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BREVES NOTAS SOBRE A POLÍTICA DE ASSENTAMENTOS DO CRÉDITO FUNDIÁRIO NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL-BRASIL

Brief Notes about the Policy of Fundiary Credit Settlements in the State of Mato Grosso do Sul-Brazil

Leonardo Borges Reis
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul - IFMS, Brasil

BREVES NOTAS SOBRE A POLÍTICA DE ASSENTAMENTOS DO CRÉDITO FUNDIÁRIO NO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL-BRASIL

Revista Tópicos Educacionais, vol. 25, núm. 2, pp. 33-48, 2019

Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo a análise dos chamados assentamentos de crédito fundiário, mais especificamente, daqueles estabelecidos no Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. A genealogia das políticas de reforma agrária por crédito fundiário ocorre no Brasil nos moldes da chamada reforma agrária de mercado (RAM), cujos assentamentos foram implantados inicialmente pelo Banco Mundial a partir da década de 1990 no Estado do Ceará e, posteriormente, em diversos Estados, cujo mercado de terras oferecia brechas inexploradas aos interesses do capital. A experiência inicial conduzida pelo Banco Mundial, durante o governo FHC (1995-2002) serviria mais tarde de arcabouço ideológico para a instauração do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) no governo Lula (2003-2010), transformando-o em uma política “complementar” de reforma agrária. Na modalidade do PNCF a entrada na terra se faz via mediação comercial: adquirentes do lote, o latifundiário, o Estado e o capital financeiro. Reeditado com os mesmos princípios da RAM do Banco Mundial, o objetivo central do PNCF está em esvaziar a ascensão política de movimentos sociais pró-reforma agrária. A disposição espacial ampla dos assentados no território confirma o viés estratégico de dissuasão presente no PNCF, tal como a progressiva paralisação da reforma estatal que lhe acompanha. A essência da RAM está em desconstruir a noção de reforma agrária redistributiva, concebida até então como uma política pública para atender às reivindicações históricas de luta pela terra no país. Através de investigação quantitativa na base de dados do Sistema de Informações Gerenciais do Crédito Fundiário (SIG-CF), produzimos um quadro geral do avanço do neoliberalismo no campo e seu impacto nas relações entre Estado e campesinato no Estado de Mato Grosso do Sul.

Palavras chave: Reforma agrária de mercado, neoliberalismo, políticas públicas.

ABSTRACT: This article aims to present a brief assessment of land credit settlements in the State of Mato Grosso do Sul, Brazil. In the Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) (National Land Credit Program), land entry is done through classical commercial mediation: buyers and sellers. The literature on the subject reveals that the central objective of the PNCF is to deflate the political rise of social movements that struggle for land reform. The wide spatial disposition of these settlers in the territory confirms the strategic bias of deterrence present in the PNCF, as they have promoted the progressive paralysis of the state reform in the region over the last years. Through quantitative research on the database of the Sistema de Informações Gerenciais do Crédito Fundiário (SIG-CF) (Management Information System for Land Credit), we produced a general picture of the advance of neoliberalism in the field and its impact on the relations between the State and the peasantry.

Keywords: Land reform, neoliberalism, public policy.

INTRODUÇÃO

A presente investigação da temática intitulada reforma agrária de mercado (RAM) iniciou-se há três anos. Os primeiros passos da investigação sobre o objeto se deram através da avaliação quantitativa e qualitativa dos assentamentos de crédito fundiário existentes no município de Jardim, cidade polo do Sudoeste do Estado de Mato Grosso do Sul1, subdividida pela microrregião da Bodoquena. A vasta microrregião, que possui fronteiras com Bolívia e Paraguai, foi palco nas últimas décadas de uma expansão sem precedentes da agricultura comercial e do complexo agroindustrial. Processo este que atinge todo o Estado de Mato Grosso do Sul, desde a corrida aberta pelo mercado externo às commodities do agronegócio.

Em virtude de um longo histórico de concentração fundiária, as forças sociais e políticas que se aglutinam na modernização conservadora do campo expandem sua monopolização sobre o território com severos impactos sociais. Mais recentemente, com a hegemonia do capital financeiro sob a chamada acumulação flexível, os objetivos políticos do Estado brasileiro em torno da reforma agrária sofreram uma disputa acirrada, acentuada por esse bloco histórico em sua retomada neoliberal. Um dos atores institucionais mais significativos dessa fase do capitalismo é o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD. O arquiteto universal do que ficou conhecido como “Modelo de Reforma Agrária de Mercado” (MRAM) ou reforma agrária de mercado (RAM)2.

