ARTIGO
Canção na aula de história e sua apropriação temática pelo professor
Song in the history class and its thematic appropriation by the teacher
Canção na aula de história e sua apropriação temática pelo professor
Revista Tópicos Educacionais, vol. 28, núm. 1, pp. 216-240, 2022
Centro de Educação - CE - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Recepção: 01 Abril 2022
Aprovação: 01 Maio 2022
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a fala de professores de História sobre a apropriação do uso da canção em suas práticas docentes. Trata-se de recorte de uma pesquisa de abordagem qualitativa com procedimentos e técnicas metodológicas da Análise do Conteúdo do tipo categorial temática. Os dados, colhidos através de entrevistas semiestruturadas, apontam para uma ausência de estudos sistemáticos sobre a canção na aula de História durante a formação docente dos entrevistados e para uma prática docente reflexiva que superou esse déficit na formação de professor. Foi possível concluir sobre a necessidade de atualização de cursos de licenciatura em História em relação à inclusão, em suas matrizes curriculares, de estudos sobre os documentos alternativos, com vistas a atualizar o ensino da disciplina de História.
Palavras-chave: Prática docente, Canção e ensino de História, Formação de professores.
Abstract: The objective of this article is to analyze the speech of History teachers about the appropriation of the use of song in their teaching practices. This is an excerpt from a research with a qualitative approach with methodological procedures and techniques of Content Analysis of the thematic categorical type. The data, collected through semi-structured interviews, point to an absence of systematic studies on the song in the History class during the interviewees' teacher training and to a reflective teaching practice that overcame this training deficit. It was possible to conclude on the need to update the degree courses in History in relation to the inclusion, in their curricular matrices, of studies on alternative documents, with a view to updating the teaching of the discipline of History.
Keywords: Teaching practice, Song and History Teaching, Teacher training.
1. Introdução
A partir da década de 1980, no Brasil, debates sobre a reconfiguração do ensino de História se tornaram mais frequentes diante do final do período ditatorial mais recente e início da redemocratização (ZAMARIAM, 2011). Com efeito, já vinha sendo notado um afastamento da disciplina de História em relação à realidade social (PINSKY, 2018), o que foi computado com uma das razões para a chamada crise do ensino de História (NADAI, 1992) e a necessidade de sua superação. Uma disciplina, que tinha sua narrativa muitas vezes fundada apenas em grandes acontecimentos e grandes personagens selecionados, encontrava dificuldade de fazer sentido aos adolescentes em seus estudos, por exemplo.
Então, o intuito da superação dessa crise era tornar o ensino construtivo, com um conhecimento mais completo, plural e, sobretudo, mais próximo daqueles que estudam a disciplina, portanto mais significativo. Uma das formas apontadas para se alcançar esse objetivo foi a quebra do monopólio do documento escrito na construção da narrativa história e a abertura para a presença, e para o estudo, de documentos das mais variadas naturezas, o que chamamos de documentos alternativos — textos de jornal, poesia, fotografia, filmes, documentários e canções, por exemplo (ALVES, 2017).
Diante de tal contexto, alguns estudos se desenvolveram em torno ora da metodologia do ensino de História com proposições de incorporação desses ditos documentos alternativos, ora permeando temáticas em torno de cada um desses documentos alternativos de maneira individual. Foi neste segundo movimento que desenvolvemos uma pesquisa no Mestrado em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, sobre a prática docente de professores de História no uso da canção em suas atividades escolares.
A pesquisa foi extensa e contém diversas nuances. O que propomos aqui é apresentar um recorte dessa pesquisa, dando ênfase ao que nos permite um duplo movimento: 1. perceber como uma prática docente reflexiva pode ajudar na superação de ausências de temáticas na formação inicial e continuada de professores e 2. pensar em como os cursos de formação de professores ainda podem ser atualizados no que concerne aos debates curriculares nacionais.
Buscamos dar conta dos desafios que era responder às questões formuladas dando voz a professores de História, de modo a compreender a prática docente daquele que concebe e coordena a prática pedagógica escolar e de sala de aula quanto ao emprego de documento alternativo no ensino da disciplina. O objetivo do estudo, então, é analisar a fala de professores de História sobre a apropriação do uso da canção em suas práticas docentes.
Para isso, entenderemos, em um primeiro momento, do que se trata o uso da canção na prática docente do professor de História. Em seguida, apresentaremos as escolhas metodológicas referentes ao recorte apresentado. Por fim, daremos destaque às falas dos professores entrevistados por meio da análise do conteúdo dessas falas que permearam a apropriação da canção como um documento alternativo utilizado na disciplina de História.
2. A canção na prática docente do professor de história
Para dar inteligibilidade à análise, são necessários, em primeiro lugar, alguns esclarecimentos teóricos acerca da canção3 como um documento alternativo na aula de História e, depois, da reflexão sobre a prática docente.
Ao escrever, na década de 1990, sobre o Ensino de História, Elza Nadai (1992) apontou as tendências que ela identificou naquela década e os rumos que o Ensino de História estaria tomando a partir dali.
A autora nomeou de “crise da história historicista” (NADAI, 1992, p. 144) os questionamentos que impulsionaram os profissionais da área de História a repensar o tradicionalismo que predominava na produção historiográfica. Explicando a histórica influência francesa do século XIX — discurso enciclopédico e cientificismo positivista — sobre a disciplina de História no Brasil, Nadai produziu uma análise em que mostrava que, mesmo ao longo do século XX, a referida disciplina ainda tinha a história da Europa Ocidental como padrão de sociedade, e que seus conteúdos eram concentrados em biografias de “grandes nomes”, datas e batalhas. A prevalência, enfim, da história política. A autora salientou, inclusive, que uma reduzida história do Brasil era basicamente organizada desta forma: o que entrava e saía do currículo era influenciado pela ideia de nação, cidadão e pátria a partir da perspectiva tradicional europeia de História. Uma história narrada primordialmente a partir de documentos escritos.
Para melhor compreender essa crise, podemos juntar aos questionamentos de Nadai (1992) os de Jaime Pinsky (2018), que apontou, sobre o mesmo período, para uma História que não se encontrava com a realidade social brasileira.
