ARTIGO
Neoliberalismo e educação brasileira: a dominância financeira no capitalismo contemporâneo
Neoliberalism and brazilian education: financial dominance in contemporany capitalism
Neoliberalismo e educação brasileira: a dominância financeira no capitalismo contemporâneo
Revista Tópicos Educacionais, vol. 28, núm. 1, pp. 192-215, 2022
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Recepção: 01 Abril 2022
Aprovação: 01 Junho 2022
Resumo: O capital sofre desde a década de 1970 crises cada vez mais graves. Em grande parte, isso tem piorado após as medidas adotadas pelo neoliberalismo, o qual tem estimulado reformas estruturais que desmontam por completo o pouco que restava ainda do social-liberalismo. O Estado, para assegurar os lucros dos capitalistas, adota políticas de austeridade, retira direitos, promove privatizações, boicota sindicatos, utiliza-se dos fundos públicos para interesses rentistas etc. A educação pública perde investimentos enquanto os recursos da receita nacional são orientados para o setor privado e para o pagamento das obrigações estatais. Este estudo demonstra que o descaso com a educação não se dá por acaso, pois a precarização do ensino público tem produzido imensos conglomerados educacionais que expandem seus investimentos, inclusive para o mercado financeiro.
Palavras-chave: neoliberalismo, educação, capital financeiro.
Abstract: Capital has suffered since the 1970s increasingly serious crises. To a large extent, this has worsened with the measures adopted by neoliberalism, which has stimulated structural reforms that completely dismantle what little remained of social liberalism. The State, to ensure the profits of the capitalists, develops austerity policies, withdraws rights, promotes privatization, boycotts unions, uses public funds for rentier interests, etc. In the meantime, public education loses investments while national revenue resources are directed to the private sector and to the payment of state obligations. Thus, the study demonstrates that the disregard for education is not by chance, as the precariousness of public education has produced immense educational conglomerates that expand their investments, including to the financial market.
Keywords: neoliberalism, education, financial capital.
1. Introdução
A crise capitalista da década de 1970, após trinta anos de desenvolvimento econômico, demonstrou que as antinomias da ordem capitalista são disfunções de sua estrutura econômica, impossíveis de ser resolvidas em definitivo. A crise que já se delineava no final dos anos 1960 contrariava as expectativas econômicas keynesianas; estas propalavam que as providências tomadas pelo Estado seriam suficientes para eliminar quaisquer riscos de uma crise semelhante à que houvera a partir do crash da bolsa de Nova Iorque em 1929.
A própria incapacidade do capital de universalizar o Estado de Bem-estar Social revelava que as soluções encontradas pelos países dominantes pouco ou nada contribuíam para a realidade econômica dos países periféricos. Pelo contrário, a crise dos anos 1970 deixou mais clara a relação entre os países dominantes e os países dominados, pois a saída da crise requeria uma maior subjugação das nações dependentes às economias centrais.
Nesse contexto, o neoliberalismo aparece como alternativa capitalista para a recuperação econômica. Agora, diferentemente do social liberalismo de Keynes, exigia do Estado políticas de austeridade, redução (ou eliminação) de investimentos sociais, privatizações, políticas antissindicais e um processo de hipertrofia financeira na economia, que além de agir como mecanismo contra-arrestante para a crise, criava, ao mesmo tempo, um novo nicho de obtenção de lucros para os capitalistas. Todas as atividades econômicas e sociais ficavam subordinadas ao capital financeiro.
O presente artigo busca analisar os reflexos do neoliberalismo na educação e suas implicações para a formação da classe trabalhadora. Na primeira seção, o artigo se ocupa da tarefa de entender o modus operandi da ideologia e da política neoliberal. Já na segunda seção, analisa-se a incursão do neoliberalismo na América Latina e todos os prejuízos causados, os quais conduziram os países latino-americanos a uma maior condição de dependência dos países do centro. Por fim, o artigo se debruça nos reflexos do neoliberalismo na educação, partindo do pressuposto de que houve um processo de desmonte da educação pública em favorecimento da inciativa privada, ao utilizar, sobretudo, recursos públicos para financiar o mercado escolar e o mercado financeiro.
Conclui-se entendendo que os problemas educacionais não podem ser resolvidos a partir da comiseração do Estado capitalista, visto que este é um importante instrumento de classes para a reprodução do capital. O caminho objetivamente viável para uma educação descomprometida com a exploração dos trabalhadores e/ou com a concentração e centralização de riqueza apenas é possível numa sociedade para além do capital.
2. Neoliberalismo sob o escrutínio: para entender a ideologia e a política neoliberal
Com a intenção de combater mais uma de suas crises, o ordenamento capitalista empenhou-se em colocar em prática políticas que têm atacado frontalmente a classe trabalhadora, a fim de preservar ao máximo sua capacidade de ampliar os lucros com a mesma intensidade que tem de produzir miséria em escala global. No início da década de 1970, depois de aproximadamente trinta anos, os capitalistas não conseguiam mais aliar enriquecimento e desenvolvimento econômico, o que implicava mudanças no modelo econômico em vigência à época. Entre as maiores economias do mundo, os EUA e o Reino Unido, ao adotarem o neoliberalismo, optaram por uma ordem econômica e política que fez retroceder direitos trabalhistas e sociais adquiridos ao longo das últimas décadas através do chamado Estado do Bem-Estar Social.
É importante destacar que, diferentemente do imaginado, os quase trinta anos de desenvolvimento capitalista no pós-guerra não configuraram uma paz perpétua no capitalismo e, muito menos, universalizaram os direitos destinados aos trabalhadores das metrópoles. Pelo contrário, houve uma relação cada vez mais complexa entre o centro dominante e a periferia dominada, em que as nações subdesenvolvidas serviam de aporte financeiro por meio de vultosas exportações de capital. Em ternos gerais, a miséria proporcionada pelo capitalismo foi imensamente maior do que os supostos benefícios dirigidos aos trabalhadores das metrópoles. Apesar disso, o neoliberalismo conseguiu potencializar todas as mazelas econômicas e sociais do capital, embora também alcançasse uma capacidade de acumulação e concentração de riquezas nunca vista antes na história.
Mesmo que não se tenha consenso a respeito da totalidade paradigmática que forma o ideário político-econômico liberal3, em suas diversas matizes o neoliberalismo se distanciou em muitos pontos do velho liberalismo (liberalismo clássico), que orbitava em torno de princípios, a priori, revolucionários para a sua época, tanto no que se refere à economia quanto em suas pautas de costumes.
