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EDUCAÇÃO LIVRE VERSUS EDUCAÇÃO REGULADA: REFLEXÕES E ANÁLISES
Free Education versus Regulated Education: Reflections and analysis
EDUCAÇÃO LIVRE VERSUS EDUCAÇÃO REGULADA: REFLEXÕES E ANÁLISES
Revista Tópicos Educacionais, vol. 25, núm. 2, pp. 129-150, 2019
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo trazer reflexões para a reconstrução de caminhos que promovam a liberdade na educação, a partir da análise da dicotomia entre as formas pelas quais se dá a educação, seja em ambiente de plena liberdade, representada pela busca de uma nova categorização do conceito de uma Educação Livre, seja no ambiente de regulação governamental parcial, e/ou total, correspondente ao ensino escolar, sob o controle central da educação pelo Estado, seja ela pública ou privada. A pesquisa, de caráter bibliográfico e documental, traz em seu bojo a questão do exercício da liberdade no ato educacional, e um breve histórico da regulação da educação no Brasil partindo das vésperas da independência do país e perpassando alguns momentos chave para a discussão proposta, com a posterior contraposição com as novas formas de educação fora do contexto escolar, permitindo o aprofundamento do debate acerca dos distintos caminhos possíveis à realização do processo educacional.
Palavras-chave: Educação Livre, Regulação, Políticas Públicas em Educação, Sistemas Educacionais;.
Abstract: This study aims to provide reflections for the reconstruction of ways to promote freedom in education, based on the dichotomy between the ways in which education takes place, whether in an environment of full freedom, represented by the search for a new categorization of the concept of Free Education, whether in the context of partial and / or total governmental regulation of school education, under the central control of State education system, be it public or private. The bibliographical and documentary research brings to the fore the question of the exercise of freedom in the educational act and a brief history of the regulation of education in Brazil, starting from the eve of the independence of the country and passing through some key moments for the proposed discussion, with the subsequent opposition with the new forms of education outside the school context, allowing the deepening of the debate about the different possible ways to carry out the educational process.
Keywords: Free Education, Regulation, Public Policies in Education, Educational Systems;.
Introdução
Impasse! Tal palavra resume de forma clara a atual situação vivida nas discussões sobre educação, não apenas em caráter nacional no Brasil, mas em cada local do mundo onde a prática educacional é pensada, debatida e realizada.
Por um lado há quem defenda que educar deva ser uma atribuição estritamente estatal e, portanto, de caráter público; por outro há quem defenda a educação como mercadoria e investimento. Tanto a educação pública quanto a privada, porém, disputam espaço em um local comum. Ambas as modalidades de oferta são, necessariamente, sujeitas ao mesmo nível de regulação por aparatos legais e jurídicos, o que faz de ambas essencialmente centralizadas e controladas pelo Estado.
Por outro lado, surgem novas modalidades à revelia desta regulação central, e que ganham espaço nos debates educacionais e recentemente até mesmo na mídia mainstream, como por exemplo, a educação domiciliar, conhecida como homeschooling; a desescolarização, também conhecida por unschooling, sendo esta vertente mais radical da modalidade anteriormente citada; e, ainda, a nível de qualificação profissional e ensino superior, os MOOCs (Massive Open Online Course), ou Curso Online Aberto Massivo, visando a livre oferta de pequenos cursos altamente direcionados, tentando, com isso, a criação de uma nova ferramenta, mais livre e mais democrática, para a promoção da educação continuada, em consonância com os valores de flexibilidade exigidos pelo mercado.
A questão da liberdade em oposição à regulação na organização e oferta da educação é bem antiga. No Brasil, os modelos de regulação remontam às primeiras décadas do século XIX, conforme será abordado ao longo do texto, com análise focada em dois recortes temporais distintos: do período que antecedeu a independência do Brasil até os anos 1930, e o que sucedeu a Constituição Federal de 1988.
Da dicotomia entre estes dois conjuntos, inseridos em duas novas categorias que abarquem os modais educacionais existentes - o Livre versus o Regulado - haverá a construção das reflexões pertinentes, buscando reconstruir conceitos e debates já existentes no exterior através de uma ótica nacional e original, utilizando como
ambientação para o desenvolvimento destas reflexões, a peculiar realidade e historicidade da educação brasileira, e da elaboração das políticas educacionais no país.
Por fim, dados recentes apresentam o possível quadro da educação brasileira no médio prazo, onde o atual modelo centralizado e altamente regulado parece caminhar para uma situação de turbulência, sem que neste cenário exista previsão de modais educacionais alternativos, que possam fazer frente aos desafios que serão impostos.
Um breve histórico da regulação da educação no Brasil
O Brasil é uma nação relativamente jovem. Em termos de tempo histórico, a regulamentação e construção de um sistema de educação nacional é tão recente quanto à própria construção do Brasil, enquanto nação independente. Saviani (2008) localiza ainda no período colonial o início de uma regulação educacional no Brasil, com a chegada dos jesuítas em 1549. O autor ainda salienta que até 1930, período no qual tem início a República Nova no Brasil, pouco se avançou no que diz respeito a regulamentação de fato e ao acesso à educação. Segundo Saviani (2008, p. 150):
Cabe observar que, ao longo de quase quatro séculos, abarcando, portanto, os quatro primeiros períodos, as instituições escolares no Brasil constituíram um fenômeno restrito a pequenos grupos. Foi somente a partir da década de 1930 que se deu um crescimento acelerado, emergindo, nos dois últimos períodos, a escola de massa.
