ARTIGO

LOURENÇO FILHO E A APRENDIZAGEM COMERCIAL NOS PRIMÓRDIOS DA MASSIFICAÇÃO DO ENSINO COMERCIAL NO BRASIL (1946)

LOURENÇO FILHO AND COMMERCIAL LEARNING AT THE BEGINNING OF THE MASSIFICATION OF COMMERCIAL EDUCATION IN BRAZIL (1946)

José Geraldo Pedrosa 1
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil
Flávia Oliveira Duenhas 2
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil
Nívea Maria Teixeira Ramos 3
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil

LOURENÇO FILHO E A APRENDIZAGEM COMERCIAL NOS PRIMÓRDIOS DA MASSIFICAÇÃO DO ENSINO COMERCIAL NO BRASIL (1946)

Revista Tópicos Educacionais, vol. 27, núm. 2, pp. 25-51, 2021

Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

Recepção: 11 Novembro 2021

Aprovação: 13 Novembro 2021

Resumo: O artigo é dedicado ao entendimento das aproximações de Lourenço Filho (1897-1970) com o ensino comercial e suas elaborações sobre as especificidades do labor do comerciário, da aprendizagem e do ensino comercial. Desde os anos 1930 Lourenço Filho mantinha relações com a educação profissional, mas foi em 1949 que ele fez intervenções nas concepções de aprendizagem e nas práticas de ensino com amparo no funcionalismo e no pragmatismo anglo-americanos. O artigo considera o cenário econômico, social e cultural no Brasil dos anos 1940, faz incursões na trajetória e na obra de Lourenço Filho e dialoga com a literatura já produzida. De modo particular o artigo é uma elaboração que, resulta do exame de documentos primários e inéditos de Lourenço Filho sobre a aprendizagem profissional.

Palavras-chave: Aprendizagem Profissional, Educação Profissional, Ensino Comercial.

Abstract: The article is dedicated to understanding Lourenço Filho's (1897-1970) approaches to commercial education and his elaborations on the specifics of commercial work, learning and commercial education. Since the 1930s Lourenço Filho had relations with vocational education, but it was in 1949 that he approached commercial education making interventions in the conceptions of learning and selection and teaching practices based on the functionalism and pragmatism of Anglo-American origins. The article considers the economic, social and cultural scenario in Brazil from 1940, makes inroads into the trajectory and vast work of Lourenço Filho and dialogues with the literature already produced about it. In particular, it results from the examination of Lourenço Filho’s primary and still unpublished documents relating to professional learning.

Keywords: Professional Education, Business Learning, Professional Learning.

1. Introdução

Este artigo é do campo da história da educação profissional (EP) no Brasil. De modo particular é um estudo referente à história de intelectuais que foram protagonistas na constituição e instituição dos sistemas nacionais de educação profissional nos anos 1940. Em sentido estrito, intelectuais são aqueles que participam de movimentos e assinam manifestos, atuam em instituições públicas ou civis, elaboram propostas e participam de disputas políticas (SIRINELLI, 1996). Intelectuais são aqueles que deixam marcas públicas de sua atuação: em registros escritos, na memória oral, em fotografias ou outros documentos. Nesse sentido, fazer história dos intelectuais é o mesmo que situar trajetórias, identificar gerações de pertencimento, lugares e círculos de sociabilidade, mediações e ideias.

Intelectuais da EP brasileira é expressão referente àqueles que atuaram na EP, seja no governo, cuidando da formulação ou implementação de políticas, em instituições civis, atuando nas negociações ou em instituições educativas, cuidando da gestão e de coisas referentes à aprendizagem e ao ensino. No primeiro caso, no período aqui considerado, estão incluídos intelectuais como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Francisco Montojos; nos segundo e terceiro casos estão Roberto Simonsen, Euvaldo Lodi, Roberto Mange, Celso Suckow da Fonseca, Ítalo Bologna e Joaquim Faria Góes Filho. Mas esses grupos não eram impermeáveis e, por isso, determinados intelectuais circulavam em ambos, atuando como mediadores. Azevedo atuou no Distrito Federal e em São Paulo. Teixeira atuou na Bahia, no Distrito Federal e no Governo Federal; Lourenço Filho e Montojos atuaram no Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), sendo Montojos especialmente na EP. Teixeira, Azevedo e Lourenço Filho foram signatários d’O Manifesto dos pioneiros da educação nova (1932). Montojos, embora não conste como signatário do manifesto, era identificado com a Escola Nova e atuava como mediador ou como intelectual que promovia a circulação de ideias da Escola Nova na EP. Simonsen e Lodi eram intelectuais orgânicos da indústria e atuavam na Confederação Nacional da Indústria (CNI) e também no Instituto de Organização Racional do Trabalho (Idort). Simonsen era um industrial acadêmico: empresário da indústria, professor na Politécnica de São Paulo, escritor e mediador dos princípios da administração científica no Brasil. Góes Filho, Mange, Fonseca e Bologna não eram industriais, mas atuavam nas instituições do ensino industrial e tinham relações diretas com a CNI. Mange era a principal liderança do ensino ferroviário em São Paulo e, a partir de 1942, do Serviço Nacional de Ensino Industrial (Senai); tinha relações com os pioneiros da Escola Nova e só não constou como signatário porque ainda não se naturalizara brasileiro. Fonseca era do ensino ferroviário no Rio de Janeiro e, assim como Góes Filho, cursou mestrado na Universidade da Columbia na década de 1930. Bologna atuava com Góes Filho no Senai e foi superintendente da Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (1946- 1963). Todos esses quatro tinham relações regulares com os intelectuais de Gustavo Capanema, especialmente Góes Filho e Mange. Algo em comum a quase todos eles, embora em graus e formas diferentes, era a afinidade com as novidades que vinham do norte, isto é, dos Estados Unidos da América (EUA): o funcionalismo, o pragmatismo e o taylorismo. Em 1927 Anísio Teixeira visitou os EUA, frequentou a Universidade da Columbia, conheceu a obra de Dewey e visitou várias escolas. Abriu espaços para que outros brasileiros realizassem viagens pedagógicas, visitas técnicas ou cursassem mestrado. Teixeira percorreu trilhas que já haviam sido abertas por Oliveira Lima, o embaixador brasileiro que também era professor visitante na Universidade de Harward (EUA) nas primeiras décadas do século XX.

Esse período de 1940 foi denso na história da EP brasileira porque foi nele que aconteceram mudanças institucionais significativas e redefinições de seu público, dos critérios de seleção, dos objetivos e dos métodos de ensino: tudo isso com impactos na formação dos professores de cultura técnica. Nesse período entraram em cena o mercado e a indústria e, com isso, a EP, até então praticada em escala artesanal e principalmente em instituições locais e de caráter filantrópico e religioso, passou a ser constituída e instituída como sistemas nacionais e em ampla escala. De 1942 em diante, com a criação do Senai, do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) e das escolas técnicas, a EP foi ao nível secundário, seu público passou a ser de jovens e adultos, a psicotécnica tornou-se referência para identificação de aptidões, os objetivos tornaram-se para o mercado, a meta passou a ser formação do trabalhador urbano e a instrução deixou de ser apenas para a moral do trabalho e ganhou o predomínio da técnica.

Por ser um período de definição e execução de políticas e programas de larga escala e mobilização de amplos recursos, os anos 1940 foram de disputas em torno de concepções, projetos e práticas. Nesse processo participaram intelectuais de diferentes origens sociais, campos de interesse, formações e identidades ideológicas.