Na América Latina na década de 1990 a reestruturação capitalista se deu com grande intensidade através de uma primeira geração de reformas, na esteira da crescente dívida externa que assolava os países capitalistas periféricos desde os anos 80. As políticas de liberalização e desmonte do pacto social, de matriz keneysiana, contudo, não foram suficientes, como soí acontecer ao neoliberalismo, para o abrandamento das contradições sociais na região, o estado geral de estagnação e recessão promovido pelo FMI acentuou um conjunto de disputas sociais encabeçadas por encarniçados movimentos sociais.

Do MST ao Zapatismo, a estabilidade macroeconômica então estabelecida se viu ameaçada, como resposta ao cenário, o Bird prepara um pacote reciclado da política neoliberal, no intuito de aprofundar as reformas estruturais de primeira geração. O discurso da mudança, numa propalada alavancada “pós-consenso de Washington”, enfatizou então a necessidade de combate ou alívio da pobreza, tendo sob a mira um desenvolvimento que integrasse de maneira ainda mais eficiente Estado e Mercado3. Um dos componentes estruturais da agenda dessas reformas, chamadas de segunda geração, estava no mantra da liberalização do mercado de terras como panaceia universal.

Entre 1996-1998 a proposta desenhada pelo Bird através de seus intelectuais para a América Latina e Caribe estabeleceu como prioridade três ações estratégicas: a) reforma do Estado; b) combate à pobreza; c) liberalização do mercado de terras, de créditos e trabalho através de mudanças legislativas. No escopo da reformulação das reformas de segunda geração nota-se a ênfase em mudanças internas aos Estados, que de certa maneira foram colocadas em segundo plano inicialmente, afinal, anteriormente a prioridade esteve nos programas de ajuste fiscal e de renegociação da dívida externa. O Bird agora mudará a estratégia por compreender que sem a liberalização das economias nacionais, rumo à superação da “rigidez” e “fechamento” das economias (Políticas Estatais de substituição de importações), não poderia haver a garantia do pagamento do serviço da dívida, por essa razão a mudança nas políticas e instituições tornava-se estratégica.

As citadas políticas de ajuste estrutural e as reformas de segunda geração, suas continuadoras, tem o intuito de garantir a funcionalidade do padrão hegemônico de crescimento econômico, e constituirão a base sobre a qual nascerá o enfoque pró-mercado de terras4. Nesse sentido, o combate à pobreza é meramente instrumental, assumindo o caráter esvaziado de uma política compensatória. O rearranjo institucional e jurídico

deverá passar na ideologia neoliberal, consequentemente, pelo imperativo de tornar os mercados mais dinâmicos e operativos. A liberalização dos mercados de terras (compra, venda e arrendamento) além de trazer a segurança jurídica capaz de reforçar os direitos de propriedade, deveria elevar a economia como um todo à condição de eficiência. Nas palavras de Ramos Filho (2013), que resume exemplarmente a questão:

“A poção mágica apontada para a redução da pobreza (nunca sua eliminação) perpassa à estratégia de liberalização da terra, mediante a difusão da titulação alienável das terras públicas, comunais e privadas, com vistas à promoção de um ambiente político estável, que não ofereça riscos aos produtores nem aos investidores. Com a posse de títulos alienáveis, os investimentos podem facilmente ser ampliados, tendo em vista que a terra, convertida em mercadoria, pode ser oferecida em troca de créditos, possibilitando, por um lado, a contratação de seguros em caso de calamidade, por outro alavancar atividades econômicas que ampliem a produtividade rural, gerando crescimento econômico e consequente bem-estar, além de, obviamente, impulsionar o preço da terra convertendo-a em rentável mercadoria. A perspectiva de desenvolvimento apresentada assume uma condição unidimensional, cujo crescimento econômico é o fim único. O capital e o mercado de terras assumem a condição de protagonistas na promoção da redistribuição deste bem ao eliminar aqueles ociosos por produtores mais eficientes.” (RAMOS FILHO, 2013, p. 29).

A distribuição de ativos aos pequenos camponeses e aos mais pobres seria a solução ideal pró-mercado, uma solução barata e mais eficiente, capaz de preservar a poupança social para outros investimentos (provavelmente para a continuidade da remuneração do serviço da dívida). Para destravar o processo de formação dos direitos de propriedade seria necessário afastar as distorções promovidas pelo Estado, principalmente as restrições relativas à transferência da terra. As forças do mercado frente ao processo de acumulação primitiva, só a exemplo da estreiteza e do elevado grau de idealização do argumento, estariam isentas de responsabilidade pelo arranjo desigual da estrutura fundiária.

