ARTIGO
Recepção: 01 Abril 2022
Aprovação: 01 Junho 2022
DOI: https://doi.org/10.51359/2448-0215.2022.253999
Resumo: O presente artigo é fruto de acúmulos teóricos e empíricos de pesquisa realizada junto aos sindicatos e empresas na produção de calçados na região do Vale dos Sinos, localizada no estado brasileiro do Rio Grande do Sul (RS). O foco desta investigação voltou-se às principais conexões econômicas e políticas existentes entre as grandes, as médias e pequenas empresas (MPEs) e os sindicatos de trabalhadores. Os resultados da pesquisa possibilitam reflexões em torno da precarização da força de trabalho tanto nas MPEs quanto nos segmentos informalizados, no sentido de elucidar as principais determinações econômicas e políticas presentes nessa realidade particular que refletem as contradições entre as classes sociais na atualidade.
Palavras-chave: trabalho, micro e pequenas empresas, sindicatos, precarização.
Abstract: This article is the result of theoretical and empirical research carried out with unions and companies in the production of footwear in the Vale dos Sinos region, located in the Brazilian state of Rio Grande do Sul (RS). The focus of this investigation turned to the main economic and political connections existing between large, medium and small companies and workers unions. The research results allow reflections on the precariousness of the workforce both in companies and in informal segments, in order to elucidate the main economic and political determinations present in this particular reality that reflect the contradictions between social classes today.
Keywords: labor, small business, medium and small companies, workers unions, precariousness.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto de acúmulos teóricos e empíricos de pesquisa realizada junto aos sindicatos e empresas na produção de calçados na região do Vale dos Sinos, localizada no estado do Rio Grande do Sul (RS). O foco desta investigação voltou-se às principais conexões econômicas e políticas existentes entre as grandes, as médias e pequenas empresas (MPEs) e os sindicatos de trabalhadores. É consenso na literatura acadêmica que o atual estágio do desenvolvimento do capitalismo tem cada vez mais acirrado as contradições entre classes, refletindo as principais expressões da questão social, em seus aspectos econômicos, sociais e culturais2. Uma das consequências da expansão do capital é a flexibilização da produção, através das Micro e Pequenas Empresas (MPEs), o que impõe desafios à resistência dos trabalhadores, num contexto de aprofundamento das formas da terceirização e subcontratação da força de trabalho no Brasil.
Nossos estudos têm como base a teoria marxiana que parte do pressuposto teórico-metodológico de que a análise do desenvolvimento do capitalismo não é somente o estudo das leis tendenciais do seu modelo econômico, mas também das relações sociais que o conformam e que lhe dão sustentação. Marx (1979) ensina que para a apreensão dos fenômenos e do seu movimento é necessário partir do concreto, porque o concreto é a síntese de múltiplas determinações e, portanto, a unidade do diverso. Torna-se o concreto o ponto de partida, ainda que limitado do ponto de vista de suas determinações e contradições, mas ainda assim é o ponto de partida da intuição e da representação necessárias ao desenvolvimento da investigação.
As principais questões que serviram de ponto de partida à nossa pesquisa foram: qual a relação produtiva entre as MPEs e as grandes empresas? Quais as estratégias de gestão do trabalho por parte das MPEs? Quais as implicações políticas, econômicas e sociais dessa divisão do trabalho? Quais as particularidades do desenvolvimento das cadeias produtivas a partir das MPEs na atualidade?
Este estudo teve por objetivo central contribuir para o acúmulo teórico da discussão sobre o mundo do trabalho no cenário contemporâneo e das atuais expressões da questão social, investigando as principais conexões da produção na realidade das Micro e Pequenas Empresas (MPEs) e suas relações com as grandes empresas e associações de classe, principalmente no que se refere à gestão do trabalho nas MPEs, num contexto social, político e econômico da terceirização e da flexibilização do trabalho no Brasil.
Além da pesquisa teórica, também realizamos pesquisa bibliográfica sobre o histórico da produção de calçados na região do Vale dos Sinos (RS) e efetuamos entrevistas com segmentos institucionais de referência, como sindicatos de trabalhadores e MPEs, através de questionário com perguntas abertas.