A crítica feita por Pinsky (2018) referia-se à o quanto era usual se pensar sobre os personagens elencados por meio de uma seleção de “grandes nomes” entendidos como sujeitos únicos construtores da História, como aqueles que decidiam os rumos das nações quase que exclusivamente a partir de suas decisões políticas. Para o autor era recorrente notar a ausência de comunicação entre o objeto de estudos históricos e a vida social; além, é claro, de não se levar em conta as demais condições, atores e grupos sociais inseridos nos movimentos da história. Esta perspectiva serviria mais para um distanciamento da participação da sociedade no processo histórico, logo favoreceria mais à alienação, do que à tomada de consciência de tal participação (PINSKY, 2018).
Ou seja, a crise consistia na percepção desse afastamento; sua superação, por consequência, seria através de tentativas de aproximação. Essa aproximação, segundo Nadai (1992) já se apresentava sobre diversas tendências, dentre elas, intervir no modo de escrever a história, o que implicava ir em busca de fontes variadas. Ir além do documento escrito e/ou oficial, incorporando jornais, revistas, séries, filmes e canções, por exemplo. Ir em busca de documentos alternativos. Com essa inclusão, abrir-se-ia a possibilidade de se produzirem discursos múltiplos, proporcionando o diálogo, o contraditório, a complementaridade e a exposição de divergências e convergências a partir de análise documental diversificada (NADAI, 1992).
Um novo modo de escrever a história trouxe consequências para a prática docente do professor de História, dentre as quais destacamos a necessidade da inclusão dessa temática — o documento na escrita da história — tanto na própria prática docente, quanto na formação do professor. Consequências essas sobretudo no que se refere à necessidade de estudos e reflexões sobre cada um desses documentos alternativos. Por não serem produzidos com objetivo didático, eles não se encontram prontos para serem usados na sala de aula sem que o professor tenha o cuidado de estudar o método mais adequado de se analisar um tipo específico de documento com o qual se propõe a trabalhar (BITTENCOURT, 2018).
Então, como veremos mais adiante, no recorte que apresentamos da análise realizada, apesar de uma discussão mais intensa sobre a inclusão de documentos alternativos na disciplina de História ter emergido no final do século passado, o estudo sistemático desses documentos nos cursos de formação de professores não se fez uma presença nem rápida, nem frequente, nem ainda absoluta. E é aqui que entra a dimensão da prática docente que queremos destacar para dar inteligibilidade à análise de logo mais.
É certo que a prática docente é um elemento de estudo da área de Educação muito complexo, multifacetado, cuja compreensão exige enxergar a inter-relação que dessa prática com outras práticas — como a prática discente, por exemplo, alimentando-se dela, mas ressignificando-se mutuamente (FREIRE, 2002; SOUZA, 2009). Mas, em um esforço de definição, podemos enxergar a prática docente como a prática própria do ser professor, desde suas ações relacionadas ao planejamento das atividades docentes, passando por sua execução, avaliação e reorganização, até sua reflexão, estando ela atrelada de maneira, coletiva e intencional a um conjunto de outras práticas (epistemológica, discente, gestora), sendo por elas afetadas e afetando-as concomitantemente.
Para a análise que aqui apresentamos, falemos dessa dimensão de reflexão, que o professor desenvolve sobre sua própria prática, na busca por aprimoramento. Porque a possibilidade de melhoria da prática docente também pode ser oferecida a partir do exercício da reflexão sobre ela mesma, conforme defendeu Zabala (1998).
Os discursos dos colegas professores que se dispuseram a participar da pesquisa, apresentaram-se para nós com grande potencial para revelar conteúdos da prática reflexiva. Por isso buscamos eleger não apenas práticas cujos conteúdos significassem evidências de experiências exitosas como também fizessem referência a problemas da/na prática docente a serem superados. Segundo Zabala (1998), nós, professores, devemos fazer o esforço de analisar estes problemas no intuito de procurar compreender as variáveis de nosso trabalho. O esforço de análise e compreensão dessas variáveis demanda se dotar de um maior referencial teórico interpretativo das situações educativas na escola (ZABALA, 1998).
O que precisamos, enfim, é de ferramentas teóricas para uma prática reflexiva; e os meios teóricos se constituem, muitas vezes, por meio de conceitos extraídos de estudos empíricos (ZABALA, 1998). É isto que nos oferecem as falas dos professores entrevistados em comunicação com nosso referencial, porque evidenciam uma reflexão sobre a própria prática que superou dificuldades e déficits formativos. A formação inicial desses professores não ofereceu um estudo sistemático sobre o uso da canção na aula de História, mas o uso aconteceu na prática a partir de trocas de experiência entre colegas e da percepção de cada professor sobre o potencial educativo da canção, em acordo com seus objetivos.
3. Escolhas metodológicas
O que norteou nossas escolhas metodológicas foi o objeto: a prática docente de professores de História no uso da canção em suas atividades. Por se tratar de uma pesquisa que se debruçou sobre aspectos do cotidiano do trabalho docente, optamos, em primeiro lugar, por uma abordagem qualitativa, porque “o universo das investigações qualitativas é o cotidiano e as experiências do senso comum, interpretadas e reinterpretadas pelos sujeitos que as vivenciam” (MINAYO, 2013, p. 24).
O campo de investigação escolhido foi a rede estadual de ensino de Pernambuco, em suas escolas componentes do Programa de Educação Integral (PEI). Como o PEI prevê que as escolas do programa se dotem de uma abordagem de enriquecimento cultural em suas atividades (PERNAMBUCO, 2008; 2014), nós a enxergamos como ambiente propício para a ocorrência da utilização da canção nas atividades dos professores de História.
A presença de professores que utilizavam a canção em suas atividades ajudou-nos também a delimitar o campo de pesquisa. A aproximação com os professores entrevistados se deu a partir de uma busca por “bola de neve”, que é quando, a partir dos objetivos explicados pelo pesquisador, uma pessoa identifica, em sua rede de sociabilidade, outra que se encaixa no perfil procurado (VINUTO, 2014).
Em nossa rede de sociabilidade, a partir de uma atuação como professor de História Moderna e Contemporânea do pré-acadêmico “CAVest” — projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco desenvolvido no campus de Vitória de Santo Antão — pudemos dar início à essa busca por “bola de neve”.
