Resumo: O presente artigo direciona-se para a epistemologia da prática docente com a finalidade de explicitar sobre o processo de construção de conceitos científicos, tema de importância fundamental para o ensino de Ciências da Natureza. Como um aspecto específico do funcionamento cognitivo, conceitos científicos são construídos e internalizados de modo gradativo e significativo e, nesse sentido, entender como ocorre essa construção é fundamental para a prática pedagógica pois, na maioria das vezes, o ato de conceituar é considerado sinônimo de definir. Nesse sentido, vemos na obra sócio-interacionista de Vygotsky a contribuição necessária para o entendimento sobre esse processo, pois este autor trata com profundidade a relação entre a experiência culturalmente organizada e o estudo da cognição e do desenvolvimento cognitivo como base para construção de novos comportamentos.
Palavras-chave: Conceitos Espontâneos, Conceitos Científicos, Ensino de Ciências.
Abstract: This article is directed to the epistemology of teaching practice with the purpose of explaining about the process of construction of scientific concepts, a theme of fundamental importance for the teaching of Nature Sciences. As a specific aspect of cognitive functioning, scientific concepts are constructed and internalized in a gradual and meaningful way and, in this sense, understanding how this construction occurs is fundamental for pedagogical practice because, in most cases, the act of conceptualizing is considered synonymous with defining. In this sense, we see in Vygotsky's socio-interactionist work the necessary contribution to understanding this process, because this author treats in depth the relationship between culturally organized experience and the study of cognition and cognitive development as a basis for building new behaviors.
Keywords: Spontaneous Concepts, Scientific Concepts, Science Teaching.
ARTIGO
Ensino de ciências da natureza e conceitos científicos
Teaching nature sciences and scientifics concepts
Recepção: 01 Novembro 2021
Aprovação: 01 Janeiro 2022
Os grupos humanos promovem o desenvolvimento dos membros mais jovens, fazendo-os participar em diferentes tipos de atividades educativas e facilitandolhes, através desta participação, o acesso à experiência coletiva culturalmente organizada. Porém, a assimilação coletiva, a aprendizagem dos saberes culturais não consiste em uma mera transmissão, por parte dos adultos, e uma simples recepção, por parte das crianças, mas implica um verdadeiro processo de construção, ou reconstrução, para sermos mais exatos, no que reside, em parte, a idiossincrasia do processo de desenvolvimento humano (COLL, 1996, p.394).
Uma das dificuldades que constatamos no ensino em Ciências, em todos os segmentos da escolaridade, refere-se ao entendimento de conceitos científicos que, mesmo quando utilizados com frequência, geralmente não são devidamente compreendidos, estruturados e internalizados. Embora ocorra a correta verbalização do conceito, muitos estudantes não encontram argumentos para explicitá-lo quanto ao significado ou, então, não conseguem realizar sua inter-relação com outros conceitos, bem como utilizá-lo em situações reais.
Como aspecto específico do funcionamento cognitivo, o processo de construção de conceitos científicos é um assunto relevante e, na maioria das vezes, desconhecido pelos professores. Desse modo, tendo em vista que a efetivação da aprendizagem acontece quando há construção gradativa de conhecimentos e consequente internalização, há que se considerar a necessidade de o professor entender como ocorre a construção dos conceitos científicos para que a prática docente possa ser promotora da apropriação conceitual pelos alunos.
É fato que a ação educativa sistematizada que ocorre no ambiente escolar deve considerar que ensinar e aprender são processos que se interdependem e, nesse sentido, o desconhecimento pelo professor de como o aluno aprende torna inexequível uma prática pedagógica competente que proporcione o pleno desenvolvimento do educando à medida que lhe possibilite vivenciar situações novas e desafiadoras, envolvendo condições de análise e reflexão para um posicionamento consciente, crítico, determinado, criativo e eficaz sobre elas.
