Editorial
NOTAS SOBRE UNIVERSIDADE E DEMOCRACIA
NOTAS SOBRE UNIVERSIDADE E DEMOCRACIA
Revista Tópicos Educacionais, vol. 26, núm. 1, pp. 222-231, 2020
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Recepção: 1 Fevereiro 2020
Aprovação: 1 Maio 2020
Resumo: O ensaio trata de uma estranha relação: a da universidade com a democracia. Nele, defendemos a tese de que a universidade sempre teve e sempre terá dificuldades em estender os atributos da democracia ao conjunto de seus segmentos, e permanecerá como uma corporação de professores, inclusive, estabelecendo no interior deste específico segmento, padrões hierárquicos e meritocráticos que se aproxima claramente dos estamentos aristocráticos. Mostra a função “restauradora” da meritocracia e de como os alunos, vistos como segmento “provisório” e incapaz de assumir responsabilidades acadêmicas e administrativas, serão mantidos sempre à margem dos processos decisórios. Esta resistência tem uma razão: a confusão entre saber e conhecimento, entre instituição e organização, entre saber e poder, entre fins e meios de uma instituição e, no fundo, ela teme que uma eventual “politização” de suas decisões colonize o território científico que ela, supostamente, pretende defender e preservar.
Palavras chave: universidade, democracia, meritocracia, politização.
Abstract: The essay deals with a strange relationship: that of the university with democracy. In it, we defend the thesis that the university has always had and will always have difficulties in extending the attributes of democracy to the set of its segments, and will remain as a corporation of professors, including, establishing within this specific segment, hierarchical and meritocratic standards that are it clearly approaches aristocratic estates. It shows the “restorative” function of meritocracy and how students, seen as a “provisional” segment and unable to assume academic and administrative responsibilities, will always be kept at the margin of decision-making processes. This resistance has a reason: the confusion between knowledge and knowledge, between institution and organization, between knowledge and power, between ends and means of an institution and, deep down, it fears that an eventual “politicization” of its decisions will colonize the scientific territory that she is supposed to defend and preserve.
Keywords: university, democracy, meritocracy, politicization.
O espírito aristocrático que animou a Academia de Platão moldou, de alguma forma, boa parte de nossas instituições superiores de saber e conhecimento. E mesmo que nossas universidades modernas devam pouco à experiência grega clássica, há algumas idéias que permaneceram com uma curiosa estabilidade, mesmo depois de a democracia ter deixado de ser exclusivamente um regime de governo (uma relação entre cidadão e estado) para se transformar, em nossa contemporaneidade -como dizia Lipovetsky- em um estilo de vida! E estas concepções elitistas e aristocráticas de universidade atravessaram toda a modernidade: de Alfred Whitehead ao Acordo de Bolonha, passando por Heidegger, Humboldt, Ortega y Gasset e até Habermas ou, entre nós, um José Artur Giannotti (A Universidade em ritmo de barbárie), a clave foi uma só: como o acesso ao saber está reservado a poucos numa sociedade em que sua distribuição não atinge a todos indistintamente, conclui-se que o governo deste saber (em outras palavras a gestão universitária) também não pode ser exercida por qualquer um. No máximo, os autores concordam que a relação entre universidade e sociedade deva ser “democrática”, no sentido da difusão do conhecimento e do atendimento das solicitações sociais. Mas nunca está em questão a administração deste saber de forma democrática! A interrogação de fundo, pois, é simples e direta: a universidade pode suportar (e até onde?) a democracia? Qual o significado da atual linguagem “meritocrática” e privatista em franca expansão entre nós? Ela é ou não compatível com a democracia?
Princípio com uma advertência: não existe “gestão democrática” in abstrato, pairando sobre todo e qualquer modelo de universidade, como uma entidade universal e aplicável a qualquer caso, um ente metafísico desencarnado e que, dependendo apenas da vontade política dos agentes, ele se incorporaria numa administração.
