Resumo: O presente trabalho trata-se de uma crítica à lógica hegemônica empreendedora e sua consequência destrutiva das organizações e perspectivas classistas do proletariado. Analisamos a pesquisa Global Entrepreneuership Monitor (GEM), defensora do empreendedorismo no Brasil que reforça a defesa do aumento da precarização do trabalho. Na busca de dar um significado social analisamos o afroempreendedorismo, que, mesmo assumindo uma crítica antirracista, legitima a lógica hodierna de reprodução do capital. Entendemos, assim, que o empreendedorismo tanto o mais sistêmico quanto o social tem no seu cerne a subsunção da classe trabalhadora, contribui para sua desorganização, bem como efetiva a educação para a precarização do trabalho, contribuindo para o aumento da invisibilidade e da desigualdade entre as classes.
Palavras-chave: empreendedorismo, GEM, afroempreendedorismo, legitimação da precarização.
Abstract: The present work is a critique of the hegemonic entrepreneurial logic and its destructive consequence of the classorganizations and perspectives of the proletariat. We analyzed the Global Entrepreneuership Monitor (GEM) research, an entrepreneurship advocate in Brazil that reinforces the defense of increasing labor precariousling. In the search to give a social meaning we analyze Afroentrepreneurship, which, even assuming an anti-racist criticism, legitimizes today's logic of capital reproduction. Thus, we understand that entrepreneurship, both the most systemic and the social, has at its core the subsumption of the working class, contributes to its disorganization, as well as effective education for the precariousization of work, contributing to the increase of invisibility and inequality between classes.
Keywords: entrepreneurship, GEM, afroempreededorismo, legitimation of precariousization.
ARTIGO
Empreendedorismo como estratégia do aumento da precarização e desorganização do proletariado
Entrepreneurship as strategy to increase the precarious and disorganization of the proletariat
Recepção: 01 Abril 2022
Aprovação: 01 Junho 2022
O Global Entrepreneurship Monitor (GEM) é uma pesquisa realizada em mais de cem países, financiada por variados órgãos de fomento bem como apoiada e alimentada por institutos de pesquisas e universidades em todo mundo. Ela é uma das grandes redes de troca de informação sobre a ação do capital, em específico, sobre os empreendedores e suas necessidades. Ela fornece dados para os países envolvidos que participam da pesquisa realizada desde 1999 no mundo; no Brasil começou um ano depois. O seu relatório é levado ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial e outros organismos internacionais e nacionais para desenvolverem políticas públicas em favor do empreendedorismo.
O GEM abarca 70% do PIB3 mundial e pesquisa elementos da subjetividade do empreendedor, além de políticas apontadas por especialistas de cada país. Esse estudo nos dá a direção de como se vê e se quer formar tal sujeito, sob a ótica do capital, em sua expressão mundial, incluindo particularidades brasileiras. Vejamos: “o objeto central de sua investigação está no sujeito empreendedor (fonte primária de informação) e não no empreendimento propriamente dito” (GEM, 2017, p. 6).4 Assim o aspecto ideológico do empreendedorismo no mundo, como na maioria dos autores que debatem o tema, é alçado a um primeiro plano para além dos dados indissociados das milhões de falências da fria realidade da concorrência. “Cerca de um milhão de empresas fecham as portas por ano no Brasil, diz IBGE5” (SOUZA, 2020).

É evidente a tendência de um maior fechamento das pequenas empresas. A condição de ausência de capital demonstra a ficção da pequena empresa como grande alternativa organizacional do capitalismo nacional. Compreender como a empresa que não possui nenhum empregado, faz parte de uma conceitualização que esconde a exploração da classe trabalhadora. Estamos diante de um quadro de transformação de assalariados mais precarizados em trabalhadores autônomos, sem direitos laborais, estes trabalhadores autônomos e pessoas jurídicas – empresas – são o que Ricardo Antunes (2020) chama de pejotização; dentro dessa perda de referência de classe, vem o suprassumo que é o empreendedorismo. Como se fosse uma escala de fetiche: o assalariado que se coloca como autônomo, o autônomo que se coloca como colaborador e daí empresário/empreendedor, esse movimento é importante para deixar mais nublada a realidade e com isso dificultar o enfrentamento classista da mesma. Portanto, a categorização posta pelo IBGE aponta a realidade das diferenças de quebra das empresas registradas como tais, com seus diferentes patamares: de zero a mais de dez empregados, no entanto, essa categorização dificulta mais o entendimento da realidade e suas diferenças socioeconômicas e, o mais grave, esconde as diferenças classistas colocando todos no mesmo patamar de empresários ou empreendedores.
Além disso, a variação estatística definida de empresas com dez ou mais empregados abre um leque entre uma pequena empresa com dez funcionários e a outra de grande porte, com mais de mil funcionários. Este tipo de classificação esconde as diferenças das empresas, prática comum do capitalismo acentuada na lógica empreendedora em que estas diferenças são limadas. É uma situação ilusória de que ser empresário é galgar um caminho para uma situação superior dentro da sociedade, e na prática a maioria que escolhe essa via vai ser engolida, vai quebrar. Claro que o capital justifica isso, aponta sua causa à inépcia do pequeno empreendedor, sua falta de preparação e não por causa d a competição destrutiva, situação esta de concentração de capital, na busca direta de extração de mais-valia, como também no processo em larga escala de centralização de capital entre os capitalistas, numa extração de mais-valia em escala exponencial.
A universalização do caráter do empreendedorismo é fundamental para entendermos como essa lógica vai hegemonizando, inclusive a caracterização do sujeito social, de forma a criar uma alegoria positiva no momento empreendedor em que se encontra o capital. Tão hegemônico que não vai ser encontrada a palavra trabalhador ou trabalhadora, já em desuso pelos empreendedores, agora, surge a cultura instigante e glamourosa do empreendedorismo, em que toda a sociedade se curva. A pesquisa levanta vários tipos de empreendedores, não somente aqueles que estão na função de comando do capital, mas sim, num conjunto de situações, como desenvolvedores de projetos, inovadores ou, simplesmente, reprodutores do que se considera empreendedorismo.
Empreendedor não é apenas aquele que está à frente de negócios bem estruturados, muito menos os ‘negócios de sucesso’. O GEM abarca todo e qualquer tipo de empreendedorismo, desde aqueles situados na base da pirâmide, muito simples, focados talvez na exclusiva subsistência daquele que empreende, como também em negócios de alto valor agregado e com conteúdo inovativo (GEM, 2017, p. 6 grifo nosso).
Existem duas pontas com o mesmo princípio de empreender: o negócio de sucesso e a situação exclusiva da luta pela sobrevivência. Um recorte bem inovativo de colocar classes distintas, objetivos distintos na mesma perspectiva empresarial, ou seja, construindo um projeto em que díspares antagônicos comungam e constroem algo sob o mesmo diapasão, como se fosse possível.