Buscaremos, na primeira parte do artigo, apresentar o debate teórico sobre a crise do capital e as estratégias de reorganização produtiva que impactaram o mundo do trabalho. No segundo momento, abordaremos as atuais estratégias da produção flexível via interiorização e descentralização produtiva na produção de calçados da região do Vale dos Sinos (RS). Por fim, seguem nossas conclusões e as principais referências.
2. Crise estrutural do capital e os impactos à classe trabalhadora
O sistema capitalista, ao longo de seu desenvolvimento, vivencia e supera crises que não possuem uma causa única, já que se trata do resultado da dinâmica contraditória do modo de produção capitalista. Existem diversas possibilidades de ocorrência de crises, e há a propensão de produzir graves tensões no processo de acumulação. Tendem a ter o efeito de expandir a capacidade produtiva e de renovar as condições de acumulação.
Embora saibamos da ocorrência de crises em diferentes países nas últimas décadas, há de se destacar que a crise do capital vivenciada desde os anos de 1970 é fundamentalmente uma crise estrutural que atingiu de forma particular as relações políticas e econômicas mundiais (MÉSZÁROS, 2011). Manifestou-se em quatro aspectos fundamentais:
Por isso alguns limites imediatos de expansão do capital são rearranjados, e o papel do Estado é fundamental nesse processo. É necessário articular as estruturas jurídicas segundo as necessidades do capital, por meio da adoção de medidas liberalizantes, reformistas e repressivas que facilitem sua concentração e bloqueiem, ainda que temporariamente, a crise estrutural. Ao capital resta apenas falsear suas contradições (MÉSZÁROS, 2006).
Também é necessária à expansão capitalista a redução nos custos de realização e circulação, já que quanto mais longo é o tempo de giro de determinado capital, menor é o rendimento anual de mais-valor (HARVEY, 2005).
Ainda segundo Harvey:
O incentivo à criação do mercado mundial, para a redução das barreiras espaciais e para a aniquilação do espaço através do tempo, é onipresente, tal como é o incentivo para racionalizar a organização espacial em configurações de produções eficientes (organização serial e a divisão detalhada do trabalho, sistemas de fábrica e de linha de montagem, divisão territorial do trabalho e aglomeração em grandes cidades), redes de circulação (sistemas de transportes e comunicação) e de consumo (formas de uso de manutenção das residências, organização comunitária, diferenciação residencial, consumo coletivo nas cidades). (HARVEY, 2014, p. 212).
Notemos que há a necessidade de criar aglomerados produtivos a fim de minimizar os custos de circulação e o tempo de giro do capital a partir da descentralização produtiva e de uma maior racionalização da produção territorial. Intenta-se viabilizar com maior rapidez os tempos de giro de produção, na troca e no consumo, a partir da ruptura das barreiras espaciais, para uma maior exploração por parte do capital, possibilitando o aproveitamento de diferenciações locacionais.
As estratégias para a superação da crise estrutural articularam medidas políticas e econômicas no âmbito da reestruturação produtiva, da financeirização da economia e das políticas neoliberais. Tais medidas não evitaram a onda longa recessiva, que mesmo retomando as taxas de lucratividade, não conseguiu manter o crescimento das décadas anteriores. Também elas não se deram de forma linear e sequencial, mas compuseram, ao longo das últimas décadas, uma série de ações de cunho social, econômico e político, a depender das particularidades das relações de classes de cada país.
As medidas decorrentes da liberalização financeira e das reformas do Estado, principalmente via medidas neoliberais, comprometeram os gastos públicos com o capital financeiro em detrimento do investimento público. As estratégias de reestruturação produtiva que marcaram a fase de internacionalização dos mercados produziram, de forma ágil e rápida, a mundialização e a externalização das etapas do processo produtivo, intensificando os métodos de exploração da força de trabalho e a concentração de capitais em um número menor de capitalistas.
No que se refere especificamente à reestruturação produtiva, as principais mudanças voltaram-se à instauração de processos produtivos inovadores tanto na produção como nas relações de trabalho, sob a forte influência do modelo japonês ohnista/toyotista. As características desse modelo são: instituição da polivalência do trabalhador, uma vez que o trabalhador passa a operar várias máquinas simultaneamente e num nível máximo de intensidade; importação de técnicas de gestão tipo just in time e kanban tanto para as empresas mãe quanto para as subcontratadas, o que significa produzir somente o necessário e no menor tempo/reposição de produtos somente depois de sua venda; introdução de incrementos tecnológicos, provocando a extinção de milhares de postos de trabalho; flexibilização dos processos de trabalho, dos mercados e dos padrões de consumo, em contraposição aos modelos de produção em massa que predominaram durante décadas; transferência da base industrial dos países desenvolvidos para localidades onde o custo da força de trabalho é mais barato (ANTUNES, 2006).