A flagrante assertiva neoclássica é recorrente, nela a eficiência econômica deveria prescindir da ação reguladora do Estado. As dicotomias Mercado x Estado, Estado- coerção X Mercado-Liberdade acompanham o bojo da elaboração teórica. Contudo, a consequência da elaboração não encontra respaldo objetivo, empírico. O mercado não é o espaço privilegiado do não constrangimento, defender tais pressupostos significa estabelecer os ditames do capitalismo concorrencial, anacronicamente, como ainda válidos no capitalismo do século XXI. Em segundo lugar, nega-se o papel do Estado e da

regulação pública sobre as relações econômicas, que por “razões histórico-estruturais, não favorecem o campesinato pobre em parte alguma do mundo.” (PEREIRA, 2009, p. 51).

Toda a problemática da terra e da desigualdade da estrutura fundiária é tratada sob o idílio do mercado habitado por agentes econômicos abstratos, num jogo cujas regras estariam niveladas. Em outros termos, a ideologia do raciocínio iguala agentes que são historicamente desiguais. A perversidade dessa concepção naturalizante do sistema social só não é menos deletéria do que o processo de sucateamento do aparelho público que lhe segue. Ao se transferir as funções das políticas sociais ao mercado, ignora-se a precarização das condições de vida das populações periféricas. O Estado como agente meramente administrativo, esvaziado em seu papel de pactuante social, deve nesse imperativo abrir espaço aos agentes econômicos livres5. Nesse âmbito, pensar a política agrária pelo viés redistributivo e universal torna-se incongruente.

A subordinação da questão agrária ao circuito de acumulação do capital agroindustrial-financeiro é uma das dimensões essenciais da RAM. Estudos como o de Sauer e Pereira (2006), Pereira (2009) e Ramos Filho (2013) convergem quanto à compreensão de que através do esvaziamento da reforma agrária redistributiva o Estado é tomado como um mero instrumento da ascensão de novas estruturas de poder, estruturas tais baseadas na hegemonia do capital financeiro oligopolizado. Na RAM é clara a relação de esvaziamento das relações de poder, uma vez que ao Estado não cabe desempenhar o papel redistributivo. O viés administrativista é empobrecedor quanto à teoria do Estado:

“a tese do 'nivelamento do campo de jogo', assim como todo o discurso do Banco Mundial sobre a 'reforma institucional' partem do pressuposto de que o Estado seja tão somente uma entidade administrativa, que poderia (e deveria) limitar-se a prover as melhores condições para que agentes econômicos agissem livremente, resultando daí maior eficiência econômica global” (PEREIRA, 2009, p. 52).

Em seu conjunto, as linhas de ação do Bando Mundial e do MRAM, portanto, estabelecerão ênfase na titulação privada, com avanço sobre direitos comunais e consuetudinários. A garantia institucional de um pungente mercado de terras tituladas alimentaria os mercados de crédito, em consequência ao fato da terra ser tomada como garantia para as operações financeiras. A busca de eliminação de disposições sociais, políticas ou culturais que impeçam a emergência do mercado de compra e venda de terras será o mote dessa proposição, por isso, força-se o avanço de uma base legal e de uma

nova configuração institucional que seja capaz de garantir a execução dos programas da RAM. Para que o sistema fosse eficiente, a oferta de titulação deveria ser superior à demanda, para reduzir os custos da terra. Contudo, se na década de 2000 os estudos apontavam que a oferta de créditos era dirigida a grandes proprietários, em 2018, a própria reformulação do PNCF segue essa tendência, haja vista a flexibilização das exigências de renda e patrimônio aos mutuários.

Desde então se torna lugar comum a deslegitimação do Estado e a proposição de arranjos público-privados que desfederalizem a política agrária. Há uma acusação quase que caricatural do Estado, associado à corrupção e ineficiência. É interessante retomar o que Pereira (2009) pondera nesse sentido, afinal, “nenhuma palavra é pronunciada a respeito da grilagem de terras e das diversas modalidades de apropriação privada ilegal de terras públicas, muito comuns nos países do Sul. Definitivamente, as reivindicações históricas do campesinato a favor da retomada de suas terras ilegalmente apropriadas por grandes fazendeiros não constam das diretrizes do Banco mundial.” p. 63.