O artigo é dedicado à compreensão de um desses intelectuais: Manuel Bergstron Lourenço Filho (1897-1970). De modo particular é dedicado ao entendimento das aproximações de Lourenço Filho com o ensino comercial no final dos 1940 e de suas elaborações sobre as diferenças do comércio em relação à indústria, sobre as especificidades do labor do comerciário e da aprendizagem e do ensino comercial. Filho de família operária e formado em ciências jurídicas, Lourenço Filho foi um destacado intelectual da educação brasileira no século XX, cujo pensamento e ação articulavam a psicologia da aprendizagem e a formação de professores. Seus ambientes de formação foram os cursos de formação para o magistério, em que foi aluno, professor e diretor.

De acordo com Monarcha e Ruy Lourenço Filho (2001), compõem a vasta obra deixada por Lourenço Filho escritos sobre educação e também de literatura infanto-juvenil. São sete livros em português, vinte capítulos de livros, cerca de oitenta produtos entre monografias, relatórios e textos para conferências. Publicou quase trezentos artigos em revistas além de quase oitenta textos em língua estrangeira. Traduziu, para o português, obras de Durkheim, de Binet e Simon e de Léon Walther.

O grande interesse de Lourenço Filho talvez tenha sido pelas crianças e, claro, pela educação infantil. Foi voltado para as crianças que ele se dedicou à formação de professores e aos cursos de magistério e foi também pensando nas crianças que ele salientava a importância da psicologia da aprendizagem na formação de professores. Para Lourenço Filho a principal capacidade de entendimento dos educadores infantis tinha de ser referente ao funcionamento da aprendizagem.

É nessa intercessão entre educação, aprendizagem e psicologia que Lourenço Filho é aqui abordado. O foco, porém, não está na educação infantil, mas, sim, na aprendizagem profissional. Em 1949 o problema da formação de professores para o ensino comercial apareceu na agenda do Senac, criado em 1946, quatro anos após o Senai. Em 1949, no SENAC, já eram debatidas as particularidades laborais do comércio em relação à indústria em busca de uma via própria para a formação dos docentes para o ensino comercial. Desde a década de 1930 Lourenço Filho já tinha relações com a EP, mas foi em 1949 que ele se aproximou do ensino comercial, fazendo intervenções acerca da aprendizagem e das práticas de seleção e de ensino com amparo no funcionalismo e no pragmatismo anglo-americanos.

O artigo considera o cenário econômico, social e cultural no Brasil da época, faz incursões na trajetória e na vasta obra de Lourenço Filho e dialoga com a literatura já produzida a seu respeito. De modo particular o artigo resulta do exame de documentos primários e inéditos de Lourenço Filho relativos à aprendizagem profissional.

2. Circunstâncias econômicas e sociais à época das aproximações de Lourenço Filho com o ensino comercial

Entre 1945 e 1973 as economias que compunham o “bloco capitalista”, ou seja, os “países do Primeiro Mundo” e os “subdesenvolvidos” ou de “Terceiro Mundo”, que viviam na órbita dos primeiros, tiveram um crescimento econômico acelerado, embora desigual. Hobsbawm (1995), numa abordagem sintética, refere-se a esse período como os anos dourados do capital. Foi um período marcado pelo crescimento econômico, seguido de crescimento populacional acelerado, expansão urbana, pela aplicação de novas técnicas à produtividade e aumento da produção, do emprego e do consumo. Essa foi também a era da centralidade do automóvel e do petróleo. Vários fatores contribuíram para esse crescimento e um deles foi a expansão da economia angloamericana no pós-guerra. Outro fator foi o assim chamado evento de Bretton Woods, em 1944. A criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) significou ampliação dos investimentos econômicos por meio do endividamento dos países “subdesenvolvidos”.

No Brasil a cena não foi diferente. Dos anos 1940 em diante foram três décadas aceleradas rumo a uma sociedade industrial, urbana e de massas. Décadas de superação do modelo agroexportador, de incremento das exportações industriais básicas e também de expansão do mercado interno. Na década de 1940, eletrodomésticos, como fogão a gás, chuveiro elétrico, liquidificador e geladeira, revolucionaram lares urbanos brasileiros. O ato de comprar eletrodomésticos e automóveis tornou-se parte do projeto de vida das famílias de classe média e, ao mesmo tempo, surgiram produtos acessíveis à massa de trabalhadores urbanos. Os hábitos alimentares também sofreram alterações com a chegada dos enlatados e embutidos, trazendo praticidade e agilidade. O consumo de refrigerantes dobrou e deslocou os sucos de frutas com a chegada da Coca-Cola, em 1941. Apareceram, nessa época, os primeiros sorvetes industrializados no Brasil e cresceu o consumo de chocolates. O vestuário igualmente foi transformado. O surgimento do tecido sintético e a produção de roupa para o mercado de massa baratearam ainda mais os produtos comercializados (SEVCENKO, 1998).

O crescimento econômico, o fortalecimento da indústria, a urbanização, as migrações internas e o fluxo de imigrantes estrangeiros reconfiguraram não só a demografia brasileira como também a cultura e a arte. Na vida cultural nas décadas de 1940 e 1950, num momento de inserção das massas na política, a cultura popular ganhou visibilidade. Os anos 1940 foram marcados também pela popularização do rádio, que impactou a economia (novos hábitos de consumo) e a cultura, colocando em evidência a música popular e figuras como Luiz Gonzaga (baião), Alvarenga e Ranchinho (caipira) e Carmem Miranda (samba).

Mas acelerações históricas de tal monta impõem desafios: novos tempos exigem novos homens, novas instituições, novas leis. É dessa época o Idort (1931), a CNI (1938), as escolas técnicas e o Senai (1942), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (1943), o Senac (1946), além de outras instituições voltadas para a (re)formação do novo empresário e do novo trabalhador, aptos à racionalização empresarial, à impessoalidade da gerência, do cronograma e do organograma.

O Senac foi criado em 1946. Estruturou-se administrativamente ao modo do Senai, criado em 1942: um Departamento Nacional e departamentos regionais nas unidades da federação. Essa estrutura revela identidade com um traço da democracia liberal que Tocqueville (2000) identificou nos EUA já no início do século XIX. Trata-se de um modelo que visa a combinar centralização governamental com descentralização administrativa.

Em vários sentidos o Senac é caudatário do Senai. A constituição do Senai foi um processo relativamente lento e negociado, embora sem acordo final. Começou em 1934, quando o ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, nomeou uma comissão para reestruturar a EP no país. Nessa comissão estavam representantes da CNI, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MITC) e do Mesp. Lourenço Filho participou dos trabalhos dessa comissão que funcionou até o final de 1941 sem chegar a um acordo. As questões em disputa eram referentes ao pertencimento e ao financiamento. Os intelectuais de Capanema pleiteavam uma educação técnica integrada ao ensino secundário e subordinada ao Mesp e os empresários pleiteavam uma institucionalidade paralela e administrada pelas entidades patronais. Na ausência de um acordo, o presidente Getúlio Vargas, pressionado pelo processo de industrialização, criou o Senai e as escolas técnicas no início de 1942, ficando estas sob comando do Mesp e aquele da CNI.

Portanto, quando da criação do Senac, o modelo institucional da EP brasileira já estava estabelecido. Além disso, em 1942 foram promulgados diversos decretos-leis que, em conjunto, ficaram conhecidos como as Leis Orgânicas do Ensino. Como parte dessas Leis Orgânicas, em 1943 foi promulgado o Decreto-Lei n.º 6.141, que instituiu a Lei Orgânica do Ensino Comercial. Três anos depois, em maio de 1945, representantes do comércio, da indústria e da agricultura, de vários estados brasileiros, reuniram-se em Teresópolis, RJ, durante a I Conferência das Classes Produtoras do Brasil (I Conclap), organizada pela Associação Comercial do Rio de Janeiro.

