Resumo: A crise sanitária instaurada repercutiu na totalidade das relações sociais. Isto posto, a emergência do Coronavírus sedimentou o terreno para que questões e processos já em andamento pudessem ganhar contornos ainda mais vivos, complexos e com novos redimensionamentos. Nesse bojo, o processo de precarização foi acentuado pelo contexto de pandemia mediatizado pela longa onda de crise capitalista. Da mesma forma, questões que dizem respeito à educação e ao trabalho docente foram ainda mais mergulhadas em situações de precariedade, condição agravada pelo ensino remoto. Dessa forma, é trazido aqui problematizações sobre a conjuntura de crise sanitária e sua relação com o processo de precarização no campo do trabalho e dos serviços sociais, destacando questões em torno das condições precárias em que a educação e o exercício da docência têm sido realizados. São também abordadas algumas considerações acerca do significado do ensino remoto.
Palavras-chave: crise capitalista, ensino remoto, precarização.
Abstract: The established health crisis had repercussions on the totality of social relations. That said, the emergence of the Coronavirus laid the groundwork so that issues and processes already underway could gain even more vivid, complex contours and with new resizing. In this bulge, the process of precariousness was accentuated by the pandemic context mediated by the long wave of capitalist crisis. Likewise, issues related to education and teaching work were even more immersed in situations of precariousness, a condition aggravated by remote teaching. In this way, problematizations about the situation of health crisis and its relationship with the process of precariousness in the field of work and social services are brought here, highlighting issues around the precarious conditions in which education and the exercise of teaching have been carried out. Some considerations about the meaning of remote teaching are also addressed.
Keywords: capitalist crisis, precariousness, remote teaching.
ARTIGO
Aprofundamento da precarização da educação e da docência em tempos pandêmicos
Deepening the precariousness of education and teaching in pandemic times
Recepção: 01 Abril 2022
Aprovação: 01 Junho 2022
Nas duas décadas anteriores à viragem para o século XXI, o mundo capitalista passou a vivenciar um fenômeno que estudiosos, majoritariamente no campo da teoria social crítica, começaram a classificar como precarização. As manifestações desse fenômeno têm sido traduzidas em contradições implicadas aos trabalhadores através do rebaixamento salarial, supressão de direitos, piores condições de trabalho e sucateamento dos aparatos institucionais indispensáveis para sua reprodução social.
É inerente às relações sociais capitalistas a precariedade da vida social dos sujeitos que sobrevivem da própria força de trabalho. A precariedade é condição socioestrutural na sociedade burguesa àqueles produtores diretos da riqueza social, mas que se encontram historicamente privados de sua apropriação e usufruto. Todavia, em face à crise capitalista, têm sido engendradas estratégias no campo da política e da economia para alavancar a acumulação, acelerar a reprodução do capital, maximizar a exploração da força de trabalho e instituir novas oportunidades para o mercado. Tais estratégias estão fundadas em uma racionalidade precarizadora das relações sociais.
Durante a crise sanitária que se instaurou, diversos campos das relações sociais sofreram implicações, dentre esses campos, a educação ganhou protagonismo. Passou-se, então, a vivenciar novas modalidades de ensino, com repercussões para o exercício da docência. O ensino remoto emergiu entrelaçado pela intensificação do trabalho precário e pela precariedade do ensino público.
Dessa forma, aqui serão levantadas algumas mediações que articulam o movimento de reprodução ampliada do capital à dinâmica mais geral de precarização e a relação costurada pelo ensino remoto a esse processo. Assim, no primeiro momento do texto, as problematizações tomaram o percurso acerca das determinações da crise estrutural capitalista sobre o mundo do trabalho, seus rebatimentos aos meios de reprodução social dos trabalhadores, destacando as repercussões sobre o serviço educacional. Em seguida, são levantadas algumas questões ligadas à educação virtual remota, as contradições para o ensino e para os trabalhadores da educação.
As primeiras notícias sobre a descoberta de um novo vírus extremamente letal aos seres humanos apareceram ainda em finais de 2019. Em fevereiro de 2020, já havia registro de transmissão e circulação pelo mundo do SARS-CoV2, vírus recém-descoberto na China e mundialmente conhecido como COVID-19 ou Coronavírus. Em março deste mesmo ano, o surto da doença foi definido como uma nova situação de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Precisamente, em 12 de março de 2020, o Brasil registrou o primeiro caso de morte pela COVID-19. Em pouco tempo, o número de pessoas infectadas ou que perderam a vida no país cresceu assustadoramente. Transcorridos já os dois primeiros meses de 2022, quando esse texto está em fase inicial de redação, pesarosamente, tem-se o registro de mais de 640 mil brasileiras e brasileiros que morreram por consequência da doença, bem como a preocupante estatística de que foi ultrapassada a marca de 28 milhões de pessoas infectadas. Esses dados foram publicados pelo Painel Coronavírus, organizado pelo Governo Federal2.
São números que indicam o grau de dramaticidade da situação pandêmica no Brasil. Embora expressem um significado, não devem ser de forma alguma isolados do contexto político, ideocultural e socioeconômico que condensa o cenário conjuntural nacional e mundial, engolfado pelo tensionamento de forças sociais obscurantistas, contrárias à razão e negadoras da ciência, reacionárias, de matizes racistas e homofóbicas, criminalizadoras da pobreza, indiscutivelmente avessas às conquistas e aos avanços civilizatórios e com visível cariz fascistizante.
