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O mito da ampliação da jornada no programa mais educação

The myth of the enlargements of journey in “Mais Educação” Program

John Mateus Barbosa
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

O mito da ampliação da jornada no programa mais educação

Revista Tópicos Educacionais, vol. 25, núm. 1, pp. 19-41, 2019

Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

RESUMO: Este trabalho visa apresentar os resultados de uma pesquisa de mestrado que analisa a dinâmica de adequação do espaço e do tempo escolares em escolas públicas municipais de Caruaru-PE, sob a indução do programa Mais Educação. Para tanto, realizamos entrevistas com gestores escolares de quatro escolas da rede municipal de Caruaru visando identificar quais as estratégias desenvolvidas para a ampliação da jornada, os espaços utilizados e as justificativas de sua materialização. Constatamos a existência de manipulações de tempo e espaço no interior das escolas como condição para contemplar parte das normas do programa. Assim, estrategicamente, truques de gestão que revelam encurtamentos são realizados na oferta formativa, os quais desqualificam a educação pública e tornam a ampliação da jornada um mito no Brasil.

Palavras-Chave: Mais Educação+ tempo-espaço escolar+ ampliação de jornada.

ABSTRACT: This paper aims to present the results of a master's research that analyzes the dynamics of school space and time adjustment in municipal public schools in Caruaru-PE, under the induction of the Mais Educação #091;More Education#093; program. For that, we conducted interviews with school administrators from four schools of the Caruaru municipal network to identify the strategies developed for the extension of the journey, the spaces used and the justifications for their materialization. We verified the existence of manipulations of time and space inside the schools as a condition to contemplate part of the program norms. Thus, strategically, management tricks that reveal shortenings are realized in the training offer, which disqualify the public education and make the extension of journey a myth in Brazil.

Keywords: Mais Educação, school time-space, extension of journey.

Introdução

Este artigo busca contribuir com o debate histórico e intensificado nas últimas décadas acerca das políticas de educação (em tempo) integral no Brasil. Mais especificamente, busca desnaturalizar as justificativas apriorísticas em torno da ampliação dos tempos e espaços escolares como um valor pedagógico em si mesmo virtuoso, ou seja, deslocado do conjunto de relações sociais mais amplas (econômicas, políticas, culturais, dentre outras) que disputam e dão sentido a produção da escola.

No que tange a produção bibliográfica sobre a temática da educação (em tempo) integral, notamos uma preocupação demasiada nos aspectos pedagógicos como chave exclusiva de compreensão da relação tempo-espaço escolar. Desta forma, partimos da hipótese que questiona essa primazia, uma vez que secundariza ou, na pior das hipóteses, despreza todas as determinações extraescolares da escola que interagem e participam da produção dos sentidos e funções atribuídos pelo tempo-espaço escolar. Explicamos: pouco se questiona como se relaciona o tempo-espaço escolar na oferta de jornada ampliada com as funções que a escola assume em seu território. Em geral, os debates pedagógicos tendem a tratar noções de tempo e espaço escolar (elementos que participam diretamente da formação de tipos de escola) como questões já resolvidas.

Na contramão desta posição, os estudos de Algebaile (2009) apontam que a ampliação do acesso à escola por frações sociais dela excluídas se deu por meio de encurtamentos do tempo-espaço escolar mesmo na oferta formativa mais elementar do ensino. Esses encurtamentos se operacionalizaram por meio de manipulações no tempo e no espaço. Trata-se de um recurso de gestão de pronto-atendimento da demanda em larga escala e sem grandes esforços em outros setores que garantiram a ampliação da escola em termos quantitativos. Além do mais, ainda segundo a autora, esse processo contribuiu para a produção de um tipo de escola pública diferenciada da formação escolar das elites, a saber, amparada em funções sociais geralmente ligadas ao assistencialismo, voltada à gestão da pobreza e robustecida por programas que não necessariamente são de natureza pedagógica.

Nesse sentido, acreditamos que, anterior à questão ‘O que se faz na escola?’, é preponderante entender ‘O que é a escola?’. Como se ajusta a escola em seus tempos- espaços escolares na dinâmica de ampliação da jornada? Quais funções são atribuídas a ela nessa dinâmica, considerando o território em que ela é constituída e constituinte?

É sob a senda destas questões que buscamos neste trabalho superar estas formas de avaliação da política de educação (em tempo) integral (e da escola pública), em que a prerrogativa dos encurtamentos históricos no tempo-espaço escolar e sua relação com a formação dinâmica e inconclusa de funções voltadas à escola pública não possa ser relativizada.

Para tal desafio, escolhemos o Materialismo Histórico e Dialético como referencial teórico-metodológico e político-ideológico, por entendermos que tanto em sua filosofia onto-histórica como na lógica de análise dialética estão abertas as possibilidades de reprodução do movimento ideal do objeto em suas múltiplas determinações (NETTO, 2011). Ou seja, esse referencial torna possível investigarmos a escola a partir do que “se faz nela, por meio dela, na relação com ela, seja isso educação ou não” (ALGEBAILE, 2009, p. 29). No caso do objetivo principal deste trabalho - que visa compreender a dinâmica de ampliação dos tempos-espaços escolares e as funções sociais atribuídas às escolas de Caruaru -, faz-se necessária antes uma descrição das particularidades e determinações mais gerais do Programa Mais Educação e da estratégia dos territórios educativos junto à problemática do tempo-espaço e funções da escola, tarefa que empreenderemos a seguir.