O GEM tem seu próprio instrumento de “‘Pesquisa com a População Adulta’ ou simplesmente APS. Essa pesquisa consiste em um levantamento junto a uma amostra representativa da população adulta (18 - 64 anos) do país (GEM, 2017, pp. 6-7).” A outra base é a pesquisa com especialistas que avaliam sobre os limites e possibilidades do empreendedorismo no país. Diferenciam entre empreendedores em estágios iniciais e os estabelecidos, gerando uma taxa total de empreendedores.
Em 2017, no Brasil, a taxa total de empreendedorismo (TTE) foi de 36,4% (tabela 1.1), o que significa que de cada 100 brasileiros e brasileiras adultos (18 – 64 anos), 36 deles estavam conduzindo alguma atividade empreendedora, quer seja na criação ou aperfeiçoamento de um novo negócio, ou na manutenção de um negócio já estabelecido (GEM, 2017, p.7).
São quase 50 milhões de brasileiros envolvidos, segundo a pesquisa, diferenciando entre os de estágio inicial, os quais estimativamente seriam cerca de 27 milhões de pessoas entre 18 e 64 anos. Na pesquisa apresentada tem modificações entre o ano anterior principalmente no que tange à diminuição entre aqueles que estavam começando a empreender, ocorrendo um decréscimo; o próprio relatório não aponta causas para essa modificação. Numa série de 17 anos nos chama a atenção os dados percentuais como crescem à perspectiva do empreendedorismo na população brasileira. Segundo a pesquisa apresentada, no ano de 2000 era 21% a taxa total de empreendedores, 14% de iniciais e 8% de estáveis, aproximadamente. Já no ano de 2017 os dados são de 20% iniciais, 17% de estáveis e 36%, com dados arredondados, no total da população pesquisada; o que apresenta um crescimento da matriz empreendedora na população brasileira.
Obviamente estes dados foram obtidos a partir da percepção das pessoas sobre como elas se localizam no empreendedorismo dentro da amostragem. A pesquisa não utiliza dados objetivos da Receita Federal ou de outros organismos que poderiam balizar as falas. No entanto, neste trabalho esse elemento é suficiente, entender a formação subjetiva e o seu alcance ideológico na organização do mundo capitalista.
Quando os elementos da realidade batem à porta aparece a necessidade de expressar melhor a ideia de empreendedorismo e a própria pesquisa desdobra uma divisão conceitual já existente, a saber: o empreendedorismo por oportunidade ou por necessidade. Essa segunda categoria demonstra um número expressivo de desempregados e insatisfeitos com o próprio trabalho, que assim, buscam alternativas de sobrevivência muito mais do que o desejo de inovar e consequentemente de empreender.
Neste caso as taxas se dividem em empreendedorismo por oportunidade e por necessidade. – São considerados empreendedores por oportunidade aqueles que, quando indagados na entrevista, afirmam ter iniciado o negócio principalmente pelo fato de terem percebido uma oportunidade no ambiente. – Ao contrário, o empreendedor por necessidade é aquele que afirma ter iniciado o negócio pela ausência de alternativas para a geração de ocupação e renda (GEM, 2017, p. 9).
No empreendedorismo tem o empreendedor crédulo e o encostado, pelo menos no que tange ao impulso inicial. Em 2017: “59,4% dos empreendedores iniciais empreenderam por oportunidade e 39,9% por necessidade” (GEM, 2017, p. 9). A questão vista na amostra apresenta o empreendedorismo como algo inovador para a sociedade, para os negócios, mas quase a metade envolvida no empreender aponta a necessidade como algo decisivo, ou seja, não tem alternativa, daí empreender se torna a única ou última alternativa do momento para a sua sobrevivência.
Quanto à faixa etária: “os jovens de 25 a 34 anos foram os mais ativos na criação de novos negócios, 30,5% dos brasileiros nesta faixa são proprietários e administram a criação e consolidação de empreendimentos em estágio inicial” (GEM, 2018, p.11). Uma juventude que já tem uma certa experiência e cerca de 20% dos mais jovens predominam à fase inicial. “De 45 a 54 anos (...), 25,9% dos brasileiros nessa idade são donos ao mesmo tempo que gerenciam negócios já consolidados.” (GEM, 2018, p.11). O dado mais interessante nesse sentido é que a amostragem aponta que 6 milhões de jovens entre 18 a 24 anos se encontram empreendendo, ou seja, construindo-se enquanto empreendedores; o que poderíamos inferir que seja uma primeira experiência ou uma das primeiras experiências no mundo do trabalho. Já quanto à escolaridade temos a seguinte situação:
Entre os empreendedores iniciais, chama a atenção que o grupo mais ativo de empreendedores é aquele composto por pessoas com apenas o ensino fundamental completo, 23,9% deles são empreendedores iniciais, quase 10 pontos percentuais a mais do que aqueles que possuem diploma de nível superior (14,3%) (GEM, 2017, p.11).
Existe no Brasil uma relação profunda entre classe e escolaridade. Essa relação vem se modificando timidamente com políticas de acesso, em especial, citamos a política de cotas e financiamento público para empresas privadas ao ensino superior, como o exemplo do FIES6. Mesmo com essas modificações nesse panorama nas últimas décadas, de forma mais acentuadamente, os índices de pessoas formadas com ensino superior, comparativamente à América Latina, todavia são baixos: “Ainda que tenha passado de 11%, em 2008, para 21%, em 2018, o Brasil tem a pior taxa entre os países da América Latina, ficando atrás de México (24%), Colômbia (30%), Chile (34%) e Argentina (40%).” (CEARÁ et al, 2021).
Mesmo com esse avanço percentual é reveladora a condição dos empreendedores em sua grande maioria ter só o ensino fundamental, conforme o documento do GEM analisado. Essa maioria está localizada dentro das classes que possuem basicamente sua força de trabalho das mais baratas ou realizadora dos trabalhos mais penosos, com baixa escolarização ou então com um limitadíssimo meio de produção, dentro dos limites artesanais. Complementando esse dado soma-se um elemento instigante, a classe que aparece nos chamados empreendedores estabelecidos: “Dos que não possuem nem o ensino fundamental completo, 22,5% podem ser caracterizados como empreendedores estabelecidos” (GEM, 2017, p. 11), ou seja, são pessoas com baixa escolaridade a maioria dos empreendedores que estão iniciando seus negócios em busca do sucesso, da riqueza, mas que estão com seus ganhos beirando ou abaixo do salário-mínimo. São estimados 12 milhões que não completaram o ensino médio.
