio da ideia de pagar impostos serve meio de estar quite com a sociedade e não ser mais um devedor à ela.
Todavia, essa limpeza moral é limitada, seja pelos seus pares, que não reconhecem a alcunha de empreendedor para a camelotagem, seja para as autoridades públicas, que seguem com a repressão e continuam com a exigência da licença para a realização da atividade econômica de vender nas calçadas. Assim, mesmo adimplente com a sociedade por meio de pagamento de impostos, o camelô continua como um devedor. Marçal adverte: “Quem apanha nunca esquece!”, como forma de ilustrar a sua desconfiança com essa nova legibilidade governamental pelo prisma do empreendedorismo. Os ressentimentos gerados pelos esculachos, perseguições e acordos descumpridos fazem com que os interlocutores mais antigos fiquem descrentes em relação a essa nova lógica acerca do comércio ambulante. Por outro lado, os mais novos se instrumentalizam desse discurso empreendedor como forma de buscar dignidade para a camelotagem.
Essa formalização que simplifica a forma empresarial encontra um limite na licença da prefeitura que permite a atividade de vender nas ruas. Essa permissão de caráter precário realiza um encontro dos camelôs com a sua própria precariedade: seja pela instabilidade e não previsibilidade da licença administrativa, seja pelo déficit de cidadania que esses sujeitos cotidianamente enfrentam. Assim, surge na dinâmica do comércio ambulante o empresário precário, o qual impõe um estigma ao camelô na relação com outros MEI’s ao preservar a marca indelével da informalidade e subalternidade desses sujeitos. Ao contrário do que a propaganda empreendedora promete, o comerciante ambulante não encontra mecanismos de desenvolvimento dessa atividade, mas de estagnação, como se o camelô fosse o empresário destinado a não prosperar. Ou uma promessa que não pode ser cumprida.
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