As instituições superiores de ensino, modernamente pensadas para dar respostas a questões como a “construção nacional”, a “formação da elite dirigente”, a “identidade cultural da nação”, as “solicitações da sociedade”, as “transformações que a sociedade necessita”, “refletir o espírito de uma época”, a formação de “quadros para o desenvolvimento econômico”, ou transmitir o “saber de alto nível entre gerações”, etc., têm dificuldade em conviver internamente com um regime democrático amplo de escolha de seus dirigentes e de seus projetos, já que, como dissemos, o critério de qualidade exigido pelo saber não é compatível com o critério de quantidade (maioria) fixado pela democracia. O risco seria muito elevado de entregar à ignorância - ao “não-saber”- o comando da Pólis universitária! Enquanto a universidade esteve dirigida apenas a setores muito exclusivos da sociedade, com um forte sentimento de casta intelectual e de pertencimento a um estrato diferenciado encarnado numa corporação (e o espírito de corporação é absolutamente incompatível com democracia), este problema não se colocou jamais. Ele surge no momento em que, na sociedade de massas, com o acesso cada vez menos restrito aos bens de consumo, o próprio saber -aos poucos também entendido como “mercadoria” e, portanto, sujeito aos mesmos mecanismos da compra e venda- o saber, repito, também passa a ser ‘consumido’. É praticamente inútil fazer da universidade o lugar da crítica à produção e ao consumo alienado e desumanizante, na medida em que ela mesma, a universidade contemporânea, também se tornou um lugar de consumo e de produção: consumo de informações com vistas à acumulação de capital simbólico (variável e volátil como as modas intelectuais) ou de profissionalização técnica (para atender às demandas do mercado), e produção de conhecimento (baseada em critérios quantitativos de aferição - artigos e papers produzidos). Percebe-se que já se abre aqui uma primeira tensão em nossa configuração universitária: o critério de quantidade (maioria) é considerado perigoso para definir o modelo de gestão, mas é aceitável para avaliar a produtividade docente (que deveria ser uma questão de qualidade!).
A pressão das massas, sobretudo nos países de capitalismo mais avançado, em ter acesso ao ensino superior - especialmente após os eventos de maio de 68 na França, abrindo a universidade francesa para as classes médias e posteriormente absorvendo 80% de uma classe etária, e no caso do Brasil, durante o regime militar, com a expansão das faculdades privadas-, terminou colocando no cardápio universitário a questão da democracia. Inicialmente no acesso, em seguida nas relações pedagógicas e finalmente na participação da gestão dos diferentes órgãos administrativos (Conselhos, Comissões, Fóruns, Plenos, etc.). O surpreendente é que sempre que, na Universidade, expulsamos os detritos autoritários e elitistas pela porta, em nome da democracia, eles voltam pela janela! Como se estivéssemos numa sessão freudiana, eis que nos deparamos com o “retorno do recalcado”.
Sob a influência das pedagogias ativas ou novas (pelo menos em alguns cursos) houve de fato uma horizontalização das relações pedagógicas em que a figura autoritária do Magister Dixit não é mais bem aceita; o sistema de créditos (instalado entre nós com a Lei Meira Matos de 68, copiado da universidade americana), por exemplo, deveria permitir que o próprio aluno estabelecesse o seu perfil formativo e assumisse a responsabilidade de persegui-lo e, finalmente, uma difundida (e raramente praticada!) relação “dialogal” ganhou em alguns cursos foros de exigência moral! Quanto à participação dos discentes na administração, esta terá ainda que esperar um futuro surto democratizante, um outro Maio de 68, e terão que se contentar, por enquanto, com a paridade e com direitos a “voz sem voto” e representações minoritárias nos órgãos deliberativos! A mesma coisa se diga dos funcionários técnico-administrativos. A conclusão é mais ou menos evidente: o poder universitário continua exclusivo (ou quase) daqueles que detêm um saber específico e simbolicamente superior aos outros saberes (os professores), uma vez que alunos e técnicos também detêm “saberes”. Platão (o primeiro e declarado inimigo da democracia), posso vê-lo daqui, exulta e esfrega as mãos!
Mas, se houve certa democratização das relações pedagógicas universitárias, entre professor e aluno, entre os próprios docentes abriu-se um cada vez maior fosso hierárquico. E é aqui onde o que se ganha de um lado, perde-se do outro!