1. Programa Mais Educação, Territórios Educativos e o debate sobre tempo-espaço escolar: (novos) truques na escola pública brasileira?

O Programa Mais Educação (PME), um dos quarenta programas previstos pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), vem sendo a política indutora de um modelo contemporâneo de escola (em tempo) integral, com o mínimo de sete horas diárias para a promoção de atividades relacionadas a: acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; dentre outras.

Desde a sua instituição na Portaria Interministerial nº 17 (BRASIL, 2007b) e, posteriormente, sua regulação por meio do Decreto nº 7.083 (BRASIL, 2010), o programa vem sendo legitimado por meio de um aparato jurídico-institucional mais amplo, como é o caso da Proposta de Emenda à Constituição - PEC n. 134/07 (BRASIL, 2007c), que propõe implantar o mínimo de sete horas diárias em todas as escolas da educação básica, tomando a estratégia indutora do Mais Educação como referência. O referido programa também inspira o Plano Nacional da Educação - PNE (BRASIL, 2014), que prevê a oferta de educação em tempo integral para 50% das escolas públicas de educação básica até 2024 e o Programa Ensino Médio Inovador, sinalizando a replicação desse projeto de ampliação da jornada escolar também para o ensino médio.

Segundo os principais formuladores da proposta, dentre eles Moll (2007), a prerrogativa básica para uma escola atualizada em relação aos problemas, necessidades e anseios contemporâneos é a ampliação do próprio conceito de escola em seus tempos- espaços escolares, sintetizados sob o lema ‘educar e proteger integralmente’. Nesse sentido, além da ampliação do tempo para melhor proteger, a ampliação das oportunidades educativas busca realização na construção de territórios educativos. Essa é outra novidade do programa que orienta a reformulação do espaço escolar, buscando sua ampliação para o bairro e para a cidade, como orienta os princípios das Cidades Educadoras1.

Assim, esta modernização da escola pública, visando dar respostas contemporâneas aos antigos problemas da escolarização no Brasil, vem sinalizando positivamente para alterações significativas na dinâmica escolar. Por outro lado, seus objetivos apresentam-se subordinados a um conjunto de velhas estratégias de integração da pobreza por meio de medidas parcas e paliativas, como orienta a frente política neodesenvolvimentista dos governos petistas2 (BOITO JR.; BERRINGER, 2013). Historicamente, esse é um tipo de política assistencialista que procura compensar as profundas desigualdades socioeconômicas que “estruturam a extração de excedentes na periferia do capitalismo, sem confronto com o capital” (SINGER, 2012, p.13, grifos do autor).

Isso ocorre porque uma escola pública com uma oferta igualitária em seus tempo- espaços escolares é uma bandeira histórica da classe trabalhadora no Brasil. Na verdade, mesmo havendo indicativos de expansão de projetos modernos (principalmente nos centros litorâneos do país), esses se mostraram de baixo alcance na medida em que o padrão de qualidade não se manteve na ampliação da quantidade. É o caso de experiências históricas, tais como: as escolas de sistema Platoon (escolas nucleares e parques escolares), também chamadas Escolas-Parque, construídas no Rio de Janeiro-RJ (1931- 1935); o Centro de Educação Carneiro Ribeiro em Salvador-BA (1947-1951); os Centro de Educação Elementar, implementados em Brasília-DF (1960-1964) e os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), implementados em duas etapas no estado do Rio de Janeiro-RJ (1983/1986 e 1991 a 1994).

O descompromisso da burguesia brasileira com a oferta da uma educação igualitária e de qualidade fez com que estas escolas ficassem restritas a uma parcela pequena da população, coexistindo com a produção de escolas precárias para a maioria dos estudantes. Isso implica dizer que essa oferta formativa diferenciada em seus tempo- espaços é um forte traço de classe social no país, que serve tanto para interditar o acesso da classe trabalhadora ao conhecimento sistematizado como para ajustar a escola pública brasileira à fluidez e às mudanças das orientações hegemônicas.

Podemos constatar que a produção de ajustes e encurtamentos no tempo-espaço escolar sempre foi orgânica à história educacional brasileira em seus projetos e estratégias de promoção da ‘diferenciação da oferta’ (ALGEBAILE, 2009). Os estudos de Nunes (1996) sobre as instituições escolares no Rio de Janeiro na década de 60, por exemplo, confirmaram que a escola como equipamento público estruturado era realidade de poucos prédios no centro da cidade, pois predominava a política precária de aluguel de casas para dar conta das matrículas.

Na década de 1960 metade dos prédios escolares era ainda de adobe, madeira, taipa ou material similar. “13.946 tinham piso de terra; 79.604 não tinham qualquer abastecimento de água; 61.324 não tinham instalações sanitárias” (idem). Já 52.136 estabelecimentos de ensino não dispunham de espaços para práticas recreativas típicas dos intervalos escolares. Longe de representarem questões superadas ou vinculadas ao passado, as soluções de pronto-atendimento da demanda escolar, por meio de ajustes (encurtadores) no tempo-espaço da escola, passaram a ser sistematicamente utilizadas como recursos de ação em diversas administrações públicas no final do século XX e início do século XXI, inclusive alcançando o âmbito institucional.