A exemplo da CNI, criada em 1938, após a realização da I Conclap foi criada a Confederação Nacional do Comércio (CNC), em novembro de 1945 (SENAC, 2006). A primeira ação da CNC foi a criação de instituição responsável pela formação profissional em grande escala de trabalhadores para o comércio. Em janeiro de 1946, dia da posse da diretoria da CNC, surgiu o Senac, por meio do Decreto-Lei n.º 8.621, baixado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, que também obrigava os estabelecimentos comerciais ao pagamento mensal de 1% de suas folhas de pagamento (BRASIL, 1946).

Com o objetivo de atingir grande número de comerciários no estado de São Paulo, o Senac optou pela criação do ensino à distância de modo a alcançar as cidades do interior. Foi criada a Universidade do Ar (Unar) com o objetivo de oferecer o Curso Comercial Radiofônico, que transmitia aulas de língua portuguesa, aritmética comercial, ciências sociais e noções de economia e comércio. O rádio foi a primeira plataforma usada pelo Senac para promover a educação a distância. A Universidade do Ar foi uma iniciativa desenvolvida no ano seguinte à criação da instituição, estendeu-se de 1947 a 1962, registrando mais de noventa mil atendimentos em parceria com o Sesc (Serviço Social do Comércio) (OLIVEIRA, 2013).

Mas o Senac, a despeito dessa particularidade em sua forma inicial de atuação, tinha um problema de identidade já que o Senai era a sua referência tanto organizacional quanto operacional. Isso pressionava o Senac a definir sua identidade, elaborar as particularidades do comércio, definir o perfil dos selecionáveis e as características psicotécnicas dos recrutáveis e, mais ainda, das questões relativas ao ensino (conteúdo e forma) e à aprendizagem comercial. E é em torno dessas questões que Lourenço Filho se aproxima da EP, três anos da criação do Senac.

Nessa época, diferente do que já ocorria com o Senai, o Senac não tinha seu quadro próprio de profissionais capazes de pensarem a identidade da instituição e de suas práticas formativas. O Senai surgiu herdeiro do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (Cfesp), que, por sua vez, era herdeiro da Escola Mecânica de São Paulo. Quando criado, o Senai já tinha ancoragem em experiências do ensino industrial e já tinha seus intelectuais próprios, capazes de definirem o significado e o modo de conduzirem o ensino industrial. Entre esses intelectuais estavam Roberto Mange, João Luderitz, Rodolfo Fuchs, Ítalo Bologna, Francisco Montojos, Joaquim Faria Góes Filho e Celso Suckow da Fonseca. Quase todos esses homens eram engenheiros que atuavam em escolas de engenharia que funcionavam como lugares de sociabilidade dos industrialistas e já tinham experiências na formação de trabalhadores para a indústria.

Com o comércio e com o Senac a situação era diferente, pois o país não tinha o acúmulo de experiências (instituições e práticas de formação em ampla escala) que pudessem servir de ancoragem para sua identidade institucional e para suas práticas educativas. No Brasil foi somente nos anos 1940 que o comércio começou a ganhar porte e sofisticação em decorrência do crescimento da indústria e dos centros urbanos, com destaque para São Paulo. A relação entre o industrial e o urbano é sincrônica e retroalimentada: a indústria provoca crescimento urbano, que demanda crescimento da indústria. Os fenômenos industrial e urbano são gêmeos. É em função dessa sincronia que o crescimento industrial-urbano é imanente à expansão e diversificação do comércio. Por isso, assim como ocorreu com a indústria, o desenvolvimento do comércio passou a demandar pessoal qualificado que o Brasil não dispunha à época.

Aconteceu que o ensino comercial, não tendo a longa trajetória do ensino industrial, não tinha seus intelectuais próprios, isto é, não tinha em sua institucionalidade os sujeitos capazes de elaborarem respostas fortes para as questões postas pelas práticas ainda recentes e necessárias à identidade institucional do Senac. Para isso era necessário mobilizar pensadores de áreas próximas e capazes de elaborarem o sentido da aprendizagem comercial. É nessa circunstância que ocorreu a aproximação de Lourenço Filho com o ensino comercial e com o Senac, no ano de 1949.

3. Lourenço Filho: a natureza do comércio e do labor do comerciário e a aprendizagem comercial

Lourenço Filho (1949) aborda os comerciários com uma definição básica de aprendizagem. Ela é o exercício necessário para aquisição de ideias, conhecimentos, práticas e atitudes. É interessante notar o sexteto categorial mobilizado por Lourenço Filho para definir a aprendizagem. Aprender é um exercício: exercício de adquirir. Nessas duas primeiras categorias definidoras da aprendizagem não há novidades em relação a John Locke (1983) e sua interpretação sobre a origem das ideias.

A aprendizagem como equivalente à aquisição tanto nega o inatismo quanto afirma o empirismo e sua ênfase nos sentidos como poros pelos quais o objeto entra na mente do sujeito em forma de imagem. Certa inovação apresentada por Lourenço Filho talvez esteja contida na ênfase no exercício, algo que poderia ter uma relação com a prática, no sentido de aprender fazendo. Mas mesmo a ênfase no exercício não caracteriza um distanciamento entre essa definição inicial posta por Lourenço Filho e as teorias de Locke sobre o entendimento humano: o sujeito que aprende não é passivo e aprender é uma atividade. Quando o sujeito aprende, ele exercita seus sentidos e ativa sua atenção.

As demais categorias utilizadas por Lourenço Filho são referentes menos ao ato de aprender e mais ao objeto da aprendizagem. Em outros termos Lourenço Filho define o que o sujeito pode adquirir quando aprende. As duas primeiras categorias utilizadas também não expressam novidades em relação às concepções europeias. O sentido da aprendizagem como a aquisição de ideias e de conhecimentos já era algo da escola iluminista e enciclopedista. Vem dessa concepção o lugar privilegiado do professor, aquele que domina e transmite o conhecimento, exigindo, para isso, quietude, silêncio e atenção.

Essa ênfase na aprendizagem e, a partir dela, na formação de professores, era questão própria de Lourenço Filho em relação a outros intelectuais de sua época que tinham envolvimento com a educação técnica e profissional. Intelectuais convivas de Lourenço Filho enfatizavam outras questões. Anísio Teixeira lidava com questões relativas à constituição e gestão de sistemas de educação; Roberto Mange com questões de ensino, como as séries metódicas; Francisco Montojos priorizava a qualificação técnica das instituições de EP. É verdade que todos esses intelectuais tinham vinculação com a Escola Nova, tinham identificação com o pragmatismo anglo-americano, eram protagonistas no movimento por uma educação

Pública e de boa qualidade e, principalmente, punham em relevo a formação de professores e a profissionalização da docência. Lourenço Filho fazia parte desse círculo e era diretamente envolvido com essas questões, mas sua particularidade era referente às teorias da aprendizagem.

A novidade que Lourenço Filho fazia circular em sua definição de aprendizagem era resultado de apropriações feitas na pedagogia anglo-americana: aprendizagem de práticas e de atitudes e, não apenas, de ideias e conhecimentos. Tanto a ênfase na prática quanto na atitude já eram fortemente identificadas com a cultura anglo-americana, bem antes de ser legitimadas pedagogicamente por Dewey e seus pares. Pode-se pensar assim na atitude como um traço distintivo do caráter progressista-conquistador anglo-americano, formado ao longo de séculos e legitimado em eventos emblemáticos. A independência das treze colônias e o Estado que emergiu de um pacto, a conquista do oeste e a guerra civil no século XIX foram acontecimentos que demandaram e legitimaram a atitude. Há relação direta entre atitude e o espírito prático e a síntese da cultura anglo-americana tem expressão no dito popular “do it yourself”. Emana dessa presença da atitude prática na cultura anglo-americana as elaborações da psicologia experimental e da pedagogia pragmática do início do século XX, que as traduzem na experiência como meio e na solução de problemas como fim.