A externalização da produção para as subcontratadas acarretou a destruição de postos de trabalho na empresa-mãe e a criação de outros vínculos com as atividades terceirizadas. Em geral, esses novos postos de trabalhos são piores que os anteriores, tanto em termos de condições de trabalho, remuneração e segurança de trabalho, como de direitos sociais. Mesmo que as taxas de ocupação permaneçam quase as mesmas, há uma clara precarização das ocupações (SILVA, 2012).
Tais mudanças na esfera da produção impactaram também a subjetividade do trabalhador, visando à adesão dos trabalhadores às propostas de acumulação capitalista. Isso envolve estratégias de subjetivação de alguns valores e práticas em que se misturam “repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que têm de ser organizados não somente no local do trabalho como na sociedade como um todo” (HARVEY, 2014, p. 119).
Devido à descentralização produtiva, aos processos flexíveis de subcontratação e à terceirização, cresceu o número das Micro e Pequenas Empresas (MPEs) criadas. Muitas delas, formadas por trabalhadores expulsos das grandes empresas e que passaram a fornecer serviços, só que sob a condição de pessoa jurídica e não como trabalhador assalariado.
No Brasil, os números de representatividade das MPEs sob a contratação da força de trabalho são de fato impactantes. De 2000 a 2008, as MPEs foram responsáveis por aproximadamente 54% dos empregos formais do país; em 2008, os pequenos negócios respondiam por 51% da força de trabalho urbana empregada no setor privado. Como resultado, as MPEs foram responsáveis por aproximadamente metade dos postos de trabalho formais criados entre 2000 e 2008 (MADI; GONÇALVES, 2012). É o segmento que possui o maior número de horas trabalhadas (KREIN, BIAVASCHI, 2012), com altos índices de rotatividade (FRACALANZA; FERREIRA, 2012).
Vejamos a seguir as particularidades da produção na região do Vale dos Sinos (RS) que expressam a adoção de medidas flexíveis como a substituição da produção de uma empresa por várias pequenas unidades, as MPEs interligadas por rede e a expansão do trabalho em domicílio com remuneração por peça/produção3.
3. Manifestações da questão social em face da interiorização e da descentralização da produção de calçados na região do Vale dos Sinos (RS)
As estratégias de interiorização e descentralização da produção de calçados no Vale dos Sinos (RS) são fruto das intervenções de reestruturação produtiva e estenderam-se para as microrregiões vizinhas com o objetivo de terceirizar partes da produção de calçados. As empresas de produção verticalizadas foram substituídas por uma gestão horizontalizada com o predomínio de redes de subcontratação. Conforme nos explica Ruas (1993):
A subcontratante (em geral, representada por uma empresa de grande porte) solicita à subcontratada (representada às vezes por empresas pequenas, às vezes por indivíduos isolados ou um conjunto deles) a elaboração ou o beneficiamento de um produto inteiro ou de parcela dele, sob a forma de peças ou componentes, ou até mesmo um serviço que vai compor de algum modo seu produto final. Essa relação pode ser formalizada via contrato convencional ou por acordo verbal (RUAS, 1993, p. 26).
A reestruturação produtiva no ramo dos calçados assumiu características heterogêneas, mesclando métodos taylorista-fordistas com a criação de unidades flexíveis horizontalizadas e ampliando a formação de redes de subcontratação, num incentivo à promoção de Micro e Pequenas Empresas (MPEs) para o fornecimento de insumos e produtos às grandes empresas.
O processo de terceirização, em muitos dos casos, passa também pela quarteirização, em que a pré-fabricação é transferida para as MPEs que, por sua vez, deslocam parte das tarefas para os ateliês de menor porte ou para o trabalho nos domicílios. Um dos impactos sociais mais expressivos desse processo foi o reforço ao ocultamento das situações de trabalho infantil historicamente já existentes, além do envolvimento de idosos na produção.