Na particularidade brasileira, o projeto sociopolítico engendrado pelas representações dessas mesmas forças sociais tem assumido, diante de uma posição em certa medida oficialmente negacionista, um direcionamento possível de se caracterizar como a representação da necropolítica3. Isso, por constituir ações concretas ou agir com deliberada prevaricação, tal como travar uma verdadeira guerra de inculcação ideocultural, de modo a permitir a livre circulação da COVID-19 entre a população.
Expediente que, em nome da dominação e de um projeto de poder em favor de determinados setores sociais, não só tem colocado em risco mais elevado, mas também tem ceifado em maior número a vida de seguimentos da classe trabalhadora, especialmente, daquela população mais pauperizada, em sua maioria negra, periférica, em condições de existência e trabalho precarizados. É a afiguração tácita no campo da política de um projeto de classe fundamentalmente elitista, mas que se evidencia na escolha indubitável de quem deve viver e de quem deve padecer, orientado por uma concepção de sociedade cujas relações de desigualdade se afirmam até mesmo no direito de seguir vivo entre os sujeitos sociais. Destarte, a crise sanitária descortina a face mais perversa da luta de classes e das tensões sociais presentes na sociedade.
A rápida cronologia da disseminação e o nível de letalidade proporcionado pelo vírus que aqui foram apresentados guardam indicativos da gravidade em termos de risco sanitário, mas não revelam imediatamente a complexidade das implicações diversas que o quadro histórico traz para o conjunto da sociedade. Já havia cerca de um século que a humanidade não vivenciava uma pandemia. O último registro pandêmico no globo se deu em condições sociais, econômicas e culturais bastante distintas às atuais.
As condições contemporâneas são marcadas pela mundialização da economia capitalista e pelo aprofundamento do modo de vida urbano-industrial inerente à consolidação e ao espraiamento de relações pertinentes à sociedade burguesa. Além disso, os processos decorrentes da globalização ou da compressão da relação entre o espaço e o tempo, determinados pela nova dinâmica de acumulação flexível (HARVEY, 1995), contribuíram para tornar ainda mais grave e complexa a pandemia em todas as dimensões da vida social na atualidade.
A partir do primeiro semestre de 2020, o mundo passou a vivenciar condições das mais atípicas, seja para a organização societária cotidiana, seja para a dinâmica dos meios de existência e funcionamento geral da sociedade. Passou, então, a imperar o estado de um novo normal. Os cuidados com a covid-19 impuseram como regra o distanciamento social, demandaram o estreitamento dos limites para livre circulação de pessoas e para a liberdade de operacionalização das relações mercantis, já que alguns empreendimentos comerciais tiveram que operar com restrições e outros tantos tiveram que fechar temporariamente.
Portanto, isso afetou a economia capitalista, trazendo maiores rebatimentos para o ritmo já combalido da acumulação, implicando no adensamento da longa crise de acumulação capitalista experimentada desde os finais dos anos gloriosos para o capital, na medida em que a realização da mais-valia passou a ser afetada, condicionando contradições para o processo de valorização.
É preciso vender a massa inteira das mercadorias, o produto total, tanto a parte que repõe o capital constante e variável como a que representa o mais-valor. Se não se conseguir vendê-la ou se conseguir apenas em parte ou a preços inferiores aos de produção, o trabalhador terá sido explorado, certamente, mas sua exploração não se terá realizado como tal para o capitalista, não terá alcançado em absoluto a realização do mais-valor espoliado ou o terá alcançado apenas parcialmente, podendo inclusive acarretar a perda parcial ou total de seu capital (MARX, 2008a, p. 341).
Caso a mercadoria não seja vendida, também não se consolida a realização da mais-valia produzida. O ciclo de metamorfose do capital é um movimento que envolve produção e circulação da mercadoria, cujo objetivo precípuo é a valorização. Para isso, a livre circulação dos sujeitos é também base da livre circulação da mercadoria e, por conseguinte, indispensável para reduzir o tempo global de transformação do capital.
Nessa toada de medidas restritivas, o funcionamento de diversos serviços e a efetivação de políticas públicas imprescindíveis à satisfação de necessidades sociais também foi afetado. Um dos principais serviços a sofrer implicações nesse contexto foi o serviço de educação. Escolas públicas e particulares fecharam-se temporariamente. Também, provisoriamente, as Instituições de Ensino Superior pelo país deixaram de funcionar de modo presencial.
Muitas informações estatísticas foram divulgadas sobre essa realidade por diferentes canais. Inúmeras instituições, com metodologias e fonte de dados diversos, desenvolveram pesquisas e estudos analíticos, apresentando ricos subsídios para mensurar os impactos à educação nesse panorama.
Em pesquisa publicada pelo Instituto DataSenado, foi observado que, dos quase 56 milhões de estudantes matriculados na rede de educação básica e no ensino superior do Brasil, durante o primeiro semestre de 2020, cerca de 35% tiveram as aulas suspensas. Isso representa, em números, a estimativa de que algo próximo a 18 milhões de estudantes secundaristas e cerca de 1,5 milhões matriculados no ensino superior deixaram de ter aula nesse período em função da pandemia.