Feita essa definição geral da aprendizagem, Lourenço Filho avança na definição da aprendizagem profissional e recorre à história para demarcar as diferenças entre a aprendizagem na escola tradicional e na Escola Nova. No mesmo percurso ele diferencia a aprendizagem profissional antes e após a modernidade. A diferença matricial da modernidade estaria na escolarização do trabalho, já que até o século XIX a preparação para uma profissão ou a aprendizagem profissional estava mais ligada ao exercício do trabalho em fábricas, oficinas ou empresas. No entanto, nas escolas quanto nos locais de trabalho, o termo apreender dizia respeito ao ato de compreender, apoderar-se do conhecimento, por isso era mais utilizado para designar atividades abstratas ou imateriais. Segundo Lourenço Filho, até o início do século XX o termo aprendizagem era empregado para designar aquisição de técnicas, modos ou processos de trabalho, permanecendo como expressão da linguagem vulgar. Apenas recentemente a psicologia havia adotado o termo aprendizagem como abrangente a todos os processos de aquisição, seja na esfera da ação, do pensamento ou da sensibilidade.

Lourenço Filho (1949) salienta também as diferenças entre aprendizagem profissional e educação profissional. A primeira era voltada a pessoas já engajadas no trabalho, cujo objetivo era seu progresso e aperfeiçoamento. Já a educação profissional era voltada para a iniciação da vida profissional. Embora o termo aprendiz não fosse utilizado para as atividades advindas do comércio, o mesmo não ocorria com os termos praticante ou auxiliar, que eram mais utilizados. Isso expressa as diferenças e semelhanças entre a aprendizagem na indústria e no comércio apresentadas por Lourenço Filho. As semelhanças entre os dois ensinos estavam na intenção social, já que ambas visavam à inserção do trabalhador em um ofício. Por isso a diferença dar-se-ia no processo. Por exemplo, nas atividades do artesanato e em algumas da indústria, mantiveram, embora o regime de trabalho livre, formas tradicionais de preparação empírica, conservando a figura do aprendiz. No comércio isso não ocorria, em face da maior exigência de instrução de cultura geral, bem como de alguns atributos da personalidade. Exemplo dado por Lourenço Filho (1949) é o da aprendizagem ferroviária em São Paulo, em que o aluno passava apenas quatro meses aprendendo o ofício em vez de quatro anos, algo que demandava seleção psicotécnica dos candidatos à aprendizagem. Assim, a indústria reconhecia a figura do aprendiz como o de praticante, uma aprendizagem mais ampla e com maior plasticidade. No comércio, as atividades desempenhadas eram mais generalizadas e menos suscetíveis de aprendizagem empírica. Um exemplo era a técnica de redação comercial, que podia preparar o aprendiz para uma série de funções, desde auxiliar de escritório às funções de balcão ou armazenagem. Seja na indústria, seja no artesanato, o fim de todo processo era a transformação da matéria em mercadoria, já no comércio a mercadoria era deslocada, armazenada, classificada, exposta etc.

Lourenço Filho recorria a experiências internacionais para legitimar a cobrança, pelo governo federal, das contribuições educacionais para manutenção do Senai e do Senac, primeiras instituições do Sistema S brasileiro. Desde 1934, quando começaram as articulações com vistas à criação de instituições formadoras de trabalhadores e técnicos para a economia urbana, havia resistências do empresariado da indústria e do comércio à cobrança de taxas educacionais para o financiamento da EP. A disputa envolvia os intelectuais de Capanema e os empresários da indústria, representados pela CNI e por integrantes do MTIC. Por parte do Mesp, em que intelectuais da escola nova estavam presentes, havia a perspectiva de constituição de um sistema nacional de educação, do qual faria parte a educação profissional e técnica. A resistência do empresariado às taxas educacionais foi negociada e o resultado, a partir de 1942, foi a criação de redes de educação profissional e técnica paralelas à assim chamada educação clássica ou propedêutica. Por essa via, as escolas técnicas federais ficaram com o Mesp e o Senai sob gestão da CNI. A divisão posta pela lei de criação do Senai e pelas leis orgânicas do ensino estabelecia três possibilidades de formação que refletiam a divisão social do trabalho e a desigualdade social dela decorrente: a formação científica e humanística para as elites, a educação técnica para formar “cabeças de obra” e a educação profissional para preparar mão de obra. No centro da argumentação estava a ideia de que a educação profissional é inerente à modernização das sociedades e de que os países mais avançados à época já tinham instituídos os seus sistemas de educação profissional.

Lourenço Filho não via a educação profissional apenas no âmbito técnico e centrado nos interesses da empresa. Havia nele uma sensibilidade para as questões sociais e para as perspectivas de inclusão social. Essa sensibilidade é demonstrada, entre outros modos, na ênfase na formação mais geral do comerciário. Segundo ele, essa formação mais ampla, típica do ensino comercial, era necessária, pois diversos jovens desprovidos de recursos econômicos, mas, “dotados de boa vontade”, poderiam encontrar um campo propício para o desenvolvimento de suas aptidões, que sem o sistema de aprendizagem, não teriam a oportunidade de desenvolver (LOURENÇO FILHO, 1949).

Com a industrialização ocorrida nas décadas intermediárias do século XX no Brasil, uma população de jovens de origem rural ou de cidades do interior deslocou-se rumo às maiores cidades em busca de melhores condições de vida. Por parte do governo, para o bem da ordem social, era preciso incorporar essa gente à razão industrial e urbana. Lourenço Filho associava a educação e o emprego como meios dessa incorporação.

Lourenço Filho fazia essa incursão histórica na formação profissional para o comércio com a finalidade de apresentar ao Senac uma perspectiva de ensino comercial referenciada no ensino ativo. A perspectiva sinalizada vinha dos estudos sobre a aprendizagem ocorridos no final do XIX e início do XX e de sua relação com a pedagogia e o com o “movimento do ensino ativo”, assim como na filosofia das “relações entre a ação e o pensamento”, ou seja, no pragmatismo. A menção ao movimento do ensino ativo na pedagogia está relacionada ao propósito da Escola Nova, movimento de renovação educacional em que o processo de aquisição do conhecimento, diferentemente da escola tradicional, surge da ação de quem aprende. Isso é salientado por Lourenço Filho, quando afirma:

[...] aprende-se observando, pesquisando, perguntando, trabalhando, construindo, pensando e resolvendo situações problemáticas apresentadas, quer em relação a um ambiente de coisas, de objetos e ações práticas, quer em situações de sentido social e moral, reais ou simbólicos4 . (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 151.)

Essa passagem revela apropriações feitas por Lourenço Filho em fontes anglo-americanas. De acordo com Schultz e Schultz (2006), do século XVII até o início do século XX, a doutrina central sobre a aprendizagem visava a demonstrar cientificamente que determinados processos universais regiam os princípios da aprendizagem, tentando explicar as causas e formas de seu funcionamento, forçando um método que visava a enquadrar o comportamento num sistema unificado de leis, a exemplo da sistematização efetuada pelos cientistas para a explicação dos demais fenômenos das ciências naturais. Muitos acreditavam que a aprendizagem estava ligada somente ao condicionamento.

Ao examinar o pensamento de Lourenço Filho em relação à aprendizagem, é possível perceber relações com o pragmatismo de William James, Charles Sanders Peirce e John Dewey, bases de formação do próprio Lourenço Filho, cujas teorias preconizam que todo o aprendizado ou todo o conhecimento deve ter um fim prático.