A morosidade no avanço da escolarização no período pré-1930 teve graves consequências no desenvolvimento nacional, o que impulsionou, a partir de 1930, a construção de uma agenda mais enérgica em prol de uma maior ação por parte do Estado, no que concerne ao acesso e, posteriormente, na permanência na escola. Neste contexto, iniciativas, como o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, lançaram aquelas que seriam as primeiras bases realmente sólidas para a construção de políticas educacionais que de fato firmariam a construção de uma regulação educacional viável, executável, durável, e que possibilitassem a tão aguardada solução ao problema do acesso, mesmo que em longo prazo, como de fato foi e se encontra registrado na história da educação brasileira.
O Manifesto dos Pioneiros, redigido por Fernando Azevedo, contava com a participação de intelectuais diversos da época e colocava a criação e organização de uma educação nacional de qualidade e amplo acesso como essencial ao progresso do país, tendo o Estado como principal entidade promotora desta organização, que deveria zelar
pela criação das oportunidades de acesso à escola, assim como sua massificação. Em suas palavras iniciais, o Manifesto nos traz a seguinte afirmação:
Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade o da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhes pode disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade. (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova 2010, p.33)
Quanto ao papel que passou a ser ocupado pelo Estado, enquanto ente regulador e provedor da educação nesse novo contexto proposto a partir do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, ficou definido no texto que “do direito de cada indivíduo à sua educação integral decorre logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais.” (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 2010, p. 43).
Esta visão moldou todas as regulamentações brasileiras que se seguiram ao período pós-1930, passando pelas constituições, pela primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 4.024/61) e outras tantas legislações regulamentadas até a atualidade, incluindo a mais recente legislação em vigor no campo da educação, que trata das metas e estratégias para o alcance da educação nos próximos 10 anos: o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014). Antes de todas as outras, a Constituição Federal de 1988 dá o tom de tal regulação, deixando para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN nº 9.394/96), o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069/90) e outras leis complementares da esfera federal à municipal a responsabilidade de reforçar o conceito de educação enquanto direito inalienável de todo cidadão, assim como reforçar dispositivos que garantam o acesso e à permanência na escola para todos, de forma igualitária e com gratuidade.
O país construiu, portanto, nas ultimas décadas, uma regulação robusta, que possibilitou, pela primeira vez, uma caminhada com maior direcionamento, na organização e massificação de um Sistema Nacional de Educação, centralizado, amplamente acessível e fortemente fiscalizado, por meio da atuação do Ministério da
Educação e das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. Saviani (2010, p.381) define o Sistema Nacional de Educação do seguinte modo:
Se o sistema pode ser definido como a unidade de vários elementos intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente e operante, conclui-se que o Sistema Nacional de Educação é a unidade dos vários aspectos ou serviços educacionais mobilizados por determinado país, intencionalmente reunidos de modo a formar um conjunto coerente que opera eficazmente no processo de educação da população do referido país.
A construção deste sistema, todavia, nem sempre orbitou o entendimento acerca do Estado ser o guardião e promotor por excelência da oferta do serviço de educação à população. Mesmo considerando-se os avanços promovidos nos níveis de instrução da população brasileira, conquistados em grande parte através da ação positiva do Estado na promoção da infraestrutura física e pedagógica com mira na universalização da educação básica, é necessário analisar o contexto histórico anterior aos anos 1930, na busca de um maior entendimento das questões que levaram a massiva regulação da educação brasileira.
Estruturando um conceito de Educação Regulada
A educação, que segundo a Constituição Federal brasileira de 1988 é dever da família e do Estado (Art. 205), pode ser promovida em instituições públicas ou privadas (Art. 206) e é livre à iniciativa privada (Art. 209). Conforme salienta Bonamino (2003, p. 257):
Promulgada em outubro de 1988, a Constituição Federal se refere à educação como direito de todos e dever do Estado e da família, que deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (art. 205). Complementarmente, diz que o ensino deve ser ministrado com base no princípio de “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”, na “coexistência de instituições públicas e privadas” (art. 206, parágrafo 3o). Em continuidade com Constituições anteriores, o “direito de todos e dever do Estado” continua dever da “família”, o ensino é livre à iniciativa privada (art. 209), desde que atenda a determinadas condições, e os recursos públicos podem ser destinados às modalidades não-lucrativas da iniciativa privada em educação.
Observa-se, entretanto que, independente da modalidade escolhida pelos pais no ato da matrícula de seus filhos - se em instituição mantida ou não pelo Estado-, a educação fornecida obedecerá aos parâmetros comuns previamente definidos pelo sistema de
ensino, e fiscalizados pelo Poder Público. Desta forma, se compreende que independente do modal escolhido, o ensino se dará por um sistema de Educação Regulada1.
