ARTIGOS
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NA EDUCAÇÃO DO CAMPO: Jogos Didáticos e Atividades Contextualizadas com os Saberes Campesinos
Literacy and lettering in field education: didactic games and contextualized activities with the peasants knowledge
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NA EDUCAÇÃO DO CAMPO: Jogos Didáticos e Atividades Contextualizadas com os Saberes Campesinos
Revista Tópicos Educacionais, vol. 25, núm. 2, pp. 1-15, 2019
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
RESUMO: O presente artigo tomou como objeto “os processos de alfabetização e letramento no contexto campesino” e buscou averiguar as contribuições da ludicidade mediada pelos jogos didáticos no progresso da alfabetização e letramento de crianças do 3º ano do ensino fundamental de uma escola do campo, em 2017. Desenvolvida em uma escola atendida pelo Programa de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE-CAA), a pesquisa teve como objetivos: i) analisar as contribuições da ludicidade pautada nos jogos didáticos, enquanto mobilizadores da participação dos estudantes nas aulas; e ii) identificar se houve avanço quanto ao desenvolvimento da alfabetização e letramento dos estudantes na medida em que a metodologia adotada envolvia a ludicidade pautada nos jogos didáticos em sala. Foram utilizados como arcabouço teórico para elaboração deste trabalho: Leal, Mendonça, Morais e Lima (2008); Soares (2003); Ferreiro (2004); Ferreiro e Teberosky (1979); Morais (2012); Soares (2010); Coutinho (2005); Caldart (2012); Arroyo (2004); Kishimoto (2002); Murcia (2005); Miranda (2001). A pesquisa é de abordagem qualitativa, tendo como lócus uma escola pública municipal localizada em Caruaru-PE, no território campesino do Alto do Moura. Metodologicamente, trabalhamos com a observação participante e a intervenção pedagógica, cujos dados foram registrados em dois diários de campo. Os participantes da pesquisa foram tratados como E1, E2 e E3. Os resultados mostram que, na avaliação diagnóstica inicial, os três estudantes (E1, E2 e E3) se apresentavam na fase silábico-alfabético do desenvolvimento do sistema de escrita alfabética (SEA), porém, no decorrer das atividades que envolviam a ludicidade articulada aos jogos didáticos, evidenciou-se que os estudantes avançaram para o nível alfabético do sistema de escrita, confirmado na avaliação diagnóstica final. Concluiu-se que o caminho metodológico construído, envolvendo a ludicidade mediada pelos jogos didáticos, materializou-se enquanto possibilidade de atuação dos iniciantes à docência do PIBID, marcado pelos avanços que os estudantes apresentaram no percurso construído, desencadeando satisfação na participação das aulas, tendo como consequência os avanços nos processos de construção da alfabetização e letramento pelos estudantes.
Palavras-chave: Alfabetização e Letramento, Educação do Campo, Jogos didáticos, PIBID.
ABSTRACT: The purpose of this article was “the processes of literacy and literacy in the peasant context” and sought to investigate the contributions of playfulness mediated by didactic games in the progress of literacy and literacy of children of the 3rd year of elementary school in a rural school, in 2017. Developed in a school attended by the Teaching Initiation Scholarship Program (PIBID) of the Pedagogy course at the Federal University of Pernambuco (UFPE-CAA), the research aimed to: i) analyze the contributions of playfulness based on didactic games, as mobilizers of student participation in class; and ii) identify if there was progress in the development of students' literacy and literacy, as the adopted methodology involved the playfulness based on the didactic games in the classroom. The following were used as theoretical framework for the elaboration of this work: Leal, Mendonça, Morais and Lima (2008); Soares (2003); Blacksmith (2004); Blacksmith and Teberosky (1979); Morais (2012); Soares (2010); Coutinho (2005); Caldart (2012); Arroyo (2004); Kishimoto (2002); Murcia (2005); Miranda (2001). The research is qualitative approach, having as locus a municipal public school located in Caruaru-PE, in the peasant territory of Alto do Moura. Methodologically, we worked with participant observation and pedagogical intervention, whose data were recorded in two field diaries. Research participants were treated as E1, E2 and E3. The results show that, in the initial diagnostic evaluation, the three students (E1, E2 and E3) presented in the syllabic-alphabetic phase of the development of the alphabetic writing system (SEA), however, during the activities that involved the playfulness articulated to the students. didactic games, it was evidenced that the students advanced to the alphabetic level of the writing system, confirmed in the final diagnostic evaluation. It was concluded that the built methodological path, involving the playfulness mediated by the didactic games, materialized as possibility of the beginners acting to the teaching of PIBID, marked by the advances that the students presented in the constructed path, triggering satisfaction in the participation of the classes, having as a consequence the advances in the processes of construction of literacy and literacy by students.