Esses ateliês (que tanto podem ser domésticos ou dentro das MPEs) realizam as atividades de costura, a pré-fabricação, a forração dos saltos e palmilhas, os enfiados e a cartonagem (caixa de sapatos), além da costura do cabedal (SCHNEIDER, 2004).
A interiorização da produção permitiu a contratação precária de trabalhadores das zonas rurais, pois a característica econômica e social da região é marcada pela forte presença da agricultura familiar de origem colonial e sem histórico de organização sindical (SCHNEIDER, 2004). É possível a remuneração desses trabalhadores por peça/produção, o que contribui para a informalização do setor.
As várias etapas do processo produtivo podem ser executadas de forma independente uma das outras. Necessitam de poucos investimentos em capital fixo; demandam contratação de força de trabalho em abundância que em geral é de baixa qualificação; possibilitam a fragmentação do processo produtivo; favorecem o surgimento de empresas especializadas em uma ou mais partes da produção. Trata-se de um setor que possibilita a coexistência de empresas modernas de grande porte com pequenas empresas de produção artesanal (SOUZA et al., 2012).
O trabalho artesanal é uma característica do ramo de calçados desde suas origens e assim permanece até hoje. Embora atualmente exista a tecnificação de etapas do processo produtivo, o trabalho artesanal não deixou de existir e até mesmo se intensificou a partir da interiorização dessas empresas, sobremodo através do trabalho em domicílio:
Nos ateliês domiciliares da indústria de calçados a relação é, geralmente, e, sobretudo, predatória. Sem o apoio das empresas contratantes, os padrões de gestão desses ateliês continuam precários, prejudicando, na própria base, o aprimoramento dos níveis de eficiência, qualidade e rapidez da produção de calçados. Em lugar de colaboração, o que se observa são relações marcadas pela desconfiança e oportunismo de parte a parte. Segundo gerentes entrevistados em pesquisa recente, o principal interesse das empresas contratantes é, ainda, a redução nos custos de produção e a transferência para terceiros dos problemas de controle e disciplina da mão de obra e dos pagamentos dos benefícios sociais (RUAS, 1993, p. 40).
Essas precárias condições de trabalho também impactam a saúde desses trabalhadores e de suas famílias. Quando ocorre o trabalho em domicílio é o constante cheiro da cola no ambiente, o pó do couro, equipamentos improvisados para o desenvolvimento de suas atividades, o ruído das máquinas que não cessa nem mesmo nos fins de semana (NAVARRO, 2006). As doenças mais comuns são as Lesões por Esforço Repetitivo (LERs), sendo frequente a automedicação, uma vez que esses trabalhadores necessitam continuar produzindo mesmo com a dor, senão não serão remunerados, o que inclui o uso constante de analgésicos e anti-inflamatórios. Outros problemas de saúde são cefaleia, dor de estômago, problemas na coluna e adoecimento mental – principalmente casos como depressão. (LOURENÇO, BERTANI, 2009).
Apesar dessas condições precárias do trabalho em domicílio, as empresas veem nessa dinâmica ainda a potencialidade do trabalho feminino, uma vez que transfere aos domicílios parte da produção que pode ser conjugada com as demais tarefas domésticas, por ser flexível. Portanto, observa-se a forte presença das desigualdades de gênero tanto no âmbito privado quanto no emprego formal. Neste, os homens em geral são profissionais qualificados e se encontram numa posição favorável diante da empresa; as mulheres, quando vinculadas formalmente às empresas, em geral possuem menor qualificação e se encontram numa posição ainda mais subordinada (ABREU, SORJ, 1993).
Essa rede de subcontratação ou de fornecedores está no modelo de desenvolvimento da produção flexível, pois a forma de organização mais recomendada é a de pequenas unidades flexíveis, interligadas e organizadas de forma horizontal. A terceirização significa incluir outras empresas como parceiras na cadeia de criação de valor, mas sob o controle e o comando das grandes empresas monopolizadoras do mercado (REICHERT, 2004, p. 59).
Pudemos observar, a partir da pesquisa realizada no Vale dos Sinos (RS), que a formação dessa rede de produção antecede as determinações da reestruturação produtiva, já que foi criada pelos próprios trabalhadores; estes, de forma cooperada, iniciaram a produção de calçados manufaturados na região, com o posterior desenvolvimento de empresas familiares. Esse caldo cultural preservado ao longo de gerações é visto pelas grandes empresas como uma potencialidade a ser explorada.