A retórica em torno da necessidade de um novo aparato de administração de terras terá como base a ideia de diminuir e reorientar o poder regulatório do Estado sobre aquelas questões ligadas à terra rural, mas aqui a reformulação seguirá pela via da simples dinamização dos mercados fundiários. Disfarçada de política, a RAM e o processo de desregulamentação por ela desencadeado delimitam um claro projeto de engenharia social, que, nas palavras do Bird e do governo brasileiro, assume a forma de preocupação com a “paz social”, paz esta necessária ao ambiente de livre-iniciativa e de atração de capitais privados, em outros termos, a chamada segurança institucional. Como reforça Pereira (2009):

“Tais mecanismos são pensados à luz da dinamização dos mercados fundiários, e não da necessidade de proteção dos pequenos agricultores, pois nada se fala a respeito da violência cada vez mais aguda provocada pela expansão da apropriação privada da terra associada à produção de commodities para exportação. Trata-se, pois, de prevenir ou neutralizar conflitos para garantir a segurança do capital, e não para assegurar os direitos do campesinato.” p. 63

Como consequência dessa redefinição do papel do Estado a única política de reforma agrária que será reconhecida como solução para a alta concentração fundiária é a chamada reforma agrária assistida pelo mercado (market-assisted land reform). Chamada também de reforma agrária negociada, baseada na comunidade ou administrada

pela comunidade “voluntariamente”. Sempre enfatizando esse pano de fundo social em que as relações entre os grupos se dariam de maneira contratualmente harmônica. A presença inconteste do Bird enquanto condutor técnico e moral da gestão da política agrária dos Estados funda-se na universalidade da racionalidade econômica do mercado, sobretudo deste mercado que emerge após o fim do ciclo de 1989, período que ficará conhecido como “o fim da história”. Por essa razão “os agentes locais deveriam se ajustar numa tradução local das estratégias defendidas pelos cânones da teoria econômica dominante. O importante é preservar o estoque de riquezas acumulado por uma minoria, e evitar assim a modificação profunda entre os grupos de poder e classes sociais” (PEREIRA, 2009, p. 80).

A lógica central do MRAM é a outra face de Janus, que corresponde à subordinação da problemática agrária à dinâmica de reprodução ampliada do capital agroindustrial e da acumulação flexível, aqui se evidencia:

“uma visão monetarista da terra rural, como se fosse tão somente um fator de produção, bem puramente econômico, uma commodity, transacionável como qualquer outra mercadoria. Desconsidera-se que a terra tenha um caráter multidimensional (político, econômico e cultural), razão pela qual o controle e dos direitos de propriedade sobre ela expressam, antes de mais nada, relações de poder entre classes e grupos sociais” (PEREIRA, 2009, p.80)

Incapaz de solucionar o problema histórico da concentração fundiária, a RAM avançou nas últimas décadas no Brasil de forma alarmante, no estado de Mato Grosso do Sul, conforme veremos, segue-se a tendência estrutural relatada pela literatura.

FUNDAMENTAÇÃO DO PROBLEMA

Conforme salientado por Fabrini (2008), o processo de concentração de terras no sul de Mato Grosso do Sul está associado ao próprio processo de ocupação do Estado, isto é, a estrutura fundiária dessa região se desenhou praticamente com a chegada do colono europeu. Destarte, o poder das oligarquias regionais se mantém num continuum do segundo império à proclamação da república “quando o governo vendia ou arrendava terras devolutas a grandes fazendeiros e empresas capitalistas” (FABRINI, 2008, p. 53). A atuação da famigerada Cia Erva Mate Laranjeira no século XIX bloqueou a fragmentação das terras, nem mesmo pequenos proprietários assalariados foram adotados, uma vez que, prioritariamente, deu-se a exploração da mão-de-obra indígena

por meio do cativeiro. No início do século XX duas frentes colonizadoras aportam ao sul do Mato Grosso do Sul, a primeira é formada por imigrantes sulinos em busca de campos para a expansão da atividade pecuária e ervateira, a segunda frente, mais recente, avança entre meados de 1950 e 1960 e se estabelecem próximos às fronteiras com São Paulo e Paraná. Para Fabrini, em resumo:

“a estrutura fundiária altamente concentrada deve-se ao processo de ocupação das terras, ou seja, quando o Estado promoveu a transferência/venda de grandes áreas de terras públicas para proprietários fundiários. Portanto, a estrutura fundiária no Sul de Mato Grosso do Sul ‘nasceu’ concentrada.” (FABRINI, 2008, p.54)

De acordo com os dados do último amplo levantamento da situação fundiária do Estado, que ocorre com o censo agropecuário de 2016, e sem contar os dados mais atualizados, o Estado de Mato Grosso do Sul conta com cerca de 70 mil agricultores familiares. Este montante representa 63% dos estabelecimentos agrários do estado, que detêm 1.190.206 hectares. Quando confrontado esse número em relação à posse de terras, constata-se que representam não mais do que 4% da totalidade. Como se não bastasse essa discrepância, é válido lembrar que os mesmos agricultores familiares “respondem por 40% da produção global, 46% da mão de obra ocupada, 70% da produção de comida, 80% do valor bruto anual por hectares e 95% de pessoas em cada 100 hectares de terra (FIALHO, 2014, p.79-80).