Tomemos, para efeito de meu argumento, a relação entre ensino e pesquisa, dois pilares do tripé institucional universitário. É curioso que o ensino tenha quase saído do foco das atenções docentes! É cada vez mais raro ver alguém preocupado em ser um “bom professor”, preparar e ministrar uma ótima aula. Aliás, a própria noção de “aula” vai perdendo seu sentido e se transformando em tediosos seminários ou simples leitura, pelo professor, de slides projetados por datashow, seja na idéia de “sala de aula invertida. O professor preocupa-se com o financiamento da pesquisa, o próximo edital do CNPq, o relatório de atividades e a prestação de contas, a publicação de artigos em revistas indexadas, a participação no próximo congresso da área, as articulações políticas para as comissões oficiais! Vivi uma época em que ainda se falava de “grandes professores”, de “Mestres”: homens eruditos, dedicados exclusivamente à sua ciência, portadores, além do domínio técnico e bibliográfico de suas matérias, de uma compostura moral que emprestava às suas disciplinas uma aura de dignidade e respeito, hoje desaparecida. Mestres, repito, como Armando Souto Maior, Amaro Quintas, Milton Bacarelli, Jarbas Maciel, Edson Bandeira de Melo, Mário Márcio de Almeida Santos, Ariano Suassuna, Gláucio Veiga, José Antônio Gonsalves de Melo... com quem tive a honra e a sorte de estudar.
A partir dos anos 70, entre nós, inicia-se através de iniciativas federais, a instalação de cursos de pós-graduação (mestrados e posteriormente os doutorados), uma época, digamos, “heróica” em que um trabalho de tese (como se chamava a Dissertação) levava muitos e muitos anos e os professores publicavam segundo um plano pessoal e voluntário e não segundo exigências institucionais. Meu orientador de mestrado, Marco Antônio de Oliveira Paes, por exemplo, só publicou um único livro na vida, um opúsculo didático sobre a Idade Média, mas conhecia literatura cortesã ibérica, do século XV, como poucos... Foi com a instauração destes cursos de pós-graduação que começou a se criar a distância hierárquica a que me referi, entre os próprios docentes universitários, deslocando o foco do ensino quase que exclusivamente para a pesquisa, doravante mais que lugar de produção de conhecimento ou saber, lugar simbólico de auferição de prestígio: aquele professor que “não tem projeto de pesquisa” - o que já comporta uma carga de inferiorização e desonra entre os pares- é condenado a... dar aula(!), podendo “pegar” até quatro turmas semanais. Que humilhação!!! A sala de aula de graduação tornou-se, assim, um lugar simbolicamente inferiorizado e tratar com os alunos de graduação virou algo a ser devidamente quantificado no chamado “esforço acadêmico” e, quando possível, entregue diretamente aos “substitutos”. São raros os professores que ainda encontram prazer e interesse no ensino de graduação. O problema é que fomos todos conduzidos a este sistema quase sem perceber e hoje, mesmo percebendo aonde tudo isto levará: à autofagia acadêmica! E continuamos a participar do jogo, numa espécie de “alienação consciente”, se me permitem usar este oximoro!
Mas, entre aqueles que “têm projeto de pesquisa” há também hierarquias especiais: pesquisa financiada por órgãos de fomento (ou empresas privadas) e pesquisa não financiada! Um conhecido diretor de Centro desta universidade chegou a propor, numa reunião do Conselho Universitário, que a distribuição de verbas (federais!) para os Centros se dessem em função da quantidade de recursos financeiros que os pesquisadoresde cada unidade- fossem capazes de captar no mercado: quem capta mais, ganha mais! Não fica difícil, aqui, vislumbrar o destino que eventualmente espera as Ciências Humanas!
No entanto, um modelo como este, que estamos vendo se implantar rapidamente entre nós, não se sustenta sem uma viga ideológica ao mesmo tempo frágil e sedutora: esta viga chama-se Meritocracia.