De acordo com Carcanholo, o neoliberalismo
[...] muito mais que uma filosofia moral ou política, manifesta-se meramente como um receituário de política econômica, no qual as esferas políticas e sociais são reflexos do comportamento econômico subordinadas a critérios de eficiência. Para o neoliberalismo, o homem extrapola seu comportamento maximizador, avaliando custos e benefícios de suas decisões, para todas as esferas da sociedade. Se antes, no liberalismo clássico, razão e liberdade eram valores fundamentais reciprocamente articulados, agora, no neoliberalismo, a liberdade passa a se subordinar a uma razão economicista. (CARCANHOLO, 2005, p. 29).
Enquanto o liberalismo clássico tinha esse aspecto progressista contra a nobreza e as desigualdades sociais, o neoliberalismo tem na ordem do dia a retirada dos direitos, a inculcação de valores conservadores e um pacto econômico que exige uma dependência maior do capital regional ao capital internacional, em benefício de uma ampla concentração de rendas submetida aos monopólios capitalistas, a provocar de forma inevitável a distância social entre os mais ricos e os mais pobres em escala planetária.
A desigualdade econômica é um valor a ser estimado pelo ideário neoliberal, pois não se mensura o que é justo ou injusto, haja vista a impessoalidade do mercado. Carcanholo afirma que, para os neoliberais, “a desigualdade seria justificável não só por seu aspecto econômico, como um prêmio aos mais produtivos e eficientes, mas por seu aspecto moral de incentivo à ‘ascensão social’ por esforço pessoal” (2005, p. 30).
Ao se buscar a origem do pensamento neoliberal, chega-se à conclusão de que, embora a obra O Caminho da Servidão de Friedrick Hayek, escrita em 1944, tenha sido considerada o marco da literatura neoliberal, em 1920 já se achavam escritos alguns conceitos que foram mais bem trabalhados subsequentemente. Em 1921, o livro Do Antigo e do Novo Liberalismo Econômico, do sueco Eli Heckscher, já apresenta a expressão neoliberalismo, porém o termo, em seu sentido moderno, passa a existir somente na obra Tendências das Ideias Econômicas, do economista Hans Honegger. Na década de 1930, o termo aparece em vários contextos, mas foi em The Good Society, de Walter Lippmann, que a expressão marca definitivamente a história do neoliberalismo (MIROWSKI; PLEHWE, 2009).
Somente em 1947, três anos depois da publicação de O Caminho da Servidão, Hayek convoca uma reunião na estação de Mont Pèlerin, na Suíça, com todos aqueles que compartilhavam do mesmo ideário. Entre os convidados estavam: Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robins, Ludwig von Mises, Michael Polanyi, Walter Eupken, Walter Lippmann e Salvador de Madariaga. Para Anderson (1995), a Sociedade Mont Pèlerin era
[...] uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro (ANDERSON, 1995, p. 10).
A tarefa empreendida pelos economistas e ideólogos neoliberais não era fácil, uma vez que o capitalismo daquela época estava numa fase de razoável tranquilidade, que duraria décadas até que descambasse numa crise sem precedentes. Por essa razão, as advertências dos neoliberais não conseguiam repercutir nos ciclos econômicos com a mesma força dos economistas keynesianos. Para Hayek, a desigualdade era um valor positivo, imprescindível para as sociedades ocidentais, nas quais o fomento à concorrência entre indivíduos e corporações era fundamental para a liberdade dos cidadãos (ANDERSON, 1995). A racionalidade egoísta que os neoliberais difundiam conseguia ser mais radical que a dos antigos liberais.
As premissas que norteavam o pensamento neoliberal tentavam explicar certa naturalização de um estado de coisas necessário à reprodução da sociedade capitalista, de modo que qualquer interferência interviria na ordem natural. Assim, o mercado seria o principal intercessor de todas as relações estabelecidas, que teria em si a conservação harmônica da sociedade. Em 1973 havia o cenário ideal para se colocar em prática o que os membros da Sociedade Mont Pèlerin vinham defendendo há décadas, uma vez que a profunda recessão que acometeu o capitalismo combinou baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação.
Um dos problemas apontados por Hayek e seus companheiros estava localizado no movimento operário (por via de suas representações sindicais) e nos gastos sociais promovidos pelo Estado. Essa retração econômica, que ameaçava o mundo capitalista e as grandes riquezas, determinava os movimentos do capital em direção a políticas de desregulamentação financeira, de proteção para emprestadores e de abertura das fronteiras de comércio e de capital (DUMÉNIL; LÉVY, 2014).
No final da década de 1970, a Inglaterra de Margareth Thatcher é a primeira nação dos países do centro a se converter ao neoliberalismo, seguida um ano depois por Ronald Reagan, presidente dos EUA. Posteriormente, outros países europeus resolveram acompanhar o exemplo das duas maiores potências do Ocidente4. Além das disposições econômicas urgentes para combater a crise econômica, os neoliberais conseguiram constituir uma frente anticomunista como nunca se tinha visto em outra corrente ideológica capitalista (ANDERSON, 1995). Dessa forma, o neoliberalismo deixava claro que não era tão somente uma doutrina econômica, mas consistia numa ideologia política que formava a nova direita mundial.
O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal5 (ANDERSON, 1995, p. 14).
Desse modo, os países periféricos que, movidos pelos interesses da burguesia doméstica, decidiram adotar as políticas neoliberais não levaram em consideração as condições geopolíticas e econômicas em que se encontravam. Assim, os países subdesenvolvidos confirmaram a condição histórica de semicolônias das nações do centro, bem como o desprezo que as classes dominantes nacionais nutriam (e nutrem) pela própria nação, embora se autoproclamem patriotas. A centralidade da acumulação assume definitivamente a nova face do capital, não importando os prejuízos que porventura pudessem causar.
Duménil e Lévy observam:
O que é realmente novo nesse padrão de acontecimentos não é a desconexão em si. Muitos países de periferia são ou foram governados por suas classes altas ou por parcelas de classes sem compromisso com o progresso da própria nação. Pelo contrário, o comportamento dessas elites é geralmente determinado pelo desejo de colaborar com os países imperialistas do centro e aumentar a riqueza pessoal (principalmente no estrangeiro). As consequências para as economias e sociedade locais são devastadoras. Nacionalismo ou patriotismo por parte das classes altas é fundamental para o avanço das economias nacionais. O que é novo a partir da década de 1980 é o fato de as estratégias neoliberais terem significado um divórcio no centro do mundo neoliberal, semelhante ao que se observou em muitos países subdesenvolvidos (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 35-36).