KEYWORDS: Literacy and Literacy, Rural Education, Didactic Games, PIBID.
1. INTRODUÇÃO
O referido trabalho versa sobre as experiências advindas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE-CAA), nas quais se objetivou analisar, nas intervenções realizadas em uma escola campesina atendida pelo Programa, como a metodologia que envolve os jogos com intuito pedagógico pode contribuir no processo de alfabetização e letramento.
Nessa direção, o processo de alfabetização e letramento dos estudantes tem se revelado como um desafio a ser assumido pelos sujeitos educativos no percurso da vida escolar, pois é através deste que eles construirão seus conhecimentos sistematizados. Diante do exposto, nos ajuda a compreender Carvalho (2008, p.18 e 19) que “uma pessoa alfabetizada domina as relações grafêmicas, em outras palavras, sabe que sons as letras representam, é capaz de ler palavras e textos simples, mas não necessariamente é usuário da leitura e da escrita na vida social”. Esta apropriação está impregnada da ação do “letrar”, uma vez que, segundo Soares (2003), o letramento é o estado ou condição de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de interação oral.
Desta forma, entendemos que quando a criança já domina este saber, a mesma pode refletir sobre textos lidos, mas também usar deste conhecimento adquirido para lidar com situações de seu cotidiano, fazendo assim uma assimilação ou significação do conteúdo aprendido na escola com o saber popular/campesino adquirido através das relações entre os sujeitos. Neste sentido, Cardart (2012) afirma que a perspectiva da educação do campo não é proporcionar uma educação que delimite os passos do sujeito, mas é fazer com que este seja educado através de princípios de sua cultura, se autoreconhecendo em seu espaço, e que tenha direito a uma educação de qualidade socialmente referenciada de modo que possa usar dela para adquirir conhecimentos outros.
Expressamos assim a justificativa da necessidade de percepção, por parte dos profissionais que trabalham nas escolas campesinas, do estudante enquanto o sujeito protagonista do seu processo de aprender, algo que ocorrerá, conforme explicita Hoffman (2001), quando o estudante “mobilizar-se”, quando as condições criadas forem significativas para o mesmo, quando forem desenvolvidas pelos professores de modo que lhes favoreçam neste processo. Desta maneira, uma prática pedagógica pode promover o desenvolvimento da linguagem escrita por meio de um jogo didático. Assim, os jogos didáticos podem ser utilizados para atingir determinados objetivos pedagógicos, tornando-os, assim, conforme Gomes e Friedrich (2001), uma alternativa para melhorar o desempenho dos estudantes em conteúdo de difícil apreensão.
Diante destes aspectos discorridos até aqui, propusemos a seguinte questão: como os jogos didáticos contribuem no processo de alfabetização e letramento em uma determinada Escola do Campo? Sendo assim, formulamos a proposta de compreender como os jogos didáticos contribuem no processo de alfabetização e letramento da referida instituição escolar, tendo como objetivos específicos: identificar se houve avanço quanto ao desenvolvimento da alfabetização e do letramento, conforme eram utilizados jogos didáticos em sala; analisar quais as contribuições dos jogos didáticos na alfabetização e letramento dos estudantes de uma escola do campo, seja para mobilizar participação, seja para melhor compreensão do conteúdo escolar. Apresentamos inicialmente o pressuposto de que o manuseio e utilização destes instrumentos didáticos durante as intervenções pedagógicas contribuem no desenvolvimento cognitivo dos estudantes, proporcionando tanto a ampliação da alfabetização e do letramento, quanto uma possibilidade de promoção de participação dos mesmos nas aulas.