Na década de 90 foi a vez da difusão de programas voltados à aceleração da aprendizagem e correção de fluxo escolar. Esses programas aprofundam a diversificação da oferta formativa através do encurtamento do percurso escolar. Outra estratégia amplamente executada, esta última a nível municipal, foi o tresdobramento3 de turnos ou, como ficaram conhecidos, turnos da fome. Ao acrescentar mais um turno no período diurno, das 11h às 14h ou 15h, realiza-se o truque de “transformar o mínimo de quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula em máximo de horas de atividade educativa escola” (ALGEBAILE, 2009, p. 294). Essa ampliação do número de turnos possibilitando incorporar mais turmas à escola resulta no encurtamento do tempo pedagógico, ou seja, há um ajuste dos tempos escolares para atender a demanda por novas matrículas.

Em paralelo às manipulações de tempo mencionadas, ocorreram também ajustes e encurtamentos no espaço escolar. O truque da incorporação de mais crianças no turno da fome, por exemplo, fez com que algumas escolas em municípios e bairros mais precários sofressem com a superlotação e instituíssem a conhecida política de anexos, usando espaços próximos à escola ou mesmo readequando seu ambiente interno.

Uma expressão atual desta estratégia de produção da escola pública brasileira pode ser observada na cidade de São Paulo4, onde novas fórmulas de ajustes no tempo- espaço escolar da rede pública de educação estão sendo postas em prática sob a administração do governo de Geraldo Alckmin. A medida que ficou conhecida como a reorganização do ensino público paulista5 encontrou forte resistência dos estudantes e foi provisoriamente interrompida em 2016. A proposta visava o fechamento de 92 escolas e a transferência de 310 mil alunos da rede pública municipal. Apesar do recuo da secretaria, no ano seguinte, 1.043 turmas foram fechadas sem qualquer aviso prévio à comunidade, fazendo com que centenas de crianças se deslocassem cerca de quatro quilômetros para chegar à escola. Isso demonstra que os velhos mecanismos de encurtamentos e ajustes podem ser atualizados em novas práticas.

Em estudos mais recentes, a saber, Rosa (2011) e Silva (2013), temos encontrado a demonstração de novos truques de ajustes do tempo-espaço escolar instrumentalizados e institucionalizados no campo educativo. Alguns deles apontam que a tendência maisrecente vem dando-se no campo das políticas de ampliação do tempo escolar. Nesse caso, a utilização de espaços extraescolares na jornada ampliada, justificada através de teorias pedagógicas consideradas progressistas, vem escamoteando a ausência de investimento na infraestrutura física da escola para a educação (em tempo) integral.

Nesse sentido, trata-se de um refinamento das estratégias que operam por truques e ajustes na produção da escola pública brasileira. Esses truques em sua aparição (pós)moderna assumem diversas nomenclaturas progressistas, tais como: territórios educativos, cidades educadoras, bairro-escola, etc. Sua expressão de maior destaque no contexto brasileiro é o PME do governo federal. Essa é a nova face da escola da pobreza que, imbuída por teorias e correntes pedagógicas de maior aceitação no campo educacional, tenta camuflar os encurtamentos de seus tempos-espaços como uma de suas faces históricas mais precárias. O desvelamento de sua aparência progressista e necessária é o intento a que nos prestamos a realizar na seção seguinte.

2. Estrutura socioeconômica e escolar de Caruaru como chaves analíticas dos truques

Nesta seção pretendemos apresentar as inúmeras estratégias operacionalizadas pelos gestores visando à ampliação do tempo-espaço escolar, como orienta o PME. As escolas investigadas estão situadas em áreas do campo e da cidade e compõem parte da rede municipal de Caruaru em Pernambuco. Escolhemos quatro escolas da rede municipal através dos seguintes critérios:

Quadro 1
Escolas escolhidas para pesquisa de campo
Escolas escolhidas para pesquisa de campo

Como veremos, as estratégias de ampliação do tempo requerem a operação de truques e ajustes internos da escola para atender às demandas do programa, mas também repercutem, dialeticamente, no plano pedagógico (ensino-aprendizagem) e escolar (funções da escola no território). Comecemos por tratar dos aspectos socioeconômicos e escolares do território caruaruense como mediações necessárias à compreensão do objeto. Caruaru é um municípiobrasileiro do estado de Pernambuco situado na região do Agreste. Caracteriza-se por ser a cidade mais populosa e influente do interior do estado, traços que lhe renderam os títulos de Capital do Agreste. O município, que se encontra a 130 km do Recife, tem, segundo dados do IBGE (2010), uma população residente de 314.912 habitantes que vivem numa área territorial de 921 quilômetros quadrados. Isso seria equivalente a quase 1% de todo o território pernambucano.

Do ponto de vista do trabalho e de seu modelo econômico, o município integra o Pólo de Confecções do Agreste (artigos de vestuário), sendo este o principal arranjo produtivo local, forma dominante de trabalho e de oferta de emprego. Segundo dados do Sebrae (2012) o trabalho nas confecções é 2,5 vezes maior que a contribuição conjunta de todos os setores industriais para o emprego em Caruaru. Essa atividade absorve 9% da população ativa no município. Esse número representa mais que o dobro da absorção dessa atividade no estado (menos de 4%) e vem crescendo, já que no periodo de 2002- 2010 aumentou em mais de 90% (idem).

A alta capilaridade e a elevação do PIB do município, no entanto, escondem as marca do atraso e do trabalho precário que constituem essa forma de produção. Suas principais características são: a predominância “#091;...#093; de micro e pequenos empreendimentos; a divisão do trabalho produtivo entre empresas e facções; a alta incidência da informalidade; e a produção majoritária de artigos de consumo popular” (ibidem, p. 16).