Percebe-se, então, que não apenas se universalizou a concepção de negócios dos países mais desenvolvidos, mas também se universalizou a maneira como as classes dominantes dos países subalternos se relacionam com a economia local. Há uma ruptura evidente dos interesses individuais dos capitalistas dos interesses da nação, desejo que era sustentado pelos velhos liberais, e que agora a razão individualista neoliberal refuta impetuosamente na busca por mais acumulação de riqueza, ainda que tudo isso seja apoiado de forma sistemática pelo Estado. “Economicamente, e contrariamente à apregoada ‘ideologia de mercado’, estamos diante de uma violenta reação antiliberal [...] que concretiza a mais violenta intervenção estatal na economia de que se tem memória na história do capitalismo” (COGGIOLA, 1996, p. 197), cujos reflexos são sentidos pela classe trabalhadora.
As políticas ditas neoliberais, especialmente aquelas destinadas a varrer conquistas históricas dos trabalhadores (reajuste automático dos salários, estabilidade no emprego, educação laica e gratuita, acesso e até existência de um serviço público em geral etc), constituem claramente uma tentativa de descarregar a crise do capitalismo nas costas dos trabalhadores (Ibidem, p. 196).
Enquanto há restrição dos serviços públicos concedidos à população, há na mesma medida benefícios à parcela mais rica da sociedade. O governo de Thatcher contraiu a emissão monetária, elevou a taxa de juros, reduziu os impostos sobre os rendimentos altos, cortou gastos sociais, reprimiu greves, elaborou uma nova legislação antissindical e empreendeu um amplo programa de privatizações. Já nos EUA, Reagan reduziu os impostos dos ricos, promoveu desregulamentações e aumentou a taxa de juros. Em contrapartida, houve enormes gastos militares que alargaram significativamente a dívida pública, tendo como consequência uma maior utilização das reservas nacionais a serviço da dívida, de modo a desenvolver com frequência políticas de austeridade para reduzir os investimentos públicos e aumentar os fluxos de empréstimo.
O logro alcançado pelo neoliberalismo concentra-se no aumento dos segmentos mais ricos da sociedade. Por conseguinte, o modelo propagado pelos ideólogos do neoliberalismo como panaceia da crise capitalista não passava (e não passa) de um embuste que sempre buscou ocultar a fratura social que se estabeleceu no capital, agravada por uma crise estrutural que não poderia se resolver com medidas paliativas e, muito menos, com alternativas socioeconômicas que, contrariamente, aprofundaram os problemas à medida que aumentavam as possibilidades de maior concentração de riquezas nas mãos dos monopólios.
Duménil e Lévy (2014, p. 35) discutem as contradições do neoliberalismo ao considerarem que: “Em nítido contraste com essa história de sucesso, o caráter profundo da crise atual, sua extensão global, sua provável duração e as medidas tomadas durante seu tratamento sugerem um fracasso final da estratégia de classe neoliberal”.
De imediato, com o advento do neoliberalismo, a crise foi minimizada e houve queda de inflação nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – OCDE, nos anos de 1970 e 1980, o que continuou nos anos 1990. As taxas de lucro também voltaram a crescer, mas para isso houve um esforço do capital para derrotar o movimento sindical, com uma contenção salarial seguida pelo crescimento do desemprego. Conforme Anderson (1995), a taxa de desemprego dos países da OCDE duplicou entre os anos de 1970 e 1980, elevando o nível da desigualdade; enquanto isso, “[...] a tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários” (ANDERSON, 1995, p. 15).
Apesar de tudo, os resultados favoráveis das políticas neoliberais não conseguiram alcançar a mesma capacidade de acumulação dos anos de ouro; houve uma queda do incremento anual do setor produtivo, que passou de 3,6% na década de 1970 para 2,9% na década de 1980, sem contar que parte dos lucros é resultado da criação de capital fictício em investimentos financeiros, o que não acrescenta nada à riqueza real da sociedade.
Os índices produtivos descendentes apresentados após as políticas econômicas neoliberais são resultados das desregulamentações financeiras, cujos investimentos no setor especulativo tornavam-se mais vantajosas para os capitalistas na tentativa de enfrentar a queda tendencial da taxa de lucro. As transações especulativas e parasitárias do mercado financeiro têm crescido e levado o capital a uma condição de instabilidade e imprevisibilidade, pois qualquer abalo nesse mercado causará prejuízos a todas as nações, assim como ocorreu na crise imobiliária dos subprimes em 2007/2008. Não obstante, o neoliberalismo continua avançando e conquistando territórios.
Apesar da evidente incapacidade do neoliberalismo para resolver os problemas sociais e econômicos, houve um rápido avanço na América Latina na década de 1980 e, principalmente, na década de 1990, porém com características distintas, que se adequaram à periferia dependente. É sobre isso que trataremos na próxima seção.
3. O neoliberalismo vai à periferia: as políticas neoliberais para a América Latina
O capital apresenta-se como uma forma histórica de produção econômica que consegue ter uma ampla estrutura totalizadora. Seu controle não se limita à produção, mas logra subsumir a individualidade humana, bem como, imperativamente, todos os complexos sociais. Tudo e todos devem ajustar-se à sua natureza (MÉSZÁROS, 2002). “No entanto, é irônico (e bastante absurdo) que os propagandistas de tal sistema acreditem que ele seja inerentemente democrático e suponham que ele realmente seja a base paradigmática de qualquer democracia concebível” (MÉSZÁROS, 2002, p. 96, grifo do autor).
O protecionismo comercial aplicado pelos países do centro deixa evidente o descompasso do discurso neoliberal com sua prática político-econômica, especialmente no que se refere às relações internacionais, em especial com os países dependentes da periferia capitalista. A priori, o neoliberalismo foi bastante auspicioso para as economias capitalistas dominantes à medida que na crise de 1970 conseguiu ampliar as fronteiras comerciais, reduzindo os impactos da crise. No entanto, os benefícios não se constituíram bilateralmente, haja vista que proporcionaram imensuráveis vantagens aos EUA e a alguns países europeus em detrimento das economias subdesenvolvidas, que serviram apenas de fonte de investimentos e de mercado de consumo aos produtos estrangeiros.