Para contornar a situação, instituições públicas e privadas buscaram alternativas para que a oferta dos serviços de educação pudesse ser retomada mesmo dentro de um quadro de extrema gravidade imposto pela covid-19. Por conseguinte, o cenário da pandemia jogou luz ao significado e relevância do contexto. Não se trata apenas de uma situação restrita a uma questão de segurança da saúde, porquanto que detém correspondência com a totalidade social.
A principal alternativa construída para contornar os riscos sanitários e possibilitar o retorno da prestação dos serviços de educação, permitindo que as instituições de ensino retomassem suas atividades, foi o que se convencionou chamar recentemente de ensino remoto. Milhões de estudantes, mais de uma centena de milhares de professores, além de outros profissionais da educação, passaram a planejar e desenvolver suas atividades orientados pela modalidade de ensino remoto.
Não obstante, essa modalidade apresentada em certa medida como uma alternativa inovadora, por estar atrelada ao uso de sofisticadas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), no fundo, tem determinado uma série de questões que se movimentam sobre a esteira do processo de precarização imposto pela contemporânea dinâmica de acumulação capitalista.
A alternativa dominantemente encontrada como solução para as restrições impostas pela pandemia tem concorrido para o aprofundamento da tendência vigente de precarizar as condições de efetivação da educação formal, particularmente, dos serviços de educação pública. E, na mesma direção, também de precarizar ainda mais as condições de trabalho docente.
A hipótese central que fundamenta nossas problematizações é que a crise estrutural, da qual não tem conseguido se desenredar a sociedade burguesa, mobiliza determinações para precarizar, seja as relações de trabalho, seja os complexos institucionais de satisfação de necessidades para reprodução social da classe trabalhadora, cuja educação é um deles. A pandemia não fez precipitar o processo de precarização do trabalho docente e da educação, mas apenas abriu caminho para que fosse acelerado e aprofundado.
Em outras palavras, a pandemia, ao entabular o ensino remoto, não inaugurou a precarização da educação e do exercício dos trabalhadores do ensino. Ela apenas impeliu ao aprofundamento de uma tendência já vigente. O movimento dominante empreendido é o de aprofundamento da tragédia imposta ao mundo do trabalho nas diversas formas em que a precarização se manifesta e também de acentuar a precariedade das condições de existência e reprodução social de segmentos da classe trabalhadora, como requisito para retomada do ritmo de valorização e do fôlego acumulativo.
Garantir vias mais largas e livres para a reprodução ampliada do capital tem conduzido diversas dimensões do tecido social a situações precárias de relações trabalhistas, à deterioração da capacidade do Estado em responder efetivamente a necessidades sociais por meio dos serviços, à depreciação das condições objetivas ou socioeconômicas de existência da população, entre outros. Por isso, a precarização do serviço (público) de educação e das condições laborativas dos trabalhadores obedece ao sentido dessa racionalidade.
Como já sinalizado, essa direção tem sido orientada pelo capital na busca incessante de construir estratégias impressas sobre o tecido social com finalidade de viabilizar não só menores entraves à potencialização de sua valorização, como também de adotar caminhos com vistas à recuperação das taxas de acumulação que têm sido combalidas pela manifestação recorrente e em períodos cada vez mais curtos da queda tendencial da taxa de lucro4; reafirmando as contradições da acumulação capitalista levantadas por Marx (2008a). Isso expõe o quão tem sido consubstanciada a crise capitalista no quadrante histórico dos últimos 50 anos.
Os anos de esplendor dos índices de crescimento da economia do centro capitalista iniciado no Pós-Guerra de 1945, impulsionado pela produção tipicamente fordista em associação com uma série de políticas anticíclicas e de estímulo ao consumo efetivada pelo Estado, viram-se esgotados pela gestação de contradições implicadas à queda tendencial da taxa de lucratividade. A partir de meados da década de 1970, a economia capitalista passa a ser sufocada pela formação de uma crise, configurada em uma longa onda de tonalidade recessiva (MANDEL, 1982).
Essa crise que perdura ainda na atualidade apresenta uma particularidade, a de ser uma crise com características estruturais. Com isso, não se quer afirmar que a sociedade burguesa entrou em uma fase agônica terminal; mas, sim, que ela autogestou contradições no seu processo dialético de articulação entre a produção e a reprodução social, das quais não consegue mais se desenredar.
A crise estrutural não infirma as assertivas marxianas apontadas para a condição incontornável de detonação cíclica de crises no movimento de autorreprodução do capital. Portanto, ela indica em seus fundamentos que a ordem capitalista na sua sanha acumulativa está mergulhada numa complexa e profunda onda de crise, matizada também por ciclos de crescimento, mas cuja tonalidade acentuada é a recessividade.
Outrossim, é imprescindível mencionar que essa “crise estrutural não se exprime pela interrupção absoluta do crescimento das forças de produção” (MANDEL, 1982, p. 150). Ao invés disso, apresenta a exigência sine qua non de constantemente atualizar ou renovar as bases do desenvolvimento das forças produtivas, no sentido de potenciar as taxas de exploração ensejando maior eficácia para extração de mais-valia no uso da força de trabalho, bem como de exponenciar a produção de valor reduzindo o tempo de trabalho necessário e solucionar os gargalos nas fases de giro ou no ciclo de metamorfose do capital.