Em seu rigor originário, a palavra deveria significar “governo do (ou pelo) mérito”, mas a etimologia não explica em que contexto o termo e a idéia foram gerados e, sobretudo, que contrabandos semânticos foram insidiosamente introduzidos no uso atual do termo.
Em Condorcet ou em Le Pelletier de Saint Fargeau (revolucionários franceses preocupados com a origem da escola republicana) a idéia de meritocracia sugeria a ruptura com o Antigo Regime: não seria mais o nascimento, o sobrenome, o estamento que determinaria nem a ocupação dos cargos públicos, nem a representação política, herdados da ordem aristocrática. O mérito pessoal, avaliado pelo talento e pelas qualidades “naturais” de cada um, assentado no princípio do “individualismo” (e não no do pertencimento a uma ordem estamental) marcaria doravante o novo ordenamento republicano: eis o sentido, por exemplo, do concurso público. Mas, se os talentos individuais são distintos e os valores com os quais os julgamos também (“fidelidade” ou “bravura” na ordem feudal; “etiqueta” na ordem cortesã; “virtude” [republicana] na ordem burguesa) seria preciso um instrumento social de correção das desvantagens e deficiências presumivelmente “naturais” de talento: eis a função da escola pública, laica, gratuita e universal após 1789, em que a medida de aferição do mérito se situaria doravante no talento individual (ou em termos modernos, na competência).
A universalidade da escola republicana ficava expressa em instâncias tais como o currículo igual, fardamentos iguais, a avaliação ‘cega’, livros didáticos gratuitos para todos, merenda única, etc., (até hoje, na França, se o aluno quiser, pode, dobrando e colando uma aba da prova, esconder a autoria do exame que só será conhecida no momento da entrega dos resultados). Mas, o acesso universal à escola esbarrou, no entanto, no beco sem saída de toda meritocracia: o talento, a vocação ou a competência subjetiva têm um forte componente social (e de classe) e, assim, oferecidas as condições iguais de partida, se o indivíduo fracassa na chegada, a culpa é exclusivamente dele!
Isso faz lembrar os antigos e esquecidos “testes vocacionais”. Depois que se descobriu que crianças pobres tinham “vocação” para ser pedreiro, policial e motorista de ônibus, e filho de rico tinha “vocação” para ser médico, empresário ou engenheiro, constatou-se o óbvio: a vocação (e para nosso caso, o “mérito devido ao talento”) não são atributos unicamente subjetivos ou dependentes de um “esforço individual”. Entre outras, isto significa que aqueles que rezam pela cartilha da meritocracia não suportam o atual sistema de cotas para a Universidade, que cumpre numa sociedade desigual e hierárquica como a nossa, a mesma função que o princípio meritocrático cumpriu na origem do republicanismo. O problema é que na ordem pós-revolucionária, a meritocracia cumpria -como vimos- o papel (ilusório, claro, já que tratava os desiguais pelo mesmo metro!) de oferecer condições de partida semelhantes aos indivíduos. Hoje o discurso meritocrático, esteio ideológico da “produtividade” acadêmica, cumpre o papel inverso: ele restaura hierarquias, qualifica e desqualifica pessoas em função de critérios não substantivos (“Qual a relevância social de minha pesquisa?”), distribui privilégios e, no horizonte, reabilita uma ordem aristocrática e perversamente tautológica: os que merecem têm, os que têm merecem! Ai dos “sem-mérito”!...
A história da meritocracia é, assim, aquela de uma curiosa restauração: imaginada para romper com a ordem aristocrática, sua função hoje é restabelecê-la! Nossos meritocratas, no fundo, não conseguem disfarçar suas inclinações anti- republicanas.