De acordo com Carcanholo (2005), apesar do discurso de defesa da abertura comercial, os EUA e os países europeus sempre se apresentaram com uma muralha protecionista. Malgrado o comércio exterior tenha aumentado de forma expressiva nos EUA, passando de 6,1% para 20% entre os anos de 1950 e 2000, está muito distante de existir uma equiparação nas relações comerciais. Para Luce (2018, p. 51), “as economias dependentes produzem valores de uso cujos preços de mercado sofrem baixas tendencialmente maiores que os preços dos bens produzidos pelas economias dominantes”, de modo que os países do centro dificilmente deixarão de desenvolver políticas econômicas que submetam os países mais pobres a seus interesses, pois são essas desigualdades que consolidam a hegemonia neoliberal na contemporaneidade.
Anota Carcanholo:
As barreiras não tarifárias, sua principal característica, superaram as tarifas como uma forma dominante de protecionismo nos anos 70 e 80. Nos anos 90, até mesmo as barreiras tarifárias funcionaram como forma de proteção; o intervalo tarifário saltou de 0 – 72% em 1992 para 0 – 188% em 1996, demonstrando o recrudescimento do protecionismo americano, muito embora a tarifa média ponderada de todas as importações nos EUA tenha passado de 3,3% em 1992 para 2% em 1998 e 1,8% em 1999 (CARCANHOLO, 2005, p. 82).
Portanto, percebe-se que o neoliberalismo estadunidense faz constar em sua configuração política a (oni)presença do Estado quando esta é oportuna. Os EUA possuem rigorosas barreiras externas por via das quotas não tarifárias que dificultam a entrada de produtos de nações estrangeiras. Isso demonstra, de forma clara, que a desigualdade entre os países periféricos e os países do centro reflete as relações de dependência estabelecidas num longo processo histórico. O exemplo da União Europeia não é diferente; podem-se verificar tarifas em importações, preferências por produtos regionais e barreiras não tarifárias rigorosas, bastante complexas e que mantêm controle absoluto sobre a entrada de produtos estrangeiros nos países-membros (CARCANHOLO, 2005). Por isso, e por tantas outras coisas, o neoliberalismo na América Latina é um negócio rentável para a classe burguesa, notadamente a dos países dominantes, visto que os investimentos das potências econômicas nos países periféricos renderam (e rendem) altas taxas de lucro aos capitalistas. Para ampliar com mais vigor a capacidade de acumulação de riqueza, em particular dos EUA, empreendeu-se uma desterritorialização produtiva; várias empresas/corporações migraram para os países periféricos em busca de facilidades fiscais, pagamentos de salários mais baixos, fartura de matérias-primas e ampliação do mercado consumidor sem o pagamento de impostos alfandegários. A desterritorialização também significa uma concentração dos interesses do capital privado em prejuízo dos interesses nacionais, cujas necessidades de concentração de riqueza pessoal nem sempre combinam com a do Estado-nação de que faz parte, deixando óbvio que o Estado é apenas um guardião para proteger os interesses do capital. “Existem economias que se apropriam de valor/de riqueza produzida por outras economias, em relações sob as quais as últimas encontram-se submetidas às primeiras através das transferências de valor como relação de subordinação no mercado mundial” (LUCE, 2018, p. 84, grifo do autor).
A essas condições foram submetidos os países da América Latina, que, antes mesmo dos EUA e do Reino Unido, já haviam experimentado o dissabor neoliberal: “O Chile foi o primeiro país a fazê-lo, após o golpe militar de 1973, sendo seguido pelo Uruguai no ano seguinte e pela Argentina em 1976” (CARCANHOLO, 2005, p. 84-85). O Chile veio a ser o padrão de referência de todos os fracassos que acometeram os países que se aventuraram na economia do livre mercado.
Para melhor esclarecer as relações econômicas decorrentes do neoliberalismo, segue uma observação de Marcelo Carcanholo:
Além dos efeitos da abertura comercial, o caráter rígido da restrição externa, dado pela vulnerabilidade, é agravado pela liberalização financeira externa. Esta promove a entrada de capitais externos que, sob uma forma ou outra de entrada, acabam por se refletir em transferências futuras de juros, lucros e dividendos – isto quando não entram na forma de capital especulativo de curto prazo –, implicando a piora da conta de serviços no futuro (Ibidem, p. 15-16).
A abertura comercial provoca a concorrência entre produtos nacionais e importados, de modo a forçar a baixa de preços dos produtos domésticos, e, com isso, transferir somas vultosas de riquezas ao mercado externo. Duménil e Lévy (2014, p. 64-65) confirmam o que se tem discutido até o momento: “Os Estados foram os agentes de desregulamentação e imposição do livre comércio e da livre movimentação internacional de capitais. Bancos centrais impõem políticas que favorecem a estabilidade de preços e não o pleno emprego, com o objetivo de aumentar a renda do capital”.
O caso chileno torna-se ilustrativo dos resultados desastrosos das políticas econômicas neoliberais, entretanto, é sumamente elogiado pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional - FMI. Quinze anos após a implantação do modelo neoliberal no Chile, a renda per capita não era superior à de 1973 e o desemprego médio entre os anos de 1975 e 1985 variava em torno de 15%, com um pico de 30% em 1983. Além de tudo, não reduziu a pobreza, ao contrário, ampliou a riqueza da burguesia nacional. A parte da sociedade mais rica conseguiu aumentar a participação na renda de 36,2% para 46,2%, enquanto a renda dos mais pobres baixou de 20,4% para 16,8% (BORÓN, 1985).
Na Argentina, a reinauguração do ideário neoliberal retornou depois de 13 anos com a vitória de Carlos Menem em 1989. De acordo com Carcanholo (2005), para tentar conter a inflação argentina, o presidente eleito proibiu mecanismos de indexação, fixação de salários e tarifas públicas, e, ainda, fixou o câmbio em 10 mil austrais6 por dólar (mais tarde, foi fixado em 1 peso por dólar). A priori, o resultado do programa conseguiu conter a inflação de 171,7% em 1991 para 24,9% em 1992, apresentando bons resultados nas contas públicas, com redução de juros reais de 13% em 1992 e 1993. O governo argentino empreendeu uma abertura comercial radical, eliminando mecanismos de controle sobre as importações e, concomitantemente, aumentando os impostos para as exportações. Em 1991 já haviam sido eliminadas todas as restrições de importação.