Dessa forma, a crise estrutural impôs a Era da produção e da acumulação flexível, tendo como base, dentre outros pilares, o incremento do uso de diversas e sofisticadas tecnologias de comunicação, produção, informação, entre outros, tanto para o controle e gestão da força de trabalho quanto para acelerar o processo de valorização e ampliar suas margens de possibilidades constituindo novos nichos de acumulação, donde os serviços sociais passam a ser um desses espaços.
Por conseguinte, esse contexto expressa uma aparente contradição, mas que nos seus fundamentos revela-se indispensável para a dinâmica acumulativa contemporânea. A ordem capitalista no campo da produção das diversas formas de riqueza social se apresenta com avanços no desenvolvimento das forças produtivas concernentes ao século XXI, entretanto, no campo de gestão e uso da força de trabalho impõe condições que remetem ao século XIX; ou seja, constitui relações de trabalho semelhantes às fases iniciais da Revolução Industrial.
Assim sendo, a lógica da precariedade nas condições laborativas presentes é o imperativo que se manifesta: na flexibilização e desregulamentação das relações trabalhistas; por meio da desestruturação e debilitação da força organizativa dos sindicatos; através da expropriação dos direitos; na predominância da terceirização; no aprofundamento do desemprego estrutural ou no crescimento da informalidade; com a intensificação desumana do ritmo de produção; sob a ampliação descomunal da jornada de trabalho; no retorno do trabalho doméstico, em que o espaço privado e familiar passa a ser uma extensão da produção fabril ou é invadido pela mediação de TICs na forma do teletrabalho e diversificadas formas de realizar o home office; através da assim intitulada uberização que contempla a informalidade, a intermitência e a flexibilidade com o alto desenvolvimento tecnológico para comandar a atividade laborativa; dentre outras expressões.
É como se o capital finalmente conseguisse realizar um giro histórico e retomar as condições de plena liberdade de exploração da força de trabalho, impondo o controle e formas de realizar o trabalho congênere ao período liberal clássico, em que as relações imediatas entre os sujeitos envolvidos no processo de produção eram concebidas como a relação entre sujeitos que se lançavam livremente no mercado, negociando em condições iguais à compra e venda das mercadorias que dispõe. Assim, dispensa a intervenção extraeconômica sobre essa relação.
Não obstante, o fio condutor que envolve tanto o mundo do trabalho quanto os meios de satisfação das necessidades sociais à manta do fenômeno da precarização guarda importantes particularidades e distinções entre o centro e a periferia. Enquanto as nações que compõem o bloco do capitalismo central na sua maioria constituíram legislações e sistemas de proteção social aos trabalhadores com certa substancialidade, na periferia, a predominância histórica foi (é) a desproteção e a desregulamentação. Desse modo, esse fenômeno é incorporado com maior velocidade, agudez e inquestionável perversidade sobre as frações da classe trabalhadora das nações dependentes.
Isso fica bastante patente ao se observar as recentes contrarreformas draconianas operadas no Brasil, a exemplo da ofensiva aos direitos trabalhistas, que praticamente extinguiu ou reduziu a pó o conjunto de direitos configurados na Consolidação dos Direitos Trabalhistas (CLT). Na mesma direção, foram igualmente atacadas as legislações reguladoras do direito à Previdência Social e inviabilizada a efetivação plena dos direitos sociais expressos na Constituição Cidadã, através da aprovação da Emenda Constitucional 95/20165.
Ademais, entre as nações periféricas, a tendência à precariedade tem ganhado forma mais aguda e perversa porque se imbrica ao movimento de compensação das determinações da dependência por meio da superexploração materializada, segundo Marini (1976), seja através da apropriação do fundo de consumo dos trabalhadores, que se convertem em fundo de acumulação, seja por meio do desgaste acelerado da força de trabalho em razão da intensificação sobre-humana do ritmo de trabalho; ou mesmo por meio de remuneração salarial abaixo do valor necessário.
Pari passu, o receituário neoliberal emerge na esfera da política para subsidiar as estratégias de recuperação econômica e orientar uma série de iniciativas convergentes às novas exigências da Era flexível. Assim, ao tornar-se a nova razão universal do mundo (DARDOT; LAVAL, 2019) e seguida por governos de diversas gradações ideológicas, prescreve uma agenda de subtração dos direitos conquistados, de estrangulamento do fundo público direcionado aos investimentos em políticas públicas, com escopo de favorecer os interesses da financeirização; além de operar com estímulo à privatização e/ou para instituir o sucateamento dos serviços sociais concernentes ao Estado, de modo a favorecer o processo de supercapitalização (MANDEL, 1982).
Sob esse processo, o capital expandiu as fronteiras do valor para o âmbito dos serviços sociais. Esse setor passou a ser um dos espaços em que as relações mercantis desdobraram sua finalidade societária. Os serviços sociais passaram a ser mercantilizados, ou seja, passaram a ser comercializados no sentido de amplificar as possibilidades de valorização. A redução de políticas públicas e o desmonte da seguridade social guardam a intenção de contribuir com a retroalimentação do capital, no seu movimento de reestruturação, fomentando a flexibilização no mundo do trabalho e precarizando suas relações, consequentemente, firmando a precariedade como condição estratégica e estrutural na vida social ou enquanto tendência dominante dos últimos decênios.