Chegado a este ponto, todo o problema se situa em saber com qual “valor” medir-se-á o mérito ou, em outras palavras, a competência. E aqui as palavras-chave são: produtividade, produtos, resultados, metas, monitoramento, indicadores, avaliação que, a rigor, não são “valores”, mas índices, escalas: eles não têm substantividade teleológica com a qual pudéssemos avaliar (de ‘valor’) suas conseqüências sociais e morais. É de extrema importância, a esta altura de minha argumentação, prestar uma aguda atenção ao vocabulário. Tomemos as palavras/expressões “produtos” ou “resultados esperados”, por exemplo, que aparecem agora como itens quase obrigatórios em todos os projetos de pesquisa. Um produto é o resultado final de um processo de produção, realizado por produtores, no interior de uma cadeia produtiva. Todo produto é o ponto final de um sistema onde se introduzem insumos, aplica-se uma tecnologia, adequa-se uma mão de obra e se obtém algo que deve ser a materialização de uma idéia ou plano original. O resultado deve ser igual ao plano. A produtividade é o índice que mede uma relação num determinado momento de seu processo: uma relação que implica tempo-custo-insumos e mede se estes “insumos” são compatíveis com os benefícios. Perdoem-me a observação de mau gosto, mas, neste sentido, vocês concordarão que os campos de extermínio nazistas foram um grande sucesso de produtividade e de resultados!
Mas se fizermos uma distinção entre saber e conhecimento nós compreenderemos o que está em jogo. Um saber é algo que está sempre em constituição, rotineiramente questionado e recomeçado; o saber supõe que nenhuma realidade está “dada”, que toda ela é cultural e socialmente constituída. O saber é “instituinte”, aberto a toda interrogação, um eterno “se fazendo”, um contínuo “em processo”. Já o conhecimento é o “instituído”, é o acumulado cultural, o que se cristalizou em instituições. O conhecimento se transforma em “produto” no ato mesmo de sua institucionalização; o saber não! Um é processo, o outro é produto. Confundir processo de saber e produção de conhecimento é confundir o instituinte com o instituído; o já dado com o ainda a se fazer. Toda universidade precisa dos dois, mas quando um começa a se confundir com o outro é porque está se querendo subtrair o poder instituinte do saber para cristalizá-lo, engessá-lo no conhecimento instituído e oficialmente aceito e, assim, suprimir o poder interrogativo que todo saber comporta e fazer da universidade apenas um lugar de administração do instituído. Nem sequer do “conhecimento”, mas do já conhecido. É o fim do potencial crítico que deveria conter toda universidade. E sem este potencial é a democracia que será, mais cedo ou mais tarde, ferida de morte (e não estou falando mais de democracia universitária!).
Assim, é preciso estar atento para esta acelerada construção de uma universidade regida por, vou usar o termo, uma “razão instrumental”, em que aos poucos não nos perguntaremos mais sobre o sentido substantivo de nossas ações, apenas as adequaremos a certos fins que, com certeza, serão ditados do exterior (mercado, empresas, agências de financiamento, aparato técnico, etc.). E isto porque, como a ciência passou a ser também uma “força produtiva” (penso aqui nas ciências ditas “duras”, aquelas diretamente ligadas à atividade econômica), sua apropriação passou a ser ferozmente disputada pelos interesses do mercado, quer dizer, ciência enquanto esteio da tecnologia. Estamos longe daquele sentido humboltdiano de universidade, em que a ciência era entendida como esclarecimento e como fator de unidade entre ensino e pesquisa. Ela abandona o que a fenomenologia chamou de “mundo da vida” para ser seqüestrada pelos subsistemas “poder” e “dinheiro”! A questão, para simplificar, não é se a universidade tem a obrigação de fornecer mão de obra qualificada para o “atual estágio de desenvolvimento econômico”; o problema é saber se o sentido que estamos atribuindo a este “desenvolvimento” (e o papel da universidade nele) é aceitável em sua natureza e em suas conseqüências.
Uma universidade de resultados será necessariamente uma universidade gerida por técnicos. E é aqui onde a meritocracia começa a mostrar seus dentes: ela é a antessala da tecnocracia. O que isto quer dizer?