A liberalização financeira foi ainda mais longe que a abertura comercial, pois foram suprimidas quase todas as restrições nas transações em divisas e investimentos externos. Entre as medidas estavam: o tratamento regulatório creditício e tributário para o capital externo; a regulamentação da captação de depósitos e operações de crédito em dólares (liberalização do mercado de câmbio); a proibição de indexação de valores, com fácil convertibilidade entre a moeda nacional e o dólar; a eliminação de impostos e outras restrições que operavam no mercado de títulos imobiliários; o veto da atuação do Banco Central como financiador do Tesouro Nacional, restringindo sua condição de emprestador; e a liberação e a regulamentação da operação de instituições financeiras de capital estrangeiro (CARCANHOLO, 2005).
As medidas adotadas pelo governo argentino aumentaram a fragilidade financeira das instituições nacionais. O efeito da crise mexicana em 1995 expôs a vulnerabilidade da economia argentina ao reduzir a entrada de capital externo no país. A forte entrada de capital estrangeiro na Argentina criou uma inextrincável dependência do país, com pouca inciativa do capital interno, tornando-se refém da ingerência econômica dos países de capital desenvolvido. Portanto, alargaram-se as diferenças sociais, com uma distribuição de renda cada vez menos paritária, de maneira que entre os anos de 1990 e 1998, “a participação dos 20% mais pobres passou de 5,7% da renda para 4,2%, e a dos 20% mais ricos, de 50,8% para 53,2%” (CARCANHOLO, 2005 Ibidem, p. 92).
Conforme Carcanholo (2005), entre as alternativas que pareciam possíveis ao governo, estavam: aumentar positivamente o saldo da balança comercial ou dar continuidade à entrada de capital externo. Nenhuma das aparentes soluções era viável, dadas as frágeis condições da economia do país. A primeira alternativa não poderia ser efetivada devido à valorização cambial sofrida pela Argentina; a segunda experimentava a desconfiança dos investidores externos, que teriam de “[...] financiar um país com superendividamento externo, com déficits estruturais em transações correntes e com restrição externa ao crescimento” (Ibidem CARCANHOLO, 2005, p. 93).
Em 2002, o país demonstrou incapacidade de saldar as suas dívidas, principalmente no pagamento da dívida externa, e declarou a maior moratória da história até então. A crise argentina teve um alto custo social para o país, acompanhado de uma crise política que levou à passagem pelo governo de cinco presidentes em aproximadamente duas semanas.
Em 1982, o México, após a crise de sua dívida externa no início da década, resolveu trilhar também o tortuoso caminho neoliberal. Da mesma forma que os países sul-americanos que resolveram adotar o modelo neoliberal, o México foi considerado um exemplo de êxito na aplicação das políticas econômicas neoliberais, e assim como os outros, a realidade foi bastante diferente do que narram os organismos econômicos internacionais e seus dedicados ideólogos. “A gravidade da crise em 1982 levou à suspensão do pagamento do serviço de uma dívida externa que passou de US$ 40 bilhões em 1980 para US$ 90 bilhões dois anos depois” (CARCANHOLO, 2005, p. 88).
Por causa dessa crise, muitas reformas deixaram de ser realizadas na economia mexicana, exceto o programa de privatizações e as políticas de estabilização. No governo de Carlos Salinas de Gortari, em 1989, pretendeu-se retomar o plano de crescimento econômico. Acreditava-se que a redução do Estado e o protagonismo do setor privado eram basilares para o desenvolvimento econômico do país. Antes de tudo, todavia, o México deveria renegociar a dívida externa para voltar a acessar o mercado de capitais internacionais e poder, de fato, realizar um processo de liberalização financeira em consonância com o mercado neoliberal.
A participação estrangeira no sistema financeiro mexicano fez com que o total de ativos passasse de 1,2% a 19,9% para a posse de estrangeiros em apenas três anos, o que representou um enorme prejuízo à economia do México. O endividamento externo privado teve um aumento de 170% entre 1988 e 1994; a dívida externa bancária, nesse mesmo período, teve um acréscimo de US$ 18 bilhões. Para conter a crise do déficit, o governo cobria o déficit externo com reservas monetárias, contraindo empréstimos de curto prazo (CARCANHOLO, 2005). Para piorar, “ao longo desse ano, ocorreram seis ataques especulativos contra a moeda mexicana; a tentativa do governo de desvalorizar o câmbio em 15,6% em dezembro levou a uma fuga em massa de capitais externos e ao esgotamento das reservas” (Ibidem CARCANHOLO, 2005, p. 104).
Já o Brasil iniciou seu experimento tardiamente no governo Sarney, no final da década de 1980. Contudo, somente no governo de Fernando Collor houve uma maior aproximação das orientações neoliberais de Washington, seguindo as determinações do papel que sempre cumpriu no cenário econômico internacional e sua histórica dependência do capitalismo imperialista. No final da década de 1980, os países endividados puderam renegociar as suas dívidas sob os moldes do Plano Brady, que, de maneira geral, implicava a possibilidade de reestruturar a dívida externa, descontando parte do seu valor líquido, reduzindo juros, estendendo prazos de pagamento etc.
Apesar de a negociação ter sido concluída em 1994, o capital externo estava em circulação no país desde 1990, quando o governo Sarney iniciou o processo de liberalização financeira externa. A fragilidade financeira do país foi explicitada com a crise do capital daquela década. Em 1990, a inflação de março era de 80%, reduziu-se 10% em abril-maio, subindo novamente em setembro-outubro 14%, e 19% em dezembro. Totalizou 1.800% ao ano (CANO, 2000 apud CARCANHOLO, 2005).
No governo Collor, após o fracasso do polêmico Plano Collor I, foi lançado o Plano Collor II, que congelava preços e salários por tempo indeterminado, mas com a possibilidade de correções futuras da unificação da data-base de reajustes salariais pela média real dos últimos 12 meses (CARCANHOLO, 2005). O governo Collor foi responsável pelo avanço na abertura comercial, a qual revogou a isenção e a redução tributária em regimes especiais de importação e extinguiu as restrições quantitativas de importações, reconstituindo somente a tarifa aduaneira como instrumento de proteção, além de promover uma reforma tributária que reduzia alíquotas e a dispersão tarifária. O crescimento da dívida pública e o crescimento do mercado de títulos criaram novos mecanismos de captação de recursos baseados nas altas taxas de juros dos títulos da dívida.
Conforme Brettas (2012, p. 111):
A questão que está posta a partir da década de 1970, com a intensificação dos fluxos financeiros, é a utilização da dívida para alimentar os circuitos de ‘valorização’ do capital portador de juros. Mais especificamente, em 1979, a elevação da taxa de juros estadunidense consistiu em um ponto de inflexão na utilização da dívida pública como um importante mecanismo de garantia das margens de rentabilidade do capital e de fortalecimento desses detentores da dívida, os quais passam a se constituir com uma parcela significativa da aristocracia financeira que se forma nesse período.