De acordo com o pensamento de Dewey, o ensino deveria centrar-se nas necessidades que a sociedade apresenta. Dewey também aponta a existência de dois tipos de ensino, o tradicional centrado no professor e o da Escola Nova, centrado no aluno. Dewey propõe um novo tipo de ensino, o da “escola progressista” ou “democrática”, em que cada aluno aprende fazendo e se enriquece com as experiências dos outros alunos. Dewey acreditava que se aprende participando, vivenciando sentimentos, tomando atitudes diante de fatos, escolhendo procedimentos para atingir determinados objetivos e ensina-se, não só pelas respostas dadas, mas, principalmente, pelas experiências proporcionadas, pelos problemas criados, pela ação desencadeada. Toda a perspectiva educacional de Dewey está fundamentada na experiência do aprendiz, sendo esta sua origem, objetivo e norma de toda atividade cognitiva. Para ele a cognição é o meio pelo qual o aprendiz responde às alterações de seu meio ambiente, é todo o processo que envolve a apresentação de um problema e sua solução. Isso envolve a observação do meio, o conhecimento imediato e também o reflexivo do que aconteceu no passado em circunstâncias similares e a capacidade de julgar as consequências frutos da combinação entre as observações e o conhecimento. Dewey não se contenta com que o aprendiz entenda o mundo, seu objetivo é mudá-lo. Para ele se aprende fazendo e pensando em como solucionar problemas. Dewey insistia na necessidade de estreitar relações entre teoria e prática, pois o aprendizado torna-se mais fácil quando os conteúdos estão relacionados com a vivência do aluno (DEWEY, 1971).

4. Aproximações e distanciamentos entre a aprendizagem industrial e comercial e a base dos dispositivos legais

Lourenço Filho foi um intelectual escolanovista, focalizado nas questões da aprendizagem e da formação de professores. Como mencionado, no período de 1934 a 1941 atuou no processo constituinte no Senai e das escolas técnicas federais. Além disso, como intelectual da confiança de Capanema, atuou na elaboração das leis orgânicas do ensino que resultavam em sistemas paralelos de educação: o de educação secundária, abrangendo as humanidades, as linguagens e as ciências; o de educação técnica de nível secundário; o de formação profissional, abrangendo habilidades da atividade manual. Quando foi convidado a colaborar na elaboração das singularidades do ensino e da aprendizagem comercial em 1949, Lourenço Filho colocou em circulação suas apropriações sobre a psicologia anglo-americana aplicada à educação e, ao mesmo tempo, esclareceu e defendeu as concepções presentes na recente legislação, das quais ele foi protagonista na elaboração. Um conjunto de questões abordadas é referente à natureza da atividade comercial e às singularidades do ensino comercial em relação a outros ramos da educação profissional.

Para Lourenço Filho (1949, p. 6), em virtude da natureza das atividades da indústria, de manipulação e transformação da matéria, bastaria ao “aprendiz” aprender um ofício, e poder-se-ia inclusive continuar recrutando aprendizes analfabetos, garantindo ainda assim o desenvolvimento da indústria. A atividade industrial à época era entendida como mais factível de aprendizagem nos locais de trabalho e a natureza manual e material do trabalho não exigia do trabalhador os saberes escolares. Diferente era a condição da atividade comercial, que, à época, era bem menos manual, mais imaterial e exigia certo domínio de saberes escolares para a leitura e escrita, realização de cálculos e comunicação oral. Essa diferença posta na formação do profissional das atividades comerciais tinha por base que “[...] nas atividades do comércio [...] não existem situações típicas de ‘aprendizagem’, ou perfeitamente idênticas às da indústria” (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 7). Em outros termos, se a atividade industrial taylorizada era mais padronizada, repetitiva e passível de controle, o mesmo não ocorria com a atividade comercial que era mais volátil e menos dependente de prescrições e controle.

Com isso Lourenço Filho identificava singularidades definidoras da identidade do ensino comercial. Para ele a

[...] aprendizagem da redação comercial e de elementos de contabilidade pode fàcilmente preparar um “praticante” para numerosas atividades de escritório, de balcão e de armazem. As tarefas, dada a própria variedade dos tipos de mercadoria e gêneros do comércio, e, ainda, as de “sistemas” adotados em cada empresa, são menos tipificados, e, portanto, menos suscetíveis de aprendizagem rudemente empírica. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 9.)

Lourenço Filho tinha clareza, à época, tanto das diferenças quanto das sintonias entre a indústria e o comércio, entre o ensino comercial e o ensino industrial e, portanto entre o Senai e o Senac. As semelhanças estavam na razão econômica, na vida urbana e na formação de uma sociedade de massas. As diferenças estavam na natureza da atividade laboral, seus processos de ensino e seus modos de aprendizagem. Lourenço Filho, que já atuara na elaboração das leis orgânicas do ensino e agora atuava para que o espírito das normas entrasse na cultura das instituições educativas, faz diversas referências às características que aproximavam as aprendizagens industrial e comercial e também o que as diferenciavam. Segundo ele,

[...] as semelhanças entre a aprendizagem, no comércio e na indústria, são essencialmente, as de “intenção social” ou as de organização do “instituto social que sirva aos fins do trabalhador e aos da emprêsa, de forma solidária”; e que as diferenças são, em sua maior parte, as de “processo”. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 8.)

Sobre as atividades e processos de aprendizagem, tanto na indústria quanto no comércio, aponta:

As do artezanato e, em muitos ramos, da indústria, mantiveram, embora sob regime de trabalho livre, formas tradicionais de preparação empírica, conservando a figura do “aprendiz”. As de comércio, entretanto, evolveram mais ràpidamente que aquelas, no sentido de maior exigência de instrução ou de cultura geral, bem como de certos atributos de personalidade, criando o tipo de “praticante”, ou e “auxiliar”. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 8.) (Grifos nossos.)

No artezanato e na indústria, qualquer que seja seu fim o objeto do trabalho é uma coisa, uma substância, matéria a ser transformada. No comércio, a mercadoria não é transformada, mas apenas deslocada, classificada, armazenada, escriturada, exposta, vendida, embalada, entregue. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 9-10.)

A Lei Orgânica do Ensino Comercial (Decreto-Lei, n.o 6.141/1943) não estabeleceu a “ordem de ensino” da aprendizagem. Segundo Lourenço Filho (1949, p. 10-11), essa ausência de prescrição era correta, pois: “a definição de ‘aprendizagem’, estabelecida na lei, e a das funções do órgão preposto a organizá-la e dirigí-la, no comércio, bastante difere da conceituação estabelecida para as atividades da indústria, por muito mais amplas, ou gerais.”

Assim como há esta diferença entre a generalidade e a materialidade das atividades e entre uma e outra forma de aprendizagem, Lourenço Filho cita a lei que evidencia o fato e ainda versa sobre a diferença entre o termo aprendiz, utilizado nas definições do ensino industrial, e o praticante, atribuído àquele que aprende as atividades comerciais, formalizando o que inicialmente parecia tratar-se de um hábito. Trata-se do Decreto-Lei n.o 8.622, de 10 de janeiro de 1946, que “[...] dispõe sobre a aprendizagem dos comerciários, estabelece e deveres dos empregadores e dos trabalhadores menores relativamente a essa aprendizagem” (BRASIL, 1946).

Êsse caráter de generalidade, evidencia-se no decreto no 8622, de 10.1.46, que “dispõe sôbre a aprendizagem dos comerciários”. Se, no diploma legal, anteriormente citado, já não se aplicava expressamente o nome de “aprendiz” para menores empregados no comércio (que ficava, no entanto, subtendido) nesta nova lei, adota-se o nome de ‘praticantes’ para a sua designação (artigos 1o, 2o, 3o, 4o, 5o e outros). (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 11.)