Há um o agravamento da desertificação social compelida pela vigência da agenda ultraneoliberal implementada a partir de 2016, que exacerba o quadro de regressão dos direitos, alargando o fosso de desresponsabilização social do Estado e escancarando a lógica do darwinismo social. Estudos apontam para um cenário de redução progressiva dos investimentos no Orçamento da Seguridade Social (OSS). A regra do ajuste fiscal a todo o custo norteia o redirecionamento do fundo público para a acumulação, principalmente, via mercado financeiro. A dominância da financeirização passa a exigir dos Estados a adequação dos serviços, da economia e da formação e gestão da força de trabalho aos seus interesses.
Conforme informações da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), em análises feitas sobre números do OSS, no ano de 2017 - quando passou a vigorar as determinações do congelamento orçamentário impostos pela Emenda Constitucional 95/2016 -, as despesas do OSS sofreram a redução de 1,7%. Esse dado a priori pode aparentar uma ínfima redução percentual, todavia, ele além de sinalizar para uma tendência, também expressa em valores absolutos a queda de recursos executados na área da Seguridade Social na ordem de R$ 34,64 bilhões em relação ao ano anterior.
Em contrapartida, a Desvinculação de Receitas da União abocanhou desta área da proteção social, no ano de 2016, o montante aproximado de R$ 99 bilhões e, em 2017, cerca de R$ 113 bilhões. Com isso, marcando a firmação do contexto histórico de intensa precarização nas condições de satisfação de necessidades da classe trabalhadora, que faz uso de políticas públicas para garantir sua reprodução social6.
No tocante à Política de Educação e sua correlação com o processo mais ampliado da precarização, que expande seus tentáculos às relações de trabalho e aos serviços que essa política pública materializa, as determinações são expostas, dentre outras formas, pelo recorrente desfinanciamento, que pesam nas condições de sua execução, através do favorecimento à mercantilização do direito à educação e por meio da afirmação do trabalho precário aos profissionais desta área.
A título de ilustração das formas em que se afiguram essas determinações, especificamente, durante a crise sanitária iniciada em 2020, a 11a edição do Mapa de Ensino Superior no Brasil aponta a concentração das matrículas no ensino superior privado. Em 2021, aproximadamente, 76% dos estudantes da graduação no Brasil realizaram matrícula em instituições privadas de ensino superior. O mesmo documento indica também o crescimento de matrículas na educação à distância (EaD), na ordem de 9,8%7.
Em paralelo a isso, fontes oficiais do Ministério da Educação (MEC) apontam para o desfinanciamento da educação no país, com base na previsão orçamentária dos últimos anos8. Em 2019, foi previsto como orçamento para a pasta da educação o montante de R$ 47,7 bilhões. No ano seguinte, o orçamento sofreu uma queda, representada pela previsão de investimentos no valor de R$ 42,8 bilhões. Mesmo com a redução orçamentária que nos últimos anos tem vivenciado a pasta, o MEC retraiu os investimentos previstos em 2020 ao deixar de investir o montante de R$ 1 bilhão.
Ao intensificar o desfinanciamento da Política de Educação, não só os serviços que executa na formação básica e superior contribuem para o desmonte ou sucateamento desta política pública, como também condiciona o adensamento da desigualdade educacional no país. É perceptível como sob esse cenário as relações mercantis, representadas pela educação privada, avançam sobre as necessidades da formação educativa, tornando-a mais uma atividade bastante lucrativa; assim, aproveitando as oportunidades abertas pela dilapidação da rede pública de ensino.
Um dos caminhos deliberadamente percorridos para compensar a diminuição dos investimentos por parte do Estado, transvestido sob a mística da estratégia de universalização do acesso, é a expansão do ensino à distância. Por parte dos empresários que atuam na educação, esse caminho se apresenta como um momento de expandir seus negócios, comprimir despesas com a força de trabalho e, ao mesmo tempo, impor maior intensidade no ritmo de trabalho para valorizar mais rapidamente e com maiores ganhos os capitais investidos. Tal estratégia também se constituiu em um meio de grandes corporações que atuam com o desenvolvimento de TICs ampliarem suas margens de lucro, ao ofertar as ferramentas que mediam a efetivação da educação virtual.
Corporações de capital transnacional, a exemplo da Zoom e Google, têm aproveitado a conjuntura para negociar pacotes de ferramentas para suporte tecnológico e digital a essa modalidade educacional em troca de vultosos pagamentos pelas instituições de ensino e/ou em troca do acesso e armazenamento de informações das produções (pesquisas, sistematizações didático-pedagógicas, etc.) desenvolvidas, sobretudo, pelas universidades. A conjuntura ensejou uma extraordinária possibilidade para os empresários da educação expandirem ainda mais os negócios no campo da educação à distância.
Via de regra, as formas diversas em que se estruturam a educação à distância vêm impondo o trabalho precário aos profissionais da educação, sobretudo àqueles dedicados ao exercício da docência. Do mesmo modo, tem levado a aprofundar a precariedade das condições de ensino e a desigualdade de acesso entre os estudantes.