2. RECORTE TEÓRICO
Para começarmos, trazermos a lume as compreensões contidas na literatura a respeito do que seria alfabetização, letramento e, posteriormente, o “alfabetizar letrando”. Para tal, recorremos a Leal, Mendonça, Morais e Lima (2008, p. 6), ressaltando que se “[...] entende alfabetização como o processo de apropriação do sistema alfabético de escrita e letramento como o processo de inserção e participação na cultura escrita”. Nesta perspectiva tendencial, Soares (2003) afirma que a alfabetização seria o processo pelo qual se adquire o domínio das habilidades para ler e para escrever, ou seja, o domínio do conjunto de técnicas para exercer a arte e ciência da leitura e da escrita.
Ferreiro (2004) ressalta que a escola precisa estimular sempre o aluno para que haja o denominado aprendizado significativo, promovendo metodologias que almejam resultados satisfatórios. Por conseguinte, se faz necessário “[...] colocar a criança em situações de aprendizagem, em que possa utilizar suas próprias elaborações sobre a linguagem, ou seja, integrar o conhecimento espontâneo da criança ao ensino, dando-lhe maior significado” (Ibidem, p. 18). Nesta perspectiva, Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1979) contribuíram consideravelmente aos estudos acerca da alfabetização, dando ênfase na denominada “teoria da psicogênese da língua escrita”, que estudara o processo de alfabetização através de uma investigação psicogenética dos processos de aquisição da leitura e da escrita.
A partir da teoria da psicogênese da escrita se sublinhou a importância de se trabalhar com a ideia de letramento, mesmo que não fizesse uso desse termo. Nessa teoria, já se compreendia, como afirma Morais (2012), que os estudantes, antes mesmo de entrarem na instituição escolar, já estão inseridos no processo de letramento e que, desta forma, caberia à escola empenhar-se em atividades que possibilitem aos mesmos compreender o sentido social prática da leitura e da escrita. Nesta direção, Leal, Mendonça, Morais e Lima (2008) afirmam que alfabetizar letrando é entender que, ao mesmo tempo em que a criança se familiariza com o Sistema de Escrita Alfabética (SEA), para que ela venha a compreendê-lo e a usá-lo com desenvoltura, ela já participa na escola de práticas de leitura e escrita, ou seja, ainda começando a ser alfabetizada ela já pode se inserir no mundo do ler e do escrever, mesmo que não domine as particularidades de funcionamento da escrita.
2.1 Educação do campo
Na comunidade campesina existe uma especificidade particular em sua cultura e modo de vida, o seu conhecimento não é apenas oralizado para os demais, mas aprendido e vivido na dinâmica das relações interativas entre os sujeitos de sua região. Nesse sentido, pensar uma educação que respeite esses aspectos é de fundamental importância, pois favorece e fortalece a continuação de culturas outras. Assim, Caldart (2012) apresenta como a verdadeira educação do campo pode contribuir para a formação do ser, afirmando que a educação do campo é a luta do povo do campo por políticas públicas que garantam o seu direito à educação, o que implica dizer que o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive e tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.
Logo, nesta busca por seus direitos, Caldart (2012, p. 259) aponta que os trabalhadores do campo são os principais personagens ativos deste processo de emancipação, firmando que: “A educação do campo nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas”. Nesse contexto, estes personagens não lutam apenas por uma melhor condição de vida ou melhoria da educação, isto vai além, porque existe um desejo para que a educação sempre possa ser mantida no território campesino, onde os pais (trabalhadores) possam, em conjunto com os profissionais da escola, desenvolver projetos pedagógicos significativos para as crianças.
