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A ELIMINAÇÃO DA DIFERENÇA NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DE INCLUSÃO E DIVERSIDADE: NOTAS PARA PENSAR A COMPOSIÇÃO EDUCAÇÃO-DEVIR-SINGULARIDADE
La Eliminación de la Diferencia en las Políticas Educativas sobre Inclusión y Diversidad: Notas para Pensar en la Composición Educación-Debido a la Singularidad
A ELIMINAÇÃO DA DIFERENÇA NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DE INCLUSÃO E DIVERSIDADE: NOTAS PARA PENSAR A COMPOSIÇÃO EDUCAÇÃO-DEVIR-SINGULARIDADE
Revista Tópicos Educacionais, vol. 25, núm. 2, pp. 16-32, 2019
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Resumo: O objetivo do presente trabalho é pensar possibilidades de uma educação que se disponha ao encontro com a diferença em si mesma e, consequentemente, aberta ao devir. Faz-se importante irromper linhas de fuga na educação escolar, o que nos propomos pensar a partir da filosofia da diferença de Gilles Deleuze. Problematiza-se as políticas educacionais inclusão educacional, defendendo que estas levam à eliminação da diferença justamente porque ao incluírem o diferente acessam a diferença pela via da forma-Estado e da axiomatização capitalista. Conclui- se que a diferença, a face do devir, resiste aos modelos padronizadores e homogeneizantes da educação contemporânea (principalmente em seus sentidos de inclusão e diversidade) nos desafiando a compor novas maneiras de educar, pela via do encontro e do movimento. Trata-se de um convite a nós educadores a termos uma atenção de guerra, que nos leve a devir máquina de guerra escapando aos processos de captura da diferença na educação, com arte e pensamento e criação e devir...
Palavras-chave: Educação, Inclusão, Diferença, Devir.
Resumen: El objetivo de este trabajo es pensar en las posibilidades de una educación que esté dispuesta a satisfacer la diferencia en sí misma y, en consecuencia, abierta al devenir. Es importante hacer estallar las líneas de fuga en la educación escolar, lo que proponemos pensar desde la filosofía de la diferencia de Gilles Deleuze. Las políticas educativas de inclusión educativa son problematizadas, argumentando que conducen a la eliminación de la diferencia precisamente porque al incluir lo diferente, acceden a la diferencia a través de la forma-Estado y la axiomatización capitalista. Se concluye que la diferencia, la cara del devenir, resiste a los modelos estandarizadores y homogeneizadores de la educación contemporánea (principalmente en su sentido de inclusión y diversidad) desafiándonos a componer nuevas formas de educar, a través del encuentro y el movimiento. Es una invitación para que nosotros educadores tengamos una atención de guerra, lo que nos lleva a convertirnos en una máquina de guerra que escapa de los procesos de captura de la diferencia en la educación, con arte y pensamiento y creación y devenir
Palabras clave: Educación, Inclusión, Diferencia, Devenir.
Introdução
Pensar educação e diferença é urgente no fazer educacional contemporâneo, pois nesta relação reside a decisiva e desafiadora admissão do devir no encontro educativo. Por um lado, esta admissão é decisiva porque viver a educação admitindo o devir próprio da diferença nos abre linhas de fuga inusitadas de como educar, nos permitindo vislumbrar outras maneiras de educar; por outro lado, é desafiadora porque o devir nos arranca de qualquer tipo de certeza, impulsiona a reverter e a perverter todo o modelo a priori em educação. Assim, nas seções deste artigo nosso objetivo é pensar diferença e educação inspirados na diferença e no devir. A partir destas considerações nosso objetivo é problematizar as políticas educacionais de inclusão e diversidade (que julgam acolher a “diferença” em um suposto resgate do excluído, a saber, o deficiente, o preto, o homossexual, a mulher, o indígena, o camponês etc.) contrastando-as à Filosofia da Diferença, para a partir daí pensarmos educações outras abertas ao movimento do devir.