Mato Grosso do Sul - Número de propriedades por tamanho (ha) 1985,
							1996 e 2006
Gráfico 01
Mato Grosso do Sul - Número de propriedades por tamanho (ha) 1985, 1996 e 2006
Fonte Censo Agropecuário de 2006 - IBGE 2006.

Tabela 01
Mato Grosso do Sul - Área de estabelecimentos agropecuários (ha) 1985, 1996 e 2006
Mato Grosso do Sul - Área de estabelecimentos agropecuários (ha) 1985,
						1996 e 2006
Tabela 02
Mato Grosso do Sul - Agricultura Familiar (critério da Lei 11.326) 2006
Mato Grosso do Sul - Agricultura Familiar (critério da Lei 11.326)
						2006

Conforme se nota, a situação fundiária de Mato Grosso do Sul, no que tange ao restante do Brasil, é particularmente concentradora. A reprodução da pequena propriedade no Estado é ainda mais difícil, visto que a grande propriedade agrícola concentra quase toda a área agricultável dessa região. A exceção à regra é representada, em parte, pelos assentamentos agrários que embora ocupem uma pequena fatia do território, respondem por parcela significativa da população rural. Este fato é referendado pelos municípios de Nioaque e Itaquiraí, onde a população assentada supera a população total. O avanço da RAM no Mato Grosso do Sul têm sido sistemático desde a criação do Banco da Terra entre 2001 e 2002. Nos anos iniciais do programa foram implantados 37 projetos, com 742 famílias, num total de 8.485 hectares. O total de recursos destinados a esses projetos foi da ordem de R$ 674.442,65. Segundo dados da pasta do governo

Estadual, responsável pelos projetos, a SEMAGRO, atualmente os projetos ultrapassam a casa dos cinco mil contratos.

Contudo, a inexistência de dados de pesquisa independentes dificulta a confrontação e avaliação do significado do avanço da reforma agrária neoliberal no Estado de Mato Grosso do Sul. Além do mais, não existem levantamentos sobre o grau de sucesso/fixação desses assentados, o gênero da inserção produtiva regional, tal como das dificuldades de reprodução dos meios de vida desses trabalhadores. Os referidos cinco mil contratos são uma aproximação grosseira se confrontados com os registros do sistema SIG-CF. Quando filtrados os registros de contratos ativos e inativos - isto é, daqueles que devido a alguma pendência burocrática junto ao governo ou banco foram abandonados - obtemos cerca de 2.358 registros, entre assentamentos coletivos e projetos de financiamento individuais, um aumento de 321%.

Apesar do propalado sucesso desses projetos de assentamento, observamos que na modalidade Banco da Terra (uma carteira de financiamento que vigou no Estado entre 2001-2002) os índices de inadimplência são incrivelmente altos. Apesar de não termos acesso às informações de inadimplência, podemos inferir pelo tempo médio de vigência dos contratos mais antigos que os mesmos estão em atraso. Nossa inferência é constatada pelas ações de repactuação promovidas pela agência estadual (AGRAER) que busca sanar as dívidas dos assentados6.

Observando os números do SIG-CF, notamos que apenas 15% dos assentados na modalidade Banco da Terra conseguiu quitar os empréstimos. O restante destes, 85%, permanece em inadimplência. Mesmo a condição de quitação não é sinal de que os assentados poderão gozar de boas condições de vida ou produção. O único assentamento responsável pelo índice de 15% está localizado no município de Jardim. Foi possível constatar em pesquisa de campo a este assentamento que parte considerável da renda das famílias é obtida em atividades desenvolvidas fora na terra.