O peso da informalidade é tão forte na produção de confecções que ela se expressa nos dois segmentos da unidade produtiva. Esta é constituída por: a) empresas (fabricos): realizam a etapa de acabamento no processo produtivo (produtos finais), geralmente em locais próprios para esse tipo de produção; possuem recursos mais modernos e complexos; predomina o vinculo empregatício assegurado; b) empreendimento complementar (ou facção): realizam etapas primárias do processo produtivo das confecções; produzem em domicílios do próprio conjunto familiar; dispõem de recursos instrumentais mais simples e de menor grau de tecnologia; não possuem vínculo empregatício. Há uma grande incidências de mulheres e jovens nesse último segmento, também caracterizado pela baixa remuneração, devido às condições ainda mais informais de trabalho (idem).

Entendemos, portanto, que, apesar da informalidade estar presente nos dois segmentos, é possível notar que o trabalho realizado nas faccções tem características ainda mais arcaicas e danosas aos trabalhadores.

Apesar disso, vêm ocorrendo em Caruaru processos que sinalizam dinâmicas de precarização do trabalho, como podemos verificar nos números. Um deles é a faccionalização das unidades produtivas. É possível verificar que o trabalho informal e realizado nas facções absorve quase 10% da população em idade ativa no município (idem).

Em relação aos aspectos populacionais, esse número vem aumentando: 24% no período de 2000-2010 (IBGE, 2010). No entanto, essa ampliação vem sendo acompanhada de sua má distribuição no território através de uma alta concentração populacional na sede, que possui uma extensão territorial bem menor que os distritos. É possível que a expansão do polo de confecções e de sua oferta de emprego tenha relação com essa ampliação da população urbana, por meio de fluxos migratórios do campo para a cidade. Por outro lado, também é possível que a urbanização desenfreada e a produção de uma população vulnerável resultante desse fenômeno também esteja sendo uma via funcional à expansão do trabalho informal, arcaico e precário das unidades produtivas, com ênfase nas facções, no território caruaruense.

O impacto das condições de trabalho informal e precário das facções vem criando em Caruaru um cenário de profundas desigualdades. Tomando como referência a renda mensal domiciliar em salários mínimos, observamos que mais da metade dos domicílios investigado em Caruaru (51, 4%) sobrevive com até dois salários mínimos (idem). Este cenário é expressivo dos custos do valor-trabalho sob a forma das facções como trabalho dominante para a maioria. Esse tipo de trabalho vem produzindo no município uma alta concentração de renda que se expressa nos pouco mais de 5% dos domicílios com mais de 10 salários mínimos (idem).

Buscamos também analisar dados escolares de Caruaru que nos fornecessem informações relacionadas à distribuição das escolas no território caruaruense. Um primeiro aspecto mais geral a ser evidenciado é a alta taxa de analfabetismo registrado no município em 2010: passa dos 15% (SEBRAE, op. Cit). Esse é um número que guarda intrínsecas relações com a forma constituinte e constituída do padrão produtivo e das demandas de qualificação para o trabalho dominante. Por outro lado, esse dado também ajuda a localizar as funções da escola no município.

Já no que diz respeito às pessoas sem instrução nenhuma e/ou com ensino fundamental incompleto, estas representam 152.950, ou seja, 48,56% de sua população (IBGE, op. cit.). Dos 43.703 jovens com idade de 7-14 anos, 41.607 (95,2%) estão na escola (idem). Julgamos que a taxa de jovens com essa idade fora da escola é baixa no município.

Pensando na relação entre trabalho e educação como um elemento indispensável na análise da interconexão entre perfil estudantil e formativo, temos os seguintes dados: dos 61.979 (23,3%) da população que frequenta a escola em Caruaru, 18.717 (30%) possuem algum tipo de ocupação profissional. Já em relação aos 203.229 jovens que estão fora da escola, 127.548 (62,7%) possuem algum tipo de ocupação. Via de regra, parte destes jovens que estão fora da escola e/ou que trabalham e estudam é resultado da absorção rápida, viabilizada pela flexibilização e informalidade do vínculo do trabalho nas facções e fabricos que constituem parte significativa da economia caruaruense.

Por último, buscamos problematizar os arranjos da oferta para o ensino fundamental no município. Assim, objetivamos compreender como vem sendo produzinda a escola pública na rede municipal no que tange ao ensino fundamental, considerando: a) número de matrículas; b) números de escolas; c) número de professores. Vejamos a tabela6 abaixo:

Tabela 1
Matrículas, docentes e escolas por ano - ensino fundamental de Caruaru (2007-2012)
Matrículas, docentes e escolas por ano - ensino fundamental de Caruaru
						(2007-2012)

Acreditamos que esta diminuição do número de escolas, a despeito do aumento do número de matrículas (como mostra a tabela acima), é um fator fundamental para problematizarmos a qualidade da oferta de tempo-espaço escolar para a educação (em tempo) integral no município.

Além do mais, a ampliação do número de alunos em detrimento do número de escolas tende a gerar um inchaço nas instituições escolares. Sem falar que muitas destas escolas com o PME passaram a incluir em seus espaços alunos dos dois turnos o dia todo. A disponibilidade de espaços, portanto, tende a ser um fator decisivo nas formas de reformulação do tempo e do espaço escolar para a educação (em tempo) integral do PME e dos territórios educativos. Nesse caso, passemos a análise das estratégias de ampliação nas quatro escolas investigadas.