O entendimento sobre o processo de construção de um sistema educacional brasileiro traz à ribalta algumas questões sobre a natureza do arranjo atual na oferta dos diversos níveis de ensinos disponíveis a população brasileira em geral, o que nos remete a um dos primeiros movimentos de fato no sentido da criação de um Sistema Nacional de Educação no Brasil, o Decreto de 30 de Junho de 1821, que traz em seu bojo a seguinte deliberação:
As Côrtes Geraes Extraordinarias e Constituintes da Nação Portugueza, considerando a necessidade de facilitar por todos os modos a instrucção da mocidade no indispensavel estudo das primeiras lettras: Attendendo a que não é possivel desde já estabelecer, como convém, Escolas em todos os logares deste Reino por conta da Fazenda Publica; e Querendo assegurar a liberdade que todo o Cidadão tem de fazer o devido uso dos seus talentos, não se seguindo dahi prejuizos publicos, Decretam: Que da publicação deste em diante seja livre a qualquer cidadão o ensino, e a abertura de Escolas de primeiras lettras, em qualquer parte deste Reino, que seja gratuitamente, que por ajuste dos interessados, sem dependencia de exame, ou de alguma licença. A Regencia do Reino o tenha assim entendido, e faça executar.
O Decreto de 30 de Junho de 1821 trazia enorme liberdade para a implementação de práticas educacionais diversas, por ser extremamente liberal e, portanto, livre de burocracias para a abertura de espaços educacionais. Contudo, não resolvia a problemática de como seria efetivado o financiamento destes estabelecimentos abertos pela iniciativa privada, uma vez que a atividade de comercializar a educação, sendo esta entendida enquanto mercadoria iria de encontro à deliberação do texto quanto à gratuidade de ensino. Por não unir todas estas questões sob uma deliberação unificada, só se pode considerar este decreto como um movimento apenas, e não como a criação de um sistema de fato.
Por outro lado, contendo a primeira regulamentação completa a respeito da abertura e operação das instituições privadas com fins lucrativos, a Reforma Couto Ferraz (1854) resolveu o problema da insegurança jurídica em seu texto, este oficialmente conhecido como Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. No Título IV, nos

1 É importante frisar que esta categoria, aqui apresentada, possivelmente já pode ter sido criada e/ou utilizada em momentos anteriores nas discussões em torno da legislação e das políticas educacionais, no Brasil ou no exterior. Busca-se neste texto definir esta categoria como nova apenas para efeitos de construção das reflexões pertinentes sob um conceito unificado e análise da questão proposta sem entrar na já antiga discussão acerca do Público vs. Privado na educação.
Artigos 99 a 114, ficaram oficializadas as disposições necessárias ao funcionamento das escolas particulares no antigo Império.
A necessidade de maior segurança jurídica por parte dos entes privados levou à construção de um modelo de regulação que unificasse as condições legais à prática educacional no país, e abriu com isso, precedente para a centralização total da educação, que passa então ao controle do Estado Brasileiro, culminando de fato em um sistema, ainda que embrionário e longe de alcançar uma oferta educacional universalizada.
Não havendo mais diferença entre os modais de ensino, como a liberdade de criação de novos sistemas e experimentação de práticas educacionais divergentes ao corpo regulatório pré-definido, podemos então localizar a Educação Regulada como toda a prática educacional controlada e centralizada pelo Estado por força de lei, e organizado sob a forma de um sistema, possuindo como exemplo a natureza do caminho trilhado pela regulação educacional no Brasil. Tal exemplo tão particular como o brasileiro, todavia, não cria impedimento a contextualizações do conceito de Educação Regulada em caráter global, ressalvada as devidas diferenças entre cada uma das centenas de realidades e historicidades nacionais existentes.
A Educação Livre: em busca de uma nova conceituação
O consenso em torno da Educação Regulada, principalmente da escolarização enquanto prática educacional por excelência não é, no entanto, absoluto. Mesmo com a compreensão de que a ação estatal, no sentido da garantia do direito e do acesso à educação, possui grande importância no avanço da construção de uma sociedade mais justa, melhor instruída e inserida no contexto sócio-econômico que rege as sociedades, alguns grupos minoritários ainda possuem um entendimento diferenciado quanto aos limites desta atuação do Poder Público.
Se, por um lado, a regulamentação estatal promove a democratização do acesso, agindo de forma ativa na busca e inserção daqueles que de outra forma não estariam recebendo uma educação mínima sequer, por outro, acaba por vezes em conflito com os ideais de liberdades individuais.