O público deste projeto de extensão, em 2019 — ano de início da pesquisa —, era formado por alunos da rede pública de ensino que cursavam o último ano do ensino médio e ansiavam por uma vaga em uma universidade pública. Desta forma, estudantes não só de Vitória de Santo Antão, mas de várias cidades vizinhas participavam do projeto. Apresentamos o que procurávamos, e esses alunos apontaram quais de seus professores da rede pública estadual correspondiam ao perfil. Ao final, realizamos a pesquisa entrevistando 3 professores de 3 cidades diferentes (Chã de Alegria, Gravatá e Vitória de Santo Antão), os quais os apresentamos no quadro de resumo a seguir.
Para além do quadro, chamamos a atenção para um fato adicional: os três professores estudaram e se formaram na mesma instituição de ensino superior (IES), uma instituição privada4. Isto nos permitiu estabelecer algumas inferências acerca dessa instituição e, a partir delas, questionarmo-nos, de alguma forma, acerca de uma possível extensão dessas inferências à outras IES. Mas isso faremos mais adiante.
Dois professores, P1 e P2, são os mais velhos, têm a mesma idade, formaram-se mais ou menos na mesma época, ingressaram na carreira também mais ou menos na mesma época e, coincidentemente, ministraram as mesmas quatro disciplinas ao longo de suas carreiras: Filosofia, Sociologia, Direitos Humanos e História. A multiplicidade de disciplinas ministradas ocorreu, segundo o relato dos professores, por conta da necessidade de complementação de carga horária.
Outra coincidência é que P3 é dez anos mais jovem, formou-se aproximadamente dez anos após P1 e também ingressou na carreira aproximadamente dez anos depois de P1.
Portanto, dois dos três entrevistados são professores experientes, contando com quase quinze anos de exercício profissional docente. Os três possuem diploma de curso de pós-graduação lato sensu, as chamadas especializações, em temáticas relacionadas ao campo da Educação, mas diferentes entre si, cursadas em momentos diferentes e em instituições também diferentes. Cursos de pós-graduação stricto sensu não constavam dos currículos dos entrevistados.
No que se refere às técnicas e procedimentos de coleta de informações, levando em conta a natureza qualitativa da pesquisa, optamos por alcançar o objetivo ao qual nos referimos neste recorte por meio de entrevistas semiestruturadas. São elas que, apesar de contar com um roteiro prévio a ser seguido, o entrevistado fica livre para discorrer sobre o tema, cita aquilo que achar conveniente no momento da entrevista (MINAYO, 2013).
A técnica e o procedimento de análise foi a Análise de Conteúdo, por ela dizer “respeito a técnicas de pesquisa que permitem tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de um determinado contexto, por meio de procedimentos especializados e científicos” (MINAYO, 2013, p. 303). Nela, dentre suas várias técnicas, optamos pela análise categorial temática, por sua rapidez e eficácia quando se aplica a discursos diretos e simples (BARDIN, 1997).
4. A apropriação da temática do uso da canção pelo professor de história
A apropriação de uma temática, tanto no âmbito pessoal quanto profissional, e na prática docente de um professor, pode influenciar diretamente nas maneiras pelas quais essa prática pode ocorrer. É nisso que consiste a importância de se analisar o conteúdo das falas de professores sobre esta apropriação. Em suas formações e durante suas experiências de vida, os professores podem ter se confrontado com a possibilidade de uso da canção em suas práticas docentes e de vida de diversas maneiras.
Ao buscar investigar esta apropriação temática, de pronto constatamos a ausência na formação inicial dos professores envolvidos na pesquisa não apenas do tema “uso da canção (ou da música) na disciplina de História”, mas a ausência de uma discussão sobre os ditos “documentos alternativos”, de modo geral. Os três professores entrevistados alegaram não ter experimentado um estudo sistemático sobre a temática em sua formação inicial.
Diante disso, dois aspectos importantes ficaram evidentes nas entrevistas realizadas. Conscientes do déficit na formação, evidenciou-se em suas falas uma sentida insegurança em relação a quais referenciais teóricos poderiam recorrer, caso viessem a julgar necessária uma orientação pedagógica sobre como trabalhar com a canção nas aulas de História. Por outro lado, a inexistência de discussão da temática durante a formação não configurou motivo para não se utilizar da canção. Suas experiências próprias — tanto em suas carreiras profissionais quanto na troca de experiências com colegas e de suas histórias de vida e de formação complementar —, teriam oferecido as bases para um trabalho reflexivo, para a aquisição de um conhecimento a partir da reflexão sobre experiências próprias e de trocas com colegas, em detrimento do notado déficit na formação inicial.
Em um primeiro momento, os professores entrevistados foram indagados sobre se houve aproximação com a música em suas vidas, por meio de estudos formais ou não. P1 respondeu que nunca realizou estudo formal em Música, mas que há músicos em sua família.
Olha. Não. Não toco, não. Apesar de ser muito fã de cavaquinho [...], mas eu não toco, não. É, na minha família existe muita gente que toca instrumentos, eu não toco, não, e também não participo de coral, não (P1, 35a).
P2, por sua vez, contou ter realizado algum estudo formal em Música.
Eu, eu, minha mãe é evangélica, né, meus pais eram evangélicos. E aí eu fui criada na igreja, né. E aí, eu sempre cantei, desde a infância. Aí, eu participava de coral, cantava no ministério de louvor, nos grupos de músicas que existiam. Com oito anos de idade meu pai me colocou para aprender teclado, mas era muito preguiçosa, sempre odiei partitura. E, assim, gostava muito do... como a gente aprende cedo, né, gostava muito [de tirar] “do ouvido”, né. Eu lembro que amava ouvir os professores, odiava partitura, não lia direito a partitura, mas escutava eles tocando. Aí aquela musiquinha básica eu pegava tranquilo. Mas, assim, sempre tive muita preguiça, viu, de, de treinar. Mas aí eu arranho no teclado. Fiz aula de teclado. Não sei tudo, mas, assim, basicão mesmo, né (P2, 35a).
E P3 também alegou ter havido algum estudo, porém menor que o havido com P2.
Não, tocar não toco, não, mas a música sempre, assim, sempre permeou a minha vida [...], mas não participo, não, de coral, nem tocar em nenhum momento, não. Quando era mais jovem, acho que por volta de uns (hesitação) 12, 13 anos, eu tentei. Tem, aqui, uma sociedade musical, aqui [na cidade], mas aí depois que eu vi que foi ficando muito complicado, essas coisas de colcheias, essas coisas não são para mim, não (risos) (P3, 25a).