Trata-se da presença constante da atmosfera industrial (GARCIA, 1996), o que significa dizer que há uma forte influência, na comunidade, de valores tradicionais e de instituições que garantem a formação voltada às necessidades da produção das empresas na localidade, estimulando valores dirigidos à cultura do trabalho como dignificante, ainda que sob precárias condições. Essa cultura tende a ser mais reproduzida de maneira informal do que profissional tanto nas instituições sociais quanto nos demais espaços de sociabilidade. Torna-se algo comum e corriqueiro o estabelecimento de contratos informais de trabalho sem grandes questionamentos por parte dos trabalhadores.
No entanto, este cenário histórico também foi marcado por contradições entre classes, principalmente pela atuação política do movimento reivindicatório dos trabalhadores. Em nossos estudos e pesquisas identificamos que, embora haja o arrefecimento das lutas sociais na atualidade, nem sempre foi este o processo. A intervenção política dos sindicatos dos sapateiros emergiu na região nos anos de 1930, caudatários de um contexto político de organização dos trabalhadores em âmbito nacional4. Ampliaram sua mobilização nos anos de 1940 e 1950 com a criação do sindicato de vestuário, além dos já existentes sindicatos de sapateiros e hoje contam com sindicatos dos vestuários, sapateiros e componentes para calçados, abrangendo um número maior de trabalhadores em outros municípios.
A formação dessas entidades deu-se a partir da necessidade de representação política dos trabalhadores para lutar por piso salarial e melhores condições de trabalho dos trabalhadores formalizados. A queda no número de trabalhadores sindicalizados ocorreu nos anos de 1990, quando também acontece a crise econômica no setor, gerando o aumento do desemprego devido ao fechamento de muitas fábricas e ao crescimento da subcontratação.
Ainda assim, os sindicatos dos sapateiros permanecem com sua atuação na região do Vale dos Sinos (RS), reivindicando direitos trabalhistas principalmente através de mecanismos de convenções coletivas junto ao segmento patronal. O foco dessas reivindicações continua a ser a garantia de piso salarial e condições de trabalho para os trabalhadores formalizados nas grandes empresas e MPEs, não abrangendo os trabalhadores informais.
A organização desses sindicatos se vincula à Federação dos Trabalhadores nas Indústrias dos Calçados e do Vestuário no Rio Grande do Sul (FETICVERGS) e/ou à Federação Democrática dos Trabalhadores na Indústria de Calçados do Rio Grande do Sul, e em termos nacionais, à Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo de Vestuário (CNTRV). É com as Federações que se busca realizar um trabalho de maior mobilização com os trabalhadores não sindicalizados e, assim, contribuir para a formação de outros sindicatos, principalmente nas zonas rurais.
Destacamos que, apesar de os acordos coletivos ocorrerem entre o sindicato dos trabalhadores e o sindicato patronal, eles não são cumpridos na sua integralidade, sendo muitas vezes flexibilizados, essencialmente na relação com as MPEs. Nestas, a violação dos acordos coletivos é uma prática recorrente, principalmente no que se refere às condições de trabalho.
As MPEs alegam que não possuem a mesma estrutura das grandes empresas para o cumprimento das determinações contidas nos acordos coletivos. Quando questionadas sobre o não cumprimento das medidas, argumentam que se efetivarem todas as determinações do acordo coletivo, isso implicará a possível demissão de funcionários.
Observamos em nossa pesquisa que os representantes dos sindicatos dos sapateiros intervêm na relação entre trabalhadores e gestores das MPEs a partir de uma espécie de negociação local quando as MPEs não conseguem viabilizar as garantias preconizadas no acordo coletivo. Na prática, os sindicatos são convocados para agir quando há resistência, por parte de trabalhadores, em aceitar que as MPEs flexibilizem direitos preconizados na convenção coletiva. As lideranças sindicais atuam junto aos trabalhadores para o estabelecimento de consensos entre as classes, sob a justificativa de que a flexibilização é necessária para a permanência de empregos nas MPEs, ainda que violem as garantias sociais conquistadas coletivamente.
As MPEs constituem o segmento que mais emprega a força de trabalho na região, devido às estratégias de subcontratação. Tal característica faz com que elas disponham de forte peso econômico e político local.