Ao tomar para si a atribuição não somente de promover a instrução, mas também a formação integral do homem, o Estado traz sobre si desconfianças acerca da real intenção por trás da agenda pela implementação de políticas educacionais, que centralizem nele próprio, todas as diretrizes e parâmetros que permeiam as práticas
educativas. Alguns grupos de orientação libertária, mais precisamente aqueles associados à Escola Austríaca de Economia, têm levantando desconfianças quanto às reais intenções do Estado em monopolizar a oferta educacional à sua população. Acerca de tais desconfianças, Rothbard (2013, p.20), um destes autores ligados ao pensamento libertário típico desta vertente originária no campo da economia, oferece a seguinte reflexão:
Ademais, é inevitável que o Estado imponha uniformidade tutelar sobre o ensino. Não somente a uniformidade agrada mais o temperamento burocrático e é mais fácil de aplicar, como seria quase inevitável onde o coletivismo suplantou o individualismo. Com o estado tendo a propriedade coletiva das crianças substituindo a propriedade individual e os direitos de propriedade, é claro que o princípio coletivo seria também aplicado no ensino. Acima de tudo, o que seria ensinado seria a doutrina de obediência ao próprio estado. Pois tirania não é compatível com o espírito do homem, que exige a liberdade para o seu pleno desenvolvimento.
Desta forma, o autor lança a questão acerca de a quem, de fato, serve a regulamentação de caráter centralizado da educação: aos indivíduos que dela se beneficiariam, ou ao Estado que teria beneficio no sentido de moldar melhor seu cidadão? Sendo esta uma questão intimamente ligada a uma visão libertária do ideal de sociedade humana, deve haver cautela nesta análise, entre promover a liberdade ou cercear direitos, pois a educação é um direito humano indispensável, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo 26º, conforme transcrito abaixo:
Artigo XXVI - 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, está baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
Ora, se o governo é a forma pela qual se organizam as sociedades humanas conforme suas identidades nacionais, e os direitos de cada ser humano são universais e dignos do mais alto respeito, fica claro, sob uma visão libertária, que a atuação do Estado, em qualquer área que influencie a vida de cada cidadão, deve estar primeiramente em consonância com as aspirações e respeito à liberdade de escolha destes, desde que tais aspirações e liberdades não impliquem a negação dos direitos igualmente pertinentes a outrem.
Saviani (2010, p.380-381), por outro lado, tece sua crítica à Educação Livre, que a seu ver não pode compor um sistema, assim como também a educação escolar privada. Para o autor, o sistema só pode ser público, “já que uma de suas características é a autonomia, o que implica normas próprias que obrigam a todos os seus integrantes. E, obviamente, somente o Estado, isto é, o poder público tem a prerrogativa de definir normas que obrigam a todos.” (Saviani, 2010, p.381)
Existe ampla aceitação na crença que o enfraquecimento do ideal da educação institucionalizada e regulada como educação por excelência poderia abrir precedentes perigosos, no sentido de um maior impacto sobre aqueles de não estariam preparados para garantir sua instrução adequadamente de forma autônoma, dada sua desvantagem de caráter social e econômica.
De uma forma ou de outra, a educação, no contexto libertário, demanda cuidadosa reflexão acerca das relações entre os indivíduos e o ente estatal, como também o local a ser ocupado pela escola e pela educação pública enquanto sistema que representa um ideal de um maior protagonismo do Poder Público no provimento de direitos básicos pertinentes a todos os seus cidadãos.
Há de se verificar até que ponto este protagonismo realmente se encaixa no novo paradigma que começa a se delinear com os avanços tecnológicos recentes que impactam o ato de aprender e se educar, bem como na formação humana e nas interações sociais.
Por fim, podemos definir a Educação Livre enquanto conceito ligado intimamente à desconfiança no sistema educacional e nas intenções do Estado ao promover o acesso à educação mediante práticas legais coercitivas. Educação Livre pressupõe, desta forma, a forma de educar fora de um sistema, e livre da coerção do Estado, ora posto sob um voto de desconfiança.
Exemplificando modalidades de Educação Livre: A Educação Domiciliar ou
Homeschooling, a Desescolarização ouUnschooling,e osMOOCs.
Debater as práticas educacionais de caráter libertário implica, invariavelmente, em focar-se na questão “indivíduos versus Estado”. Com tanta discussão em torno desta questão, o campo do direito, das políticas públicas e da análise sociológica, ganha destaque sobre o campo educacional. Pouco se fala em como garantir a liberdade de ensinar. E, se esta liberdade implicará em ações educacionais reais pode gerar muitas dúvidas entre a grande maioria da população, para a qual a escolarização, já em vias de universalização, se fez tão presente que já parece indispensável.
Apesar de menos comum na realidade brasileira, a educação em um contexto libertário está bem exemplificada em dois movimentos, que mesmo sendo claramente voltados a um nicho específico, são movimentos bem difundidos nos Estados Unidos da América (EUA), onde o pensamento libertário encontra-se melhor consolidado e logrou maior prosperidade. Os movimentos do Homeschooling, ou Educação Domiciliar, e do Unschooling, ou Desescolarização, encontraram grande número de adeptos entre os norte-americanos.
O Homeschooling, segundo Baumann (2001), é praticado por aproximadamente dois milhões de crianças norte-americanas. Esses números são referentes ao ano de 2001 e receberam atualização em 2010. Ray (2011), afirma que o número de crianças educadas em casa no país havia crescido para dois milhões e quarenta mil, o que mostra a consolidação do Homeschooling como uma prática de nicho. Este nicho, comparado o intervalo entre os dados, mostra estar relativamente estável, apesar de ainda haver espaço para um lento e gradual crescimento.