O que vemos, então, é que a música não esteve ausente da história de vida desses professores. Embora P2 tivesse contado com um estudo formal em Música e com uma intuição musical ao tentar “tirar de ouvido” algumas melodias básicas, optou, de certo modo, por não caminhar pela área dos estudos musicais, apesar da insistência. Mas mesmo P2 contando com uma maior experiência, ao final, os três alegaram alguns contatos bem próximos com o campo da Música. P1 com seus familiares, P2 com as experiências na igreja e na tentativa de estudar formalmente a Música e P3 em uma tentativa de estudo formal parecida. Demonstraram, assim, de alguma forma, estarem abertos para acolher a Música em suas vidas e deixar que ela se faça presente.
Algo que estas falas destacadas aqui já nos apontam, e que se confirmou ao longo de toda a entrevista, é a presença, na prática docente dos professores entrevistados, de um saber experiencial: aquele produzido pela experiência e por ela validado, não estando presente em teorias, doutrinas ou não sendo apreendidos nas salas de aula do curso de graduação, porque são saberes construídos da/na prática (TARDIF, 2010). Estas falas evidenciaram que os saberes experienciais teriam sido decisivos para a incorporação da canção à prática docente investigada.
Concordamos com Tardif (2010) quando disse que a prática docente de um professor é continuamente aprimorada, também, a partir de necessidades de adaptação e de habilidades pessoais em lidar com situações variadas, e isto vem do saber experiencial, das disposições formadas na prática ao longo de suas carreiras. Se identificamos os saberes experienciais de um professor a partir de seu estilo de ensino e personalidade profissional, por exemplo (TARDIF, 2010), as primeiras aproximações pessoais com a Música pelos professores entrevistados são evidências de uma aparente predisposição de formação desse saber experiencial no que se refere à articulação ensino e música.
Porque essa aparente predisposição em deixar a música se fazer presente em suas vidas nos pareceu o primeiro elemento importante para a ocorrência do uso da canção em suas práticas docentes, indício de que teria havido um olhar crítico para com elementos da vida cotidiana e se observaram as possibilidades de aproveitamento destes elementos na prática profissional. A experiência de pensar sobre canção pode ter oferecido um primeiro incentivo a pensar a canção na escola, com objetivo educacional e de aproximação com os alunos.
Até porque, em se tratando de formação inicial, os três alegaram não haver estudo sistemático da temática do uso de documentos alternativos ou da canção nas aulas de História durante seus cursos de graduação. E no que se refere aos documentos alternativos, por exemplo, P3 falou que
Não. A gente tem muito na questão só documental mesmo, documento em suma, né, o documento no papel. Agora, pra outras, nem nas disciplinas, o que é um erro, diga-se de passagem, nem nas disciplinas de prática pedagógica não tivemos relação sobre isso, não. E, assim, também não vou ser negligente ao ponto de dizer “ah, não só canção importa”, “só o filme importa”, mas eu acredito que uma reunião. É uma pena que na faculdade a gente ainda careça dessas, é, dessas formações bem específicas, né. É, se a gente tivesse um olhar voltado assim, para a dimensão de outros recursos que não o livro, que não os textos, enfim, a gente poderia ter um aproveitar muito, muito melhor em sala de aula em relação a esses outros recursos (P3, 25a).
Quando afirmamos ser a canção um dos chamados documentos alternativos para a disciplina de História, defendemos esta nomenclatura baseados em Calissi (2003). A autora apresentou que a inserção da canção pode ter sido vista como algo novo na disciplina de História pelo fato de haver um costume maior de lidar com documentos escritos e/ou oficiais, e tudo o que não estaria dentro desta classificação seria visto como novo — apesar de, de fato, não serem novos, uma vez que o uso de documentos como o de mapas e cinema, e também a própria canção, podem ser observados desde o século XIX (CALISSI, 2003; VIANA, 2013). A fala de P3 não evidenciou qualquer visão da canção como um documento novo, mas uma formação pautada na preferência pelo documento escrito, “documento em suma [...] o documento no papel”, como ele mesmo disse. Ou seja, a preferência pelo documento escrito apontada por Calissi, em 2003, ainda esteve presente na formação inicial de P3, formado em 2015, mais de uma década depois da dissertação da autora. Esta preferência parece contribuir, inclusive, com a visão de P3 de que o documento em papel seria um documento essencial, inferência revelada pela expressão “documento em suma”.
Essa preferência pelo documento escrito não se tratou de uma prática isolada do curso de graduação de P3. Lembremos que os três professores se graduaram pela mesma IES, e as falas dos demais não destoaram do que afirmou P3. P1, que dos três foi o primeiro a se formar, disse que
[...] acesso [à temática] documentos [alternativos] eu tive na época da minha especialização. Porque na especialização tinha uma disciplina lá que era sobre justamente a História do cinema. E aí dentro dessa História do cinema a gente teve um módulo, né, de História do cinema, e trabalhamos com jornais e com fotografias, especificamente nessa temática. Então, eu tive acesso, mas não na graduação. Eu tive acesso na especialização (P1, 35a).
Lembremos que a especialização de P1 foi em História das Artes e Religiões, ofertada, vale mencionar, por uma IES pública da capital pernambucana. Essa especialização não tratou de documentos alternativos, mas mereceram referência, em especial jornais e fotografias, em um dado módulo de ensino dentro de um contexto maior, um curso sobre História das Artes e Religiões. Esta parece ter sido uma breve passagem pelo tema da possibilidade de trabalho com documentos alternativos em História. Breve, pontual e mencionada em determinados documentos, porque, em outro momento da entrevista, P1 demonstrou não ter tanta segurança em afirmar ser o texto literário um documento alternativo, estando seguro em colocar tal afirmação apenas em relação à fotografia e ao cinema, e colocando-os como os principais.
[...] poderia citar também, não sei se entraria como também documentos, mas, é, os gêneros literários, como a gente citou aqui a crônica, e também acrescenta muito, né. Mas além do, do, da canção, eu acredito que os principais, a fotografia e o cinema (P1, 35a).