Inclusão e diversidade nas políticas educacionais
A inclusão e a diversidade são temas com ascensão relativamente recente no contexto da educação. Estes temas recomendados pelas agências internacionais das Nações Unidas, com vistas a promoção e garantia da convivência mais tolerante, próspera e democrática entre as culturas e as sociedades humanas, e passaram a compor a agenda das políticas educacionais em todos os países signatários das convenções e tratados internacionais ligados às Nações Unidas. Globalmente1, podemos citar como exemplo a elaboração de dois documentos da UNESCO, “Nossa diversidade criadora” (1997) e “Construindo um futuro: educando para a integração na diversidade” (2002), que remetem ao tema da diversidade (e sua relação com a educação), recomendando sobretudo que os sistemas educacionais se adequem a esta nova realidade global de interculturalidade e respeito à diversidade em seu mais amplo sentido, já que a educação é o meio por excelência de se trabalhar valores.
No Brasil, historicamente, a preocupação de inserir o tema da inclusão e da diversidade no contexto educacional remete aos anos 1970
com a emergência de movimentos sociais protestando contra o regime militar, novas reivindicações vão aparecer [...] além de exigirem acesso a direitos iguais - negros, feministas, de índios, homossexuais e outros - apontavam para a necessidade de se produzir imagens e significados novos e próprios, combatendo os preconceitos e estereótipos que justificavam a inferiorização desses grupos.” (GONÇALVES; SILVA, 2003, p. 115).
Deste momento histórico de questionamento forjou-se um esboço de discussão sobre os temas relacionados à cultura, diversidade e inclusão, problematizando as práticas e discursos de exclusão que predominavam, especialmente, no contexto educacional escolar.
Conforme descrito acima, na educação brasileira o tema da diversidade e dadiferença há décadas tem sido recorrente por meio de reivindicações de movimentos sociais, atendidos ora pela agenda política esquerda-progressista, ora por recomendações das agências das Nações Unidas e a agenda liberal-conservadora em educação. Diante desta ascensão propomos a seguinte pergunta: de que maneira as políticas educacionais (seja em um seguimento político-educacional de esquerda- progressista ou de direita-conservadora) abordam a diferença? Por que estes discursos e práticas encontrados nas leis, nos documentos e no cotidiano escolar não dão conta da diferença em si? Acredita-se que a filosofia da diferença nos oferece pistas norteadoras de uma concepção mais fecunda da diferença e que pretendemos vergar para pensar as políticas de inclusão e diversidade na educação.
Diferença, devir
Para pensar a diferença como um tema filosoficamente relevante no século XXI, precisamos remontar ao estilo de pensamento que desconsiderou como filosoficamente irrelevante ao longo de toda a filosofia ocidental. No contexto deste estilo de pensamento, o qual na Filosofia da Diferença se designa “pensamento sedentário” (baseado no princípio de identidade, dos fundamentos e verdades a priori) temos o predomínio do privilégio de algumas categorias sobre outras, já que neste estilo o pensar precisa valer-se apenas de categorias que contenham em si a permanência que nos acostumamos a atribuir à realidade. Assim, o pensamento sedentário dicotomiza categorias, dentre as quais uma merece destaque: a que opõe identidade versus diferença. Esta oposição impõe ao pensamento que, mesmo no movimento e variação que possivelmente a realidade apresente, este encontre caracteres e elementos que façam com que algo ou alguém seja identificável, atributos estes que se supõe permanecerem os mesmos embora ocorram transformações e variações na realidade. A escolha pela identidade em detrimento da diferença não se deve ao acaso. Pelo contrário, esta escolha do pensamento sedentário se deve principalmente à facilidade com que esta atribuição dada as coisas e as pessoas oferece para o cotidiano e a rotina vivenciada. A diferença se torna insuportável a este estilo de pensar justamente porque ele opta por entender o mundo de maneira estável, desconsiderando ou considerando muito pouco tudo aquilo que fuja das expectativas pautadas na estabilidade que alimentamos sobre as coisas. Ocorre que a identidade à qual o pensamento sedentário acostumou-se a atribuir as coisas não se trata de uma condição originária, mas de uma atribuição muitas vezes indevida, arbitrária e imperativa.