Os dados revelam a baixa escolaridade da grande maioria empreendedora. Estima-se que são 26 milhões que têm no máximo o ensino fundamental, soma-se a 20 milhões que possuem ensino médio, sobram somente 3,5 milhões com ensino superior completo. No total são estimados quase 46 milhões que possuem até o ensino médio completo, identificados como empreendedores, percentualmente aproxima-se, mas não chega a reprisar a relação na população brasileira de pessoas com ensino superior. Para completarmos uma visão apagada de classes nesse olhar vamos ver a renda que se mostra nessa pesquisa.
A primeira observação consta da definição de classes sociais como uma divisão do poder aquisitivo, similares à representação por letras (A, B, C, D e E), muito utilizada por vários institutos reconhecidos de pesquisa de mercado, nacional e internacionais. Este tipo de definição, obviamente, não revela as contradições entre classes, ou melhor, as oculta, resumindo as contradições à renda familiar. A lógica utilizada pelo GEM não é diferente, também está fundamentada na quantidade de recursos apropriados pela família. A renda familiar é a referência como forma de substituir a percepção das diferenças fundamentais entre os grandes donos dos meios de produção e a classe trabalhadora em suas diferenças.
Como a desigualdade brasileira é assombrosa, as diferenças entre os ganhos, na pesquisa em tela, apresentam de forma distorcida essa realidade. No GEM é considerada a categoria com a maior renda, a que tem acima de seis salários-mínimos, ou seja, o limite máximo que está colocado, considerados os mais ricos empreendedores. Seis salários-mínimos, no Brasil, são R$6.600,00, nos valores de 2021. Bom comparar que o salário-mínimo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) para novembro de 2021 seria quase R$ 6.000,00. Ou seja, longe de ser um salário de algum rico, ou de alguém de setores das classes médias, ou ainda, com um salário razoável, no máximo, poderia se afirmar que com esse valor seria da classe trabalhadora que ganha o que se chama de salário-mínimo previsto na legislação brasileira, mas que não é efetivado enquanto tal. O DIEESE reafirma que este valor é o mínimo necessário para garantir as condições de vida para uma família de dois adultos e duas crianças.
A tipologia definida na pesquisa já com a quantidade de pessoas estimada, foram as seguintes: a) até um salário são 7,8 milhões de pessoas; b) de um até dois salários-mínimos são 15,1 milhões; c) de dois a três salários 11,2 milhões; d) três a seis salários 11,9 milhões. A última categoria é acima de seis salários-mínimos, ou seja, cabem todos e não expressa efetivamente quem ganha muito dinheiro com o empreendedorismo. Mesmo assim é uma grande minoria: 3,4 milhões que ganham a partir de quase seis mil reais por mês. Pode ser seis mil como sessenta mil reais ou seiscentos mil reais, o zero à direita é livre. Não é explicitado, o que costumeiramente os institutos utilizam para explicar o que é classe A ou E, na maioria das vezes classe A é acima de dez salários-mínimos. Algumas consequências podemos extrair:
Primeiro, até um salário-mínimo, menos de mil e cem reais por mês, que tipo de empreendedorismo é esse que o ganho está abaixo do salário-mínimo oficial nacional? Uma situação famélica? São quase oito milhões nessa condição de penúria. É a pobreza alçada a empreendedorismo, quase um escárnio à condição de desempregado que luta pela sua própria sobrevivência física e mental e da sua família.
Segundo, não muito diferente temos as categorias que ainda não atingem um salário-mínimo do DIEESE, são 34 milhões de pessoas que não ganham acima de 3 mil reais, somando com as categorias do GEM que não diferencia os 4 salários-mínimos oficiais7, portanto, não podemos mensurar pela pesquisa estudada quantos empreendedores brasileiros ganham abaixo do salário-mínimo do DIEESE que garante as mínimas condições de vida de uma família com quatro pessoas. Entretanto, os dados do DIEESE revelam que são 45,9 milhões dos quase 50 milhões de empreendedores que ganham abaixo de R$ 6.000, ou seja, os dados revelam que o empreendedorismo é para a reprodução da desigual redistribuição de renda, reafirmando as diferenças entre as classes sociais.
Terceiro, existe numa grande parte das pesquisas de importantes institutos ligados ao mercado um mecanismo para turvar os dados dos altos ganhos, na maioria das vezes, conforme denunciado por órgãos como OXFAM, entre outros órgãos sérios, em suas pesquisas sobre concentração de renda no mundo. São estarrecedores os seguintes dados: “O 1% mais rico da população brasileira recebe, em média, mais de 25% de toda a renda nacional; os 5% mais ricos abocanham o mesmo que os demais 95%.” (p. 21). Continuando “De fato, 80% da população brasileira – 165 milhões de brasileiras e brasileiros vivem com uma renda inferior a dois salários-mínimos mensais” (OXFAM, 2017, p. 21). Por fim: “Os 10% mais ricos do Brasil têm rendimentos domiciliares per capita de, em média, R$ 4.510,00 e o 1% mais rico do país recebe mais de R$ 40.000,00 por mês.” (OXFAM, 2017, p. 22)
Até mesmo a pesquisa da OXFAM que demostra a desigualdade produzida pelo capitalismo se equivoca na caracterização das classes sociais, talvez pelo tamanho do fosso entre as classes dominantes e a própria classe trabalhadora, que coloca famílias que ganham abaixo do salário-mínimo do DIEESE como parte das mais ricas, das 10% mais ricas do Brasil. Apesar da diferença fundamental, pois o relatório da OXFAM é uma peça crítica à sociedade que produz a desigualdade e o relatório do GEM é em defesa do sistema. Entretanto, as duas perspectivas não conseguem demostrar os fundamentos das desigualdades entre classes e ainda colocam setores da classe trabalhadora como ricas, ou seja, como altamente beneficiárias pelo sistema capitalista, como se fossem parte da burguesia.
Quando a pesquisa aporta um número já pequeno de menos de 10% de empreendedores que ganham acima de seis mil reais, podemos perceber a fábrica de sobreviventes eivados de glamour de não serem mais trabalhadores ou desempregados ou autônomos, um verdadeiro fetiche. O fetichismo ocorre justamente quando pelas práticas sociais não há o reconhecimento das relações de produção e inverte-se a localização do sujeito produtor, no caso concreto, no empreendedorismo ele assume o seu contrário, a perspectiva burguesa, justamente o seu algoz. É a encarnação burguesa no proletário: o empreendedor sem capital.