Não há dúvidas de que a obra literária, também é um documento alternativo a ser utilizado para a disciplina de História. Podemos afirmar isto, por exemplo, a partir de Hermeto (2012), que reconheceu o estatuto de documento a tudo aquilo que pode informar sobre o ser humano e sua vida em sociedade. Para Hermeto (2012), as perguntas que o historiador e o professor de História fazem, transformam a produção humana ao longo do tempo em documento para a História. Entendimento completado ainda por Calissi (2003, p. 92), quando afirmou que “podemos dizer que tudo aquilo que é produzido pelo homem sob a influência da sociedade em que vive pode representar significados que possibilitem sua utilização como documento histórico”. Dessa forma, podemos dizer que o autor do texto literário deixa impressões de sua época pelas linhas escritas.
A aparente insegurança de P1 em afirmar ser a produção literária um documento para a História, parece surgir da ausência de discussão sobre os documentos alternativos em História em sua formação inicial. A possibilidade de obras de literatura virem a se constituir em documento alternativo em História não lhe havia sido apresentada. Vejamos que não houve insegurança em afirmar serem documentos a fotografia e o filme cinematográfico, pois foram citados e estudados, até, em sua especialização, mas não a obra literária.
E esta insegurança em afirmar algo como documento para a História não ficou aparente apenas em P1. Ao ser confrontada com essa mesma questão, P2, apesar de ter se graduado na mesma IES que P1 e P3, relatou ter havido um breve contato na graduação com a temática de documentos alternativos em História. E aquele breve contato relatado foi justamente com a canção - mas disse ter ocorrido mesmo apenas em uma ocasião. P2 relatou que ocorreu muito mais como uma escolha de seu então professor em citar algumas canções como exemplos de um dado período histórico que estava sendo estudado. Assim, para P2, a presença da canção não apareceu como uma possibilidade de prática de trabalho para ela e seus colegas formandos, mas como um exemplo da produção musical do mais recente período ditatorial brasileiro. Porque P2 disse que, de fato, não houve qualquer estudo teórico ou metodológico sobre como se utilizar da canção nas aulas de História em sua graduação.
Olha, só, eu só me recordo de uma vez, assim, um trabalho fantástico que o professor fez, de música. Que foi justamente o período da ditadura [civil]militar. E aí ele trouxe, né, tinha alguns cantores, ele levou, e aí ele fez um repertório lindo e maravilhoso de músicas compostas na ditadura [civil]militar. E esse foi para mim um momento mais emblemático, mas, assim, não existe, pelo menos não existiu para mim, dentro da graduação, algo que me incentivasse, de fato, a utilizar a música na sala de aula, entendesse? Assim, as aulas eram muito... assim, professores eram muito, como eu posso te dizer, teóricos, né, eles eram muito teóricos, né, não se utilizam dessa prática, né. Mas, assim, teve esse professor que eu me recordo, assim, muito bem dele, assim, de fala magnífica, tanto que fica na nossa mente, a gente não esquece. Mas assim, “como utilizar a música”, “por que a música é importante”, “como a gente pode fazer essa prática na sala de aula”. Eu nunca tive isso, exceto no curso de Psicopedagogia, que a gente tem uma cadeira sobre essa questão da importância [de utilizar música]. Mas para utilizar [a música] no contexto da psicopedagogia, né, que não é necessariamente o de uma sala de aula (P2, 35a).
Esses excertos nos remetem a Elza Nadai (1992), que analisou a chamada crise da História historicista e apontou algumas possibilidades de superação. Dentre elas, uma tendência, a partir da década de 1990: a inclusão, no estudo da História, da utilização de múltiplos documentos.
A inclusão da diversidade documental na disciplina de História colocava uma demanda também para a formação do professor de História: se na lida cotidiana com a disciplina era necessário levar em consideração documentos de várias naturezas, seria de se esperar que os professores, eles mesmos, tivessem o preparo profissional docente necessário ao uso em sala de aula. Essa obviedade, contudo, não era o que existia. Ao entrar em contato com a discussão apontada por Nadai em 1992, podemos nos indagar sobre se tal tendência (presença e uso de múltiplos documentos) encontra correspondência com a formação de professores de História nas duas décadas seguintes. As falas dos professores envolvidos em nossa pesquisa, graduados pela mesma IES, cuja formação ocorreu em um lapso temporal de dez anos entre o mais antigo e o mais recente, revelaram que a diversidade documental ainda não havia sido adotada na prática formativa de tal IES, no campo da História, pelo menos até 2015.
P1 disse não haver estudo sistemático sobre a temática do uso da canção (ou sequer de documentos alternativos em História) em sua graduação, finalizada em 2005. O mesmo afirmou P3, com graduação concluída em 2015. Entre um e outro, P2 confirmou a ausência, citando uma menção feita por um professor de canções produzidas durante o mais recente período ditatorial brasileiro. P2 e P3 disseram, respectivamente, que os professores eram “muito teóricos” e que o foco das abordagens considerava mesmo o “documento em papel”. Estas falas, relatando experiências de cursos de formação inicial ao longo de dez anos na mesma IES, oferece-nos meios para afirmar que a diversidade documental, de fato, ainda não havia sido adotada como prática formativa em que os professores entrevistados se graduaram.
Em resumo, os três entrevistados afirmaram não haver estudo sistemático sobre a temática do uso da canção em suas graduações. No entanto, P1 e P2 contaram com aproximações com a temática a partir de suas especializações, cujo foco não estava nos documentos alternativos ou de canções, vale lembrar. E essas aproximações também nos parecem ter sido muito tímidas. Porque, se por um lado, como vimos, P1 não encontrava segurança em afirmar ser a obra literária um documento para a História, P2 teve fala análoga em relação a outro elemento da cultura popular, desta vez contemporânea.
[...] o que talvez seja a prática que pode pegar, da hora, agora, é a questão da prática... eu não sei se isso vai ser um documento no futuro, mas eu acho que vai ser muito bem estudado, que é os memes, né? Eu não sei se isso vai ser considerado documentação (P2, 35a).
O termo “meme” se refere a ideias e piadas que são difundidas pela internet, em redes sociais, atreladas a determinadas ideias, comportamentos, pessoas ou acontecimentos, que são replicadas por meio de uma tentativa cômica de imitação visual do objeto a que se refere (HORTA, 2015). É um elemento da cultura popular contemporânea muito próximo das charges, sendo estas geralmente voltadas à crítica política e social, e elaboradas a partir de desenhos, contando com chargistas profissionais, enquanto que os memes, além de englobar características da charge, podem ser elaborados também a partir de fotos ou imagens em movimento e têm a falta de domínio técnico em sua elaboração como característica constituinte marcante.