A Filosofia da Diferença consiste no esforço, muito recente na filosofia contemporânea, em explodir todo o teor de fixidez do pensamento sedentário e, consequentemente, explorar outros pensares, outros modos de vida, outros lugares e valores que não sejam aqueles sustentados pela via da identidade e do estilo cômodo de pensar a realidade. Nesta altura acenam para nós a diferença, o devir e a singularidade que despontam de outro estilo de pensar, no qual a experiência torna-se a única maneira de encontrar-se com algo ou alguém:
O pensamento nômade, que marcou diferentes gerações de filósofos, de Friedrich Nietzsche a Gilles Deleuze e Félix Guattari, é uma fonte incontornável de inspiração, encontros de ressonâncias e de múltiplas sensações entrelaçadas umas às outras, e que transformam elementos não conceituais - perceptos e afectos -, oriundos de arquipélagos de diferenças, errância do sensível, que perpassam a literatura, as artes, as ciências, e enveredam para um pensamento do devir. (LINS, 2017, p. 271)
O devir, que é a própria diferença, é analisado por Deleuze em sua obra “Diferença e repetição”, na qual há um rigoroso pensamento da diferença frente ao pensamento sedentário e sua fundamentação identitária da realidade. De acordo com a referida obra, as raízes do pensamento baseado no fundamento remetem a Platão, na medida em que este inaugura o “Mundo das Ideias” como fonte originária das Identidades/Essências Verdadeiras:
Todo o platonismo [...] é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre "a coisa mesma" e os simulacros. Em vez de pensar a diferença em si mesma, ele já a relaciona com um fundamento, subordina-a ao mesmo e introduz a mediação sob uma forma mítica. Reverter o platonismo significa o seguinte: recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. (DELEUZE, 2006, p. 106)
Para Deleuze, a diferença é aniquilada no pensamento platônico porque é pensada sempre pela mediação da distinção valorativa entre o modelo verdadeiro (A Ideia) e o ente (que pode ser cópia, ou simulacro, a depender de sua capacidade de ser um bom pretendente à imitação da Ideia). Na perspectiva do pensamento sedentário, por mais que se admita algum tipo de variação nos seres, ainda assim supõe-se que este permanece o mesmo e que seja reconhecível por possuir uma determinada identidade, uma determinada essência. Em Platão, o devir é entendido como uma ameaça a organização do pensamento, e a diferença deve ser evitada a todo custo, pois é deslocamento constante, o que, em última análise, levaria à interdição do pensamento sedentário.
Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da Ideia e da matéria, das Ideias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda: mais secreta, oculta nos próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Ideia e o que subtrai a esta ação: Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das copias e dos simulacros. O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro na medida em que se furta a ação da Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia. (DELEUZE, 2007, p. 2)
A seletiva estratificação platônica entre Ideia (Modelo), cópia (bom pretendente do Modelo) e o simulacro (mau pretendente do Modelo) estipula ao pensamento sedentário sua grande missão: de julgar e hierarquizar os seres. Pois é claro, este pensamento racional, possuidor da verdade por excelência acredita ser capaz de encontrar tudo aquilo que seja verdadeiro, e distinguir daquilo que é falso. Em outras palavras, o pensamento sedentário nos leva a crer que a racionalidade, munida da “boa vontade” e da “retidão” que se auto atribui tem o direito legítimo de reconhecer o belo, o bom e o justo na realidade, e a partir deste reconhecimento (recognição) fazer um inventário hierárquico dos seres. Assim, conhecer passa a ser reconhecer, e ao pensamento cabe apenas imitar o bom, o belo e o justo; criar torna-se um perigo ameaçador ao pensamento sedentário; a diferença torna-se um insulto à correção do pensar.