Compreendemos que o processo de humanização do ser humano acontece pela educação, como canal para a efetivação da integração do eu individual ao coletivo para alcançar aquilo que é mais específico desse ser: a intelectualidade, a afetividade e os hábitos, que o levarão à realização de um ideal. À escola compete ultrapassar a simples tarefa de transmissão de conhecimentos, assumindo a função de capacitar o indivíduo a exercer um papel ativo e responsável dentro da sociedade, prolongando e aprofundando a educação familiar na formalização do caráter educativo da própria coletividade, que é a fonte mais ampla de procedência da imagem ideal que se imprime ao processo educativo (GILES, 1987).
A escola, como local legitimamente instituído para o trabalho com o conhecimento acumulado pela humanidade, deve ser referência obrigatória para a veiculação da cultura em seus mais diversos aspectos. A prática educativa precisa ser interpretada como caminho que objetiva o desenvolvimento cognitivo do sujeito pela interação com os diferentes grupos sociais e pela apropriação da cultura e do saber.
Porém, não basta o educador estar comprometido com o processo educacional se ele não conhece os alunos com os quais trabalha. Conhecê-los significa reconhecê-los como indivíduos singulares, com conhecimentos de mundo diferentes, o que permite diagnosticar o que eles pensam e sabem sobre determinados assuntos que serão estudados, pois a estruturação do conhecimento necessita de constantes interferências e desafios para promover a metacognição1, entendida como a reflexão sobre o próprio pensamento, pois com base
(...) em operações metacognitivas, seria provavelmente possível que o sujeito tornasse explícito, para si próprio e para os outros as relações entre seus conceitos e teorias. A ação metacognitiva favoreceria, pois, uma organização do conteúdo das teorias para torná-las mais consistentes e mais úteis à produção de eventos e ao controle da realidade. Por outro lado, à falta de procedimentos metacognitivos, o sujeito não se daria conta das teorias subjacentes à organização de seus conceitos, ‘submetendo-se’ ingenuamente a concepções teóricas que, em certo sentido, são por ele ignoradas (OLIVEIRA, 1999, p. 84).
Embora a aprendizagem seja um processo próprio do aluno, sendo ele um dos responsáveis pela construção do seu conhecimento, compete ao professor, como elemento mediador entre a Ciência e o aluno, criar estratégias que possibilitem a sua participação ativa por meio de um ensino que promova uma compreensão contextualizada da Ciência superando modelos que tratam o conhecimento científico como neutro e com a crença de que a natureza está à disposição do ser humano. Para tanto, é necessário compreender a relação dialética entre ação humana e natureza, que ocorre por meio de uma teia de inter-relações biofísicas e sociais, em que o conhecimento científico está em constante desenvolvimento e construção, sendo influenciado diretamente por questões sociais, ambientais, econômicas e culturais (KRELLING et al, p. 10070).
Com base em nossa condição docente pontuamos que uma das dificuldades encontradas pelos alunos reside no entendimento de conceitos científicos, que mesmo utilizados com frequência, geralmente não são devidamente estruturados e internalizados ao longo da escolaridade. Muitas vezes o aluno verbaliza corretamente um determinado conceito, porém não sabe explicitá-lo quanto ao significado, relacioná-lo a outros conceitos ou aplicá-lo em situações cotidianas.
Nessa perspectiva, como um aspecto específico do funcionamento cognitivo, a construção de conceitos científicos pelos alunos é um dos assuntos mais relevantes no processo de ensino e, na maioria das vezes, desconhecido pelos professores. Considerando-se que a efetivação da aprendizagem acontece quando há construção gradativa de conhecimentos e consequente internalização, é necessário entender como ocorre o processo de construção de conceitos científicos a fim de rever e repensar práticas de ensino que promovam a efetiva apropriação conceitual pelos alunos.
Geralmente os professores têm uma visão equivocada sobre o significado de conceituar, considerando a conceituação como sinônimo de definição. Tal entendimento é resultado de uma compreensão simplista da aprendizagem que, de certo modo, assume que não existe diferença entre expressão verbal e compreensão (ZABALA, 1998).