O que falamos até então sobre a potencialidade de tudo aquilo que é produzido pelo ser humano, influenciado por seu tempo e pelo espaço onde vive, faz-nos perceber os memes também como documentos. Percebemos haver um forte potencial no material produzido no cotidiano e que este possa vir a tornar-se documento para a História, a partir das perguntas que historiadores ou professores de História venham a submetê-lo (CALISSI, 2003; HERMETO, 2012), Se eles replicam ideias, comportamentos e até acontecimentos, tais elementos replicados estão inseridos em um contexto, e foram replicados a partir da visão de uma pessoa sobre aquele determinado acontecimento, por exemplo. A percepção dos memes como possíveis documentos, e apenas no futuro, para P2, pode estar atrelada ao fato de que ela não contou com um estudo sistemático, em sua graduação, sobre os documentos alternativos em História.
Com estas falas, podemos também notar algo mais: a capacidade reflexiva dos professores, e o quanto esse atributo do humano pode contribuir para a superação de déficits de formação. Vemos que tanto P1, com relação à obra de literatura, quanto P2, com os memes, desenvolveram uma reflexão própria sobre o estatuto de documento a ser conferido a tais elementos: a eles não foi apresentada essa possibilidade durante suas graduações, mas indicam pensar nela. Vemos ainda que, muito provavelmente, a prática de professores de História pode ter oferecido também esta possibilidade de reflexão aos dois. De algum modo houve uma reflexão sobre o estatuto de documento para os elementos da cultura popular que são observados pelos professores. Com isso, demonstram possuir um olhar crítico sobre sua prática docente, sobre tais elementos e suas possíveis utilizações. A ausência de uma discussão sobre documentos alternativos em História durante a graduação talvez apenas tenha concorrido para que não pudessem fazer afirmações com segurança a partir de suas reflexões. Ou seja, em detrimento do que podemos apontar — a partir das falas dos professores — como uma formação pautada na construção de um conhecimento histórico formulado através de algumas poucas fontes ou exclusivamente de fontes escritas (FENELON, 2008), os professores entrevistados não negam o estatuto de documento às canções, crônicas, filmes, fotografias, literatura e memes — que foram os citados em suas falas. Apenas não houve segurança ao afirmar que alguns deles são documentos.
Como vimos, no caso da música e da canção, P1 e P2 afirmaram também haver alguns breves contatos com o tema a partir de suas especializações, e os três têm a música presente em suas vidas. Se por um lado houve ausência da temática na formação, por outro, não faltou um olhar crítico e reflexivo dos professores sobre os objetos de seu cotidiano. E, também, um saber experiencial (TARDIF, 2010) de que tais objetos podem ser de inclusão pertinente à prática educativa.
E, por haver tais breves contatos com o tema da canção a ser utilizada na disciplina de História nas especializações, os professores que os informaram - P1 e P2 - foram, então, perguntados sobre a literatura acadêmica acessada durante a formação. P1 citou apenas um autor.
José Teles. Assim, ele é um crítico de música e ele trabalha com muita... ele, na época, tinha um trabalho muito interessante sobre o movimento de Nação Zumbi, de Chico Science [...] os textos dele eram muito regionalizados e isso me marcou muito, [para] como trabalhar música pra um público regional, né (P1, 35a).
José Teles é um cronista do Jornal do Commércio, de Pernambuco, e crítico musical, que tem sua formação em Jornalismo. A obra de Teles não se trata de uma produção intelectual de menor valor, pois gera reflexões acerca da música em nossa região. Este olhar para nós mesmos através de nossa música pode ser importante para uma apropriação cultural e/ou formação de sentimento de pertença, por exemplo. No entanto, Teles não produz a partir de pesquisas acadêmicas na área da Educação ou do ensino de História. Sua visão regionalista da música produzida no estado e na região Nordeste, como apontou P1, pode ter auxiliado para que mais de uma perspectiva de interpretação do conteúdo de uma canção pudesse estar presente nas atividades escolares elaboradas por P1, mas o autor em questão não tem um histórico de escrita voltado ao ensino de História. Ou seja, sendo este o autor que P1 teve acesso durante sua especialização, a temática da canção a ser utilizada na disciplina de História careceu de literatura acadêmica própria da área de História e de ensino de História acerca da utilização da canção na disciplina.
Mas também, e mais uma vez, algo mais podemos evidenciar com a fala destacada. Levando em conta o fato de que o trabalho com a canção existe na prática docente de P1, parece ficar evidenciado que o contato pode se dar a partir de fontes de origem e natureza diversas. Por conseguinte, não necessariamente de fontes com validação acadêmica. Isto denotou que a formação do professor percorre caminhos nem sempre lineares e formais, mas tortuosos e informais.
Um movimento parecido pode ser percebido com P2. Lembremos que P2 disse não ter havido estudo sistemático sobre o tema da utilização da canção na aula de História — apenas uma menção feita por um professor quando estudava a mais recente ditadura brasileira —, que uma breve menção ao tema da canção utilizada no ensino veio apenas na especialização, mas que ainda assim “para utilizar [a música] no contexto da psicopedagogia, né, que não é necessariamente o de uma sala de aula” (P2, 35a...). Ao levar em conta que a Psicopedagogia visa compreender o processo de aquisição da aprendizagem humana a partir de interações, com o apoio das áreas da Psicologia e da Pedagogia, vejamos o que P2 respondeu sobre os autores acessados durante sua especialização.
A prática de estímulo e resposta que a gente usa na música, a gente pode utilizar aquele Skinner, acho que é esse que é da Psicologia. É, que isso, isso é muito estímulo e resposta, que a gente utiliza na música, né. Que é utilizar o estímulo da canção, que se tem, para ter, obter a resposta, que é a memorização. A [...] afetividade tem Wallon, ele fala muito sobre isso, né, não especificamente da música, mas ele traz a questão do professor, de você, da pessoa aprender com sentimentos, com a questão da afetividade. E aí a gente pode utilizar isso pra música, pra canção. Eles [os alunos] se sentem com grau de afetividade maior quando utilizo a música. A música aproxima (P2, 35a, grifos nossos).