METODOLOGIA

Existem poucas pesquisas no Brasil que tenham sistematizado os dados contidos no SIG-CF (Sistema de informações gerenciais do Crédito Fundiário). Talvez a pesquisa quantitativa mais relevante sobre o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) seja a de Eraldo da Silva Ramos Filho, a saber, Movimentos Socioterritoriais, a

contrarreforma Agrária do Banco Mundial e o Combate à pobreza Rural, de 2013. Adotamos, em linhas gerais, a metodologia de pesquisa proposta por Eraldo. Inicialmente realizamos o cadastro junto ao governo federal (Ministério do Desenvolvimento Agrário

- MDA) para obter acesso ao SIG-CF. Esse sistema permite que lancemos um olhar geral sobre todos os assentamentos do PNCF no Brasil. A pesquisa de Eraldo é pioneira no levantamento e sistematização dessas informações. A coleta e tratamento de dados via SIG-CF é um trabalho exaustivo, que consiste em confrontar informações, descartar incongruências de cadastro (pois o sistema não diferencia, por exemplo, cadastros efetivados daqueles que não passaram do papel), além verificar se os códigos dos imóveis no INCRA coincidem com aqueles contidos no sistema.

O levantamento quantitativo que elaboramos, ainda em fase de execução, produziu algumas variáveis tangíveis. A análise e classificação das informações serão apresentadas conforme tabelas e gráficos da seção de resultados e discussão. Apesar de o diagnóstico produzido contar apenas com dados do banco do SIG-CF, é necessário ressaltar a importância de pesquisas in loco, capazes de aprofundar a leitura do cenário de desenvolvimento das famílias assentadas, tal como dos seus mecanismos de reprodução na terra. Uma das principais barreiras para que estas se realizem está na própria dimensão territorial do Estado de Mato Grosso do Sul, que ocupa uma superfície de 358.159 km², o que corresponde a 22,2% da superfície da Região Centro-Oeste do Brasil e 4,2% do total da área territorial brasileira. Para exemplificar, basta lembrar que o Estado de MS é ligeiramente maior que a Alemanha.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O registro de projetos contratados, segundo o SIG-CF, compreende o intervalo de 2001 a 2018. Na pesquisa de Eraldo Ramos, concluída em 2013, o total de empreendimentos registrados em Mato Grosso do Sul foi de 106 (entre assentamentos coletivos e financiamentos individuais). Esse quantitativo compreendia 0,37% do total dos empreendimentos no país. O levantamento de Eraldo registrou 559 famílias contempladas pelo PNCF no Estado de Mato Grosso do Sul em 2006, o que correspondia a 0,55% do total do país. Em 2017, segundo dados da Subsecretaria de Reordenamento Agrário (2016) o total de contratos efetivados salta para 3,4%. Quanto à área total de

assentamentos no Estado, registrou-se 4.351 hectares, o que representava 0,23% da totalidade das áreas de assentamento no Brasil.

Apesar de ainda não termos registrado o total de hectares no PNCF no MS, que inclui os microdados dos assentamentos coletivos e dos contratos individuais, que em muitos casos apenas ampliam uma área produtiva já em funcionamento, foi possível identificar o total de hectares dos assentamentos coletivos do PNCF entre 2001 e 2019. O valor é de 26.111,88 hectares, distribuídos em 98 projetos de assentamento com 2.889 famílias (Gráfico 2). Apesar de se tratar de uma área menor do que aquela gerada pelos assentamentos do INCRA no mesmo período (14.903 famílias em 324.437,27 hectares), a distribuição espacial do PNCF é mais ampla, dos 79 municípios do Estado apenas 22 possuem assentamentos do INCRA. Quanto ao PNCF, o mesmo atinge 48 municípios com seus contratos coletivos e individuais. Atribuímos esta distribuição espacial ao fato das agências responsáveis pela implantação (AGRAER) contarem com maior capilaridade nos municípios. As agências estaduais estão presentes dos 79 municípios do Estado, enquanto que a Superintendência Estadual do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) conta com apenas 6 unidades.

Distribuição de assentamentos 2001-2019
Gráfico 02
Distribuição de assentamentos 2001-2019
Fonte: SIG-CF/MDA 2019

O avanço da RAM no Estado de Mato Grosso do Sul ainda assim é expressivo, principalmente se considerarmos a promessa governamental de que o PNCF funcionaria de maneira complementar, algo que não correspondeu à realidade. As desapropriações estão paradas há quase 9 anos. Confrontados os registros do INCRA, verifica-se que o último assentamento realizado pelo órgão foi em 2010. Visto por essa ótica, o avanço do PNCF em Mato Grosso do Sul há muito ultrapassou a política pública de desapropriação, no período estacionário do INCRA, o SIG/CF registra 1.626 propostas. As regiões com maior índice de contratos de RAM correspondem também àquelas de maior registro de acampamentos. Trata-se da região central do Estado, de maior pressão demográfica, uma vez que conta com a capital, Campo Grande, só nesta área são registrados 643 contratos do PNCF.