Buscando subverter o estabelecimento do pensamento sedentário na cultura ocidental, Deleuze proporá em sua filosofia da diferença um repensar do potencial da diferença enquanto condição originária de toda individuação2. Nesse sentido, a diferença é o que nos origina, por isso somos todos simulacros, modalidades do ser, variações em movimento, devir, de maneira que não há originariamente uma distinção entre “bons” e “maus” , ou, na linguagem platônica, entre “Ideia” e “simulacro”: tudo é simulacro!
O pensamento deleuziano retira a Identidade de seu trono metafísico e de sua condição de fundamento. Escava o empírico para resgatar no devir a diferença em si mesma, denunciando a arbitrariedade de todo tipo de fundamento, de modelo. Assim, faz-se necessária uma observação relacionada à crítica ontológica deleuziana ao pensamento sedentário: não podemos reduzir a empreitada deleuziana a uma mera elaboração ontológica, no sentido clássico. No pensamento de Deleuze, viva está a diferença no devir, de maneira que sua ontologia é atravessada por ética, por política, por estética, convidando-nos à criação de novos modos de existência, de vida e de resistência, desenvolvidos principalmente em seu encontro com Felix Guattari, posteriormente a trabalhos como “Diferença e Repetição” e “Lógica do Sentido”. Dessa forma, se em “Diferença e repetição” e “Lógica do Sentido” a crítica à filosofia do fundamento desterritorializa nossa forma de pensar, em trabalhos posteriores, principalmente elaborados com Guattari, Deleuze estenderá essa crítica à política e à ética, abrindo possibilidades de reterritorialização, ficando evidente que o referido problema da Identidade como fundamento é também um problema político e ético, conforme discutiremos na seção a seguir.
Filosofia da diferença, política e ética
Compreender a transposição da filosofia da diferença à política é importante para o presente trabalho, justamente porque acreditamos ser essa uma relevante contribuição deleuzo-guattariana ao nosso objeto de análise, a educação. A diferença é politico-educacionalmente desafiadora porque é indomável, é despossuída de fundamentos e, por isso, não se permite capturar por pretensões fundantes, seja de saber, seja de poder. Por isso, ela é perseguida e sua captura é quase uma necessidade para o poder e a organização da vida social vigentes, que têm na escola uma das instituições mais importantes - justamente porque lida especificamente com processos de subjetivação, com a diferença, enfim, a escola é um lugar de encontros e acontecimentos. Em relação à escola, especificamente, se pensarmos acerca da influência da filosofia do fundamento e da identidade sobre ela encontramos marcas profundas desde as legislações e políticas educacionais mais gerais até o chão da sala de aula e a relação professor-educando. O poder persegue e mantém-se no encalço da diferença justamente porque ela, dentro do dispositivo de poder que é a escola, não pode devir-loucamente, já que na educação escolar moderna o pensamento sedentário, a serviço das formas de poder, fornece o modelo homogeneizante e impositivo a ser seguido pelos seres - no caso, refletido em currículos, modelos pedagógicos, avaliações, planejamentos, por exemplo.
O estilo de pensar sedentário é decisivo à sociedade moderna porque permite ao poder distribuir espaços que comporão a vida social, legitimando ou julgando a pretensão de participação, contribuindo para o estabelecimento da forma-Estado. Participar de uma “Ideia”, corresponder a uma ideia, identificar uma representação é também legitimar um lugar no interior da vida social: eis aí as raízes platônicas de nossa organização política.
O fundamento é o que possui alguma coisa em primeiro lugar, mas que torna possível a participação, ele confere a participação ao pretendente quando este é capaz de atravessar a prova do fundamento. (...) a justiça, a qualidade do justo, os justos. O Político distingue em detalhes: o verdadeiro político ou o pretendente bem fundado, depois os pais, os auxiliares, os escravos, até os simulacros e falsas cópias (DELEUZE, 2007, p. 261).