3. Os truques dos gestores para a oferta da jornada ampliada em escolas de Caruaru.

Nesta seção apresentaremos os dados da pesquisa que demonstram a dinâmica de ampliação dos tempos-espaços escolares nas escolas de Caruaru, destacando os truques utilizados pelos gestores no processo de ampliação. De maneira mais abrangente, observamos que a ampliação do tempo-espaço educativo não vem ocorrendo para além dos muros da escola, como orienta a estratégia dos territórios educativos do PME. Na verdade, identificamos que, tanto no nível da compreensão como no das estratégias implementadas e suas justificativas, os eixos balizadores da proposta são invertidos, abandonados e ressignificados em novas fórmulas.

Esse movimento contraditório pode ser identificado como uma produção às avessas dos territórios educativos nas escolas. No entanto, identificamos também que ‘às avessas’ é apenas a expressão imediata e fenomênica dessa dinâmica. Em essência, a forma da ampliação dos tempos-espaços escolares reproduz as contradições inscritas na produção dos tempos-espaços sociais em Caruaru. Chegamos a estas conclusões através das mediações que apresentaremos a seguir.

3.1. Valorização da instituição escolar como espaço atrativo, seguro e doméstico

A valorização da escola é o resultado da forma como os gestores compreendem e subordinam a oferta escolar da educação (em tempo) integral defendida nos documentos às finalidades instituídas pelo contexto socioespacial do qual a escola faz parte e adotadas, particularmente, como de responsabilidade escolar. As finalidades relacionadas à educação (em tempo) integral identificadas foram: a) acesso a bens e serviços, b) proteção da rua; c) combate ao trabalho infantil; d) educação doméstica (disciplina); e) preenchimento do tempo ocioso. Observemos o quadro abaixo:

Quadro 2
Compreensão das finalidades da educação
Compreensão das finalidades da educação

Considerando as diversas ausências e contradições já conhecidas nos territórios brasileiros, o estabelecimento dessas finalidades como escolares valoriza sua presença enquanto equipamento social. Renova-se a velha crença salvacionista da escola para incluir os mais pobres que remonta aos ideais escolanovistas. Seu resgate vem se hibridizando com a orientação moralista e disciplinadora, mais afinada com os ideais da escola tradicional presente nas falas dos sujeitos. Esses aspectos levam os gestores a opinarem contrariamente à ampliação dos espaços escolares para fora das escolas, como podemos observar na fala do Gestor 3 (2014): “#091;...#093; o menino tem que estar inserido na escola. Passando o dia todo na escola ele está aprendendo coisas boas”.

No que tange ao que é preconizado nos documentos, a valorização escolar é mais uma inversão operada na proposta original pelas seguintes razões: nos documentos identificamos que a missão dos territórios educativos é ser uma alternativa para o problema do centralismo escolar através de uma rede de cooperação de pessoas, tempo, saberes e espaços nas cidades com a “finalidade de ampliar as possibilidades de aprendizagem e a qualidade de vida de um determinado local” (ESCOLA APRENDIZ, 2011, p. 37).

Inclusive os documentos dão orientações contrárias à “proposta de retirar a criança das ruas a fim de protegê-la dos perigos da convivência com os estranhos” (ibidem, p. 9), dizendo que “#091;...#093; faz-se necessário e urgente que as cidades possibilitem às crianças saírem às ruas, adquirindo autonomia na sua relação com o território” (idem). Identificando que isso não vem sendo realizado, os gestores invertem a relação alternativa-problema, passando agora à presença e afirmação da instituição escolar como alternativa para os problemas identificados nos territórios e nas cidades.

Essa inversão, operada no plano das finalidades implica em outra inversão, agora, no âmbito da forma da oferta, a saber, a promoção da educação comunitária. Tal promoção, encarada nos documentos como um ideal/objetivo a ser perseguido na proposta dos territórios educativos, é ressignificada pelos gestores e passa a ser meio para a legitimação das finalidades de proteção, disciplinamento, formação moral e acesso a bens e serviços, os quais legitimam a valorização do espaço escolar. Nessa ressignificação, no entanto, os princípios que orientam a oferta de uma educação comunitária são reduzidos a questões didático-curriculares e organização da oferta para fomentar atividades identificadas como não-tradicionais e deixar o ambiente escolar apenas mais atrativo. É o que podemos observar, por exemplo, na fala do Gestor 4 (2014): “#091;...#093; Agora sim, a pintura é uma coisa diferente. E eles irão ficar encantados com essa nova oficina. Isso tudo é novidade para eles”.

O aspecto diferencial da oferta, no entanto, vem sendo a incorporação de atividades mais lúdicas no contraturno que vem permitindo aos gestores diminuir taxas de evasão no momento em que a escola passa a ser um ambiente mais atrativo para os jovens. Isso pode ser constatado quando verificamos o perfil das atividades das escolas através de seus planos de atendimentos e observamos que dentre os dez macrocampos disponíveis os mais utilizados nas escolas são: a) Cultura e Artes com seis atividades, sendo: peças teatrais, dança, capoeira, instrumento de corda, percussão e flauta doce; b) Esporte e Lazer com três atividades, sendo: judô, recreação e tênis de mesa. Assim, ficam de fora os macrocampos mais conteudistas, formalizados e menos atrativos/recreativos dentro do universo infantil, tais como: a) Direitos Humanos em Educação; b) Cultura Digital; c) Iniciação à Investigação das Ciências da Natureza; d) Educação Econômica.

3. 2. Rebaixamento de critérios de qualidade dos tempos-espaços educativos

Neste quesito identificamos que as escolhas que os gestores vêm fazendo dos espaços são muito mais consequências das limitações estruturais e das normas locais presentes tanto no território como na escola do que expressões de uma vontade individual ou coletiva daqueles que compõem a escola.