Há ainda um segundo movimento além do Homeschooling, considerado ainda mais radical: trata-se do Unschooling. Se Homeschooling, etimologicamente remete ao “escolarizar em casa”, o Unschooling traz a perspectiva de completa desescolarização, ou seja, o ato de rechaçar completamente toda a prática curricular e as padronizações promovidas no processo escolar. O termo Unschooling surge através dos escritos de John Holt, autor do livro How Children Fail, de 1964. Todavia, o maior expoente desta vertente educacional é Ivan Illich, autor do livro Deschooling Society de 1971, criador do conceito de desescolarização em si.
O Homeschooling permite que se replique a organização curricular existente nas legislações educacionais vigentes, focando sua ação na militância pelo direito de educar
em casa. O Unschooling, por sua vez, torna-se uma opção ainda mais radical aqueles que preferem educar sua prole livre da regulação, fiscalização e intervenção do ente estatal. Rolstad e Kesson (2013, p.29) acerca do Unschooling, trazem a seguinte conceituação:
Como a prestação de contas e padronização continua a estreitar o currículo, famílias optantes pelo unschooling estão redefinindo a aprendizagem e comunidade, recriando em todos os tipos limites historicamente determinados reais e imaginários, incluindo raciais, culturais, econômicos, geográficos e divisões educacionais. Estas famílias optam por libertar a si e seus filhos das expectativas e exigências da escola, para que eles possam viver, trabalhar e jogar no resto do mundo fora da escola, auxiliado por avanços tecnológicos e das redes sociais. (Tradução própria)
Nota-se que a opção pelo Unschooling implica em uma ampla carga de auto- responsabilidade, assim como responsabilidade pela formação da prole pelos próprios pais. Se por um lado esta perspectiva pode deixar os profissionais da educação desconcertados - aliás, não é possível verificar nenhuma base sólida sobre a qual possa ocorrer a construção do conhecimento, como uma base curricular comum -, por outro lado a desecolarização leva mais longe a imaginação de libertários que veem nessa proposta um convite à experimentação de uma maior diversidade e pluralidade de práticas educacionais.
No Brasil, a prática do Homeschooling e do Unschooling são ainda ilegais, em consonância com os artigos 205º da Constituição Federal, 55º do Estatuto da Criança e do Adolescente, 6º da Lei 9394/96 (LDB), e 246 do Código Penal.
Tanto o Homeschooling quanto o Unschooling exemplificam, porém, de maneira clara, os ideais de uma Educação Livre. Ainda assim, as questões legais possuem grande peso no incentivo que os pais possam ou não ter para adotar qualquer uma das práticas propostas. É sabido que as poucas famílias que optam pelo Homeschooling preferem ainda o anonimato, pelo temor de represálias do aparato estatal.
Se tratar de propostas libertárias em educação para as crianças e adolescentes, além de polêmico, envolve sérias discussões acadêmicas e resoluções quanto a questões legais, as propostas visando uma educação livre voltadas ao público adulto têm encontrado melhor sorte, até mesmo prosperando em larga escala.
Os Massive Open Online Courses, ou MOOCs, ou ainda, em tradução livre,
Cursos On-line Abertos e Massivos, ganharam, recentemente, a atenção da mídia, e
lograram uma expansão veloz. Barin e Bastos (2013) conceituam os MOOCS em compilação de 16 artigos, onde buscam trazer maior luz sobre a modalidade, sua história e implicações de sua expansão. Os autores citam que:
Hyman (2012) avalia o ano de 2012 como o ano em que as TIC popularizam a educação por meio dos MOOC ou cursos abertos massivos on-line, que perturbaram ou transformaram as formas de ensinar e aprender. De acordo com o autor as universidades norte-americanas, como Stanford, MIT, Harvard, Princeton, Universidade de Michigan, e a Universidade da Pensilvânia facilitaram o acesso ao ensino superior na medida em que disponibilizaram algumas de suas salas de aula online. (Barin e Bastos, 2013, p. 4).
Tal popularização não poderia deixar de chamar atenção, uma vez que esses cursos visavam trazer às massas conhecimentos de forma fragmentada, que até então só estavam disponíveis para aqueles que possuíam acessos aos cursos de nível superior das universidades pioneiras na oferta desses novos cursos abertos e massivos. A distribuição on-line do material, por meio de plataformas do tipo AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem), além da integração com ferramentas de colaboração em tempo real, ou de forma assíncrona, porém com grande capacidade de interação, seja por meio de fóruns ou de atividades colaborativas entre os estudantes, logo tornou o MOOC uma opção de baixíssimo custo, quando não, gratuita, para a aquisição de novos conhecimentos.
A especificidade dos cursos também contribuiu para que este público se multiplicasse, pois não era necessário cursar o que não se desejava. Havia, então, a possibilidade de ir direto ao conhecimento desejado.