Assim, o princípio da identidade, que é o princípio típico do Estado, permite a distribuição dos espaços, funções e identidades, porque é o definidor da realidade social e política, por meio do julgamento dos “pretendentes” e da legitimação de seus papeis sociais fixos (AGOSTINHO, 2016). Dessa forma, define-se o Estado enquanto legislador e garantidor da boa distribuição destes espaços, aliás, ele próprio institui-se como fundamento, como centro do qual emana os princípios, normas, regras e os corpos de linguagem (em que há a primazia da palavra sobre a carne, do universal sobre o singular, por exemplo: cidadão, povo, população, nação). (VILELA, 2010). Nesse contexto, a diferença em si é desafiadora politicamente, porque a singularidade que dela flui, inscrita em corpos de carne e sangue, e não apenas em corpos de linguagem e identidades distribuídas pelo Estado não se permite capturar e ser reduzida por categorizações gerais, macrodefinições, típicas das formas de governo modernas, na governança das diferenças.
A partir dessas considerações, na seção seguinte pretendemos pensar as políticas educacionais de inclusão e diversidade em sua captura da diferença, para a partir daí buscarmos no pensamento nômade e paradoxal deleuziano linhas de fuga que nos permitam outros modos de viver o educar.
Analisando as políticas de inclusão e diversidade com a Filosofia da Diferença
Nesta seção pretendemos pensar a partir da filosofia da diferença a eliminação da diferença nas políticas educacionais de inclusão e diversidade. Entendemos que no momento mesmo em que temos um discurso de “respeito” à diferença (ou as diferenças), temos formas de poder que pela via do pensamento sedentário e da homogeneização hierarquizam a partir de modelos, anulando dificultando o a criação de singularidades e de modos de vida diferentes. Tem-se uma concepção de diferença no domínio educacional que precisa ser problematizada, pois, comporta “existência da diversidade”, “tolerância”, “respeito”, “inclusão” como discurso oficial, mas não admite o questionamento da “normalidade”, da existência resistente do “outro”. Isto é sintomático da captura da qual nada pode escapar na forma-Estado.
Assim ficamos em um campo nebuloso onde se obscurecem as diferenças, e também as desigualdades. De maneira que esta espécie de outro onde foram colocados e excluídos os diferentes, os racializados, colocados no lugar da doença e/ou do desvio e tratados como inexistentes, incivilizados, bárbaros, estranhos são de alguma maneira recapturados por uma rede denominada diversidade, e incorporados, ou melhor, incluídos, de forma que a diferença que anunciam não faça nenhuma diferença. (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011, p. 9)
Há uma captura da diferença nas políticas educacionais de inclusão e diversidade que se deve ao estatuto de sistema amparador dos indivíduos excluídos, assumido por estas políticas, impondo-se de maneira colonizadora sobre as diferenças, elencando arbitrariamente algumas “diferenças” como mais “gritantes” (deficientes, negros, indígenas, homossexuais, mulheres), buscando incluí-las em um modelo de educação que as dilacera em sua mais íntima singularidade. Isto sem contar nas outras singularidades que existem na escola (cada um dos outros alunos que se enquadram no padrão de aluno “normal”) que são diferença em si e da mesma forma devorados pelo modelo educacional que se impõe. Em outras palavras, em nosso modelo de educação não é a escola que se adapta ao devir das singularidades, mas as singularidades que devem se adaptar ao domínio e controle da escola, à sua expectativa em relação ao previsível, ao desejável dentro dos sistemas de educação.