Ampliam-se os lucros (fictícios) do capital por meio do endividamento proveniente da receita da União, que são transferidos aos credores da dívida a partir de pagamento de juros. O aumento da dívida contribui para justificar as privatizações e reformas que atacam duramente os direitos dos trabalhadores, sob o subterfúgio de ajustar as contas públicas e equilibrar o orçamento.
Entre os recursos utilizados pelo governo FHC, destacam-se “os juros altos, a definição de metas de superávit primário, a lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Desvinculação de Recursos da União (DRU)” (Ibidem, p. 112). Mais de 70% dos títulos da dívida encontram-se no poder de Instituições Financeiras (31,5%), de Fundos de Investimento (25,3%) e de Fundos de Previdência (15,4%) (BRETTAS, 2012). Carcanholo e Nakatani (2015, p. 101) consideram que “as políticas neoliberais foram o instrumento do capital para impor ao mundo a nova etapa capitalista caracterizada pelo domínio da especulação por cima da produção”.
De 1994 a 2000, a dívida líquida do setor público teve um crescimento de 267%, enquanto a parcela correspondente à dívida interna foi de 80% no mesmo período, chegando a uma dívida líquida do governo federal e do Banco Central equivalente a 436%. Carcanholo (2005) entende que essa dívida só pode ser explicada a partir dos gastos financeiros com o pagamento de juros e amortizações, assim como com a contração de novos empréstimos e acréscimos por causa da rolagem.
A crise econômica no final do mandato de FHC o impediu de eleger o seu sucessor para ocupar o Palácio do Planalto, perdendo para Luiz Inácio Lula da Silva a disputa eleitoral. Embora Lula, aprioristicamente, se apresentasse como um candidato antissistema, o seu vice, o empresário José Alencar, acenava para o mercado financeiro. Daí o ex-sindicalista indicava a sua aproximação da chamada terceira via (Third Way), com características próximas ao do governo do primeiro-ministro britânico Tony Blair, sob a orientação das propostas do FMI e do Banco Mundial. Carvalho (2019, p. 4) observa que “[...] o neoliberalismo se legitima com a criação de máscaras, assume as bandeiras tradicionais de seus adversários históricos para esvaziá-las e modificar seus conteúdos, busca associações espúrias e casuísticas para viabilizar a aceitação de suas propostas”. De acordo com Chagas (2017), a reforma da previdência, o pagamento da dívida pública e a ausência de reformas progressivas favoráveis às classes subalternas deixaram evidente que as promessas de campanha tornaram-se um engodo, e que por trás de políticas compensatórias ocultava-se um partido que havia se tornado um instrumento da ordem burguesa neoliberal, justificando o caráter de dependência histórico determinado ao país, principalmente pelo neoliberalismo tardio.
Para Paulani:
Assim, tendo o Fome Zero como a principal estratégia de marketing, mas sem conferir efetivamente a essa meta grande importância nem lhe proporcionar recursos substantivos, o governo esforçou-se mesmo, logo de início, foi para completar as mudanças iniciadas por FHC na área previdenciária. Que o governo tenha começado por aí, que tenha empenhado todo o seu peso político e seus cargos na aprovação de tal reforma, pode ser tudo, menos uma causalidade (PAULANI, 2008, p. 43, grifo nosso).
Esse compromisso firmado entre o Partido dos Trabalhadores e o capital trouxe enormes consequências para o governo de Dilma Rousseff, sucessora de Lula. Conforme Bastos (2019), Dilma Rousseff tentou eliminar ou, ao menos, reduzir a dependência rentista da dívida pública, questionando o poder estrutural do capital financeiro. Isso representou, grosso modo, romper com o pacto conservador formado pelo governo Lula em 2003, que significava a redução da taxa de juros, o aumento da taxa de câmbio e o aumento da taxa de lucro.
Para agravar ainda mais os problemas do governo, a queda no investimento no setor industrial teve impacto na capacidade da indústria automobilística. À medida que cresciam os investimentos no maior ramo da indústria brasileira (o dobro em 2014), também crescia a importação de automóveis, deprimindo os investimentos no mesmo ano (BASTOS, 2019).
Diante da crise econômica e política, a nomeação de Joaquim Levy – engenheiro naval que se doutorou pela Universidade de Chicago – como ministro da Fazenda indicava que Dilma pretendia recompor o amplo bloco que Lula houvera feito no passado. Porém, a dificuldade de articulação política da presidente ante à pressão do mercado financeiro e de setores econômicos domésticos e estrangeiros, que mantinham estreita relação com o setor rentista, levou o movimento golpista a promover o impeachment. Depois da saída da presidente, o que se seguiu foi um bem articulado movimento político-jurídico e econômico para sanear, enfim, os caminhos necessários a instaurar no Brasil um modelo de neoliberalismo nos moldes chilenos, inclusive com risco às instituições democráticas liberais.
4. Educação, ideologia e reprodução social: os reflexos do neoliberalismo na educação brasileira
À luz do materialismo histórico-dialético, podemos compreender a educação como um complexo social que reflete a realidade objetiva de igual forma a outros complexos, como a arte, a filosofia, a política, o direito etc. Por essa razão, a educação reproduzida na sociedade capitalista também condiz com a necessidade de manutenção de uma dada ordem de coisas. Isso não quer dizer que o processo educativo tenha um aspecto determinado e teleológico, ao contrário disso, a educação como expressão da subjetividade humana responde às imposições da objetividade, sem com isso determinar inexoravelmente o comportamento dos sujeitos a ela expostos.
A natureza da educação consiste, portanto, em conferir uma determinada consciência aos indivíduos, a fim de que se adaptem aos interesses de conservação da sociedade em questão, de modo que os conhecimentos, valores, comportamentos etc., sejam acrescidos ou reprimidos, a depender das relações sociais estabelecidas, indiferentemente do modo de produção em vigência, seja na sociedade primitiva ou na capitalista. Contudo, é preciso destacar que a realidade reproduzida a cada tempo histórico consegue, de maneira geral, imprimir nos sujeitos características importantes para qualificá-los a eventos e situações novas que inevitavelmente ocorrerão em suas vidas (LUKÁCS, 2018).
O pensador húngaro também afirma que a educação dos seres humanos no seu sentido amplo (não formal) nunca estará inteiramente completa, pois atende à mesma dinâmica das transformações do mundo concreto, que fatalmente divergirá, em algum momento, da educação no sentido estrito (formal) para a qual homens e mulheres foram preparados durante a vida.