Sendo assim, podemos perceber que há uma organização do sistema que atinge diretamente as classes populares, estas que também estão incluídas no território campesino, porque, segundo afirma Arroyo (2004), existe uma tendência dominante no país, marcado por exclusões e desigualdades, de considerar a maioria da população que vive no campo como a parte atrasada e fora de lugar no almejado projeto de modernidade. Assim, formou-se um pensamento equivocado que as pessoas, a educação ou qualquer atividade exercida no campo é precarizada e não merece prestígio algum. Portanto, mudar esta realidade é de extrema urgência.
2.2 Jogos didáticos e o processo de ensino e aprendizagem
Tomamos o jogo aqui na perspectiva de Murcia (2005) enquanto meio de expressão e comunicação, sendo de primeira ordem de desenvolvimento motor, cognitivo, afetivo e sociabilizador por excelência, o que é básico para o desenvolvimento da criança em todas as suas facetas. Pode, desta forma, ter um “[...] fim em si mesmo, bem como ser meio para a aquisição das aprendizagens. [...] podendo acontecer de forma espontânea e voluntária ou organizada, sempre que seja respeitado o princípio da motivação” (MURCIA, 2005, p. 74).
Kishimoto (1994) discorre também sobre as características relacionadas ao jogo, apontando como sendo: o prazer demonstrado pelo jogador, o caráter “não-sério” da ação, a existência de regras, o caráter representativo, dentre outros. Vygotsky (1984) ressalta também o relevante papel do ato de brincar na constituição do pensamento infantil, afirmando que é brincando e jogando que a criança revela seu estado cognitivo, visual, tátil, seu modo de aprender e de entrar em uma relação cognitiva com o mundo de eventos, pessoas e coisas.
Partindo das contribuições de Kishimoto (1994) e Vygotsky (1984), concebemos ser fundamental que o professor utilize metodologias diversas e que desperte cada vez mais nos estudantes o interessante na aula. No que tange ao jogo enquanto um recurso didático que o professor pode se utilizar para atingir determinado objetivo proposto, Miranda (2001) afirma que mediante os jogos didáticos vários objetivos podem ser atingidos, relacionados à cognição (desenvolvimento da inteligência e da personalidade, fundamentais para a construção de conhecimentos), à afeição (desenvolvimento da sensibilidade e da estima e atuação no sentido de estreitar laços de amizade e afetividade), à socialização (simulação de vida em grupo), à motivação (envolvimento da ação, do desafio e mobilização da curiosidade) e à criatividade.
Desta forma, vemos que os jogos didáticos podem ser auxiliadores nos trabalhos escolares e que os mesmos são indicados para serem utilizados em momentos diversos. No entanto, para que utilizemos todas as potencialidades educativas dos diferentes jogos didáticos, bem como os aspectos curriculares que podem ser trabalhados através dos mesmos, se faz necessário compreendermos que “[...] é muito mais eficiente aprender por meio de jogos e, isso é válido para todas as idades, desde o maternal até a fase adulta. O jogo, em si, possui componentes do cotidiano e o envolvimento desperta o interesse do aprendiz, que se torna sujeito ativo do processo [...]” (LOPES, 2001, p. 23).
3. METODOLOGIA
A presente pesquisa classifica-se como uma pesquisa do tipo etnográfica que, segundo André (2008), é assim caracterizada pelo uso de técnicas que são associadas à etnografia, exigindo uma maior interação entre o pesquisador e o objeto pesquisado e envolve o trabalho de aproximar-se de pessoas, situações, locais, eventos, mantendo com eles um contato direto e prolongado. É também fundamentada em uma abordagem qualitativa, que conforme Ludke e André (1986), se desenvolvem numa situação natural, sendo rica em dados descritivos, tendo um plano aberto e flexível, e focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada. Compreendemos assim que na pesquisa qualitativa busca-se a compreensão dos significados das ações e atitudes expressas pelos participantes da pesquisa, algo que possibilita uma maior percepção das particularidades do que está sendo abordado.
Desenvolvida no contexto do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), em 2017, a pesquisa tomou como procedimentos de coleta de dados as observações e intervenções desenvolvidas, conversas informais que emergiram do campo de pesquisa e foram registradas em dois diários de campo. Concebemos que o diário de campo foi um instrumento metodológico ímpar de contribuição na formulação das conclusões da pesquisa, proporcionando a construção e reconstrução das conclusões a cada consulta que se fez nos dados nele relatados.