A definição relaciona-se à caracterização do conceito, sendo o conceito mais do que a simples memorização e verbalização das características de um termo ou objeto, estando vinculado a uma atividade psicológica complexa que consiste na abstração das características essenciais de um determinado termo ou objeto, estabelecendo discriminações, relações e representações para se chegar a uma generalização. As discriminações, relações e representações são organizadas por meio da linguagem que, articulada internamente, permite ao sujeito a estruturação do pensamento. A expressividade linguística inteligível desse pensamento generalizado constitui a definição do conceito. Nas generalizações os conceitos possibilitam que as palavras representem classes inteiras de objetos, qualidades ou acontecimentos.
Conceitos são elementos organizados em algum tipo de todo estruturado, com complexos de inter-relações formando uma rede de significados articuladora dos conceitos entre si. Nesse processo, a definição torna-se fundamental e necessária para o conhecimento como condição para se estabelecerem relações enunciando o resultado da experiência e da análise, supondo uma articulação exata entre as coisas e qualidades que devem estar dissociadas.
Entretanto, o que se constata no ensino de Ciências é que, na maioria das vezes, os conceitos são apresentados prontos, isto é, de forma acabada para os alunos impossibilitando, assim, que entendam todo um processo que levou à construção do conceito a ser trabalhado. O professor que trabalha dessa maneira
(...) costuma não conseguir senão uma assimilação vazia de palavras, um verbalismo puro e simples que estimula e imita a existência dos respectivos conceitos na criança, mas, na prática, esconde o vazio. Em tais casos, a criança não assimila o conceito, mas a palavra, capta mais de memória que de pensamento e sente-se impotente diante de qualquer tentativa de emprego consciente do conhecimento assimilado. No fundo, esse método de ensino de conceitos é a falha principal do rejeitado método puramente escolástico de ensino, que substitui a apreensão do conhecimento vivo pela apreensão de esquemas verbais mortos e vazios. (VYGOTSKY, 2001, p. 247).
Embora o conteúdo de Ciências envolva um conjunto muito grande de conhecimentos, parte deles se encontra, de modo assistemático, nas experiências dos alunos na forma de conceitos espontâneos, os quais atendem suas necessidades de explicação imediata num dado momento de seu desenvolvimento.
Conceitos espontâneos são aqueles formados de modo assistemático no cotidiano e definidos em termos de propriedades perceptivas funcionais ou contextuais de seu referente, tornando a representação do mundo conhecida e familiar. Possui como qualidades: a) naturalidade: representada por conteúdos de natureza simples, como se fosse a própria realidade; b) transparência: é sóbrio e simples; c) assistematicidade: embora tenha uma certa estrutura, é desarticulado, desprovido de formalização; d) acessibilidade: não apresenta linguagem complicada, sendo acessível a qualquer pessoa; e) estrutura narrativa própria e f) relativa estabilidade (GERTZ, 1994).
Para GIORDAN e DE VECCHI (1996), os concentos espontâneos estruturam e organizam o real correspondendo a uma modalidade da prática social, apresentando-se como um todo estruturado, durável e possuidor de uma lógica, sendo transformados pela situação que os ativa a ponto de serem continuamente reconstruídos de acordo com um novo contexto dado.
Diferente dos conceitos espontâneos, os conceitos científicos são construídos de modo sistemático e intencional, sendo produto de uma atividade mental de análise, comparação, abstração e sistematização, inseridos em teorias explícitas e investigações metódicas que procuram explicar de maneira coerente, verdadeira e demonstrável os acontecimentos e fenômenos da realidade.
Embora conceitos espontâneos e científicos pertençam a esferas distintas, no processo de ensino devem manter-se inter-relacionados, pois as concepções espontâneas não correspondem apenas a imagens da realidade, mas servem de ponto de apoio para apropriação de outros conhecimentos como estruturas de recepção que permitem unificar novas informações, exercendo um papel intermediário entre o conhecimento e o próprio sujeito (GIORDAN e DE VECCHI, 1996).