A educação numa sociedade de classes, em seu sentido estrito, além de requerer certa quantidade de conhecimentos, habilidades, valores, comportamentos etc. fundamentais para atender às necessidades sociais da ordem econômica vigente, requer dos indivíduos uma subordinação ideológica que não questione as condições a que a sociedade está submetida, mesmo que a miserabilidade social reproduzida apresente fortes inclinações à extinção humana.
Segundo Lukács, a educação, sobretudo no sentido amplo, nem sempre atende positivamente às finalidades para as quais foi estabelecida. Portanto, para o filósofo húngaro, determinados indivíduos/grupos, independentemente da classe a que pertencem, podem reagir de forma absolutamente contrária à educação recebida, tanto no sentido amplo quanto no sentido estrito.
De acordo com Lukács:
O maior erro de uma apreciação de tal processo consiste em que se tem o hábito de considerar apenas os efeitos positivos como resultado da educação; quando, contudo, o filho do aristocrata se torna um revolucionário e, o descendente de oficiais, um antimilitarista, quando a educação para a ‘virtude’ produz uma inclinação à prostituição etc., também são estes, em sentido ontológico, resultados da educação tanto quanto aqueles nos quais o educador realizou suas posições de finalidade (LUKÁCS, 2018, p. 243).
Por outro lado, não se pode negar que os complexos ideológicos numa sociedade do tipo capitalista, a exemplo da educação, atendem, predominantemente, aos interesses da classe dominante, na qual procura desenvolver uma subjetividade alinhada à reprodução e à permanência da ordem societal, em que visa atribuir aos educandos não somente conhecimentos e capacidades técnicas para a reprodução do trabalho assalariado, mas também convencê-los de que os princípios que regem esta sociedade, apesar de contraditórios, ainda representam o melhor dos mundos possíveis.
Para Marx e Engels (2007, p. 47): “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (grifo dos autores). Assim, a classe que detém os meios de produção é a mesma que tem sob seu controle os meios de produção espiritual que irão impor sua ideologia aos demais membros da sociedade.
Essas premissas iniciais são importantes para compreender o modus operandi do neoliberalismo como modelo político, econômico e igualmente ideológico, que aparece na década de 1970 como reação a mais uma crise do sistema capitalista. Sua existência tem provocado à já limitada educação liberal prejuízos imensuráveis para a formação da classe trabalhadora.
Embora o neoliberalismo tenha representado nas últimas décadas sua força em todos os setores da sociedade, não significa que não tenha havido resistência; porém, esse modelo ideopolítico e econômico tem conquistado vitórias importantes em detrimento das conquistas históricas dos trabalhadores, sobretudo no mundo do trabalho e na educação formal.
O neoliberalismo, distintamente do liberalismo social de Keynes, tem realizado um saque aos fundos públicos com a clara finalidade de aumentar seus lucros fora dos setores tradicionais de reprodução capitalista, procurando a esfera financeira como medida anticíclica para combater as crises de superprodução e superacumulação. Desse modo, a educação tem se apresentado com uma alternativa altamente lucrativa para o capitalismo financeirizado.
Os sistemas educativos têm sido determinantes na construção da narrativa neoliberal, que, além de se apropriar dos recursos públicos provenientes do mais-valor criado mediante a exploração da força de trabalho, intenta imprimir uma percepção da realidade aliada ao ideário neoliberalizante da vida e da economia.
No Brasil, o Banco Mundial (BM) passa a investir na educação a partir da década de 1990, pensando uma educação para a periferia que muito se diferencia da que se propunha para os países centrais. A preocupação do BM, por conseguinte, não se detinha na qualidade do ensino ofertado, mas na posição ocupada pelo país na estrutura reprodutiva da economia globalizada. A baixa industrialização e a maior atividade econômica concentrada no setor primário demandavam concomitantemente uma formação, em todos os níveis e modalidades, de baixa qualidade: “Isso porque países periféricos com economias subordinadas têm sua produção restrita a mercadorias de baixo valor agregado, requerendo um trabalho pouco qualificado”, como assevera Cislaghi (2012, p. 267).
Não por acaso, no processo de financeirização da economia nacional, os setores da educação e da saúde são os que mais têm se desenvolvido ao longo dos anos. Segundo Brettas (2020), o objetivo central dos grandes conglomerados que lucram com a financeirização das políticas sociais não é nem tanto transformar esses serviços em mercadorias, mas produzir lucros sobre qualquer pretexto, o que sob a lógica rentista do capitalismo contemporâneo significa submeter os custos para aumentar a remuneração dos investidores, ainda que isso reduza consideravelmente a qualidade dos serviços ofertados.
Sguissardi traz dados bastante esclarecedores sobre o domínio dos grandes conglomerados educacionais no Brasil, bem como demonstra o caráter financista que tem elevado o capital dessas empresas a patamares bastante elevados em relação às formas tradicionais da economia capitalista.
De agosto de 2012 a agosto de 2014, por exemplo, enquanto o Ibovespa (índice do total de cerca de 350 empresas) teve uma redução de 3,67%; a Vale (VALE5), redução de 13,48%; e a Petrobras (PETR4), valorização de 9,32% de suas ações; a Kroton (KROT3) teve uma valorização de 314% e a Estácio (ESTC3), 240,97% de suas respectivas ações (SGUISSARDI apud GALZERANO; MINTO, 2018, p. 68).
Isso demonstra que o segmento da educação tem se tornado um grande negócio para o capital nacional e estrangeiro, que se aproveita da precarização e da falta deliberada de investimentos públicos no setor para faturar não só no mercado convencional, mas também, e prioritariamente, no mercado financeiro. Ademais, os conglomerados educacionais seguem a tendência monopolista de outros setores do mercado capitalista, cuja centralização e concentração de capitais são reforçadas através das fusões.
Essa constatação fica evidente na quase fusão entre a Kroton e a Estácio em 2017, que apesar de ter sido rejeitada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)7, as duas empresas representam predominância incontestável em praticamente todo nível superior privado do país – presencial e na modalidade EaD. No caso da Kroton, estende-se da mesma forma sua influência para a educação básica mediante a aquisição do Centro Educacional Leonardo da Vinci e da Somos Educação. Com a aquisição da Somos Educação, a Kroton expande seus negócios para o fornecimento de materiais didáticos, pois desde “[...] que foi listado na Bovespa, em 2011, o grupo adquiriu, até o ano de 2015, mais de 25 marcas” (GALZERANO apud GALZERANO; MINTO, 2018).