O lócus da pesquisa foi uma escola pública municipal da cidade de Caruaru-PE, localizada no território campesino da comunidade Alto do Moura. Esta instituição oferta a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (Anos Iniciais), sendo que nosso trabalho foi realizado na turma do 3º ano do período vespertino. Para apresentação dos dados e resultados, nomeamos os participantes da pesquisa como sendo E1, E2 e E3 de modo que fossem resguardadas suas identidades. Concomitantemente, trazemos também os jogos didáticos que foram desenvolvidos nas intervenções, que, a cargo de organização e apresentação dos dados, nomeamos os jogos como A1, A2, A3 e A4.
Para fins de tratamento dos dados da pesquisa, utilizamos a técnica de Análise de Conteúdo, compreendendo-a, conforme Bardin (1979 apudGomes, 2005), como um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando, através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, fazer uma descrição objetiva e sistemática do conteúdo, tendo por finalidade a interpretação dos dados. Portanto, em nossa pesquisa, a análise dos dados coletados (Avaliação diagnóstica inicial e final, Notas de Campo, Material oriundo das intervenções aplicadas) foi sistematizada e organizada conforme a categoria analítica desvelada a partir da inferência e interpretação dos dados articulado aos objetivos do trabalho.
De modo que, apresentamos inicialmente os dados da atividade diagnóstica realizada com os três estudantes, com o intuito de nortear-nos acerca da fase de alfabetização e de letramento dos mesmos. Em seguida, trazemos os dados referentes às intervenções realizadas, a fim de apresentarmos o avanço quanto ao desenvolvimento da alfabetização, conforme eram utilizados jogos didáticos, fazendo concomitantemente sempre que possível a relação conjunta de todos os dados apresentados com as contribuições dos teóricos que fundamentam o presente trabalho.
4. DADOS E RESULTADOS
Com base nos dados coletados em campo, sistematizamos a categoria analítica “contribuições dos jogos didáticos ao processo de alfabetização e letramento dos estudantes: da mobilização à participação nas aulas à ampliação do repertório de aprendizagem”, visando responder aos objetivos propostos na pesquisa. Assim, primeiramente, antes do início das intervenções foi construída uma avaliação diagnóstica inicial tendo os seguintes descritores como parâmetros: distinguir, como leitor, diferentes tipos de letras; identificar uma letra entre várias letras apresentadas isoladamente; identificar informações implícitas estabelecidas na relação entre texto e imagem; e identificar efeitos de humor ou ironia em textos no qual interagem elementos verbais e não verbais como tirinhas, charges e propagandas.
Constatou-se a partir da diagnose aplicada no início das intervenções, bem como nas atividades espontâneas, que os três estudantes (E1, E2 e E3), de acordo com suas respectivas avaliações diagnósticas, estavam inicialmente no período silábico-alfabético do desenvolvimento do sistema de escrita alfabética (SEA), pois começavam a compreender a transição entre os esquemas prévios a serem abandonados e os que viriam a serem construídos futuramente. Nesse sentido, observamos que os estudantes até mesmo se arriscaram na escrita de palavras com sílabas simples para a constituição de outras compostas por padrões silábicos mais complexos. Desta forma, os três estudantes (E1, E2 e E3) “[...] já têm suas hipóteses muito próximas da escrita alfabética, uma vez que eles já conseguem fazer a relação entre grafemas e fonemas na maioria das palavras que escrevem [...] (COUTINHO, 2005, p. 60).
A partir desta verificação inicial, planejamos nossas intervenções, entendendo que, para que o estudante aprenda, ou melhor, amplie seu conhecimento, é necessário um trabalho metodológico dinâmico e que neste o professor use de ferramentas diversas para despertar o interesse do mesmo a participar, pois, de acordo com Morais (2012), o domínio das correspondências grafema-fonema pressupõe um ensino sistemático que pode ser lúdico, reflexivo e prazeroso.