A partir das variáveis apresentadas na tabela 03 podemos traçar equiparações do desempenho da RAM no Estado de Mato Grosso do Sul que condizem com os problemas estruturais já identificados pelas avaliações nacionais do PNCF produzidas na literatura crítica (Sauer e Pereira, 2006). A desconexão com a política oficial de reforma agrária pode ser constatada, inclusive, pela área média incompatível com o módulo rural. A média dos assentamentos coletivos do PNCF é de 9 de hectares, isto é, área inferior a média dos assentamentos do INCRA (Gráfico 3). O grau de alcance em número de famílias atingidas também é mais impactante na reforma agrária estatal como Ramos Filho (2013) esclarece

Comparativo de área média em hectares - Assentamentos
							Coletivos
Gráfico 03
Comparativo de área média em hectares - Assentamentos Coletivos

Tabela 03

“na reforma agrária os assentamentos criados, na maioria das vezes, por meio da luta pela terra beneficia um grande número de famílias, enquanto os empreendimentos de crédito fundiário abarcam associações de trabalhadores formadas por grupos reduzidos, em média com 30 famílias; além do que, muitos empreendimentos, principalmente aqueles das linhas Banco da Terra e o seu substituto Consolidação da Agricultura Familiar serem implantados com apenas uma família.” p. 74.

A ausência de uma estratégia de desenvolvimento rural é notada, igualmente, pela baixa taxa de negociação das terras, a lógica da mercadoria parece mostrar-se distante daquela prevista pelos ideólogos do Banco Mundial. Não houve constatação de diferenças de preços entre o que foi pedido pelos proprietários e o que se negociou com os contratantes. Fato que se deu por diversas razões, tais como a pressão das condições de vida nos acampamentos, até mesmo a simples falta de informações.

A expansão na última década dos projetos rompeu com o alegado papel de complementaridade às reformas desapropriacionistas. Houve desaceleração das desapropriações. O elevado índice de áreas degradadas (passivo ambiental) é alarmante, o que supõe que muitas das áreas em que ocorreram os projetos do PNCF são passíveis de desapropriação. Além do mais, a ação dos agentes governamentais na implantação dos contratos denota a contrarreforma política, servindo de instrumento de concorrência com os movimentos sociais. Os memoriais de infraestrutura registrados no SIG-CF apontam a existência de imóveis rurais subutilizados, se os assentados aceitam contratos de propriedades com graves problemas ambientais e sem infraestrutura mínima, está implícito o elemento de pressão das condições sociais desses camponeses para terem acesso a terra.

Apesar da relativa proximidade em relação às cidades (28,96 km), muitos assentados relataram em pesquisas de campo5 dificuldades de escoar a produção, sendo obrigados a recorrer a produtores intermediários para vender o excedente. O índice de inadimplência apontado pela Subsecretaria de Reordenamento Agrário (SRA) era de 30% em 2006. Contudo, registros de imprensa com convocações de renegociações (como no caso da carteira Banco da Terra) são superiores a 80%. O perfil de assentado que costuma sobreviver a essas condições é principalmente daqueles que gozavam de algum tipo de renda para que possam bancar sua permanência na terra, ou que necessitam exercer atividades externas ao lote agrário. Podemos supor que sob estas condições o estabelecimento de assalariamentos contingentes (diárias/trabalho assalariado

temporário) para garantir a permanência na terra é provavelmente expressivo, além de que a baixa produção de excedentes comercializáveis gera uma inclusão mercantil deficitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise empírica dos processos de implantação da reforma agrária de mercado em Mato Grosso do Sul confirma a condição estrutural (já apontada pela literatura) desse sistema batizado pelo sociólogo argentino Atílio Boron de contrarreforma agrária. A transação voluntária entre agentes sociais guiados pela livre vontade é um conhecido idílio neoclássico, que confrontado com a realidade da implantação desses assentamentos releva grandes inconsistências entre a teoria e a prática, como sói acontecer com toda ideologia. O esvaziamento social e histórico por que passam os conflitos agrários na ótica neoliberal desenraíza a classe trabalhadora, tomando esta por agentes sociais abstratos, capazes de realizar contratos livres com a classe patronal em um mercado de igualdades edênicas. Ao final da justa concorrência os agentes sociais são julgados por sua eficiência ou ineficiência perante a balança do mercado. Confrontado o desempenho numérico do processo de implantação da RAM revele-se, contudo, o fracasso da mesma enquanto um presumível instrumento de correção de injustiças históricas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fabrini, J. E (2008). A posse e concentração de terra no sul de Mato Grosso do Sul. Em Rosemeire, A. A (Ed.). (2008). A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão multidisciplinar (pp 53-79). Campo Grande, MS: Editora UFMS.