Um outro dado social que poderíamos destacar, caracterizando o empreendedor como trabalhador autônomo, é o seguinte, “68,4% de empreendedores estabelecidos que não gera nenhum posto de trabalho no negócio que criou” (GEM, 2017, p.15). No caso, gera uma renda, mesmo que pequena, para si e sua família. Na pesquisa é chamado de auto ocupação. Por outro lado, “Em 2017, empregam [empreendedores iniciais], formal ou informalmente, mais de 8 milhões de pessoas, e os empreendedores estabelecidos, aproximadamente 11 milhões” (GEM, 2017, p.15). Temos dois importantes elementos nessas citações. Um primeiro trata-se do trabalhador autônomo que por não ter um patrão direto ficou sensibilizado pela lógica de ser um empreendedor, mesmo que dentro de situações dificílimas de sobrevivência e não gerador de nenhum posto de trabalho, a não ser a sua atividade. Sua autopercepção deu um salto de qualidade, que já vinha de outros movimentos do capital na descaracterização da classe trabalhadora, sua identidade, organização e consequentemente suas lutas. Negar-se a si enquanto classe subalterna é uma fase importante da subsunção do trabalho pelo capital. Por outro lado, os trabalhadores autônomos ou pequenos empresários que contratam outros trabalhadores, muitas vezes de forma precária, são os que geram a maior quantidade de postos de trabalho no Brasil, interessante que mesmo em lugares sociais bem distintos, ambos são hegemonizados pela categoria empreendedor.
Sobre faturamento alguns dados são expressivos. Dos empreendedores iniciais quase 22% ainda não faturou nada, dos estáveis, esse percentual é zero pois obviamente a continuidade dessa situação leva a fechar o negócio, da conhecida alta taxa de mortalidade dos pequenos empresários no Brasil. Novamente temos um problema para interpretar situações tão díspares colocadas em uma mesma categoria, quase uma missão impossível. Na penúltima categoria dos que mais faturam, juntou-se quem ganha no mínimo R$ 60.000 ao ano com quem fatura até R$ 360.000,00, quando é divido por uma média mensal significa que a média do mais baixo dentro dessa categoria é de R$5.000,00 mensais e do mais alto R$30.000,00 de média mensal, em princípio situações bem distintas de acumulação de bens. E estes só são quase 4% de empreendedores. Na categoria acima de R$30.000,00 mensais de faturamento média ao mês, somente 0,3% dos empreendedores estão estabelecidos. Aqui, talvez, descobrimos ‘o segredo de Luiza’8, ou conseguimos entender os verdadeiros passos de sucesso explicitados nos variados manuais, principalmente o glamour que traz o empreendedorismo: mas, na prática, quem vai faturar com o empreendimento? Quem serão os empreendedores das altas faturas? Quantos são os homens de sucesso ganhando rios de dinheiro?
A segunda parte da pesquisa são as opiniões de sessenta especialistas sobre o empreendedorismo no Brasil que abordam fundamentalmente o ambiente existente ou necessário para o desenvolvimento do empreendedorismo. Uma das análises levantadas é da relação entre as possibilidades de abertura de empregos como alternativa para os empreendedores. No caso brasileiro estamos falando de um empreendedorismo de resultados tremendamente baixos em seus ganhos, estamos falando de trabalhadores autônomos, muitos destes sob uma relação laboral precarizada, que mesmo dizendo que fazem empreendedorismo por oportunidades, estas são mais encontradas no horizonte do desemprego do que perspectivas de fazer fortuna. Essa análise é diminuída de importância e volta a culpabilização pelo não sucesso à suposta própria incapacidade pessoal do chamado empreendedor.
Em relação às habilidades, conhecimentos e experiências para a abertura de um empreendimento, o brasileiro se mantém ‘autoindulgente’, ou seja, para 55,6% dos brasileiros, eles próprios reúnem plenas condições cognitivas e operacionais para se aventurarem em uma empreitada empreendedora (GEM, 2017, p. 16).
Essa autoindulgência, posta no relatório, subjaz uma ideia da existência de uma arrogância na maioria dos empreendedores brasileiros que não se preparam de uma forma adequada para empreender. No nosso entendimento, sem negar a existência de uma formação precária, existe por parte dos especialistas outro tipo de arrogância, que é justamente culpabilizar o caráter não formado da maioria do povo brasileiro.
Além desse caráter de formação apontado como insuficiente, vendo os dados da baixa escolaridade, transparece o ciclo vicioso do terceiro mundo, em especial do caso brasileiro. Há a necessidade de uma força de trabalho a ser barateada através do pouco investimento no processo educativo, entretanto esta explicação está relacionada justamente com o seu oposto, que é a ideia da educação como solução para os problemas sociais e econômicos, na verdade podemos ver que o que ocorre é mais um sintoma da reprodução da desigualdade e profunda concentração de riqueza existente no capitalismo brasileiro. Consequentemente vemos uma baixa escolaridade servindo ao barateamento da força de trabalho nomeada como empreendedora.
A questão da cultura brasileira de superar desafios é apontada como o principal fator favorável ao empreendedorismo, além do potencial de nossa diversidade étnica. Na última pesquisa apontaram: Políticas governamentais e programas com 88,3% no grau de importância, depois vieram quase empatadas educação e capacitação com 41,7% e apoio financeiro com 40%. Evidente que essas expressões não são excludentes, só são prioridade nas análises dos especialistas.
Dentro das recomendações, duas explicitações nós destacamos. “Acompanhamento dos efeitos da reforma trabalhista no contexto de criação de novos empreendimentos. Políticas públicas para o empreendedorismo devem ser estimuladas e desenvolvidas em periferias” (GEM, 2017, p.19). Na primeira fica claro o movimento do capital em seu mais atual momento neoliberal de flexibilização, ou melhor, de retirada dos direitos da classe trabalhadora, com o aumento da precarização do trabalho, o que significa a passagem de recursos dos trabalhadores, principalmente, para as classes dominantes. A segunda, a entrada do empreendedorismo nos lugares mais empobrecidos da população e com mais vigor dessa ideologia9 empreendedora, demonstra que o projeto de empreender é um projeto para o conjunto da sociedade de uma revolução capitalista. Essa classe trabalhadora cada vez mais longe de possuir direitos, não só com a reforma trabalhista, mas também com a reforma da previdência social, entre outras, vai legitimando a figura empreendedora, alijando-se de direitos conquistados pelo próprio proletariado ou grupos do mesmo. Nos chama atenção o desenvolvimento da ideologia empreendedora nas classes subalternas até nos seus setores mais empobrecidos.
Quanto ao processo educacional propõe-se uma verdadeira blitz em todos os níveis: fundamental, universitário, ensino médio, todos deverão estar colocando num altar o empreendedorismo, como mel para as abelhas operárias, além disso, indica a utilização e apoio aos organismos históricos, como o sistema S, similares ao SEBRAE, bem como a utilização dos meios de comunicação de massa.