Desse modo, os critérios relatados para as escolhas dos espaços, ao invés de estarem orientados para as “potencialidades educativas do território” (ESCOLA APRENDIZ, 2011, p. 25), como orientam os documentos, priorizam elementos mínimos que deveriam já estar garantidos como meios para se promover a educação. Grosso modo, a oferta às avessas se caracteriza aqui como o abandono dos fins (mapeamento dos espaços através de redes comunitárias como procedimentos educativos) originalmente previstos pelo programa e a instituição dos meios mínimos (que já deveriam estar garantidos) como os novos fins referenciadores para a escolha dos espaços, a saber: a) localização; b) condições físicas; c) custos.

Para o critério localização, dois elementos são citados pelos gestores: a) distância da escola; b) proteção.

Quadro 3
Justificativas do critério localização
Justificativas do critério localização

Estes subcritérios que orientam a escolha dos espaços pela localização evidenciam uma preocupação dos gestores com os riscos que podem ser encontrados fora da escola, uma vez que essa questão da ampliação dos espaços escolares para a cidade não é vista como uma opção segura. Mesmo quando saem, como aponta Gestor 1 (2014), tem que ser ‘pertinho’ e num local fechado, como é o caso do teatro. As opções por lugares fechados e que estejam num raio de ação da tutela escolar são evidências que remetem à ideia de ‘instituições panópticas’ de Bentham (2000). Agora, a escola passa a vigiar os alunos mesmo quando estão em outros espaços do território. Esse sentido de controle e disciplina é mais um elemento que se distancia do que é apontando nos documentos, uma vez que uma das prerrogativas básicas do PME é a superação de práticas de controle nas escolas, por meio da “#091;...#093; transformação do currículo escolar ainda tão impregnado das práticas disciplinares da modernidade” (BRASIL, #091;2014?#093;, p. 5).

Já em relação ao critério condições físicas, os gestores consideram como fundamentais questões ligadas a: a) adequação dos espaços às atividades; b) tamanho; c) infraestrutura, como podemos visualizar na fala de Gestor 2 (2014): “#091;...#093; Assim eu não vou colocar os alunos, por ordem até da secretaria em um lugar que não tem condições”. Gestor 1 (2014), na mesma senda, afirma: “#091;...#093; A gente ensaia na sala do professor que é grande #091;...#093; na quadra, nas salas embaixo da quadra que são maiores”.

O fato é que esse truque permite adentrar outros espaços da escola que servem para funções importantes no contexto escolar, como: refeitório, banheiros, almoxarifado, secretarias, depósitos, calçadas das escolas, lavanderia, cozinha, entre outros.

Se pensarmos que as experiências educacionais da década de 50, levadas a frente principalmente por Anísio Teixeira, que consideravam como primordiais a construção de uma arquitetura escolar funcional às demandas e objetivos educativos, foram um grande avanço no campo das políticas educacionais, podemos afirmar que estamos diante de uma regressão de mais de 70 anos quando esta questão é simplesmente relativizada nos documentos do PME e abandonada nas normas locais.

Por último, os gestores também mencionaram a questão dos custos como critério de escolha dos espaços. Mais especificamente, é Gestor 2 (2014) que trata dessa questão quando diz: “#091;...#093; então, o clube dos bancários estava disponível. E no valor melhor para aluguel e tudo. Tudo que é necessário para o funcionamento do projeto com um aluguel de baixo custo”.

Identificamos que a fala do gestor traduz três questões inter-relacionadas. A primeira delas é que se identifica outra forma de pronto-atendimento da demanda na ampliação dos tempos-espaços através da locação de espaços em entidades privadas. Em um nível mais imediato, isso implica dizer que vem havendo o repasse direto de fundos públicos na forma de consumo de serviços para setores privados. Em um nível mais local, a segunda questão diz respeito ao excedente de poder que esse processo pode vir a gerar para tais entidades, permitindo que ampliem seus horizontes de influência no território utilizando-se da capilaridade da escola como moeda de troca.

Por último, a busca pelo mais barato é próprio da lógica gerencial já bem acomodada na educação que amarra o parco financiamento ao cumprimento de metas, punindo as escolas quando improdutivas. Isso gera a sistematização de práticas produtivistas na escola por intermédio da gestão que reforça e amplia as formas de minimalismos na educação para gerir questões tão complexas e de ordem estrutural que envolvem o conjunto da sociedade. Esse quadro guarda familiaridades com o que prega o Movimento Todos Pela Educação: que os recursos para educação são suficientes e que o problema da educação no Brasil relaciona-se com a falta de eficiência e de instrumentos técnico-operacionais que permitam torná-la mais produtiva (BRASIL, 2007a).

3.3. Manipulações no espaço-tempo escolar: encurtamentos, precarizações e informalizações

Localizamos que é a partir das mediações referentes ao campo das estratégias desenvolvidas pelos gestores para a ampliação do tempo-espaço que o fenômeno de ampliação às avessas da oferta dos territórios educativos é mais expressivo. Para que a ampliação desse alcance intraescolar ocorra, os gestores tornam sistemáticos ajustes que, se por um lado permitem o alargamento do atendimento da demanda com urgência, por outro trazem sérios prejuízos ao espaço, tempo e conhecimento escolar.