Fialho, F. (Ed.). (2014). Mato Grosso do Sul 2000-2013. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

Pereira, J. M. M (2009). A política de reforma agrária de mercado do Banco Mundial: fundamentos, objetivos, contradições e perspectivas. São Paulo: Hucitec.

Ramos Filho, E. S. (2013). Movimentos socioterritoriais, a Contrarreforma Agrária do Banco Mundial e o Combate à Pobreza Rural São Paulo/Buenos Aires: Clasco.

Sauer, S. e Pereira, J. M. M. (Ed.). (2006). Capturando a terra: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado. São Paulo: Editora Expressão Popular.

NOTAS

1 “A Região Sudoeste é formada por oito municípios e ocupa uma extensão territorial de 40.346,7 km². Grande parte de sua base territorial se localiza na parte sul da bacia pantaneira. A principal atividade econômica vem da agropecuária. Maior evidência para a pecuária bovina de corte, com um rebanho de 2,8 milhões de cabeças. Os municípios com maiores rebanhos são: Porto Murtinho - 820 mil cabeças e Bela Vista - 439 mil. A produção agrícola ainda é incipiente, obtendo em 2009 pouco mais de 158 mil toneladas de grãos em uma área de 50.166ha cultivada. Destaque para a produção de soja e milho nos municípios de Bela Vista e Bonito. Outras cultivares aparecem em pequenas quantidades como a cana-de-açúcar e a mandioca, que juntas ocupam uma área de 1.225 ha. Pela avaliação de produção de bens e serviços de 2008, a região Sudoeste é detentora de um PIB estimado em R$ 1,22 bilhões, onde 12,9% da formação dessa riqueza vem da atividade industrial. Por ser uma região com forte vocação turística, o setor terciário responde por 54,63% da sua economia, seguido do setor primário, com peso de 32,46%.” (Fialho, 2014, p.67).
2 É preciso acentuar aqui a complexa disputa ideológica em torno da noção de reforma agrária, ancorada numa realidade social orgânica que por vezes o termo “reforma agrária comunitária” ou “reforma agrária dirigida pelo mercado não deixa entrever. A matriz de pensamento dos intelectuais neoclássicos do Bird costuma acentuar a unilateralidade do fenômeno, em outras palavras, qualquer abrangência política ou histórica do conceito é descartada. Conforme acentua Ramos Filho (2013), “indubitavelmente, o Banco Mundial, ao atribuir à sua política neoliberal de acesso à terra a denominação de reforma agrária, objetiva esvaziar o conteúdo político e conflituoso embutido neste conceito” p. 32. Em conformidade com os movimentos sociais e principais estudiosos do tema adotamos o conceito de MRAM/RAM largamente utilizado por Sauer, 2006, Pereira, 2009, Ramos Filho, 2013, etc.
3 Segundo João Márcio Mendes Pereira (2009) uma das principais características das reformas de segunda geração, a que Atílio Borón chamará de contrarreformas, está no reconhecimento implícito de que as reformas promovidas pelo ajuste estrutural dos anos 80 provocaram o crescimento da desigualdade e das tensões sociais. Dessa maneira os programas relativos à mitigação da pobreza não são mais do que exatamente isso, mitigadores. A crítica às políticas de ajuste estrutural é relegada a escanteio, pois “a lógica dos programas de alívio da pobreza do Banco Mundial é, de fato, subordinada ao receituário de reformas estruturais” (PEREIRA, 2009, p. 41).
4 Qualquer levantamento local desse fenômeno, da implantação massiva de assentamentos modelados pela lógica mercantil, terá como articulação primeira a ascensão da crise dos anos 80, no âmbito do endividamento externo das economias do capitalismo periférico, que empuxa então programas de ajuste estrutural e reformas de austeridade fiscal. O modelo de reforma agrária desapropriatória sofrerá um sistemático ataque no seio daquela clássica disputa política já elucidada por Francisco de Oliveira em “Os direitos do antivalor”.
5 Cf. REIS, L. B. e BEM, A. Reforma Agrária de Mercado: análise do crédito fundiário no assentamento Quero-Quero em Jardim, Mato Grosso do Sul, Brasil. In: XVI EGAL 2017 - Encuentro de Geografos de América Latina, 2017, La Paz. MEMORIAS de las ponencias del EGAL 2017. La Paz: Egal, 2017. v. 1. p. 1-15.
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