Há, ainda, muito que se debater em relação aos MOOCs, ao Homeschooling e ao Unschooling, e suas problemáticas, e ainda as implicações futuras dos rumos que estas modalidades vêm tomando. Todavia, não se pode negar que a existência de tais modalidades permite a experimentação de uma nova forma de acessar e popularizar o conhecimento, assim como formar pessoas respeitando a diversidade de aspirações existente no seio da sociedade, pois exemplificam a viabilidade de formas mais diversificadas de ensinar e aprender em ambientes permeados por ampla liberdade, em especial frente ao engessamento das práticas educacionais escolares fortemente reguladas pelo Estado.
O LivreversusRegulado no debate educacional: retomando reflexões para a construção de caminhos de inclusão mútua entre os modais.
Na seção anterior, apresentamos um breve histórico que propiciou a conceituação do que pode ser compreendido por uma Educação Livre e uma Educação Regulada. Com ele, ficou claro que é chegado o momento do aprofundamento de um debate que abranja estas duas realidades tão distintas.
Liberar e Regular implicam em duas visões com enormes diferenças. Enquanto a primeira pode abrir um grande leque de práticas educacionais diversas, e outras tantas que ainda poderiam surgir neste ambiente livre, a segunda opção implica na submissão da prática educacional fora do ambiente fortemente regulado às mesmas deliberações, pressões, vícios e intervenções que o ente estatal promove sob suas regulamentações. Tanto a escola publica quanto a privada, como se observou anteriormente, ao chegarmos ao conceito de Educação Regulada, não possuem grandes diferenças que excedam a da forma de financiamento das mesmas: ambas estão sob intervenção direta do Estado e seus objetivos, unicamente.
Observada esta questão, a compreensão sobre a liberdade precisa ser revigorada.
Bastiat (2010, p. 42), acerca da liberdade, conceitua:
E o que é a liberdade, palavra que tem o poder de fazer baterem todos os corações e de agitar o mundo? É o conjunto de todas as liberdades; liberdade de consciência, de ensino, de associação, de imprensa, de locomoção, de trabalho, de iniciativa. Em outras palavras, o franco exercício, para todos, de todas as faculdades inofensivas. Em outras palavras ainda, a destruição de todos os despotismos, mesmo o despotismo legal, e a redução da lei à sua única atribuição racional, que é a de regularizar o direito individual da legítima defesa ou de repressão da injustiça.
Retomar a visão de liberdade enquanto prática das faculdades inofensivas é essencial, quando se observa que o Estado busca cada vez mais incutir no senso comum a crença de que a liberdade é potencialmente geradora de descontroles que possam levar a violações de direitos individuais mútuos, em um “todos contra todos”, propagando a visão de uma liberdade que, sem a tutela total do Estado, seria ofensiva, caótica e perigosa.
Aplicada ao contexto educacional, esta visão que parte do Estado é ainda mais geradora de distorções na medida em que traz a crença acerca da renúncia do direito a liberdade de educar a própria prole e a si mesmo livremente enquanto geradora de um bem maior, pois
o Estado poderá supostamente educar de forma melhor, mais igualitária e com mais profissionalismo.
Rousseau (1996, p. 15) dissertou certa vez sobre a questão da cessão da liberdade, afirmando:
Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, é arrebatar toda moralidade as suas ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade.
Se esta afirmação de Rousseau originalmente se refere à questão da escravidão, ela também se encaixa perfeitamente na questão da cessão do direito de educar ao Estado. Entretanto, a abertura para uma prática educacional livre não pode servir de pretexto para o ataque aos direitos daqueles que não possuem o espírito libertário nem a qualificação necessária para tomar a responsabilidade integral pela formação de sua prole e pela sua própria formação contínua, e que podem, ainda, ser despojados da assistência do Estado por meio da oferta educacional, realizada por este com base nas legislações,
que atualmente já garantem esses direitos de forma praticamente universalizada.
É necessária uma ponderação no sentido de garantir que a Educação Livre conquiste seu espaço no debate educacional, tanto no Brasil quanto globalmente, inclusive com a possibilidade de efetivamente se tornar uma prática viável, como proposto há 195 anos, pouco antes do período imperial brasileiro, pelo Decreto de 30 de Junho de 1821, sem que para isso se prejudique os que dependem das garantias constitucionais igualmente previstas na Carta Magna de 1988 no Brasil contemporâneo, ou em todas as outras legislações nacionais e internacionais vigentes em dias atuais.
Equacionar estas duas vertentes - o Livre e o Regulado-, não se constituem, portanto, em tarefas fáceis. Muito menos podemos esperar que a atual hegemonia da visão pró-fortalecimento do Estado na educação seja enfrentada com alguma igualdade de condições em curto prazo.
Todavia, o debate está proposto e deve prosperar, caso realmente esteja nos desejos de pais e profissionais da educação uma prática pedagógica inclusiva, plural e afim ao respeito pela diversidade, incluindo-se a diversidade relativa aos modos de ensinar e aprender em contextos que não se insiram necessariamente em um sistema, sob o monopólio do Poder Público. Propõe-se aqui uma diversidade que seja inclusiva no
mais profundo significado da palavra, para que o Livre e o Regulado possam caminhar em paralelo, sem que haja o risco de exclusões mútuas entre os modais.