BACHELARD (1996) considera surpreendente que os professores não compreendam que o aluno não compreenda, que não se detenham no problema do erro e da falta de reflexão, imaginando que o espírito científico começa como uma aula, sendo sempre possível reconstruir uma cultura falha ou entender uma demonstração pela sua repetição, sem levar em consideração os conhecimentos já constituídos pelos alunos. Admite que não se trata
(...) de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana.
(...) toda cultura científica deve começar (...) por uma catarse intelectual e afetiva. Resta, então, a tarefa mais difícil: colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais e oferecer, enfim, à razão razões para evoluir (pp. 23-24).
PIAGET e GARCIA (1987) denotam que as ideias das crianças podem ser consideradas pré-científicas, obedecendo normas cognitivas em suas atividades, e que partindo de níveis inferiores de construções pré-lógicas, alcançam, no decorrer do desenvolvimento, as normas racionais, semelhantes àquelas que caracterizam o nascimento das ciências. Para eles, a construção das diferentes formas de conhecimento acontece por estágios sequenciais, em que
(...) cada um é, ao mesmo tempo, o resultado das possibilidades abertas pelo precedente e condição necessária do subsequente. Todo estágio começa, na realidade, por uma reorganização num novo nível das aquisições principais devidas aos precedentes: daí resulta a integração nos estágios superiores de determinadas ligações, cuja natureza só é explicada na análise dos estágios elementares (p.17).
Dessa forma, conhecer e trabalhar a partir das representações dos alunos não significa fazer com que se expressem apenas para desvalorizar suas concepções espontâneas, mas para dar-lhes o direito de se expressarem nas aulas,
(...) interessar-se por elas, tentar compreender suas raízes e sua forma de coerência, não se surpreender se elas surgirem novamente, quando as julgávamos ultrapassadas. Para isso, deve-se abrir um espaço de discussão, não censurar imediatamente as analogias falaciosas, as explicações animistas ou antropomórficas e os raciocínios espontâneos, sob o pretexto de que levem a conclusões errôneas (PERRENOUD, 2000, p. 28-29).
À vista disso, acreditamos que entre os autores que contribuem com modelos explicativos sobre como ocorre a estruturação de conceitos científicos, encontramos na obra de Vygotsky uma profícua fonte de ideias de como harmonizar o estudo da experiência culturalmente organizada com o estudo da cognição e do desenvolvimento cognitivo, bases para a construção de novos comportamentos. Em sua obra, adota uma abordagem teórica baseada no materialismo históricodialético propondo uma ótica interativa para o desenvolvimento, em que a estruturação do pensamento ocorre em um ambiente sócio-histórico-cultural.
O pressuposto básico em Vygotsky é que o ser humano se constitui nas relações que estabelece com os outros sociais, sendo a cultura parte da natureza humana em um processo histórico que ao longo do desenvolvimento filogenético (da espécie) e ontogenético (do indivíduo) molda o funcionamento psicológico humano. Considera que o desenvolvimento humano ocorre por meio de processos de internalização da cultura em um movimento inicialmente interpsicológico - nas relações que o sujeito estabelece como outros sociais, para o plano intrapsicológico - individual e, nesse processo, destaca a importância da aprendizagem no desenvolvimento intelectual do sujeito e o papel da escola na sua formação.
Vygotsky julga que a principal diferença psicológica entre os conceitos espontâneos e os conceitos científicos está na ausência de um sistema nos primeiros, vista disso a formação dos conceitos científicos é um processo estruturado que requer a conscientização dos conceitos espontâneos por meio de uma atividade mediada e metacognitiva, sendo uma atividade complexa
(...) em que todas as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser reduzido à associação, à atenção, à formação de imagens, à inferência ou às tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o uso de signo, ou palavra, como meio pelo qual conduzimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução do problema que enfrentamos (VYGOTSKY, 1991a, p. 50).