Desta forma, na A1 sobre os números ordinais propomos um jogo lúdico, no qual cada estudante representou um número posicional no jogo e a partir destes números os estudantes E1, E2 e E3 tiveram a oportunidade de escrita dos seus respectivos números (escrita ordinal dos números), mas primordialmente assimilar este mesmo com sua posição ordinal que estava posta em um cartaz. Colocamos os estudantes em uma fila indiana sobre pedaços de papéis com cores diversas, denominamos um número ordinal para cada um e pedimos que memorizassem este número. Assim, “[...] explicamos o porquê que usamos estes numerais, por exemplo, para organizar uma fila, uma sequência, dentre outras. Em seguida, iniciamos o jogo dizendo suas regras, como não empurrar o colega, prestar atenção e ter agilidade para sentar na cadeira indicada e levantar para ir até sua inicial posição ordinal.” (Diário de campo 1, 18 de Abril de 2017).
Conforme a A1, notamos que, ao explicarmos o porquê de usarmos estes numerais por intermédio do exemplo de uma prática social -vejamos que para organizarmos uma fila, uma sequência qualquer, necessitamos de uma ordenação - os estudantes puderam exercitar a escrita por meio de um jogo didático composto por elementos de uma prática social cotidiana. Deste modo, trabalhamos na perspectiva de se alfabetizar letrando, visto que este é o entendimento do estado em que vive o indivíduo que sabe ler e escrever e exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive, sendo a alfabetização e o letramento complementos (SOARES, 2010).
Na A2 realizamos o desenvolvimento do jogo que denominamos de “bingo de letras”. Neste, usamos os alfabetos móveis e explicamos como funcionava o jogo, no qual a cada letra retirada na “bolsa das letras” o estudante deveria observar se possuía esta mesma em sua ficha de palavra. Durante a chamada de algumas letras, indagamos quais outras palavras podem ser formadas com as letras retiradas e se a mesma é uma consoante ou vogal, entre outras indagações. Por fim, “[...] os alunos ficam apreensivos para participar, [...] continuamos chamando e os indagando até que um estudante (E2) diz: “Eu acho que ganhei”. Então paramos o jogo e entre a turma e com a ajuda dela ia verificação, a partir da qual foi confirmada a vitória do aluno” (Diário de campo 2, 16 de Maio de 2017).
Ao analisar o desenvolvimento desta atividade, notamos que E1, E2 e E3 puderam identificar as letras que formavam suas palavras, destacando através de nossa mediação suas separações silábicas e o número de fonemas. Durante a realização desta atividade, pudemos perceber que o E3 conseguiu ler sua palavra e classificá-la quanto ao número de sílabas ao dizer “[...] olhe, minha palavra é “capital” tia, é trissílaba, pois eu abro minha boca para falar três vezes” (Diário de campo 1, 16 de Maio de 2017).
Ressaltamos aqui que o jogo didático, enquanto um meio possível de possibilitar a aquisição de aprendizagens, pode acontecer de forma organizada e considerar o princípio da mobilização dos estudantes frente à atividade. Diante do exposto, vimos que, no início da intervenção do “bingo das letras” citado anteriormente, ocorreu a seguinte situação: E1 questionou: “[...] professor, a gente vai fazer o que de bom hoje?!”. Ao falarmos um pouco acerca do que seria a intervenção, o mesmo reagiu perguntando à professora: “Porque a senhora não faz atividades diferente como os professores do Pibid?!” (Diário de campo 2, 16 de Maio de 2017). Nesse aspecto, entendemos que há de fato essa relevância nos jogos didáticos, que é o desafio genuíno que eles provocam no estudante e que gera neles interesse e prazer.