O desafio da crise vindoura da Educação Regulada no Brasil e a necessidade de novos caminhos
As questões levantadas por meio do debate acadêmico da relação Livre versus Regulado na educação podem, em princípio, parecer distantes da realidade já vivida pela população, que possui no sistema educacional vigente um modelo já consolidado e que é visto como indispensável, conforme destacamos anteriormente. Ainda assim, este debate possui implicações cuja presença já é sentida no cotidiano escolar, mesmo que de forma fragmentada, o que obscurece a visão de um objeto claro nesta questão.
Dificuldades no campo gerencial, por exemplo, já se mostram presentes na medida em que a universalização do acesso escolar, promovida em regime compulsório, leva a pressões orçamentárias que atualmente possuem grande destaque, tanto no meio acadêmico, quanto na mídia nacional, que se encarrega de levar a problemática ao público geral.
Políticas de controle fiscal no Brasil, associadas ao engessamento orçamentário dos investimentos em educação, podem levar a um quadro de aumento de dificuldades e maiores pressões à gestão das escolas em todo o país. Deve-se somar a esta situação o aumento da pressão na demanda por novas vagas no sistema público, por alunos oriundos das escolas privadas, que perdem matrículas em função de eventos e turbulências desencadeados pelas crises econômicas que ocorrem de forma cíclica, cuja previsibilidade é complexa ao público geral, uma vez que este se encontra distante dos conhecimentos necessários à sobrevivência plena e adequada em um mundo cada vez mais financeirizado1.
O direcionamento das políticas públicas educacionais, no sentido da criação de um sistema grande e centralizador, altamente regulado e engessado, por um lado pode ter auxiliado no avanço das taxas de escolarização no Brasil, especialmente depois da Constituição de 1988 e da elaboração da LDBEN nº 9.394/96, da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF), e do Fundo de

1 Tal expressão busca referir-se ao crescente afastamento das atividades econômicas rumo aos mercados financeiros e comércio de ativos financeiros digitais, e para longe da denominada economia real, baseada no trabalho e na produção e comércio de bens e serviços físicos e tangíveis.
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), que compõem, atualmente, o acervo de políticas públicas que visam aumentar a responsabilidade do Estado sobre a educação brasileira, melhorando sua qualidade.
Por outro lado, em termos de regulação educacional, este colosso começa a dar sinais de que sua grandiosidade pode se tornar problemática no longo prazo. A demanda por escolas públicas tem se mostrado o único caminho a seguir quando, quando os pais, ao sentirem qualquer aperto de ordem monetária, fiquem impossibilitados de pagar por uma educação no sistema privado.
Ainda existe a possibilidade de um expressivo aumento das matrículas de nível médio, associada a uma diminuição de matrículas no Ensino Fundamental, como mais um componente problemático a médio e longo prazo. Dados preliminares do Censo Escolar de 2015, trazidos ao público por Andréia Verdélio, em reportagem on-line de 05/10/2015, pela EBC (Empresa Brasileira de Comunicações), apontam:
Segundo os dados preliminares, incluindo escolas estaduais e municipais de áreas urbanas e rurais estão matriculadas na creche
1.933.445 de crianças; na pré-escola, 3.636.703; no ensino fundamental, 22.720.900; no médio, 6.770.271 e 2.765.246, na educação presencial de jovens e adultos. Um total de 37.826.565 alunos matriculados no Brasil. Já na educação especial são
718.164 matrículas. A assessoria do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) informa que os números são parciais e tendem a crescer.
É preciso notar que o percentual de matrículas no Ensino Fundamental supera, atualmente, em pouco mais de três vezes, o total das de Nível Médio. Tal fenômeno aponta para um problema duplo, a médio e a longo prazo. Com as taxas de natalidade brasileiras caindo, atingindo a mínima histórica de 14 a 16 nascimentos por mil habitantes em 2015, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), fica fácil prever que aumentará consideravelmente a pressão sobre o Ensino Médio, ao mesmo tempo em que sobrarão vagas para o Ensino Fundamental no Brasil em um futuro não muito distante, mesmo que tal movimento na verdade implique numa transição lenta.
As modificações necessárias para a adaptação à nova realidade deverão incluir uma reorganização da distribuição de recursos e atribuições voltadas à gestão do sistema educacional público por Estados e Municípios, trazendo pressões e conflitos à gestão do sistema, que poderá se ver obrigado a gastar somas vultosas na requalificação da grande
massa de profissionais do Ensino Fundamental para atuação no Nível Médio, ou a contratação de um contingente ainda maior de profissionais ao custo de mais pressão orçamentária. Tais modificações incluem também outros fenômenos, como a reorganização de lotações, vencimentos, planos de carreira, entre outros fatores gerenciais internos da própria escola, que passará por drásticas mudanças em suas necessidades, gerando potenciais conflitos, e uma maior precarização do trabalho docente.