Vejamos que os autores citados por P2 são dois dos recorrentemente estudados na área da Psicologia da Educação. Skinner, o teórico do Behaviorismo, da análise comportamental e do condicionamento, e Wallon, da Psicologia do Desenvolvimento, teórico da empatia, do olhar a afetividade do aluno com o meio, por exemplo, para, a partir disso, preparar melhor a construção do conhecimento (PILETTI; ROSSATO, 2011). No primeiro caso, com Skinner, P2 citou estímulo, resposta e memorização e, no segundo, com Wallon, uma aproximação sentimental do aluno quando se utiliza a música. Mais uma vez, não se trata de uma produção intelectual de menor valor. A contribuição e importância da Psicopedagogia e da Psicologia para a Educação são inquestionáveis, mas estes autores não falaram sobre utilização da música ou da canção no ensino de História. Ou seja, assim como P1, P2 também careceu, em sua formação, de um estudo sistemático com uma literatura própria da área de História e de ensino de História acerca da utilização da canção nesta disciplina.
Mas, para todos os efeitos, temos que destacar que P2 demonstrou capacidade de realizar aproximações entre as teorias psicológicas e suas reflexões sobre o ensino, denotando autonomia intelectual, que é, de todo modo, um objetivo buscado pela prática formativa. E vale destacar mesmo sendo uma aproximação entre teorias com conceitos, conteúdos e sentidos divergentes entre si.
Ademais, buscamos saber quais os autores consultados para além dos citados. Porque, no caso, P1 e P2 alegaram haver um breve estudo com a temática do uso da canção durante suas especializações e citaram autores que não escreveram sobre o ensino de História. Já no caso de P3, não houve estudo nenhum em sua formação, quer na graduação, quer na especialização. Então, quando é necessário recorrer a uma fonte que fale especificamente desta temática, do uso da canção (ou da Música) na aula de História, que fontes ou autores são consultados por esses professores?
P3 disse desconhecer esta literatura específica e nunca ter necessitado recorrer a alguma fonte teórica sobre o assunto. P2 disse não consultar autores para além dos já citados — Skinner e Wallon. Mas P1 disse contar com a experiência de colegas, até da mesma GRE.
Mmm... olha... eu geralmente, eu costumo fazer pesquisas sobre as canções que eu vou trabalhar, se essa canção já foi utilizada por outros profissionais dentro de minha área de magistério. Mas te confesso que uma literatura específica, eu sou um pouco leigo. Eu não teria o que te dizer, não [...]. Eu também encontro em grupos que a gente tem, de trocar, de troca de experiência, profissionais dentro da rede estadual mesmo, às vezes até dentro da minha Gerência [Regional de Educação] que também trabalham e também encontram as mesmas dificuldades [de formação] (P1, 35a, grifo nosso).
Desta fala de P1 nos veio algo caro à nossa pesquisa: a reflexão sobre a prática docente. Podemos observar com Zabala (1998) como a possibilidade de melhoria da prática docente pode ser oferecida, também, a partir do exercício da reflexão sobre ela mesma, e que o esforço de reflexão pode nos fazer dispor de um referencial teórico interpretativo das situações educativas na escola. P1 pareceu fazer este movimento. Porque na falta do conhecimento de referenciais teóricos próprios da temática, não abandonou a prática do uso da canção em suas aulas, mas buscou trocar experiências com outros colegas de profissão — que encontraram, inclusive, as mesmas dificuldades de P1 — para que essas experiências trocadas, pensadas e adaptadas à realidade de cada um, pudesse lhe oferecer bases para o exercício de um trabalho sempre em aprimoramento. E isto ainda corrobora com o saber experiencial (TARDIF, 2010), ao notar quais experiências podem ser exitosas em suas práticas a partir de trocas de impressões e de experiências com colegas de profissão.
Por fim, diante de toda esta ausência na formação inicial e também nas especializações relatadas, questionamos os professores entrevistados sobre a formação continuada, porque em tal conjuntura ela poderia fornecer algum suporte.
P1 disse que para as disciplinas de Ciências Humanas há, geralmente, dois encontros de formação continuada por ano: um para a escolha do livro didático e outro que vem se concentrando na formação de um novo currículo para o Ensino Médio da rede estadual. Já P3 disse não existir rotina de formação continuada, que nos anos anteriores havia congressos que tratavam de um tema geral de formação profissional e que, em 2020, houve, entre julho e setembro, reuniões com alguns professores, selecionados pela GRE, para discussões sobre a formação de um novo currículo para as Ciências Humanas na rede estadual.
Vejamos que as informações fornecidas por P1 e P3 apresentam uma em certa concordância: os encontros são poucos e priorizam debates sobre o currículo. Por menos frequentes que sejam, debates acerca do currículo e de suas atualizações são importantes para a dinâmica de uma escola preocupada com a relação com o meio social no qual os alunos/as têm suas vivências. Mas a questão que emerge: porque outra dimensão do currículo, a prática curricular — aquela que ocorre em sala de aula, lugar privilegiado de concretização do currículo escolar —, não foi contemplada?
De maneira breve, a formação continuada pode ser encarada, razoavelmente, como uma articulação planejada e periódica de atividades com professores que visem atualização e aprofundamento do conhecimento docente, para o aprimoramento em avanços, renovações e inovações (GATTI, 2008). Essas atividades levariam em consideração o trabalho concreto do professor, suas demandas, em um entendimento da educação como um trabalho coletivo (NÓVOA, 2009), e, inclusive, com socialização de experiências (MARCELINO, 2015). Os relatos de P1 e P3 revelam que: não há uma constância — o primeiro disse que há geralmente duas por ano e o segundo que não há rotina — e que as atividades podem até ser encaradas como voltadas para atualização e aprofundamento do conhecimento docente levando em conta as demandas do trabalho do professor, mas o currículo escrito é que é priorizado.
Encontros que pautam a escolha de livro didático e a reformulação do currículo e deixam de discutir outras temáticas igualmente importantes à prática docente cotidiana dos professores da rede podem parecer um tanto limitados. Ao serem indagados sobre a formação continuada, P1 e P3 citam estes encontros, deixando claro que tais encontros lhes são apresentados como formação continuada. Ou seja, com essas falas, podemos ser levados a concluir que a formação continuada oferecida parece não se preocupar em contemplar uma maior variedade de necessidades formativas e de atualização dos professores da rede, restringindo-se ao debate sobre o currículo escrito. Isto foi posto de forma clara nas falas de P1 e P3.