Em termos de linhagem política, podemos encontrar tanto em políticas educacionais de direita quanto de esquerda, conservadoras, progressistas ou liberais, pois, toda forma de governo, por seu compromisso com o poder, necessita sair ao encalço da diferença. Por mais que soe estranho a muitos de nós educadores, é isto: até mesmo as políticas educacionais de esquerda e progressistas procedem na captura da diferença; Deleuze em “Abecedário Deleuze”, nos esclarece o tema da política partidária e nos diz que o máximo que se pode esperar de um governo de Estado é que seja favorável a pontuais reivindicações da esquerda. "Mas um governo de esquerda, isso não existe [...] Ser de esquerda é não deixar de ser minoritário. Isso quer dizer que a esquerda jamais é majoritária enquanto esquerda." (DELEUZE, 1988). A quantidade majoritária de votos que um partido de esquerda pode ter para assumir um governo, o torna um “vazio”, o qual já pertence suficientemente ao Estado para ser esquerda minoritária. Assim, nesta trama de atravessamentos de poder, uma revolução não se trata de um processo dialético materialista-histórico, que tem na contradição sua chave lógica de organização dos movimentos antagônicos. Aprenderemos com Deleuze e Guattari que os antagonismos em uma sociedade estão implicados, e se atravessam, não havendo, portanto, contradição, já que não há forma social que se esquive da presença abstrata do Estado e seus processos de captura. O Estado, principalmente a partir de “O anti-Édipo”, “não é mais ordem, mas produtividade” (NEGRI, 2019, p. 38). Assim, no âmago do acontecimento Gilles-Felix3 surge o potente conceito de Máquina de Guerra. A guerra não é mais o enfrentamento contraditório da ordem estabelecida, mas a vivência afirmativa de outros modos de vida que escapem da axiomática produtiva capitalística e do estado-Forma, que insiste em capturar a diferença, tendo nos processos de subjetivação sua principal e mais lucrativa produção.
No “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra” (Volume 5 de “Mil Platôs”) o pensamento sedentário (e sua autoritária fundamentação das coisas por meio do logos) será entendido como a via utilizada pelo Estado para atingir a verdade e também para se produzir consensos. Filiando-se ao pensamento de Clastres, Deleuze e Guattari virão no “Estado” uma nova significação: ele é uma forma, um operador da forma que se pretende dar à sociedade, ao povo. Longe de ser reflexo de avanços civilizatórios, o Estado deixa de ter uma origem histórica, pontual na temporalidade histórica, e passa a ser uma máquina abstrata presente nas sociedades, sendo um projeto de “aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro no mesmo” (CLASTRES, 2011, p. 85).
A educação, ao menos desde a Idade Média, é definida como um processo civilizacional dos que se encontram em estado de bestialidade, ou seja, a forma de fazer com que seres humanos com comportamento bárbaro tornem-se civilizados e possam ser inseridos no convívio social. Esta função de “socialização” é cooptada pelo Estado em seu projeto identitátio e de imposição do modelo aos indivíduos. Por meio de currículos homogêneos e homogeneizantes, de uma estrutura marcadamente contratualista e burocratizada, a educação é promovida tendo como pressuposto as facetas modernas da política e se constitui como um campo no qual a axiomatização capitalística atua ferozmente, ora liberando fluxos, ora contendo fluxos. Esta é a condição de automanutenção do capitalismo. Em relação aos fluxos que se abrem e escapam cabe ao capitalismo “inscrevê-los, registrá-los, fazer que nenhum fluxo corra sem ser tamponado, canalizado, regulado” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.51). A inclusão educacional é um exemplo disso: quando se inclui o deficiente na escola o sistema libera fluxos, pois o deficiente enquanto minoritário reivindica, pede atenção. O capitalismo enxerga não como um perigo, mas um vetor de lucro. Por outro lado, este fluxo aberto não pode ser deixado devir aleatoriamente. O capitalismo retém o fluxo ao determinar a “forma” em que o deficiente tem que encarnar na escola. Este exemplo elucida o que ocorre em todos os processos de inclusão educacional. Seja de deficientes, de negros, de surdos, dentre outros. Inclui-se porque o capitalismo precisa liberar fluxos, aumentar a capacidade de produção de lucro, de maneira que ao incluir estas parcelas outrora excluídas socialmente, (e que “pedem” liberação de fluxos) ocorre a recodificação deste fluxo aberto de acordo com a codificação dos fluxos capitalistas. O deficiente, o preto, o surdo em hipótese alguma podem devir loucamente na escola, precisam ser recodificados no processo de inclusão social.