A primeira delas, como não poderia deixar de ser, diz respeito aos ajustes que são realizados no próprio espaço escolar, com a produção de novos espaços precários e informais no interior da escola. A intenção é reformular o espaço interno, ampliando-o e nomeando estes novos espaços como educativos. Esse processo é realizado de diversas maneiras, por exemplo, adaptando, adequando e improvisando espaços ou realizando pequenas reformas na escola. A fala de Gestor 1 (2014) é expressiva destes ajustes quando afirma: “#091;...#093; mesmo que não tenha espaço, a gente vai ter que criar um espaço. A gente desativa uma sala, a gente coloca um biombo, coloca um cercado”.

No caso das escolas investigadas, esta forma improvisada e precária de produção de espaços educativos vem produzindo uma espécie de escolas-de-improviso. Se antes, a informalização da educação tinha como uma de suas expressões a utilização de locais fora da escola, agora eles vão para dentro do ambiente escolar sob a configuração de adaptação e improvisação de novas áreas, fracionando ainda mais o território escolar. Dentre os espaços mais utilizados pelos gestores encontramos: pátio externo, refeitório, pátio, área de entrada, corredor, salas dos professores, anexos, garagens, calçada da escola e terrenos baldios.

No que tange às outras estratégias fundamentais para a reconfiguração dos espaços internos da escola os gestores apontaram os ajustes no tempo escolar como um apoio necessário nessa empreitada, como podemos observar na fala de Gestor 1 (2014): “#091;...#093; A gente conseguiu adequar o horário do recreio, o horário do lanche dos meninos #091;...#093; A gente utiliza até o horário do intervalo para agregar todo mundo”. Também expressando ajustes no tempo escolar, Gestor 4 (2014) afirma: “#091;...#093; A adequação dos espaços para a atividade foi a questão do horário, para que uma oficina não chocasse uma com a outra”.

Como vimos nas primeiras seções deste trabalho, formas e práticas de ajuste no tempo de aprendizagem não são fenômenos novos. Remontam até mesmo às primeiras décadas do século passado no governo de Washington Luiz no Estado de São Paulo (1905), no qual a redução da jornada escolar foi um recurso de ação que possibilitou liberar espaço para ampliar o alcance da oferta (ALGEBAILE, 2009).

Nesse caso do PME nas escolas, o encurtamento e o fracionamento do tempo escolar não está tão somente orientado para uma agregação padronizada de alunos na mesma oferta. Ao mesmo tempo, assume um caráter de segregação, demarcando horários, tempos e espaços para as atividades dos alunos regulares e dos alunos do Mais Educação. Segundo Pereyra (2014), esse universo de controle rígido do tempo escolar vem sendo estudado pela cronobiopsicologia7 no que se refere a ajustes e configurações de tempos educativos “#091;...#093; de acordo com as características das aprendizagens e dos biorritmos dos educandos” (ibidem, p. 22).

Conforme o exposto pelo autor, é possível levantar a hipótese de que a estratégia do PME nas escolas, considerando os limites espaciais já apontados, intensifica e obriga os gestores a produzir novas fórmulas de controle e organização rígida e fracionada do tempo para que as “duas escolas” não entrem em choque. Esse processo acaba por dar mais importância ainda ao tempo público, “derivado do tempo de corte industrial construído sobre o tradicional tempo do relógio linear e homogêneo” (ibidem, p. 23). Para disciplinar tecnicamente o ambiente escolar, concebe-se uma noção de tempo de aprendizagem reduzido ao tempo público dentro da escola. Esse é mais um aspecto das normas locais que inverte as proposições basilares da estratégia dos territórios educativos do PME, já que encontramos nos documentos a seguinte premissa: “Afinal, pelo olhar da Educação Integral o ‘tempo de aprender’ não está restrito ao tempo escolar” (ESCOLA APRENDIZ, 2011, p. 88).

Quando as alternativas de tempo e espaço não são suficientes, os gestores combinam essas manipulações ao desenvolvimento de outras práticas complementares para liberar tempo e espaço. Uma delas, orgânica a esse movimento de reconfiguração interna dos tempos-espaços (territórios às avessas), é a que estamos denominando de manipulação das/nas turmas. No plano prático se expressa das seguintes formas: a) enturmação; b) revezamento. A fala de Gestor 2 (2014) é tributária da estratégia do enturmamento quando este diz: “#091;...#093; No espaço pequeno que a gente tem, cabem no máximo dez alunos. Mas a gente está tentando colocar dezoito”. Já a questão do revezamento das turmas ocorre da seguinte forma, presente no depoimento de Gestor 4 (2014): “#091;...#093; Tem um ônibus que vem buscar os alunos de manhã e à tarde e vice-versa. Tem este revezamento de outras turmas”.

Práticas de aumento do número de alunos por turma vêm sendo uma tendência cada vez mais frequente no território brasileiro, evidenciada em estudos e debates da educação na atualidade. O caso da reorganização do ensino público paulista, por exemplo, vem se valendo de processos de enturmação como forma de racionalização dos custos e poupança de recursos humanos e físicos, produzindo, assim, microprocessos de privatização. Também podemos observar esse fenômeno principalmente em escolas do campo, como consequência do fechamento das unidades escolares de pequeno porte ou unidocentes (como são chamadas).