P2, diferentemente de P1 e P3, não enxerga tais encontros como formação continuada, pois até os cita, mas diz que a formação continuada não existe.
Praticamente não existe. A gente não tem formação continuada no estado. A gente tem por ano um chamado fórum, que eles trazem celebridades, né, celebridades do meio educacional e pronto, mas formação continuada especificamente na área de Humanas a gente não tem. E aí recentemente houve uma formação, mas foi da Secretaria de Direitos Humanos, e participava quem queria. Uma formação sobre gênero e sexualidade. Mas não foi da Secretaria de Educação, não (P2, 35a).
Desta forma, P2 disse que o que é oferecido não é formação continuada em sua perspectiva, mas fóruns com palestras com quem ela chamou ser celebridades do meio educacional. Ainda completou a informação alegando uma espécie de incorporação dos professores da rede estadual em um dado encontro da Secretaria de Direitos Humanos.
Fazemos um adendo de que a aparente diferença de conteúdo entre os encontros de que participaram P2 e outros dois professores pode se explicar pelo fato de que eles lecionam em escolas de municípios diferentes. Apesar de ser a mesma GRE, essas formações podem ter sido dirigidas a determinados município.
Mas, então, em relação à fala de P2, sua visão nos oferece algumas questões acerca do tema e aponta para a carência de um estudo mais aprofundado. Uma pergunta precisa ser respondida: os encontros oferecidos pela Secretaria de Educação e Esportes (SEE) aos professores da rede estadual apresentam-se com a ideia de que a formação continuada necessita tratar algo mais do que metodologia de ensino do conteúdo curricular a ser trabalhado em sala de aula? A partir das falas colhidas, parece haver indícios de que há um entendimento mais amplo do que vem a ser formação continuada, que vai mais além da metodologia do conteúdo curricular e é perpassada por temas sociais presentes no ambiente escolar.
De todo modo, dentro dos limites da investigação, o que realmente importou na fala dos professores são as aproximações que tais relatos revelaram acerca da formação continuada: uma demanda por maior variedade nos temas relativos ao cotidiano do trabalho dos professores parece não ser comtemplada pelo que lhes é oferecido como formação continuada. Então não se trata de que o tema do uso da canção na disciplina de História — ou documentos alternativos em geral — seja posto de lado na formação continuada oferecida pela rede estadual de ensino de Pernambuco, mas que uma variedade de temas o são.
Mas com toda esta explanação, pudemos, então, concluir sobre a formação deficitária — pelo menos na IES em que os professores entrevistados se formaram — no que se refere ao tema do uso da canção na aula de História e também sobre os documentos alternativos, de modo geral. E pudemos concluir, também, sobre o olhar crítico desses professores sobre os elementos culturais cotidianos e suas possíveis utilizações na sala de aula, pelo objetivo didático, educacional. Porque, em primeiro lugar, os três professores têm na música um elemento presente em suas vidas, em maior ou menor grau, mas de forma alguma inexistente; e em segundo, que a formação deficitária para tratar pedagogicamente sobre a temática pode oferecer insegurança em relação a que referenciais teóricos recorrer quando se julgar necessário, mas que as experiências profissionais — próprias e de colegas de profissão, e também suas histórias de vida em contato com a música —, ofereceram a possibilidade de um olhar reflexivo e questionador sobre o objeto e suas possibilidades de uso na prática docente. Isto fortaleceu o entendimento acerca da formação do saber experiencial (TARDIF, 2010) e de como a prática docente profissional de um professor não se encerra na formação inicial acadêmica, mas é constantemente aprimorada em sua vivência e no exercício de seu trabalho.
5. Considerações finais
Ao buscar analisar a fala de professores de História sobre a apropriação do uso da canção em suas práticas docentes, tendo este objetivo como o norte da pesquisa, pudemos chegar em algumas conclusões depois de percorrer o caminho que aqui apresentamos.
A pesquisa possibilitou perceber que a ausência da temática do uso da canção e dos documentos alternativos em História na formação dos professores entrevistados foi um achado comum. Os três estudaram na mesma IES e relataram não haver contado com estudos sistemáticos acerca desses temas. Algumas breves menções estiveram presentes durante os cursos de pósgraduação lato sensu de dois dos professores, mas que não ofereceram, como vimos, sentida segurança para a prática ou estudo da literatura especializada no tema. Isto pode ser encarado como um entrave para que tal uso aconteça na prática docente dos professores entrevistados. Mas, ainda assim, o uso da canção foi observado na prática desses professores e se revelou uma evidência de superação a esses possíveis entraves. A prática docente continuamente reflexiva dos professores nos parece ser responsável por essa superação: refletem sobre quais elementos podem estar presentes em suas atividades para além do que aponta um currículo tradicional e inserem um elemento que não os foi apresentado na formação inicial.
Outrossim, a barreira da História tradicional, com viés positivista, com narrativa formada exclusivamente a partir do documento escrito e/ou oficial, demonstrou ainda não estar completamente superada nos cursos de formação inicial dos professores de História — pelo menos não na IES em que os professores entrevistados se formaram, mas é algo que podemos nos questionar sobre a extensão para outras IES. O que ocorre para que estudos sobre documentos alternativos ainda não tenham ganhado espaço no currículo desses cursos? Tantos anos depois da efervescente discussão sobre a inclusão dos documentos alternativos em História, seria natural encontrá-los em programas de formação dos professores. Como essa ausência pode ser compreendida? Isto requer estudo próprio.
No que se refere à formação continuada — que vai além de tratar sobre conteúdos expressos explicitamente no currículo escrito —, a verdade é que as informações obtidas nas entrevistas também apontam para a necessidade de investigação mais profunda. Evidenciamos que uma demanda por maior variedade nos temas relativos ao cotidiano do trabalho dos professores parece não ser contemplada pelos encontros que lhes são apresentados como formação continuada. Apontamos discordância entre os professores entrevistados acerca da definição dos encontros. Ou seja, há realmente a necessidade de uma investigação mais profunda acerca da formação continuada oferecida pelo Governo de Pernambuco aos professores da rede, com um olhar sobre seus princípios, seus conteúdos, seus objetivos, sua amplitude, sua paridade com o currículo do estado e o trabalho dela com os professores. São as notas que ainda podemos acrescentar nessa composição.
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Notas
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