Com a pandemia, o ensino remoto – uma modalidade então adocicada da educação à distância – ganhou protagonismo por ser adotada pela grande maioria das instituições da rede de ensino no país, mas que não foge à racionalidade da precarização, visto que a acentua.
Tratado inicialmente como uma excepcionalidade, o ensino remoto foi sendo incorporado pelas instituições de ensino e imposto pelas gestões de cima para baixo – sem o profundo e democrático debate prévio ou mesmo sem planejamento mais acurado, que possibilitasse ampla capacitação entre os envolvidos – de modo a ser na ponta implementado pelos docentes.
Viu-se a cada dia a modalidade remota sendo executada na implementação do ensino e no desenvolvimento das demais dimensões e atividades do processo educacional, algumas vezes até sem grandes críticas ao seu significado e às consequências precarizadoras para a educação e para o exercício profissional de professores.
Dourada a pílula, o ensino remoto então apresentou-se como uma modalidade apenas de caráter emergencial. Mas, ao mesmo tempo, foi também anunciado como avançado e conectado ao desenvolvimento do mundo digital, pois permitiria no momento síncrono a transposição de aulas presenciais sob auxílio de plataformas de interação virtual, que articulada com as atividades assíncronas, viabilizaria aos estudantes melhor se organizarem, de acordo com seu planejamento, para desenvolvê-las.
Entretanto, essa modalidade significa uma reprodução mal-acabada do ensino à distância. Representa, talvez, “a maior e a mais profunda desestruturação do ensino público de qualidade, o ensino à distância, ou melhor, um arremedo de EaD” (FARAGE, 2020, n.p). Essa modalidade expõe a intensificação do rebaixamento das condições do trabalho docente.
Não obstante, aparentemente, após ser implementada, tem ganhado força para a sua institucionalização mais duradoura ou permanente, avançando na adesão acrítica entre gestores das instituições de ensino e entre alguns docentes, porque, pretensamente, no plano do discurso, está direcionada para ampliar o acesso à educação no contexto da crise sanitária, sem implicar na queda significativa na qualidade do ensino-aprendizagem, assim como proporcionaria melhor adequação dos gastos diante de um contexto de restrições orçamentárias e traria mais comodidade para a realização do trabalho em conciliação com o espaço da vida doméstica.
O que esse discurso esconde é a sua incompatibilidade com a realidade, posto que guarda uma gama de contradições. A primeira delas é o seu cabal ajustamento à programática ultraneoliberal do Governo Federal de plantão, consubstanciada pela política de desfinanciamento, desresponsabilização do Estado e desmonte da educação, mormente, do ensino superior. Não à toa, o governo tem institucionalizado a ampliação da EaD através de algumas regulamentações mais recentes9. Nessa perspectiva, tem ventilado a proposta de criar o Reuni Digital para expandir a abertura de vagas nas universidades por meio do ensino à distância, inclusive com a previsão da criação de uma Universidade Federal Digital. A minuta desta proposta está contida no documento “Reuni Digital: Plano de expansão da EAD nas IES públicas federais” e foi apresentada pelo MEC no primeiro semestre de 2021.
Outra contradição a se levar em consideração diz respeito ao alargamento do fosso que demarca as diferenças nas condições de acesso ao ensino. Em virtude de a modalidade remota requerer o uso de TICs para sua efetivação, num país de dimensões continentais como o Brasil e marcado pela diversidade regional e formas múltiplas de expressão de desigualdades, estão sendo aprofundadas as diferenças de acesso e permanência entre os estudantes na rede educacional básica e superior.
No final de 2019 foram coletados dados pela Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) sobre o acesso da população a TICs. Esses dados foram publicados em março de 2021 e indicam que 4,3 milhões de estudantes da rede pública de ensino não têm acesso à internet. A pesquisa indicou também que problemas infraestruturais nas escolas criam dificuldades para o acesso à educação a partir do uso de ferramentas tecnológicas interligadas ao uso de internet, já que 49% das secretarias municipais de educação apresentam significativo grau de dificuldade de disponibilizar esse recurso.
Isso acentua a desigualdade de acesso à educação, aumentado o muro que separa a qualidade do ensino-aprendizagem entre a rede pública e a rede privada, uma vez que o percentual de estudantes na rede pública que dispõem ou conseguem fazer uso satisfatório de TICs é amplamente menor do que na rede privada, conforme as estatísticas divulgadas pela Pnad. Como esses dados refletiram em boa medida a realidade vivenciada durante a pandemia, eles expressam a afirmação da desigualdade educacional, marcada de um lado pelo realce de uma elitização estudantil e de outro pelo acesso em condições precárias à educação pública, afetada na sua qualidade. Sob esse expediente, há uma visível deterioração e depreciação do ensino público.
Muito em virtude dessa diferença nas condições de acesso tem sido observado um crescente desestímulo ou baixo interesse por parte dos estudantes do ensino público, resultando em incontáveis casos de abandono. As diversas dificuldades marcadas, em grande medida por não acessarem equipamentos apropriados, devido a não disporem de internet banda larga e/ou possuir um espaço doméstico em condições adequadas para acompanhamento das aulas virtuais, redundaram no aumento da desistência da formação acadêmica e do ensino básico.