E em caráter de definição legal sobre aquele que se considera praticante na aprendizagem das atividades comerciais “[...] estabelece-se preferência para admissão como ‘praticante’ a ‘estudantes de cursos comercial de formação’ e ‘alunos que tenham iniciado cursos no SENAC’ (artigo 2o do decreto lei n. 8 622, citado)” (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 11).

Havia, segundo Lourenço Filho, uma separação entre o conteúdo ministrado no ensino para a indústria e o que era observado na produção industrial. Fato semelhante ocorria com as atividades comerciais, ou seja, o que era visto no ensino formal das escolas de comércio era diferente do trabalho desenvolvido nas empresas comerciais. Entretanto, em relação às técnicas e instrumentais do trabalho, seja na indústria, no comércio ou no serviço público essa separação era menos severa.

Lourenço Filho salientava a necessidade de reavaliar a forma como a aprendizagem empírica ocorria nos locais de trabalho de modo a alinhar esse processo com o do ensino escolar ao qual a atividade estivesse relacionada. Assim, segundo Lourenço Filho (1949), a exemplo dos modelos experimentados nos EUA, França e Suíça, no Brasil também se adotou o sistema dos serviços de aprendizagem, do “ensino de continuação”, o de “cursos práticos” ou de “ensino auxiliar”.

À época, os acordos de cooperação eram firmados com escolas de comércio, na maioria particulares, que ofereciam a infraestrutura necessária para o funcionamento dos cursos, como aparelhamento escolar, corpo docente e direção dos cursos. O Senac, por sua vez, era responsável pelos programas e pela orientação pedagógica, além do apoio financeiro e da supervisão do processo.

Lourenço Filho, na passagem da primeira metade do século XX, empenhava-se em convencer o empresariado brasileiro da importância da educação profissional e incitava os empresários a serem protagonistas. E toda a argumentação de Lourenço Filho era ancorada nas dimensões técnica, social e humana da educação profissional.

O problema interessa, antes de tudo, às emprêsas que, por êsse meio, passam a intervir diretamente na formação de seu pessoal. Mas a elas não interessa só por êsse lado, que poderíamos chamar o aspecto “técnico”. Interessa também pelo aspecto social, ou amplamente humano, pois a “aprendizagem” pode ser utilizada como recurso de melhor ajustamento dos trabalhadores, como redução dosconflitos individuais. Havendo sistema amplo de “aprendizagem”, como as características apontadas, muitos jovens, desprovidos de recursos econômicos mas dotados de boa capacidade intelectual, poderão encontrar campo propício para pleno desenvolvimento de suas aptidões, dentro do próprio ramo de trabalho que escolheram, ou a que simplesmente hajam sido levados por necessidade. A “aprendizagem comercial”, nessa forma, facilitar-lhes-á oportunidades de “orientação profissional e educacional”, que de outra forma, nunca chegaria a encontrar. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 7-8.) (Grifos nossos.)

Lourenço Filho pensava a educação profissional tendo como referências a técnica, as habilidades mentais e manuais relacionadas à prática profissional, a moral (pontualidade, honrar a palavra), o civismo (a vida na cidade e a convivência) e o humanismo (solidariedade). Não há em Lourenço Filho referências à competição e competitividade, ao lucro, ao mercado; não há ênfase na empresa nem nos interesses do capital. Lourenço Filho pensava a educação profissional numa perspectiva republicana, democrática, cívica, solidária. Em outros termos, ao conclamar o empresariado para o protagonismo na educação profissional, Lourenço Filho não atribuía primazia aos fatores econômicos e à técnica nem reduzia o homo à condição de recurso humano. Lourenço Filho assim procedia sem arredar pé do darwinismo social e do funcionalismo, típicos da angloamericanidade. Os fatores humano e social na educação profissional são justificados pelo “ajustamento dos trabalhadores” e pela “redução dos conflitos”.

Nas as décadas de 1930 a 1950 o engenheiro suíço Roberto Mange atuou no desenvolvimento do ensino profissional no Brasil. Suas ideias sobre a racionalidade científica e seu uso na formação profissional foram amplamente difundidas e permitiram a modernização do ensino. Mange defendia o uso das séries metódicas como forma de padronização do ensino e ainda a realização da seleção pela psicotécnica. Estas eram ideias que já circulavam nos EUA e na Europa e representaram um avanço, pois uma seleção com caráter científico permitiria que “[...] fossem encaminhados somente aqueles possuidores de aptidões indispensáveis ao bom desempenho das atividades” (FONSECA, 1986, p. 227).

Esse método de racionalização do trabalho é citado por Lourenço Filho, reforçando-se a compreensão de que tais modelos representavam uma inovação no ensino profissional e atendiam à demanda estabelecida pelo país na época.

Na própria indústria moderna, mesmo em relação a certos ofícios típicos, tem-se verificado, ademais, que as condições de cultivo geral e que mais racionais sistemas de ensino, desde que associados ao trabalho regular, tem como resultado maior progresso individual e social, expresso, antes de tudo, pela redução do praso da “aprendizagem”. [...] Para isso, apenas se teve de proceder à ligeira seleção psicotécnica entre os candidatos à aprendizagem, e dar “normalização” aos exercícios das técnicas a serem aprendidas. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 8-9.)

Por outro lado, tem-se verificado que, em aprendizes da indústria assim orientados, existe muito maior facilidade de adaptação, na passagem de umas para outras técnicas - exigência de organização da moderna indústria, em constante aperfeiçoamento, e recurso de ‘racionalização’ para combater a monotonia dos trabalhos das fábricas. Êste fato tem sido já verificado, também entre nós, em estudos no SENAI. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 9.)

A formação dos aprendizes com base na racionalização científica observada no Senai e citada por Lourenço Filho havia sido instituída como modelo de trabalho do Idort, instituto do qual Lourenço Filho fazia parte. Essa proposta com bases na psicotécnica, para a incorporação dos princípios da ciência psicológica e da psicometria nos métodos de seleção e formação profissional e o surgimento dessas escolas voltadas à seleção e formação do jovem trabalhador, fazia parte do projeto de construção de um modelo de modernidade para o país, que articulasse os saberes médicos (especialmente os cuidados com o corpo e com a higiene), os saberes educacionais (com a tarefa maior de construção da nacionalidade a partir da formação moral e instrução técnica dos brasileiros) e os saberes da engenharia - aos quais caberiam as preocupações com a organização dos pequenos espaços aos grandes espaços do trabalho, além dos espaços de circulação de pessoas e mercadorias. Aliados a estes saberes ainda estaria a aposta num padrão de ciência racional, cartesiana e positivista (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994).

Lourenço Filho (1949) menciona também a experiência do Cfesp como exemplo da preparação racional e metódica dos trabalhadores:

Este fato tem sido largamente comprovado, em muitos países, e, mesmo em nosso meio, como se vê das observações do Centro de Preparação Ferroviário, de São Paulo, pelas quais se tem apurado que certos tipos de trabalho podem ser adquiridos em quatro mêses, ao invés de o serem em quatro anos, como anteriormente. (LOURENÇO FILHO, 1949, p. 9.)

As práticas desenvolvidas no Cfesp demonstravam as especificidades dessa escola, que, embora se diferenciasse das de ensino regular, chamava para si procedimentos que estavam vinculados à educação escolar naquele período: organização de classes homogêneas, seleção de alunos, orientação vocacional, seriação, exames, crença no papel regenerador da educação, vinculação entre escola, educação, higiene e saúde como vetores para a construção da nação e, em especial, a inclusão dos conhecimentos produzidos pela psicologia experimental, então considerados alicerces de uma pedagogia científica.