O sonho dos utopistas do século XIX (Marx, Cournot, Proudon, Fourrier, Spencer, Comte) era suprimir a política, eliminar o espaço público: este era entendido como o reino da discórdia, da dissídia entre os homens, das paixões, dos partidos, dos “homens partidos”. Uma sociedade verdadeiramente humana, quer dizer, racionalizada, seria regida pela ciência e pela técnica, neutra, objetiva, isenta..., eis a origem da tecnocracia. A ciência e a técnica dirimiriam todo conflito, pois assim como não se vota o ponto de ebulição da água, não se discutiria mais o sentido do progresso: ele é único, evolutivo, irrefreável, cientificamente conduzido, e quem se opuser a isto será tratado como um louco e não como dissidente (foi o que Brejniev fez nos anos 60 na URSS!). Não fica difícil, agora, compreender que tecnocracia, universidade de resultados, produtividade, produção de conhecimento, meritocracia e antirepublicanismo fazem parte de uma mesma família ideológica: herdeira de uma tradição elitista e autoritária, ela vê na democracia universitária um perigo, vê no espaço público da opinião uma ameaça, a ameaça que toda interrogação, toda contestação sempre comporta: a de subverter o instituído e de colocar sempre o já conhecido, o já pensado, o já dito eternamente sub judice.
Chegamos, agora, ao umbigo desta minha intervenção. Quais os temores que rondam a democracia universitária? Eu assinalaria quatro:
O temor de que a democracia conduza o ensino superior a tarefas políticas que contradizem sua função;
O medo de que a democracia dos centros de ensino conduza a uma politização da ciência, incompatível com as condições imanentes do progresso científico;
O receio de que a democracia universitária facilite o surgimento de grupos partidaristas;
E no campo técnico-profissional, o medo de que uma democracia do ensino superior submeta à decisão coletiva questões que até então eram de competência de cada professor.
Minha resposta a estes temores será clara e a anuncio imediatamente: a universidade não pode suportar a democracia e nem a suportará enquanto uma determinada relação entre saber e poder vigir em nossas relações sociais; enquanto saber e conhecimento forem confundidos; enquanto o instituído e o instituinte se amalgamarem, enquanto a lógica dos sistemas produtivos galvanizarem nossas ações; enquanto meritocracia se confundir com tecnocracia e esta com “discurso da competência” (o discurso da competência pode ser sintetizado na seguinte fórmula: não é qualquer um, que pode dizer qualquer coisa, a qualquer outro, em qualquer tempo ou lugar). Isto significa que a universidade vai abandonar completamente a democracia e instalar, entre nós, um regime despótico ou absolutista? Não, de forma alguma! Significa que aceitará, por pressão social, a regra democrática nas duas pontas do sistema: na entrada (acesso mais amplo, sistema de cotas, etc.) e na saída, maior visibilidade social de sua tarefa (por enquanto!), maior distribuição de conhecimento, etc. Mas não aceitará a democracia procedimental: a gestão do sistema não admitirá a regra democrática que, na verdade, não se resume a uma decisão pela maioria, mas na constituição de uma coisa chamada “espaço público-decisório”: a visibilidade pública de todos os seus membros através de sua voz e de sua ação com vistas a fins moralmente aceitáveis e coordenados através da interação comunicativa de seus membros.
Assim, não simplesmente participando dos diversos e decisivos Conselhos desta universidade, que fica assegurada a democracia desta instituição: a democracia fica ameaçada porque a ciência que a Universidade cria e deveria distribuir com a sociedade não terá mais a função de esclarecimento. Entendo “esclarecimento” num sentido não Iluminista, quer dizer, ajudar a própria sociedade a digerir seus preconceitos, ajudar a própria universidade a questionar suas finalidades e procedimentos e ajudar a própria ciência a discutir a validade de seus pressupostos. Como a democracia é o único regime de governo que se fortalece quando é questionado, o único capaz de suspeitar de suas próprias certezas sem, com isso, se destruir, fica claro que a ausência de um instrumento crítico (uma vez que a ciência, como força produtiva, terá se confundido com a técnica) não terá mais esta função. O resultado é preocupante: caminhamos a marcha batida - como dizem os militares!- para um modo de vida fascista tendo a clara impressão de viver numa ordem democrática e participativa. Como se escolher uma tal forma de vida -a fascista- fosse uma escolha... democrática!
Este “filme” já passou em outros países, especialmente na Europa dos anos 30 e, infelizmente, nós todos morremos no final!