Julgando-se afirmativas, inclusivas e promotoras da diversidade, estas políticas colonizam a diferença, visando o controle e regulação da alteridade, inventando-a para que seja submetido às representações oficiais, aos diagnósticos, às generalizações das leis. Enfim, há o suposto acolhimento da diferença, mas não da diferença por ela mesma, mas um acolhimento da diferença para que ela participe dos modos de vida social hegemônicos, centrados, homogêneos e estáveis. Há a inclusão da diferença para que ela abandone sua potência diferencial, descodificando e sendo codificada novamente pelo sistema. Enfim, a escola, os sistemas educacionais modernos (que é o modelo hegemônico de educação escolar dos dias atuais) e as políticas educacionais eliminam a diferença mesmo quando discursam e promovem a inclusão e a diversidade.
Procurando desenvolver a relação entre diferença e educação utilizamos o conceito de diferença deleuziano para pensarmos nosso pressuposto segundo o qual o acolhimento da diferença promovido pelas políticas de inclusão e diversidade na educação eliminam a diferença em seu caráter existencial extemporâneo, vibrátil, disruptivo.
A potência política da diferença é desejo rizomático, devir, como nos mostram Deleuze e Guattari no programa “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”. Neste sentido, há que se ter atenção na educação escolar com os processos cotidianos de captura da diferença, justamente para que o discurso e a prática cínica própria do poder hegemônico, da institucionalidade homogeneizante da escola e o pensamento sedentário que nela incorpora-se e a axiomática capitalista. Esta atenção de “estado de guerra” implica principalmente de nós professores uma preocupação com nossa estética existêncial, a partir do momento em que permite nos assumirmos máquinas desejantes na guerra da produção de subjetividade.
A filosofia de Gilles-Felix nos coloca a possibilidade de pensar os seres em devir, propondo uma mudança do estilo sedentário ao estilo nômade de pensar, de viver, de criar. A diferença e a singularidade resistem, pois:
[...] Esse é o próprio sujeito que é preciso explodir, dispersar em singularidades ou individualidades que, desta vez, aplica-se igualmente aos não-humanos, aos animais, aos estados de coisas, aos acontecimentos. E esta é a grande revolução liberadora deleuzeana, o empirismo radical da dispersão - que eu chamaria de naturalista ou cósmica - de nossas mais ancoradas certezas de sermos consciências e sujeitos. (SCHÉRER, 2005, p. 1186)
Não basta reconhecer o direito às diferenças identitárias, como a tolerância em educação da direita-conservadora tão em voga nas políticas educacionais globais, ou o aprisionamento da diferença em noções generalizantes como de Nação, Povo, trabalhadores, conforme orientações educacionais de governos de esquerda-progressista.
Rompendo com a ideia de macro revolução via táticas de governo, a obra de Deleuze e
Guattari nos mostra ser necessário intensificar as diferenciações, incitá-las, criá-las e compor com cada singularidade em seus devires o máximo possível de potências, por meio de uma revolução desejante.
Transpor a compreensão deleuzo-guattariana ao campo da educação impele aos envolvidos com o educar uma nova maneira de compor suas práticas e a verem-se como máquinas de guerra, em uma composição rizomática em que os poderes vigentes estabelecem uma guerra que busca aniquilar a diferença, impedindo a explosão de singularidades. As políticas de inclusão e diversidade na educação eliminam a diferença, por meio de sistemas e currículos homogêneos e homogeneizantes, que estabelecem classificações entre os alunos, codificando e recodificando a explosão de novos fluxos, de novos modos de vida e de se viver o educar. Neste sentido, no âmbito macro dos atuais sistemas nacionais de educação é impossível haver encontros com a diferença, por isso é um discurso esvaziado justamente porque a diferença seria insuportável para um “modelo” de educação.