Já no financiamento aponta para o aporte necessário às pequenas e novas empresas, como se o empreendedorismo fosse algo do pequeno capital. Vimos como o grande capital controla seu processo produtivo e a distribuição dessa cadeia incluindo a pequena empresa. A pequena empresa é dependente do modelo, dos esquemas do grande capital, e mais, ela deve sujeitar-se a realizar uma formação em larga escala para seu projeto de empreender, de ser mais vibrantemente capitalista, consequentemente mais dependente dos grandes grupos corporativos.
Nessa disputa o capital tenta acabar com todos os tipos de resistência do seu modus operandi, inclusive no plano ideológico. Uma de suas estruturas teóricas desenvolvidas ganha força com a derrocada de uma perspectiva socialista, que apontava e aponta para uma nova forma de organizar a produção em suas relações sociais, é a perspectiva pragmática. Aqui aparece um conceito fundamental para aceitar as possibilidades de incorporação dos elementos capitalistas. Evidente que sobressai a dúvida: até que ponto é um mero trabalho de sobrevivência e resistência possível dentro do capitalismo ou uma aceitação, uma adaptação ao modelo, tentando retirar dele o que ele permite?
Um conceito muito utilizado dentro desse espectro capitalista, ou sistêmico, que se coloca enquanto contradição ao próprio sistema é a ressignificação dos mesmos. Ressignificar potencializa, em tese, a possibilidade do contraditório dentro do próprio sistema. Os setores antes excluídos, aparentemente, da produção, tornam-se visíveis, se relocalizam no mercado ou em um nicho específico. A questão é o alcance transformador ou, pelo contrário, da distração na leitura da própria realidade desse processo de ressignificação. A possibilidade de empreender com sucesso atrai setores historicamente excluídos de possibilidades melhores na escala da produção capitalista brasileira, pois sempre foram incluídos nos piores e mais dolorosos espaços de trabalho ou no exército de reserva industrial, como diz a canção “A carne mais barata do mercado é a carne negra.10” Essa possibilidade de empreender da população negra está inserida num grito antirracista, mas limitada ainda dentro das balizas de um capitalismo que carrega consigo o racismo. Isso não deixa de ser um elemento contraditório, alguém que está posto para se tornar classe média ou quiçá burguês, o que é mais raro, na condição de negro ou negra, não deixa de ser uma vitória individual como também uma exposição do racismo, de suas caracterizações dominantes e repressoras, mas que não viabiliza uma melhora coletiva dos negros e negras, social ou economicamente.
Como fundamento histórico são citadas muitas vezes as iniciativas da população negra no século XIX, de unidades de sobrevivência, de apoio mútuo, como a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Alguns exemplos caracterizam a força prática ideológica do capital em colocar o empreendedorismo como uma grande saída deixando incólume a própria estrutura capitalista em que essa está fundada. Vejamos:
Para Jaqueline Fernandes, 41 anos, gestora cultural e diretora da Griô Produções, o empreendedorismo é uma invenção das mulheres negras. Desde o início, esteve ligado ao fortalecimento da cultura e da identidade. Ela explica que a Irmandade da Boa Morte carrega esse significado, uma vez que o ato de empreender nasceu de uma necessidade e foi decolonial por natureza. A irmandade é uma reunião que surgiu na época da escravatura, uma associação laica que funciona sob princípios religiosos católicos foi criada, exclusivamente, por mulheres negras. Diretora do Instituto Afrolatinas, Jaqueline explica que, ainda no século 19, essa comunidade criou estratégias bem estruturadas de resistência e compraram alforrias de pessoas escravizadas com a venda de quitutes, contribuições e taxas de seus associados (ARAÚJO, 2021)
Toda iniciativa de sobrevivência, de resistência, de produção de alguma mercadoria ou serviço utilizando-se de criatividade ou pelo menos, dos recursos conhecidos, como a elaboração de quitutes e vendas do mesmo, é definida como algo empreendedor. Essa universalização demonstra muito menos a definição concreta do fenômeno histórico empreendedor e sim a hegemonia dos que controlam as práticas dos dominados velando o prisma burguês dominante. A ideia das inúmeras situações de sobrevivência, trabalhos autônomos, cooperados, anteriores ao empreendedorismo, expressa, na verdade, uma das inúmeras formas de sobrevivência que parte da própria condição subalterna, de forma criadora, com o objetivo fundamental da manutenção ou a construção de algum outro projeto específico ou, em especial, da própria sobrevivência.
No nosso entendimento, existem alguns problemas nessa reivindicação de Jaqueline Fernandes de caracterizar ações do século passado descritas por ela como empreendedorismo. Ocorriam fenômenos secundários que alicerçavam o eixo da economia exportadora, do açúcar, por exemplo, este baseado no latifúndio, com inúmeros escravos e depois trabalhadores assalariados, eram trabalhos também livres que permitiam a sustentação desse complexo. Essa indústria, a plantation, sempre compôs um entorno, desde os alfaiates, sapateiros, produtores de comida, ou outros trabalhadores intermediários nesse processo, que faziam a população sobreviver, uns com mais, outros com menos recursos. Era um sem-número de atividades ao redor. Evidente que mesmo nesses trabalhos livres, sempre esteve presente a cláusula de barreira chamada racismo estrutural.
Outrossim, é louvável os vários movimentos de compra de alforrias pois contribuía para questionar, apesar de não modificar o sistema escravagista vigente. Essas inúmeras iniciativas antirracistas que aconteceram deram volume ao rio pelo fim da escravatura como um todo e não de forma particular. A forma particular não pode ser substituída pela totalidade, mas ela compõe em sua importância na totalidade, podendo a mesma servir para uma futura ruptura ou para a adaptação ao sistema, no nosso entendimento as liberações particulares das pessoas escravas, contribuíam para o questionamento da estrutura escravista, já as iniciativas empreendedoras não têm esse papel, pelo contrário, legitimam ainda mais o sistema de exploração que está na sua essência, não se combate o capitalismo, o mercado e seus mecanismos de reprodução. Enquanto a compra de cartas de alforria questionava intrinsecamente a escravidão, o empreendedorismo/capitalismo não questiona nada em sua essência.
Afirmar ações desse tipo enquanto empreendedorismo de outro momento histórico, não contribui para enfrentar o modo de reorganização vigente, incorre em um anacronismo, negando a própria construção histórica dessa categoria empreendedorismo, que está efetivada no capitalismo neoliberal controlado pelas classes dominantes, reforçando um capitalismo que nega a própria existência das classes e, consequentemente, das contradições existentes nessa raiz. Nos tempos atuais essa ação das classes proletárias desempregadas, servem para a sua manutenção enquanto exército industrial de reserva, movimentando a economia. Iniciativas como vender quentinhas para trabalhadores em uma construção civil, contribui para a própria reprodução daqueles que estão na ativa, mas ideologicamente são instados a se creditarem como parte dos de cima da engrenagem do capital, não mais como iniciativa de desempregados, de autônomos, mas de empreendedores, uma subespécie valorizada de empresários, de burgueses ou pequeno-burgueses.