Se a transição demográfica brasileira apontar para uma estabilização da população e das pirâmides etárias, as perspectivas de crescimento igualmente tenderão à estagnação, e aumentará a demanda por ainda mais professores e infraestrutura. Se por outro lado, a transição demográfica apontar para uma queda, estimemos que hipoteticamente no prazo de dois séculos, por conta de uma possível taxa de fecundidade que fique muito abaixo das taxas de reposição de população, a economia sofrerá transformações profundas, difíceis de prever com tamanha antecedência, que implicarão no colapso da organização atual da oferta educacional. Tais transformações invariavelmente afetarão as estruturas fiscais futuras, assim como a capacidade de elaboração, execução e manutenção de políticas públicas não só na educação, como em tantos outros pontos estratégicos para a nação nos quais a presença e atuação positiva do Estado servem de farol e alicerce.
Portanto, percebe-se que “palco está montado” para a explosão de um grande problema a médio e longo prazo. A excessiva regulação da educação poderá levar a sérias dificuldades por parte do ente estatal para manter o que foi deliberado constitucionalmente, com consequências ainda difíceis de serem calculadas com exatidão. Desta forma, novos caminhos na educação nacional, levando em conta este possível cenário futuro, deveriam ser considerados.
Por fim, a escassa possibilidade de previsão dos impactos que poderão ocorrer sobre a oferta educacional em um espaço de tempo tão vasto não nos exime de pensar no desenvolvimento de formas alternativas de promover a instrução e o aprendizado. Ao lembrarmos que dois séculos é praticamente o que nos separa dos primeiros movimentos com vistas à promoção da educação do povo brasileiro em 1821, e quantas gerações perderam oportunidades até que alcançássemos os níveis de instrução presentes na população de hoje, ainda muito aquém das potencialidades permitidas pelos níveis tecnológicos atuais, torna-se ainda mais necessário pensar nos modais de Educação Livre como campo de experimentação teórica, prática e pedagógica que permitam avanços que garantam alternativas para as futuras gerações, caso o atual sistema
educacional não resista a contento às turbulências as quais estará sujeito. Tais projeções futuras merecem sem dúvida ser alvo de pesquisa mais profunda e específica, assim como a pesquisa acerca do portfolio de ofertas educacionais possíveis que devam ser consideradas em cenários diversos.
Considerações Finais
Este breve texto infelizmente não será capaz de abranger todo o espectro de questões que envolvem a relação entre o regulado e o livre na educação. Ainda assim, nos foi possível lançar alguns lampejos sobre esta discussão.
O processo histórico da formação de um sistema educacional brasileiro, como analisado anteriormente, não contribui para uma boa visão acerca da livre iniciativa em educação, uma vez que o Decreto de 1821, baixado ainda nos tempos imediatamente antes do Império, não promoveu avanços que justificassem a inserção do viés libertário na elaboração e execução de políticas educacionais no Brasil, e desde então nenhuma outra regulação nacional sequer tentou este caminho, pendendo para o controle total e centralizado no ente estatal como solução para a questão educacional do Brasil, justificada pelo contexto que, na ausência de outras informações e perspectivas somente existentes nos tempos atuais, impediam que tais regulações tentassem uma aproximação libertária do problema sem com isso parecer que buscava eximir o Poder Público de suas responsabilidades para com a população. Por outro lado, Bastiat (2010, p.51) nos alerta:
Ao criar o monopólio da educação, o governo deu-se obrigação de corresponder às esperanças dos pais de famílias, que foram privados então de sua liberdade. E se essas esperanças não foram correspondidas, de quem é a culpa?
A reflexão proposta a partir da análise da posição do Brasil na temática deste texto possibilita o repensar, não apenas dos caminhos seguidos até então pelo governo brasileiro, como também a nível internacional, caso as reflexões aqui postas sirvam de base comparativa com outras realidades nacionais. A globalização tem empurrado as nações à adoção de soluções cada vez menos dotadas de diversidade, e o respeito às liberdades individuais parece estar cada vez mais comprometido em meio às pressões políticas e econômicas deste mundo que parece ainda não ter encontrado seu mais excelente e pacifico caminho.
É importante notar que os caminhos para a legalização, adoção e desenvolvimento das práticas de Educação Livre perpassam necessariamente por discussões e processos de desenvolvimento de políticas próprias da Educação Regulada. É necessário em certo ponto regular para liberar, o que impõe o grande desafio de criar uma regulação que legalize, mas não monopolize, além de impor desafios a noção de sistema educacional em si, que passaria a não mais ter a educação privada ou os modais livres orbitando o Poder Público em constante conflito, mas formando uma relação multilateral inclusiva e holística, na qual todas as formas de oferta educacional tenham sua essência respeitada e coexistam legalmente, sem com isso ferir a perspectiva de uma educação que exista enquanto política de Estado, com vistas a promover o fortalecimento da nação através do desenvolvimento intelectual de seu povo.
Por fim, conforme afirma o escritor e poeta Guimarães Rosa (1985), o caminho se faz no caminhar. E relembrando Bastiat, que ofensa haveria em se caminhar livremente na trilha do aprendizado? Que este texto possa servir como reflexão a este propósito.
Referências
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