Pensamentos em devir...
A relação diferença-educação no viés deleuzo-guattariano culmina, defende-se aqui, em uma reversão e perversão do modelo, abandonando toda seriação, classificação e homogeneização na educação escolar. Isto, porque, respeitando a diferença em si, a escola se lançaria ao encontro com cada singularidade, potencializando neste encontro sua diferença, abrindo mão do “ter que”, compondo na afecção com o educando, lançando-se na instabilidade do devir das coisas e das pessoas, levando-nos a habitar o paradoxo de estar dentro estando fora. Habitar o paradoxo de ter um projeto pedagógico, um currículo bem elaborado, mas estando sempre atento ao devir que pode ou não exigir de nós que os rasguemos. É necessário a nós educadores habitar o paradoxo! Termos um plano de aulas nas mãos e a disposição de jogá-lo fora a qualquer instante, clandestinamente, rizomaticamente em relação ao sistema arborescente. Há que se repensar a autoridade, a avaliação, o planejamento educacional. Estamos falando de planejar uma aula e ter a convicção de que a qualquer momento aquele planejamento e aquela expectativa podem perder seu sentido, de acordo com o encontro, com o acontecimento. Estamos falando de avaliar compondo e não desqualificando. Estamos falando de fazer-se autoridade em um sentido estético existencial. Autoridade é uma arte, e não uma delegação jurídica, despótica, no sentido da forma-Estado. Neste sentido, uma reversão a que nos leva a pensar a filosofia da diferença só é possível no plano micro, nas brechas abertas pelo próprio sistema, tanto quanto nossa aguente nossa capacidade de poder habitar os paradoxos. O “ponto de contato” com a diferença só pode se dar no devir dos encontros, na micropolítica, na imprevisibilidade amedrontadora da caótica dos encontros.
No “estar fora, estando dentro” talvez resida as possíveis linhas de fuga para o encontro com a diferença na educação, potencializando-a no encontro, numa implicação dos afetos destas subjetividades que se encontram e que na guerra não se deixam capturar pela axiomática capitalística da produção de subjetividades. Para tentarmos trabalhar esta problemática o pensamento de Deleuze e Guattari nos oferece pistas em relação ao caráter maquínico-desejante da subjetividade. As técnicas de subjetivação da profissão docente (dentre elas as condições de trabalho, os baixos salários, a burocratização) são táticas de guerra da aparelho hegemônico, para subjetivar as máquinas desejantes da educação a desejarem não se envolver com o a diferença e o singular. Se o capitalismo e seu serviçal, o Estado, procura eliminar diferença, qual seria a razão para o professor, também em via de captura pelos poderes hegemônicos, ir ao encontro dela? No contexto da educação contemporânea não se trata mais de estar do lado do bem ou do lado do mal, pois as estruturas de poder são dinâmicas o suficiente para não serem capturadas com uma simples “troca de lado”, pelo elemento da contradição da lógica clássica, e adotado por alternativas negativas e dialéticas. Desse modo, o que nos resta é nem contra, nem a favor do Estado. Eis a que nos leva o pensamento nômade deleuzo-guattariano: a guerra contra a captura do capitalismo e do Estado deve ser incessante, o que implica produtividade, ação, criação como táticas para além da guerra: as armas neste caso poderão ser um pensamento, uma arte, uma invenção científica, uma aula, um texto etc. Como diria Nietzsche, uma atitude intempestiva não vai nem a favor, nem contra as imposições de nosso tempo histórico: ela sai do tempo. Sugerimos provisoriamente uma fuga de nossa temporalidade, (mesmo estando dentro do sistema) em prol do inusitado, da criação, da vida e do pensamento, habitando os paradoxos de nossos encontros na sala de aula.
Referências
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Notas