Seguindo mais a fundo na questão, o ensino remoto foi implementado sem que se levasse em consideração questões como a plena autonomia didático-pedagógica no exercício da docência, tolhendo a capacidade criadora e criativa dos professores, que se viram a partir de então limitados à imposição do uso de recursos tecnológicos, os quais não foram suficientemente capacitados para instrumentalizar ou mesmo indagados se sentiriam-se à vontade em operar e se avaliavam relevante o uso para o desempenho de suas atividades. Assim, foram impelidos no processo de ensino a aceitar e adequar suas programações e metodologias a modelos preestabelecidos que lhes eram estranhos, organizados em momentos síncronos e assíncronos ou em outras formas de realizar a educação virtualizada. Isso tem gradativamente garroteado a liberdade no desenvolvimento das atividades que desempenham, culminando em maior subsunção no processo de trabalho ao redundar no estreitamento dos limites das habilidades e competências.
Paralelo a isso, os processos de ensino-aprendizagem e de formação foram reduzidos a mera transmissão instrumental de conteúdo, por conseguinte, se materializam alijados da dimensão de produção de conhecimento mediada pela interação entre os sujeitos envolvidos na presença viva em sala de aula e da relação orgânica que estabelecem.
O resultado dessa imposição acentuou o mal-estar, o desânimo, o desinteresse e o estranhamento na realização do trabalho entre os professores. Essas contradições são inerentes às relações de trabalho na sociabilidade capitalista, mas ganharam contornos mais visíveis por tornar a atividade docente cada vez mais desprovida de sentido e maquinal, conformando, na hodiernidade, uma maximização da tendência à alienação sinalizada por Mészáros (2006).
É bem verdade, o ensino remoto só encandeceu um processo já em curso. Portanto, atuando para catalisar mudanças já requeridas, seja pela mercantilização da educação, seja pelas transformações societárias incidentes sobre a formação da força de trabalho que busca adequá-la à lógica da precarização, empreender a formação aligeirada e massificada com qualidade questionável, então direcionada para as requisições utilitárias do mercado. São determinações que rebatem diretamente sobre os professores, amoldando cabalmente as dimensões e condições objetivas e subjetivas que envolvem a prática docente.
Em sua grande maioria, os docentes foram inseridos nessa modalidade de ensino sendo os responsáveis por prover individualmente as próprias condições e ferramentas de trabalho. Vivenciaram a reconfiguração atualizada do processo de precarização, conformada pela tendência à uberização (ANTUNES, 2020), na medida em que, para realizar a atividade de ensino, tiveram que fazer uso dos próprios recursos materiais ou adquirir por conta própria novos equipamentos, assumiram o ônus dos custos com pacotes de internet e com a adequação do ambiente doméstico, além de outros meios necessários para realizarem com qualidade as atividades que são responsáveis.
Conduzidos pelo fenômeno da uberização, apresentam-se isolados enquanto sujeitos político-coletivos, com sérias consequências na formação da subjetividade por resultar na quebra da solidariedade classista. Isto posto, são encurralados pela inculcação ideocultural que condiciona ao favorecimento de valores individualistas, assim edificando dificuldades significativas para a construção da identidade de classe.
Na prática, foram individualmente responsabilizados pela implementação da educação à distância e pelos seus resultados. Foram progressivamente mais submetidos ao domínio de recursos de gravação de áudios e filmagem, tendo que dominar recursos de edição e plataformas digitais, expostos de maneira insalubre por longo tempo diante da tela de computadores e exigidos à autoexposição de imagem. Com esse panorama, acabaram mergulhados na youtuberização do processo de ensino-aprendizagem. Associado à uberização, “durante a pandemia, a youtuberização atinge o profissional da educação e remodela com a escola [e a universidade] num processo que vem para aumentar a alienação e a expropriação do trabalho” (SILVA, 2020, p. 603, grifo nosso).
Tem sido sensível o aumento da sobrecarga em condições de educação virtual, tanto do ponto de vista das horas dispensadas às atividades como planejamento de aula, correção de avaliações, orientação, etc., quanto do ponto de vista da intensificação do ritmo de trabalho ainda mais extenuante. São empiricamente generalizadas as queixas do esgotamento físico e psíquico, de aumento do medo ou insegurança, do adoecimento, do estresse e da ansiedade.
A exploração está sendo potenciada sobre a atividade laborativa dos educadores por meio do excedente de tempo dispensado no exercício da profissão e na intensificação do ritmo de trabalho. A demarcação da fronteira que delimita o distanciamento do tempo de trabalho pago e do tempo de trabalho não pago tem sido encurtada com a exigência de maior disponibilidade para as atividades do universo educativo.
Aos profissionais da rede privada, as condições de trabalho precário apresentam-se ainda mais endurecidas e severas. Para os empresários com investimento nesse campo, a educação é mera mercadoria como outra qualquer, porque não importa a forma em que a mercadoria se apresenta, importa é a valorização do dinheiro investido nesse ramo de negócios, cujo trabalhador nele inserido é produtivo para o capital.
Diremos que um mestre-escola é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar a cabeça das crianças, mas exige trabalho de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital numa fábrica de ensino, em vez de numa fábrica de salsichas, é algo que não altera em nada a relação (MARX, 2008b, 382).