Quando uma mulher negra vence inúmeros obstáculos e se destaca numa sociedade machista e racista, essa particularidade não pode obscurecer que essa vitória mesmo aplaudida, demonstrando suas capacidades e tantas outras qualidades, é insuficiente para a transformação das relações sociais capitalistas, racistas e machistas que estão postas para o conjunto da sociedade, no caso, especialmente para o conjunto da população negra proletária. Reconhecer a vitória de um indivíduo que faz parte de um grupo social historicamente oprimido é uma alegria que não pode obnubilar a necessidade de enfrentar o empreendedorismo enquanto expressão mais moderna e fetichizante do capital na atualidade. Resgatar o trabalhador e trabalhadora autônoma, as iniciativas cooperadas colocando-as no fluxo do enfrentamento do empreendedorismo, do capitalismo e do racismo entre outras caracterizações, talvez seja o grande desafio nesses tempos que tudo se resolve pela régua do capital, ou se quisermos atualizar, pelo aplicativo empreenda e seja um diferencial, é só você querer... A questão é que um belo exemplo de superação não pode ser alcançado pela maioria devido à própria estrutura social capitalista que vive da exploração do trabalho, e, no caso, com maior opressão da população negra. Caso as relações sociais de produção e raciais vigentes não sejam questionadas e combatidas, a ideia ou prática da ressignificação tem o seu nascimento insuficiente para uma transformação anticapitalista e antirracista. Empreender, hoje, não deixa de ser uma experiência ligada à reprodução capitalista e todas suas caracterizações históricas.
Não devemos deixar de entender a concretude das assertivas feitas pelos afroempreendedores, de suas dificuldades específicas, do racismo existente no meio daqueles que já possuem algum tipo de estrutura ou mesmo de capital. Essas contradições se expressam de variadas formas não só enquanto burguesia versus proletariado, mas entre o proletariado, entre a burguesia, entre proletários homens e mulheres, etc. Vejamos a forma como Jaqueline Fernandes aborda as dificuldades existentes sobre a inserção da mulher negra no mercado: “De acordo com a empresária, os corpos pretos e pardos não são individuais, mas coletivos, por isso, também, ela considera impossível que se empreenda, enquanto uma mulher negra, de maneira isolada” (ibid). As dificuldades postas pelo racismo estrutural se apresentam mesmo quando toda a cultura empreendedora é individualizada, omitida a perspectiva de classes, empreender para a população negra não funciona da mesma forma do que para brancos, isso é real, mesmo estando negros e brancos numa mesma classe social. Porque ser negra e empreendedora no Brasil significa, de acordo com Jaqueline Fernandes, “enfrentar o mundo, sobreviver ao racismo e às violências geradas por ele” (ibid)
O racismo se compõe dentro das relações capitalistas, com suas particularidades. Ele se apresenta dentro dos negócios, pequenos ou grandes, não desaparece por estar uma mulher negra em um lugar burguês ou de classe média, pois não está posta a superação da estrutura racista, coletiva, destas classes historicamente construídas. A entrada de pessoas negras carrega ou traz consigo essa contradição racista da aparente impossibilidade dos negros e negras estarem em outro lugar social. A relação de classe e a negritude possui um histórico condicionante de nossas práticas e nossas reflexões, marcas indeléveis oriundas do processo escravagista às quais as classes brasileiras se forjaram. Mesmo com a imigração posterior estão marcados por essa herança, os sujeitos negros reprimidos de forma vil dentro de nosso capitalismo racista. Portanto, não se pode confundir a estrutura racista com a movimentação de sujeitos particulares dentro dessa estrutura que ao mesmo tempo releva, questiona, mas não tem a força da superação do sistema. Saídas particulares ocorrem e torcemos para que elas sirvam de questionamento, mas muitas, se essas situações não forem incorporadas aos movimentos de transformação radical das estruturas, serão somente bálsamos particulares, muitos deles reprodutores da ordem de forma mais sutil, aparentemente mais humana, retomando uma antiga ideia reformadora do capitalismo. O antagonismo no campo das ideias se revela quando estamos justamente num momento em que as relações capitalistas avançam sobre os direitos, a existência enquanto polo da classe trabalhadora. Não se fala mais sobre capitalismo selvagem de forma pejorativa, o que está posto é a vivência numa concorrência desenfreada, numa tentativa de apagamento da exploração tanto enquanto extração de mais valor relativo quanto absoluto, com aumento de jornada de trabalho, por exemplo.
Junto com o sentimento antirracista apontado tanto na entrevista citada, como também na literatura ampla sobre o empreendedorismo contemporâneo, aquele não é caracterizado como um sentimento anticapitalista, pelo contrário; a lógica reformista (reformas do capital para modificação do mesmo), é ainda muito frágil. A ilusão ou o fetiche construído a partir dessa prática e lógica empreendedora ainda seduz e encobre a perceptiva reprodutora em alto nível do capital mundial e no Brasil. Como exemplo, citamos:
Segundo Jaqueline, os micro e nano empreendedores negros estão, em toda parte, consumindo, fornecendo serviços e produtos, gerando empregos e impactando a economia. No entanto, falta investimento mínimo, que faria diferenças significativas para o desenvolvimento econômico brasileiro. Ela explica que não somente um lado ganharia. Há o potencial de fortalecer a base da pirâmide social, uma vez que os negros estão nela, em sua maioria. (ibid; grifo nosso).
A base da pirâmide continuaria como base, os mais empobrecidos, no esquema empreendedor? Infelizmente, sim... Esse espaço para a criação de uma classe média e setores burgueses negros, apesar de todas as dificuldades, de diferenças localizadas, se revela concretamente na criação, por exemplo, de uma empresa voltada para os negócios de investimento do capital. A criação da Conta Black de banqueiros (e não bancários/as), como exemplo, ressalta em seu manifesto – forma política progressista de posicionamento –, as diferenças de outras empresas, mas não escapam dos elementos comuns sistêmicos capitalistas. Assim abre o manifesto localizando-se enquanto um coletivo de oprimidos e lutadores, vejamos:
A vida para nossa comunidade é feita de obstáculos e desafios que só nós vivenciamos. Dia após dia enfrentamos dificuldades que não parecem ter qualquer razão, ainda mais porque não somos diferentes em nada. Mesmo assim, somos fortes, lutadores e queremos que ouçam nossas vozes. A batalha que entramos para oferecer um banco a você, que luta como a gente, é vista como ousadia. (MANIFESTO CONTA BLACK).