O método e as práticas adotados no Cfesp, que separavam o espaço dos aprendizes no espaço da fábrica e utilizavam o método das séries metódicas, já era praticado por Roberto Mange, segundo o qual o mestre-instrutor do modelo anterior de ensino era substituído e com isso se evitava o que antes ocorria durante a formação, ou seja, “[...] os aprendizes são jogados na oficina de trabalho, aprendem como querem e como podem e não raro copiam processos defeituosos de trabalho, adquirem vícios” (MANGE, 1932, p. 16).

Em 1946, assim como ocorrido com a aprendizagem industrial, a aprendizagem comercial recebeu um serviço de preparação e formação para o trabalho comercial, o Senac. Entretanto, diferentemente do que acontecia com o trabalho industrial, as atividades do comércio apresentavam-se de forma mais volátil, tornando assim mais difíceis de ser aprendidas de forma empírica (LOURENÇO FILHO, 1949). Por este motivo o ensino comercial não se beneficiou tanto da racionalização da forma que se desenvolveu no ensino industrial, não se utilizando, por exemplo, das séries metódicas.

A reforma do ensino comercial de junho de 1931, com o Decreto-Lei n.o 20.158, apresentou procedimentos para sua operacionalização e organização. Destacam-se exigências quanto ao laboratório ou escritório-modelo, essencial para as aulas práticas de comércio, que as escolas comerciais deveriam criar e manter para reproduzir as partes envolvidas nas relações comerciais. O escritório-modelo seria um laboratório equipado nos moldes de um escritório de atividade econômica, com todos os documentos e procedimentos utilizados nas relações comerciais. Nos horários das aulas e nas atividades no escritório-modelo com a orientação dos professores, os alunos deveriam exercer os cargos e as posições que tratam das relações comerciais. Todo aluno exercia os cargos e funções de proprietários, colaboradores, fornecedores e clientes ao longo do curso (NASCIMENTO, 1999).

Verifica-se, na exposição dos motivos da legislação de 1931, a preocupação com a formação de líderes para encaminhar o processo de desenvolvimento da economia nacional, por meio da criação de empresas modernas e prósperas. Segundo esse documento, o papel da escola não é o de formar apenas executores de tarefas, mas, sim, líderes. Sobre esta questão Almeida faz (1937, p. 147) as seguintes observações:

Não devemos preparar nas escolas técnicas, apenas empregados, artífices, trabalhadores hábeis, mas sim capacidade de ambição para todos os postos. Devemos preparar brasileiros competentes, cheios de iniciativa e compreensão e capazes de ir subindo a todos os pontos e ocupar posições de comando na economia nacional. Saibamos fazer agora, em todas as nossas escolas, centros de atividade, de modo a educar homens não para serem dirigidos, mas para dirigir o seu próprio pensamento, a sua própria ação e, si for necessário e possível, grandes empresas e a riqueza nacional.

Nesse aspecto da veneração da ciência e de sua capacidade de conduzir o progresso, Lourenço Filho e outros intelectuais da educação à época revelam uma relação de afinidade com o positivismo de Comte e Durkheim. Fernando de Azevedo era um intelectual da educação que fazia circular no Brasil as ideias de Durkheim. A educação proposta por Durkheim combinava racionalização científica e formação moral, no sentido de formação cívica. É a partir dessa combinação entre ciência e moral, aplicada à indústria, que Durkheim vislumbrou, no auge do otimismo da belle époque, um futuro de solidariedade orgânica. Azevedo era conviva de Lourenço Filho, que trabalhava com Francisco Montojos e tinha relações com Roberto Mange. Nos escritos de todos eles há essa ênfase na formação científica e moral dos trabalhadores urbanos. Essa ênfase na moral do trabalho era o que prevalecia na EP desde os primórdios da república brasileira. A partir dos anos 1940, a educação profissional enfatizará a técnica, mas a formação de hábitos permanecerá. Parece que é para atender à demanda da formação de hábitos que a moral do trabalho permanece na EP dos anos 1940 em diante, a despeito da forte chegada da técnica.

Isso permite pensar no modus operandi da racionalidade dos intelectuais da educação profissional à época. Havia uma forte presença das referências vindas dos EUA. Nessa época, como já mencionado, vários intelectuais e homens de negócio visitaram os EUA, por lá permaneceram temporadas e alguns até cursaram mestrado na Universidade da Columbia. Foi um período de intensa circulação de ideias anglo-americanas no Brasil. Ocorre que esses intelectuais brasileiros que estavam descobrindo os EUA eram quase todos herdeiros de clássicas formações marcadas pelo catolicismo e pela literatura europeia. Em suas racionalidades manifestas na EP havia presença simultânea de elementos culturais europeus e anglo-americanos e essa combinação entre moral, ciência e técnica é um exemplo.

Nesse ambiente dos anos 1930-1950, a Escola Nova, concebida como um movimento pedagógico iniciado no final do século XIX como alternativa para a educação tradicional, preconiza a passagem da educação centrada no ouvir para uma educação centrada no agir, no fazer e no produzir. Seu argumento principal era referente à formação da personalidade integral do aluno e sua participação ativa no processo de aprendizagem (COTRIM, 1987).

E a recomendação de funcionamento do ensino comercial com laboratório ou escritóriomodelo reporta-nos ao pragmatismo de Dewey. Sobre esta observação Piletti e Piletti (1997, p. 143) sintetizam: o “professor Dewey preocupou-se com o lado prático, pragmático da educação, principalmente, com a adequação desta ao meio e à evolução social”.
A proposta de existência de um laboratório nos cursos de formação comercial pressupõe a utilização da teoria para a transformação da experiência por meio da ação. Dessa forma a passagem do ensino centralizado no professor para a aprendizagem do aluno equivale à valorização do aluno, que participa como protagonista do processo. Ele aprende aquilo que vivencia, ou seja, ele atua durante o processo, não sendo apenas dirigido pelo mestre.

5. Considerações finais

A trajetória de Lourenço Filho como professor de psicologia teve início nos anos de 1920 na Escola Normal de Piracicaba, em São Paulo e estendeu-se até 1957, quando se aposentou na cátedra de psicologia educacional da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Sua vasta obra escrita e intensa atividade profissional ao longo da vida tiveram o intuito de organizar no Brasil a psicologia aplicada à educação, com base no pragmatismo. Lourenço Filho buscou, no Brasil, estabelecer essa psicologia como campo científico, dotado de terminologia e meios próprios de investigação e, também, disciplina acadêmica incumbida de transmitir um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos. Apresentou a organização e a difusão de conhecimentos psicológicos no campo educacional, por meio do ensino de psicologia em diferentes cursos de formação de professores e da construção de instrumentos psicológicos de avaliação.

Um dos objetivos deste artigo foi identificar e analisar as matrizes e bases epistemológicas da psicologia que fundamentaram o pensamento e a atuação de Lourenço Filho em relação à aprendizagem profissional, particularmente a comercial. Buscou-se entender a presença de Lourenço Filho na EP como intelectual mediador que levou para o ensino comercial a concepção de aprendizagem da psicologia funcionalista anglo-americana e, a partir dela, elaborou as particularidades do trabalho no comércio, da aprendizagem comercial e do ensino comercial. Tudo isso mediante comparações com a indústria, com a aprendizagem industrial e o ensino industrial.