As taxas de mais-valia na sua forma absoluta e relativa10 vêm sendo otimizadas pelo uso intensivo de TICs no processo de trabalho. A jornada de trabalho tornou-se mais elástica, sem que a remuneração acompanhe na mesma medida o tempo dispensado no desenvolvimento das atividades. E, no mesmo compasso, também vem sendo demandada maior produtividade, com menos uso de força de trabalho envolvida no desenvolvimento das atividades e para o cumprimento de metas com rebaixamento salarial.
A pandemia e a emergência da modalidade remota tornaram-se oportunas para aprofundar a diminuição do quadro de profissionais necessários, permitindo reduzir os custos com a força de trabalho, gerando maior desemprego ou subcontratações entre os educadores, sem que a produtividade e os lucros despenquem. Isso salientou a competitividade intraclasse, cuja necessidade de sobrevivência conduz a uma atmosfera hobbesiana entre os pares. Com objetivo de não terem corte salarial, passam a disputar no sentido de demostrarem maior capacidade produtiva e no alcance das metas sob condições extenuantes de trabalho. Docentes são submetidos a turmas crescentemente maiores de estudantes em suas aulas on-line, com a obrigação de serem céleres nas respostas e estarem sempre disponíveis nos atendimentos às demandas.
O ensino EaD buscou expansão diante da flexibilização das relações de trabalho. Empreendeu largamente contratos temporários ou mesmo com a inexistência de qualquer vínculo por meio de trabalho intermitente, em que o docente recebe apenas pelas horas de aula ministrada.
A flexibilização, consequentemente,
[...] proporciona adoecimento dos trabalhadores porque culmina na ‘diminuição drástica das fronteiras entre a atividade laboral e o espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural [...] o tempo foi comprimido se desdobram para executar sozinhos o que antes era feito por dois ou mais trabalhadores. Além disso é visível nos bancos de dias e de horas que ajustam a jornada às demandas flexíveis do mercado, assim como na instituição de uma parcela variável do salário subordinada ao cumprimento de metas de produção e ‘qualidade’ (ANTUNES, 2020, p.145).
Nesse terreno, os educadores se encontram com sensível fragilidade política e organizativa para fazer o enfrentamento necessário por melhores condições e relações trabalhistas. Segundo informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), somente no ano de 2020, entre março e setembro, 36 mil professores perderam o emprego. Com isso, diante do aumento da competição pela sobrevivência, do crescente exército de reserva docente e do enfraquecimento do poder sindical, os professores têm sido intensamente subjugados à racionalidade precarizante das relações de trabalho, que lhes inserem em regimes e contratos mais flexíveis.
Face à dependência do capitalismo brasileiro que necessita superexplorar a força de trabalho, atrelado ao caráter antirreformista e senhorial em que se constituiu e se constitui ainda hoje a burguesia nacional, a crise sanitária fez precipitar as circunstâncias favoráveis para a pavimentação do caminho da servidão como privilégio, parafraseando o que um dos teóricos e pesquisadores mais destacados tem caracterizado sobre as tendências contemporâneas do mundo do trabalho mediatizado pelo uso de sofisticadas tecnologias digitais.
A crise sanitária recente levou a perceber com mais nitidez a degradação das condições de trabalho docente e o sucateamento do serviço de educação. É inegável que a pandemia determinou a emergência de novas particularidades para esse processo. Mas, fundamentalmente, é possível afirmar que ela somente trouxe maior tonalidade ao fenômeno da precarização já em curso, que tem se manifestado sobre esferas ou terrenos constituintes da vida social.
Particularmente, no que toca à classe trabalhadora em geral, há crescente precariedade nas condições de vida, nos complexos institucionais de satisfação de necessidades para sua reprodução social e nas relações trabalhistas. Para a força de trabalho docente, essa situação não tem sido distinta. Os profissionais da educação têm vivenciado o estrangulamento da remuneração, a insegurança da sobrevivência – pelo medo de contrair COVID-19 e pelo temor ao desemprego – a subtração de direitos, o adoecimento psicofísico, o desânimo, o estranhamento mais sensível às atividades que desenvolve, dentre outras formas de manifestações fenomênicas decorrentes das determinações para otimizar a valorização do capital.
Com o objetivo de recuperação da crise estrutural que marca na contemporaneidade a acumulação capitalista, são adotadas estratégias inerentes à lógica da precarização. Assim, de um lado, o direito à educação é mercantilizado e, de outro, é possível melhor (super)explorar a força de trabalho docente.
A adoção do ensino remoto não só converge para amplificar a precarização profissional entre os professores. Essa modalidade contribui para a desqualificação da atividade educativa e para o redimensionamento da rede de ensino, especialmente, do papel da universidade, ao circunscrever o ensino superior à condição de mercadoria por demais lucrativa e locus quase que exclusivo para a formação de trabalhadores especializados às necessidades imediatas do capital.
Não há outro caminho! É preciso fazer resistência política e organizada a esse processo. É indispensável, em alguns espaços, lutar contra a imposição do ensino remoto atrelada à racionalidade que se vincula e, em “outros espaços, trata-se de travar a luta cotidiana em reuniões de departamento, unidade, conselhos superiores e outras instâncias” (ANDES, 2020, p. 50). Por isso, há o acerto em denunciar e fazer o enfrentamento à mistificação da educação (virtual) remota, desvelando sua materialização como projeto do capital para a educação e para o desmantelamento do trabalho docente.