Esse exponencial avanço do setor privado da educação não seria possível sem as contribuições do Estado, ou melhor, da alocação do fundo público para o financiamento direto e indireto de políticas que favoreceram as empresas educacionais. Podemos apontar duas formas importantes de espoliação das reservas fiscais para usufruto da iniciativa privada, sobretudo, de capital aberto. A primeira forma se constitui em consequência de políticas governamentais ou de Estado que tornam flexível a utilização dos recursos públicos para fins privados, a exemplo do Fundo de Financiamento ao Estudante de Nível Superior (Fies), de 1999, e do Programa Universidade para Todos (Prouni), de 2005. No segundo caso, as bolsas parciais ou integrais estão condicionadas à isenção fiscal, que pode ser maior ou menor a depender de algumas variáveis. Além de tudo, manobras fiscais sempre foram feitas para que houvesse um maior engajamento das instituições privadas.
Em 2007, as dívidas dessas instituições, de acordo com a Receita Federal, chegavam a aproximadamente 12 bilhões. Contraditoriamente, as instituições, para participar do programa, deveriam comprovar adimplência até dezembro do ano de adesão, porém, diante das dificuldades de solver suas dívidas, o governo federal adiou a comprovação até que aprovasse a Lei nº 11.552/2007, a qual permitia que as instituições participantes parcelassem as dívidas anteriores a 2006 em 120 parcelas (CISLAGHI, 2012).
A segunda forma de uso das receitas fiscais para favorecer o capital tem a ver com a relação que o Estado mantém com o mercado financeiro através da emissão de títulos públicos para financiar suas despesas. A securitização da dívida pública é uma maneira de negociar os títulos públicos no mercado de capitais, comercializada, principalmente, no mercado secundário por investidores institucionais. Desse modo, os fundos reservados ao pagamento dos juros e amortizações da dívida consomem parcela da riqueza criada pela classe trabalhadora na esfera produtiva, para transformála em títulos de capital fictício, que podem ser adquiridos pelos próprios conglomerados educacionais.
Essa relação é apontada por Trindade (2017) como parte da própria essencialidade do ser movimento do capital. O economista também assevera que
[...] a securitização dos títulos públicos responde a uma crescente necessidade da reprodução global do capital de aportar massas crescentes de capital ocioso, convertendo capital de empréstimo em capital fictício e, por outro lado, na facilidade com que o capitalista credor retoma a propriedade sobre a mercadoria capital (TRINDADE, 2017, p. 138, grifo do autor).
As obrigações do Estado são transformadas em títulos financeiros; há um movimento de substituição de capital real, retirado de circulação, por capital fictício através da emissão de papéis que correspondem a determinados valores nominais. “Ao vender os títulos, o Estado absorve capital de empréstimo, e ao realizar seus gastos lança na circulação creditícia grande quantidade de dinheiro-renda, que realiza mercadorias, repondo capital aos capitalistas diversos” (ibidem, p. 145). O Estado como instrumento de comando político da ordem sociometabólica do capital torna-se um garantidor da acumulação capitalista em face do emprego do fundo público para viabilizar, cada vez mais, os negócios capitalistas em sua fase neoliberal.
As políticas econômicas e sociais do Estado brasileiro expõem de maneira inequívoca o resultado de décadas de favorecimento à educação privada e ao mercado financeiro. Em 2014, 44% da receita da Kroton era gerada a partir do Fies, que ainda era responsável por 50% das matrículas de ensino presencial no país; no mesmo ano, a aquisição e a distribuição de materiais didáticos pela Somos Educação elevou a sua receita em 61%, tudo isso com o apoio dos fundos públicos. Desse modo, procurar alternativas no interior do Estado capitalista para melhorar a educação é o mesmo que desenvolver novas políticas de expansão e lucratividade para os negócios da rede privada de ensino. Enquanto isso, a educação pública continua submetida a investimentos pífios e parte do capital que seria destinado aos serviços públicos se transforma em capital rentista para o mercado financeiro.
5. Notas conclusivas
Como asseguram Marx e Engels (2007), as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada tempo histórico, de modo que numa sociedade de classes, a classe que possui o poder material dominante também detém o controle sobre os meios de produção espiritual. No caso específico da educação, além de ser um complexo ideológico importante para imprimir nos indivíduos as ideias, os comportamentos e os valores caros à ordem capitalista, também é relevante a fim de que esses mesmos indivíduos adquiram habilidades para a produção e a reprodução social do sistema econômico. Isto é, a mercadoria educação ajuda a forjar a mercadoria força de trabalho, ou melhor, contribui para, nos termos capitalistas, lhe agregar valor”.
Com as reformas estruturais e a desregulamentação no neoliberalismo, os grandes conglomerados educacionais tiveram a oportunidade de se lançar no mercado financeiro, bem como de se aproveitar do endividamento do Estado para financiar seus projetos de expansão. O amparo do Estado através do orçamento público levou empresas como a Kroton a ter, somente em 2014, uma valorização de seus ativos em 314%; e sua maior concorrente da época, a Estácio, 240,9%. A Kroton, depois de fundir-se com a Anhanguera Educacional em 2014, criou uma holding em 2019 que passa a se chamar Cogna Educacional, a segunda maior empresa de educação do mundo, com valor líquido de R$ 13,77 bilhões e valor de mercado de mais de R$ 5 bilhões.
O crescimento exponencial das empresas de educação no Brasil contrasta com o sucateamento e a falta de investimento no setor público. A receita fiscal, que representa a apropriação do Estado de parte do mais-valor, é usada em benefício dos capitalistas da educação e do próprio mercado financeiro.
A miséria intelectual que os serviços educacionais no neoliberalismo têm destinado à população, felizmente não define a capacidade da classe trabalhadora de superação da realidade imposta, e muito menos de determinar a consciência desses indivíduos, por mais sistemático que seja o complexo ideológico utilizado. Daí o fato de a educação neoliberal refletir a realidade de nosso tempo histórico e os imensuráveis retrocessos, a desvelar o cenário de barbárie que se aponta para o futuro se nada for feito. Apesar de tudo, não se pode desprezar a possibilidade de propiciar uma educação com princípios emancipatórios em contraposição à doutrinação econômica e ideológica da classe dominante. Contudo, a única maneira concreta de superar os obstáculos presentes na sociedade capitalista reside numa ruptura radical com a estrutura socioeconômica vigente.
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Notas
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