Para Vygotsky a linguagem, além de servir para a comunicação social, simplifica e generaliza a experiência organizando o mundo real em categorias conceituais facilitando o processo de abstração e generalização permitindo a apreensão do significado das coisas. A interação inicial entre a visão de mundo do indivíduo e aquela passada pela linguagem é fundamental para que ele se aproprie de significados que, de maneira dialética, constituirão sentidos a serem negociados com o seu meio sócio-histórico-cultural, reconstruindo internamente uma atividade externa como resultado de processos interativos ao longo do desenvolvimento. A palavra deliberadamente empregada para direcionar o processo nas diferentes fases do desenvolvimento conceitual tem papel decisivo, pois como
signos mediadores na relação do homem com o mundo são, em si, generalizações: cada palavra refere-se a uma classe de objetos, consistindo em um signo, numa forma de representação dessa categoria dos objetos, desse conceito (VYGOTSKY, 1991b, p. 63).
Na visão vygotskyana, o conhecimento é construído a partir da internalização de signos produzidos culturalmente, por meio das interações que o sujeito estabelece com os outros sociais, correspondendo à internalização um processo social em que ocorre
(...) a reconstrução interna de uma operação externa, que consiste numa série de transformações: uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente; um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal; a transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento (VYGOTSKY, 1991b, p. 63-64).
Na internalização a linguagem atua como mediadora das ações individuais e sociais. Por este ângulo, a consciência passa a ser entendida como o contato social consigo mesmo resultante da internalização dos instrumentos psicológicos utilizados na atividade humana, permitindo que o indivíduo controle a sua própria conduta. A consciência tem, portanto, uma estrutura semiótica, residindo no significado da palavra a unidade de análise que permite explicar o seu desenvolvimento.
Como os conceitos são construções culturais internalizadas ao longo do processo de desenvolvimento do sujeito, os atributos necessários e suficientes para suas definições são estabelecidos por características dos elementos encontrados no mundo real e selecionados como relevantes pelos diferentes grupos culturais.
Na formação dos conceitos científicos a palavra é um signo mediador que, primeiramente, apresenta a função de meio na formação do conceito e, posteriormente, irá se tornar o seu símbolo. A aprendizagem de conceitos científicos na escola
baseia-se num conjunto de significados da palavra desenvolvidos previamente e originários das experiências cotidianas da criança. Este conhecimento espontaneamente adquirido medeia a aprendizagem do novo. Assim, os conceitos cotidianos estão “entre o sistema conceitual e o mundo dos objetos (...) (PANOFSKY et al., 1996, p. 245-6).
Vygotsky propõe que o processo de formação dos conceitos científicos ao longo do desenvolvimento do sujeito ocorre, em linhas gerais, em três fases.
A primeira, denominada sincretismo, os objetos são agrupados de maneira subjetiva e desordenada e percebidos de modo imediato e isolado, não estando vinculados às suas características essenciais. Nesse estágio,
o significado das palavras denota, para a criança, nada mais do que um conglomerado vago e sincrético de objetos isolados que, de uma forma ou outra, aglutinaram-se numa imagem em sua mente. Devido à sua origem sincrética, essa imagem é extremamente instável (VYGOTSKY, 1991a, p. 51).
A segunda, denominada pensamento por complexos, caracteriza-se por agrupamentos baseados nas relações factuais que existem entre os objetos. Nesse estágio, embora os objetos apresentem uma base individual, são incluídos em uma situação geral; o fator relevante é a experiência da criança. Nessa fase existe excesso de conexões e dificuldade de abstração.
(...) os objetos isolados associam-se na mente da criança não apenas devido às impressões subjetivas da criança, mas também devido às relações que de fato existem entre esses objetos.
(...) Em um complexo, as ligações entre seus componentes são concretas e factuais, e não abstratas e lógicas.
(...) As ligações factuais subjacentes aos complexos são descobertas por meio da experiência direta. Portanto, um complexo é antes de mais nada um agrupamento concreto de objetos unidos por ligações factuais (Idem p.52-53).