Como esforço de síntese, podemos destacar que as particularidades da forma como se configura a ampliação do tempo-espaço nas escolas investigadas parecem, no plano imediato, sinalizar para uma ampliação às avessas. O caráter particular dessas ações se expressa nas inversões, rupturas e ressignificações dos princípios basilares da proposta do PME pelos gestores, nas dimensões da compreensão, justificativas e estratégias. No entanto, a análise aqui empreendida constatou que essa contradição interna (às avessas) dos tempos-espaços escolares é coerente com as contradições mais amplas e genéricas do tempo-espaço social no qual as escolas são constituintes e constituídas e, neste caso, aos truques de ajustes operados para camuflar a não-ampliação concreta dos tempos e espaços escolares como promete o PME. Nesse sentido, temos como truques:

Considerações finais: truques que não ampliam a jornada, mas, robustecem a escola

A tese da configuração às avessas no plano fenomênico tem suas particularidades e determinações inscritas no movimento contraditório da realidade em que a escola está constituída e é constituinte em Caruaru. Isto confirma um pressuposto central do nosso trabalho, a saber, de que o movimento que constitui a configuração tempo e do espaço escolar está atrelado, contraditoriamente, ao movimento referente ao tempo-espaço social que se reflete nas funções escolares. Este trabalho pode constatar que tais funções guardam nexos dialéticos com inúmeras determinações do movimento histórico- contraditório de produção da escola pública, tais como: a) imposições hegemônicas formuladas no âmbito internacional de reestruturação da educação escolar em função do contexto de crise e recomposição do capital; b) nexos referentes à reconfiguração do papel e das responsabilidades do Estado, principalmente com a política social, na escala nacional e suas relações com as escalas estaduais e municipais para a gestão da pobreza, que vem ampliando as funções da escola para menos; c) nexos com propósitos políticos locais de ajuste da educação às necessidades de gestão da população.

Neste caso, os truques utilizados pelos gestores escolares, os quais culminaram num processo de reconfiguração às avessas da ampliação do tempo-espaço educativo para a educação (em tempo) integral do PME, servem de evidência empírica da expressão de contradições basilares dos processos sociais e que, portanto, apesar de influenciarem, extrapolam o universo escolar. Para fins de delimitação deste trabalho podemos mencionar apenas três: a) a existência de um abismo entre a proposta dos territórios educativos e os limites estruturais materiais e imateriais em que se encontram a escola e o território do qual ela faz parte; b) a ampliação do tempo e/ou do espaço escolar, que, necessariamente, não resulta em ampliação das possibilidades aprendizagem; c) o desgoverno como marca da política educacional no Brasil, permitindo que ações locais se sobreponham aos objetivos mais amplos, inclusive, negando-os ou desvirtuando-os completa ou parcialmente.

Estas contradições, intrínsecas à natureza dos processos sociais reconfiguradores dos tempos-espaços escolares (reunidos aqui neste estudo sob o termo “ampliação às avessas”), fazem com que a escola, ao se ajustar, através dos truques, redefina o horizonte de suas funções também no plano local. Nesse sentido, levantamos algumas (novas) funções que são atribuídas às escolas no processo de reconfiguração dos tempo-espaços escolares: 1) revitalização de espaços precários para tornar a escola uma mercadoria atrativa e melhorar o desempenho municipal nas estatísticas nacionais e internacionais (evasão e aprovação); 2) institucionalização de formas improvisadas e informais de contratação e organização do trabalho pedagógico, permitindo a economia de recursos e regulação do trabalho, sendo essa outra marca da “nova escola” dos pobres no agreste; 3) aperfeiçoamento das formas de diferenciação da oferta, através de novas formas de delimitação e controle dos potenciais perigos à coesão social, fazendo uma limpeza nos bairros mais periféricos com o recrutamento diurno (dois turnos) dos alunos dentro da escola.

À guisa de conclusão, esperamos que as questões aqui levantadas incitem novas problematizações, estudos e debates entre gestores, educadores, pesquisadores, alunos, movimentos sociais, lideranças comunitárias, enfim, que contribuam para a discussão dos entraves e possibilidades da educação (em tempo) integral no Brasil, bem como os abismos entre a normas legais da educação e suas normas utilizadas nos territórios e nas escolas, acabando por reproduzir, dialeticamente, as desigualdades sociais no plano escolar. Ressaltamos a importância de ampliação e socialização do debate sobre as marcas de informalidade, improviso e precariedade presentes na natureza contraditória de produção da escola pública no país através de velhos truques, mas que podem assumir novos contornos, ainda mais quando o Estado brasileiro vem sinalizando o desejo de aprofundar a indução dessas estratégias como solução para a melhoria da educação pública.

Referências bibliográficas

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Notas

1 Estratégia firmada em 1990 com o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras, realizado em Barcelona. Desse congresso se originou, em 1994, a Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE). No congresso foram formulados 20 princípios sistematizados em um documento intitulado “Carta das Cidades Educadoras: declaração de Barcelona” (1990).
2 Governo Lula (2003-2006/2007-2010); Governo Dilma (2011-2014).
3 Termo utilizado por Algebaile (2009) para caracterizar a cisão dos turnos escolares diurnos em 3 (três) ao invés de 2 (dois), contrariando às formas mais habituaais do processo de organização dos tempos escolares no Brasil.
4 No período entre os anos de 2015-2016. Fonte: <http://avaliacaoeducacional.com/2015/11/23/reorganizacao-paulista-copia-nova-york>. Acesso em: 20/01/2016
5 Para maiores detalhes, acessar o link: <http://avaliacaoeducacional.com/2015/11/23/reorganizacao-paulista-copia-nova-york/> Acesso em: 20/01/2016
6 Os dados foram retirados dos três últimos censos divulgados no site do IBGE (2007; 2009; 2012).
7 Área de estudos dos ritmos biológicos. Vem sendo utilizada para definições dos ritmos e tempos necessários e eficientes de aprendizagem.

Autor notes

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