A análise da interlocução com o Senac revelou correspondências entre o pensamento de Lourenço Filho e as referências estrangeiras da psicologia que ele fez circular em suas elaborações sobre a aprendizagem profissional. Ao considerar que a aprendizagem significa preparação para uma profissão, mediante o exercício do próprio trabalho em fábricas, oficinas e empresas, tratando especialmente de sua oferta aos jovens aprendizes, Lourenço Filho revela suas referências. O fato de relacionar o aprendizado à experiência prática remete-nos ao princípio do “aprender fazendo”, do aprender de forma prática, característico do pragmatismo anglo-americano, o que, segundo as ideias vigentes à época, estaria colaborando na formação do profissional para atender às demandas de indústria.

Essas correspondências foram encontradas a partir do exame da trajetória de Lourenço Filho como intelectual da educação. É notável seu empenho dedicado à formação de professores para a prática em sala de aula e para o domínio dos saberes profissionais. Uma de suas preocupações era a de que os alunos tivessem oportunidades iguais em todos os lugares do país e para isso era preciso que os métodos fossem unificados e, não, as pessoas. E foi questionando os moldes da educação na sua própria organização social que ele via a possibilidade de melhoria da educação. Para Lourenço Filho faltava técnica, além de princípios racionais e científicos. Essas preocupações fizeram-no promover modificações nas práticas educacionais nos vários lugares em que ocupou cargos públicos.

Com os amigos Anísio Teixeira e Fernando Azevedo, junto a outros intelectuais, Lourenço Filho foi protagonista no movimento da Escola Nova. Esse projeto defendia a ideia da escola “sob medida”, mais preocupada em adaptar-se a cada criança do que em encaixar todas no mesmo molde, e que julgava que o interesse e as atividades dos alunos tinham papel determinante na construção de uma escola ativa. Defendida principalmente pelo filósofo anglo-americano John Dewey e pelo suíço Edouard Claparède, a Escola Nova era para Lourenço Filho de grande importância, pois os limites da sala de aula, locais em que os alunos estivessem sempre em silêncio ou sem qualquer comunicação entre si, deixavam de existir para tornar-se pequenas sociedades, que imprimem nos alunos atitudes favoráveis ao trabalho em comunidade e facilitam a aprendizagem.

A formação de professores para o ensino profissional considerava aspectos relacionados à aprendizagem propostos pela psicologia anglo-americana, como a organização dos meios educacionais e escolas para tornarem a aprendizagem mais eficiente. Algumas etapas do processo de aprendizagem, de acordo com a corrente psicológica anglo-americana de base funcionalista, eram também consideradas por Lourenço Filho e apresentadas em seus escritos.

São exemplos dessas considerações a motivação e o despertar do desejo: sem motivação não há aprendizagem. Recompensas e punições também não resolveriam se o aluno não desejasse aprender. Em relação ao objetivo da aprendizagem, o comportamento seria sempre intencional, isto é, orientado para um objetivo que satisfizesse alguma necessidade do indivíduo. Em educação, o pragmatismo considera importante que os objetivos propostos pela escola e pelo professor coincidam com os objetivos do aluno. Sobre a preparação ou prontidão, de nada adiantaria o indivíduo estar motivado, ter um objetivo, se não fosse capaz de atingir esse objetivo para satisfazer sua necessidade. Como exemplo, não adiantaria ensinar determinados tipos de equações antes que o aluno tivesse capacidade mental para operações abstratas. E, finalmente, em relação aos obstáculos: se não houvesse obstáculos, não haveria necessidade de aprendizagem, pois bastaria o indivíduo repetir comportamentos anteriores.

Esta psicologia, de base funcionalista, propunha que as situações problemáticas a serem resolvidas em eventos de aprendizagem deveriam corresponder a situações práticas, situações reais e passíveis de estar inseridas no cotidiano dos aprendizes. Essa forma de ensino facilitaria o aprendizado, produzindo, assim, o que era desejado pela formação profissional da época, ou seja, o profissional capacitado para atender às demandas propostas pela indústria e pelo comércio.

O recorte temporal da abordagem elegeu os anos de 1930 e 1950 para análise das proposições de Lourenço Filho para o ensino profissional. Nesse período o Brasil estava vivendo um boom de industrialização e crescimento econômico. Os conceitos e temas oriundos da psicologia anglo-americana foram apropriados para fundamentar as propostas para o ensino profissional, uma vez que necessitava de uma educação de massas e que o trabalho qualificado passava a ser utilizado na indústria em desenvolvimento. Sendo essa uma situação inédita, coube aos dirigentes e intelectuais apropriarem-se de conhecimento, ideias e práticas para lidar com as exigências da era industrial e urbana. Exigências que apontavam necessidades de um ensino sistematizado e racional, com base na experiência e vivência prática do ensino. A psicologia anglo-americana, fundamentada na base de compreensão “bio-psico-social” do indivíduo, visava a preparar o homem completo para atuar nesse novo cenário, respondendo à necessidade da utilização de conceitos e instrumentos científicos de medida que garantissem a adaptação dos indivíduos a essa nova ordem capitalista de organização do trabalho, o que se manifesta tanto na indústria quanto na escola.

Em síntese, ao identificar e analisar as elaborações anglo-americanas sobre a psicologia da aprendizagem profissional que fundamentaram o desenvolvimento dos trabalhos de Lourenço Filho, especialmente os que abordassem seus escritos dedicados ao ensino comercial, compreendeu-se que esse embasamento, não apenas teórico, mas também prático expresso pela firmação do acordo entre Brasil e EUA por ocasião da CBAI, alicerçaram o fundamento de toda uma condução da psicologia relacionada à aprendizagem e a educação no Brasil.

A psicologia anglo-americana contribuiu para a constituição do campo educacional brasileiro como uma das ciências que serviram de base para a formação de professores e para as discussões educacionais, ao mesmo tempo em que, nesse período, o campo educacional forneceu elementos importantes para a psicologia que serviram de base à sua constituição como campo científico reconhecido no país. Nesse cenário, o pragmatismo anglo-americano apresenta-se como uma visão de mundo centrada na lógica do desenvolvimento capitalista que exigia nova divisão técnica do trabalho, uma expansão da atuação do Estado e a diversificação profissional. A proposta de base pragmática era que as técnicas arcaicas fossem substituídas pelas técnicas modernas e que fossem empenhados esforços para estabelecer novos parâmetros de racionalidade com fundamento científico, o que consequentemente ocorreria no meio acadêmico.

Especialmente em relação à experiência de formação profissional, significa dizer que as proposições de psicologia anglo-americanas foram usadas no Brasil para estabelecer algo novo, para sistematizar um ensino que nunca antes havia encontrado tal necessidade. A psicologia angloamericana encontrou no Brasil um terreno fértil para sua disseminação e cumpriu um papel de embasar o desenvolvimento do sistema de ensino profissional. Isso se deve ao fato de ter o próprio Lourenço Filho produzido uma quantidade considerável de materiais que relacionam a psicologia anglo-americana ao campo da educação, não só profissional como a infantil.

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Notas

4 As citações de Lourenço Filho estão em conformidade com as normas gramaticais da época referenciada.

Autor notes

1 Doutor em Educação: História, Política, Sociedade (PUC-SP). Pós-doutorado em Geografia Humana (IGC-UFMG); Docente do ensino superior no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Professor nos PPG em Educação Tecnológica (acadêmico) e Educação Profissional e Tecnológica (profissional). E-mail: jgpedrosa@uol.com.br.
2 Graduada em Psicologia (UEMG), mestra em Educação Tecnológica, Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica (CEFET-MG). E-mail: flaviaduenhas@yahoo.com.br.
3 Graduada em Administração (UnilesteMG), mestra em Educação Tecnológica (CEFET-MG). E-mail: niveamtr@yahoo.com.br.
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