Na A3 aplicamos o jogo didático que chamamos de “roleta silábica”, no qual os três estudantes (E1, E2 e E3), depois de nossa explicação, entenderam que as tampas, o ímã e os demais objetos eram para a construção do jogo e que posteriormente deveriam jogar para completar as questões da atividade escrita. A proposta deste jogo didático se deu tendo como norteador o planejamento da turma e pensamos em trabalhar a divisão silábica de maneira dinâmica, lúdica, propondo um jogo para trabalhar a “[...] produção de palavras a partir de sílabas selecionadas. Estando pronta a “roleta silábica”, distribuímos para os estudantes “cartelas” e que conforme giravam e caiam em determinada sílaba, eles deveriam preencher na sua cartela com palavras que tivessem a sílaba selecionada na roleta” (Diário de campo 2, 06 de junho de 2017).
Assim, terminada a construção do jogo, “o E3 vai girar a roleta e fica superanimado, retira da mesma a sílaba “BA” e completa na sua atividade a palavra dissílaba (bala)” (Diário de campo 1, 06 de junho de 2017). O jogo, por sua vez, impulsiona o estudante a querer tentar completar mais e mais palavras, de modo que ele não se desinteressa pela ação exercida. Além disto, foi muito prazeroso perceber através de nossas observações que “[...] no momento de produção de todo o jogo os estudantes contribuíram, uns selecionando as sílabas, outros fazendo o nome “roleta silábica”, outros com nosso auxílio colocavam as sílabas no tabuleiro” (Diário de campo 1, 06 de junho de 2017). Este jogo didático foi sendo utilizado de diversas maneiras, seja: na apresentação do conteúdo (Pozo, 1998); nas ilustrações de aspectos relevantes ao conteúdo e na revisão de conceitos de difícil compreensão (Gomes e Friedrich, 2001); como também na aproximação dos conteúdos culturais - como, por exemplo, as palavras do cotidiano dos estudantes (forró, zabumba, fogueira, vaca dentre outras) - que emergem da sala de aula (Kishimoto, 1999).
Levamos outra atividade após este jogo didático na qual os estudantes deveriam escrever novas palavras com algumas das sílabas estudadas ou até mesmo fazê-las misturando algumas delas. Conforme estas atividades, o E1, E2 e o E2 apresentam nas suas respostas que houve a preocupação não mais apenas em perceber os sons da fala e grafá-los de acordo com as sílabas apresentadas, mas percebemos também que suas escritas apresentam todas as relações entre grafemas e fonemas, e que os três estudantes demonstram entender que as letras representam unidades menores do que as sílabas. A partir de então, evidenciamos que o E1, E2 e E3 avançaram para o “Nível alfabético”, visto que neste nível o estudante compreendem, de acordo com Coutinho (2005), o “como a escrita nota a pauta sonora”, ou seja, que as letras representam unidades menores que as sílabas, de modo que um estudante neste nível alfabético já é capaz de fazer todas as relações entre grafemas e fonemas, ainda que possuam a tendência de escrever como se pronunciam as palavras.
Portanto, no momento em que manuseavam a roleta silábica, além de praticar a oralidade das sílabas, também poderiam colocá-las em outras lacunas instigando a produção de novas palavras, usando seus raciocínios e, desta maneira, o jogo didático proposto na A3 contribuiu para que os estudantes aprimorassem seus conhecimentos com relação ao sistema alfabético, pois, conforme Morais (2012, p. 118), “a prática de montagem e desmontagem de palavras têm se revelado boas alternativas para auxiliá-los a avançar na apropriação do SEA”.
Por fim, realizamos o jogo didático “trava-língua” (A4). Assim, tentamos chamar a atenção dos estudantes para a execução deste jogo de maneira que eles praticassem a leitura deste que está presente em suas vidas cotidianas, bem como para que entendessem a diferenciação entre a escrita de palavras com “R e RR”. É notório considerarmos a importância do trabalho com os “trava-línguas”, pois eles são explorados nas instituições do campo e principalmente vivenciados na comunidade desta região.
Neste tipo de atividade contextualizada com os saberes populares, evidencia-se que “o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2012, p.18). Nesta perspectiva, os estudantes através desta atividade puderam fazer uso de seu letramento social através da leitura/escrita deste tipo de literatura popular.