Ao mesmo tempo que questiona uma situação deplorável produzida pelo capitalismo racista, oferece um banco obviamente dentro da lógica capitalista, e este sistema, caracterizado pela impossibilidade da separação da estrutura classista com o racismo. Assim, não poderia deixar de vender o que todo consumidor quer, sigamos no manifesto:
Juntos, nós somos a ‘RESISTÊNCIA’. Somos o novo ‘PODER ECONÔMICO’. Não aceitamos o ‘NÃO’ como o fim da história. Cansamos da mesmice. Vamos para cima. Buscamos nas imperfeições os originais e os independentes. Queremos você para nos ajudar a construir um novo ecossistema financeiro, que seja pensado e direcionado por VOCÊ! (MANIFESTO CONTA BLACK).
Segundo a citação, a resistência se torna um novo poder econômico, ou melhor, ao serem vistos como indivíduos, homens e mulheres negras, é respondido não mais como um problema social, coletivo, comunitário, mas sim como uma questão pessoal, um partir para luta no jogo proposto, e esse novo ecossistema financeiro, nada anticapitalista vai ser direcionado não pelos movimentos, pelos coletivos, pelas classes subalternas, pelos grupos de luta, mas por você. Por um indivíduo, por uma lógica individualizante que sabemos que é necessária para legitimar as desigualdades sociais, étnicas e raciais, inclusive, servindo de fachada para manter o poder econômico dos grandes grupos. O novo poder econômico se coloca na esfera do capital de hegemonia financeira, marcada pelo aumento da exploração do trabalho.
A melhora, ou enfrentamento individual de uma situação social de classe ou racial, como por exemplo, você conseguir um emprego ou ganhar na loteria, ou enfrentar uma questão de racismo, ou ainda, tornar-se um afroempreendedor de sucesso, pode modificar uma situação particular, pode ter um resultado contrariando o racismo existente, porém de uma forma localizada. Por ser estrutural o racismo, essa situação não modifica o conjunto das relações capital e trabalho, nem o racismo estrutural. Situações essas, no máximo, podem servir de exemplo de possibilidades dentro de novas relações necessárias a serem construídas, ou seja, no enfrentamento e destruição do capitalismo/racismo existente.
Essas formas, portanto, não estão desvinculadas dos grandes esquemas corporativos. A vendinha em um boteco no interior ou uma comunidade extremamente empobrecida, por exemplo, não se resumem a produtos feitos pela própria pessoa, pelo contrário, ali na maioria das vezes existe uma importante comercialização de insumos industrializados, a exemplo de bebidas, trigos, alimentos processados etc., pertencentes a um complexo industrial/comercial das grandes estruturas do capital, servem fundamentalmente para a reprodução do capital e obviamente da vida do conjunto do proletariado empregado ou desempregado, ou simplificando, compõe a própria reprodução da força de trabalho da sobrevivência da classe trabalhadora.
Clóvis Moura (2019) refere-se a uma situação estrutural e desigual entre negros e brancos dentro da própria classe trabalhadora brasileira com a matriz escravocrata ainda presente. Segundo esse importante autor, no processo de migração europeia para o Brasil, a força de trabalho negra foi tratada de forma pejorativa à sua capacidade em assumir seu papel na indústria, numa perspectiva novamente de manter a opressão para os ex-escravos agora livres, mas impedidos de construírem a sua própria sobrevivência. Essa estrutura racista da exploração, por exemplo, ainda se reproduz com outros contornos, ora mais sutis ora de forma mais cruéis.
As experiências solidárias, associativas e de tantas matizes dos setores oprimidos existentes historicamente no Brasil não podem anuviar a realidade violenta como é tratada a diferença social, étnico-racial no Brasil. Existem vários exemplos de superação ou de destaque: Luiz Gama, Machado de Assis, Milton Santos, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Carmem Virgínia, Rosana Paulino, e milhares de outros exemplos que não podem confundir o significado da superação pessoal, ou de um coletivo específico, estes de forma limitada, com uma mudança estrutural, pois a categoria do empreendedorismo dentro das estruturas sociais vigentes e atualizadas no ultraliberalismo, traz uma necessidade de reprodução em larga escala do desemprego, mantendo uma grande parte dos desempregados(as) minimamente vivos(as) com a manutenção das classes e seus indivíduos, ou até, mortos como excedentes, como a mortandade da juventude negra no Brasil. Apesar de que no capitalismo a mobilidade entre classes é uma regra, limitada, mas é uma regra. Assim, o empreendedorismo leva a sensação de uma liberdade não existente para o conjunto das classes oprimidas e exploradas. Se algumas exceções são mais visíveis hoje em dia, não quebram a regra da reprodução em larga escala dos lugares de classe no Brasil, agravando a situação social e econômica enquanto mulheres, negros(as), povos indígenas e outros setores oprimidos.
Marx (1989) já realizava a crítica aos teóricos do capitalismo que defendiam o sistema como eterno, ou que sobrepunha momentos históricos abstraindo as relações sociais de produção histórica. A crítica às robisonadas11, ou seja, à tentativa de explicar o funcionamento do capitalismo de forma individual, idealizada e ahistórica, abstrai as relações de exploração do trabalho e a apropriação desse resultado. Afirmavam que as primeiras relações de trabalho humano, ou de trabalho sob outros modos de produção já podiam ser consideradas capitalistas. Marx apontava a necessidade da realização de uma leitura histórica dos modos de produção e de suas caracterizações especificas. No nosso caso, poderíamos parafrasear essa crítica à nomeação das ações antigas de trabalho ou do trabalho de autônomos como ações típicas do capital. A utilização dessa categoria como a explicação ahistórica e para todas as iniciativas fere a própria proposição, apaga os sujeitos em contradições fundamentais nas relações existentes dentro do capitalismo, embaça o momento histórico tanto da época passada como a de hoje, em que o empreendedorismo tem bem definido seu DNA nas determinações do capitalismo neoliberal, ou se quisermos, do ultraliberalismo.
O empreendimento também se apresenta como algo inerente à criatividade ou ousadia humana, naturaliza o capitalismo em sua forma mais moderna e ao mesmo tempo retira seu caráter histórico. Empreendedorismo, elemento estratégico no capitalismo atual, é transformado de uma categoria explicativa da realidade, numa panaceia idealizada na qual o empreendedor passa a assumir o lugar do capitalista, é aquela situação quase tragicômica: ser capitalista sem ter capital. Essa aventura categorial, na verdade tem o sentido que o capitalismo hodierno vem galgando desde as perspectivas da formação por competências, da empregabilidade, que é justificar seu ataque ao proletariado, seus direitos, ideologia, organizações e lutas, subsumindo-o em sua completude, ou seja, invisibilizando-o.