O piso salarial negociado entre o coletivo dos trabalhadores e o coletivo empresarial é aplicado a todas as empresas, sejam elas grandes ou MPEs. Atualmente o piso do sapateiro é de R$ 1.163,00 ou R$ 5,29 a hora. O salário das outras categorias como costureira, cortador, montador, etc. é de livre negociação com a empresa. Historicamente, os sindicatos dos sapateiros lutaram por aumento salarial que atendesse às perdas inflacionárias mais o crescimento real. Mas diante da forte crise na organização sindical e dos impactos da reestruturação produtiva, a possibilidade de negociação tem sido cada vez mais reduzida. Exemplo é que no ano de 1985 o percentual de aumento salarial chegou a 83% e em 1989 a 85%; no ano de 1996, esse valor caiu para próximo a 10%, e em 2017 houve a menor taxa histórica: 2,5%5.
Os sindicatos dos trabalhadores realizam ações como a atuação voltada à saúde do trabalhador e também políticas focadas às mulheres em fase de amamentação, auxílio para estudantes e apoio funeral. Realizam cursos de qualificação em parceria com projetos governamentais e privados que abrangem qualificações além da fabricação dos calçados, como cursos de informática, de corte e costura, técnico na área farmacêutica, eletricista, vendas etc.
Os sindicatos que contam com um maior número de filiados disponibilizam serviços médicos em várias especialidades: consulta com clínico geral, dentista, ginecologista, pediatra, exames e auxílio às famílias. Percebemos nas entrevistas realizadas com lideranças sindicais que a possibilidade do provimento da assistência à saúde é vista com muito orgulho por eles e por isso não tecem críticas quanto às políticas públicas de saúde destinadas aos trabalhadores em geral.
As convenções coletivas são os principais mecanismos de negociação com o segmento patronal no lugar das greves para tentar manter os empregos, ainda que defendendo residualmente as mobilizações no interior das fábricas. Há pouca adesão dos trabalhadores às assembleias; a estratégia tem sido realizar reuniões informais, incluindo a formação de Comissões de Fábrica.
O trabalho de mobilização para novas sindicalizações permanece, cada vez mais esporádico. Ainda assim, os sindicatos dos sapateiros têm tentado realizar atividades de mobilização e filiação dos trabalhadores informais que trabalham em domicílio nas zonas rurais. No, entanto, os resultados são incipientes porque muitos têm aderido à modalidade de Micro Empreendedor Individual (MEI), que não se vincula aos sindicatos e/ou instituição representativa, o que contribui para a ampliação da desmobilização e para o crescimento da subcontratação e do trabalho precário.
4. CONCLUSÃO
Pudemos perceber, ao longo da explanação, que as estratégias de superação da crise do capital impactaram sobremaneira as condições materiais e subjetivas dos trabalhadores, principalmente no que se refere à sua capacidade organizativa para a garantia dos seus direitos sociais. Na produção de calçados na Região do Vale dos Sinos (RS) também não foi diferente, pois tais medidas intensificaram a subcontratação já existente e ampliaram parte considerável da produção para a modalidade de trabalho em domicílio nas zonas rurais.
Embora o sindicato dos sapateiros tenha conseguido manter, apesar das diferentes conjunturas, o espaço da negociação coletiva com o segmento patronal, prevalecem constantes ataques do capital à classe trabalhadora, ainda que sob formas veladas ou dissimuladas, configurando-se em formas contemporâneas de expressão da questão social. Exemplo disto são as ações dos sindicatos junto às MPEs, pois possibilitam a violação de garantias contidas nas negociações dos acordos coletivos sob o argumento de garantia de empregos.
É necessário resgatar a luta histórica da classe trabalhadora para recompor as estratégias de luta e mobilização social com o intuito de ampliação da consciência de classe ante a conjuntura adversa, o que do nosso ponto de vista deve incluir a participação dos trabalhadores informais.
A manutenção do espaço das negociações coletivas é uma conquista histórica para os trabalhadores, mas deve-se ampliar a pauta política tanto para incluir as desigualdades de gênero de forma mais contundente, quanto para avançar em outras pautas a fim de barrar os processos de terceirização que intensificam as formas de precarização da força de trabalho.
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Notas
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