Dessa maneira, notamos que o jogo do trava-língua, além de impulsionar a leitura, também fez com que o E2 incentivasse e torcesse pela evolução da aprendizagem de sua colega. Conseguimos perceber isto no trecho do diário de campo 1, quando ele afirma “eu vou Tia ajudar, eu consigo, ela vai conseguir” (Diário de campo 1, 22 de agosto de 2017). Compreendemos que em uma ação simples da vida escolar em sala de aula, tanto a alfabetização como a coletividade foram praticadas. Neste jogo, o E1 e E3 conseguiram avançar na oralidade, formar frase e diferenciar palavras escritas com “R e RR” ao completá-las. Entretanto, o E2 apresentou uma evolução significativa em sua aprendizagem, pois pôde ler, completar as palavras da atividade e construir uma oração estruturada com coerência e coesão, de maneira legível.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na abordagem do objeto de estudo pesquisado, “os processos de alfabetização e letramento no contexto campesino”, buscamos responder à questão problema norteadora desta pesquisa: como os jogos didáticos contribuem no processo de alfabetização e letramento em uma escola do território campesino? Neste sentido, verificamos que o nosso pressuposto - “(...) de que a inserção destes instrumentos didáticos durante as intervenções pedagógicas contribuem no desenvolvimento escolar e cognitivo dos estudantes, proporcionando a ampliação da alfabetização e do letramento, enquanto uma possibilidade de promoção de participação dos mesmos nas aulas” - foi confirmado integralmente, de forma que se evidenciou na utilização dos jogos didáticos durante as intervenções pedagógicas uma satisfatória contribuição no desenvolvimento escolar e cognitivo dos estudantes, proporcionando tanto a ampliação da aprendizagem de determinados conteúdos referentes à alfabetização e ao letramento, quanto uma possibilidade de promoção de participação dos mesmos nas aulas.
Constatamos que, ao início das intervenções, os três estudantes (E1, E2 e E3) apresentavam a fase silábico-alfabético do desenvolvimento do sistema de escrita alfabética (SEA), uma vez que eles já conseguiam fazer a relação entre grafemas e fonemas na maioria das palavras que escreviam, porém ainda apresentavam desafios no domínio dessa relação nas palavras com maior quantidade de sílabas. No entanto, com o decorrer das intervenções, os dados obtidos demonstraram que estes mesmos estudantes (E1, E2 e E3) haviam avançado para o nível alfabético, de modo que nas respostas das suas atividades havia a preocupação não mais apenas em perceber os sons e grafá-los, mas suas escritas indicavam todas as relações entre grafemas e fonemas - mesmo que em alguns casos a ortografia ainda fosse um desafio. Diante do exposto, os três estudantes demonstraram entender que “a escrita nota a pauta sonora” (COUTINHO, 2005, p. 61), avançando na perspectiva do nível alfabético.
Notamos também, no que tange à proposta de utilização de jogos didáticos para se trabalhar na perspectiva do alfabetizar letrando, que os estudantes puderam exercitar a escrita por meio de atividades lúdicas composta por elementos de variadas práticas sociais cotidianas. Em diferentes contextos, os estudantes liam, escreviam e refletiam sobre sua escrita, usando-a para determinado fim social, e na aplicação de atividades contextualizadas com os saberes populares/campesinos, os estudantes da escola do campo pesquisada puderam fazer uso de seu letramento social através da leitura e escrita dos elementos da literatura popular, evidenciando que “[...] o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2012, p.18).
Em suma, os jogos didáticos podem ser uma importante ferramenta metodológica auxiliar do professor, seja para uso no processo de alfabetização e do letramento ou para incentivo da participação dos estudantes nas aulas. Nesta perspectiva, se faz necessário o entendimento do protagonismo do estudante em seu processo de aprendizagem, de modo que o jogo didático apresentar-se-á como um mobilizador tanto para melhor apreensão do conteúdo quanto para o crescimento e o desenvolvimento intelectual do estudante.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e Letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. RJ: Vozes, 2008.
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GOMES, R. R.; FRIEDRICH, M. A Contribuição dos jogos didáticos na aprendizagem de conteúdos. Rio de Janeiro, 2001.
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