A afirmação prática e ideológica do empreendedorismo compõe o processo de legitimação e manutenção das diferenças econômicas e sociais entre as classes. É o sistema capitalista revolucionando todas as suas ações e discursos, interferindo de forma destrutiva na identidade proletária, nas possibilidades organizativas enquanto classe trabalhadora e enfrenta tudo aquilo que possa atrapalhar a sanha precarizante do capital atual. Assim é uma caracterização do empreendedorismo visto através da ótica classista, de uma perspectiva de ruptura com o capital.
Uma de suas contradições que possibilita a revelação do maior sentido da perspectiva universalizante do empreendedorismo, como algo que extrapola a burguesia é a diferenciação de empreendedorismo por necessidade àquele por opção. A necessidade revela o modelo neoliberal de organização da política, da produção com perdas de direitos, com um desemprego legitimado sendo a origem dessa necessidade. Esta é uma lógica de estreitamento das possibilidades da classe trabalhadora para além de se organizar, simplesmente reivindicar os seus interesses que estão sendo evaporados concretamente. Para tal efetivação da ação empreendedora é necessário mudanças no aparato jurídico, perda de direitos trabalhistas, por exemplo, como também ideologicamente igualar todas as classes em sujeitos empreendedores. No entanto o nirvana não será para todos, somente aqueles empreendedores vitoriosos, dignos de sucesso, independente de sua classe, diferentemente daqueles derrotados que não assumem a sua responsabilidade de sobrevivência, os não empreendedores ou os fracassados. Assim, a pesquisa do GEM (Global Entrepreneurship Monitor), revela todo o condicionamento ideológico de uma grande massa da classe trabalhadora que na busca de sua sobrevivência acha no empreendedorismo um canal importante, negando a sua própria condição social e o pior negando os condicionamentos em que está estabelecida sua condição subalterna, historicamente oprimida, explorada.
Esse processo educativo das classes ocorre num amplo sentido, nos mais variados lugares do fazer da prática humana: no trabalho, na escola, igreja, nos meios de comunicação, numa legitimação complexa, visto que as contradições objetivas baseadas na extração do trabalho não se dissiparam, mas se reconstruíram num fazer empreendedor e são cada vez mais introjetadas nas consciências da classe trabalhadora, legitimando-se como único projeto possível societário, o capitalismo moderno.
Portanto, o processo educativo para tal, não pode ser considerado simplesmente como uma aula, uma exposição de ideias, um distribuir de manuais e compêndios, mas todas as práticas bem como as ações intelectuais legitimadoras, fetichizando os lugares sociais das classes, ou seja, a lógica burguesa de vida e trabalho passa a ser um norte defendido por uma grande parcela de outras classes. Se, por um lado a reafirmação dos arautos do capital defendem essa novidade capitalista como salvação para o que eles chamam do fim da era do emprego, do término das relações entre capital e trabalho, e, como saída econômica para todas as classes, por outro lado omitem a questão central, que se dá no terreno das relações capitalistas, ou seja, modelo este que visa o aumento da exploração do trabalho. A manutenção para a maioria será de subalternidade, para a continua exploração que aumenta não só a mais-valia relativa, mas também a intensidade do trabalho.
Vende-se a ideia de uma sociedade empreendedora, sinalizada com brilhantes e luzes que o sucesso é realmente para aqueles que saberão navegar pelas águas turbulentas e glamourosas do empreendedorismo, ou seja, nem tudo é escondido, mas o desafio está posto, para vencer, basta querer e se preparar, eis o canto da sereia, para naufragar milhares de homens, mulheres, negros e negras da classe trabalhadora desempregada que necessita de alguma viração para sobreviver.
A sequência prática de reorganização do capital com utilização de elementos de organização do trabalho e tecnológicos de última geração são instrumentos da política de enfrentamento da crise capitalista das últimas décadas do século XX e que adentra o século XXI, essa saída se apresenta, obviamente, não sem contradições cada vez maiores. Seria um dos ápices do fetiche ou seria um fake programado, que retira direitos de um lado e vende ilusões de outro para o conjunto da sociedade? Afinal, quem são os principais beneficiários de uma sociedade empreendedora?
No outro capítulo subsequente da novela empreendedorismo, surge a tentativa de setores oprimidos construírem uma visão diferente do empreendedorismo, a chamada ressignificação. A garra e a luta dos afrodescendentes contra o racismo são justos e fundamentais para a construção de uma nova sociedade. No entanto, ao adentrar no complexo do empreendedorismo vemos que os mandamus do capital existentes não são modificados na sua essência, as formas de exploração de trabalho não são apontadas como partes a serem superadas. Pelo contrário, demonstra a força do empreendedorismo, prática e ideológica que empurra a luta antirracista para dentro do terreno do capitalismo historicamente construído como racista. Mesmo com uma honestidade que denuncia o racismo na sociedade e busca enfrentá-lo, entendemos que a força hegemônica empreendedora é poderosamente centralizadora, justamente por se dar no terreno da reprodução do capital.
Ali, no afroempreendedorismo, existem bases críticas ao modelo racista da sociedade, mas devidamente adaptadas à lógica do mercado, mesmo que buscando um nicho específico próprio que lhe garanta uma manobra dentro do mercado, longe de fugir das leis do mesmo e dos benefícios para alguns do lado de cima, e como sabemos, o lado de baixo, a base da pirâmide, deverá ser feliz sustentando a parte superior. Mesmo com boas intenções e revelando elementos antirracistas da sociedade, em especial do mercado, fica incompleta essa luta por causa da impraticabilidade desse movimento empreendedor, mesmo ressignificado, pois na prática não rompe com a exploração e os condicionantes da efetivação da mesma. A luta antirracista no nosso entendimento ganhará relevo quando for tratada como um conjunto da luta anticapitalista associada à luta contra a exploração da maioria, das negras, negros, pobres, povos indígenas etc.
O empreendedorismo tem a força do fetiche, de mutilar a história naturalizando as relações sociais vigentes, de transformar as particularidades (sucesso de um, por exemplo) em totalidade, de uma verdade relativa em absoluta, interferindo nas organizações independentes de classe, ganhando o enfrentamento ideológico e garantido o seu campo como local de disputa. Atua como elemento adaptativo do conjunto da sociedade para esse renovado e revolucionário modelo capitalista. Assim, o empreendedorismo contribui para a desorganização dos trabalhadores e trabalhadoras no intuito do aumento da exploração a partir da subsunção da complexa classe proletária pelos capitalistas, em suas variadas formas e particularidades. Cabe aos de baixo, além de construir seus mecanismos de sobrevivência, efetivar suas análises teóricas e práticas visando a reorganização e lutas classistas tão necessárias em tempos tão difíceis.