A principal função dos complexos é estabelecer ligações e relações iniciando a unificação das impressões desordenadas pois, ao organizar elementos discretos da experiência em grupos, cria uma base para posteriores generalizações. No pensamento por complexos, as palavras também desempenham uma função importante, podendo essa fase do desenvolvimento conceitual ser considerada como um estágio do desenvolvimento do pensamento verbal (VYGOTSKY, 1991a, p. 66).
A evolução do pensamento por complexos culmina no aparecimento dos pseudoconceitos que constituem uma fase intermediária entre o pensamento por complexos e os conceitos verdadeiros. Nessa fase, as generalizações formadas no pensamento da criança assemelham-se aos conceitos dos adultos, mas diferem psicologicamente de um conceito verdadeiro, identificando-se ainda como um complexo.
Os pseudoconceitos prevalecem sobre os demais complexos no pensamento da criança pois os complexos que aparecem como significados das palavras não são ampliados por ela, pois o caminho seguido por um complexo no seu desenvolvimento encontra-se predeterminado pelo significado que a palavra possui no vocabulário dos adultos.
A terceira fase, que corresponde aos conceitos verdadeiros, os objetos são agrupados em relação a um único atributo abstraído de suas características gerais, colocados em uma categoria específica. Na formação de conceitos há interação do sujeito com os atributos presentes nos elementos do mundo real direcionada pelas palavras que constituem categorias culturalmente organizadas. A linguagem internalizada representa essas categorias funcionando como instrumento de organização do conhecimento.
Somente o domínio da abstração, combinado com o pensamento por complexos em sua fase mais avançada, permite à criança progredir até a formação dos conceitos verdadeiros. Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o principal instrumento do pensamento (VYGOTSKY, 1991a, p. 68).
As fases do desenvolvimento conceitual propostas acima não ocorrem necessariamente de maneira linear, mas em um processo no qual existem duas raízes de desenvolvimento independentes: uma fornecendo ligações e relações (complexos) e a outra realizando a análise e abstração. Essas raízes se uniriam em um determinado momento do desenvolvimento do indivíduo possibilitando, assim, o aparecimento dos verdadeiros conceitos.
Vygotsky considera o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança como ascendente, enquanto os conceitos científicos descendente para um nível mais elementar e concreto. Pode-se remontar a origem de um conceito espontâneo a um confronto com uma situação concreta, ao passo que um conceito científico envolve, desde o início, uma atitude “mediada” em relação ao seu objeto (VYGOTSKY, 1991a, p. 93)
O desenvolvimento conceitual vygotskyano demonstra uma progressão ontogenética, que partindo de um movimento desorganizado passa pelo pensamento por complexos e, a seguir, para o pensamento conceitual característico na adolescência.
O processo de formação conceitual é irredutível às associações, ao pensamento, à representação, ao juízo, às tendências determinantes, embora todas essas funções sejam participantes obrigatórias da síntese complexa que, em realidade, é o processo de formação dos conceitos. (...) a questão central desse processo é o emprego funcional do signo e da palavra como meio através do qual o adolescente subordina ao seu poder as suas próprias operações psicológicas, através do qual ele domina o fluxo dos próprios processos psicológicos e lhes orienta a atividade no sentido de resolver os problemas que tem pela frente (VYGOTSKY, 2001, p. 169).
Como processo social e mediado de modo semiótico, a internalização de conceitos científicos acontece de modo gradativo em que ocorre o desenvolvimento das capacidades de investigar, refletir e estabelecer conexões. Nesse sentido, a escola constitui-se em um local privilegiado para o trabalho com conceitos quando valoriza as diferentes concepções de conhecimentos trazidas pelos alunos, permitindo, por meio de um trabalho interativo entre aluno-aluno e alunos-professor, a reconstrução de um determinado modo de pensar considerado insatisfatório.
(...) os contextos de ensino produzidos por meio das trocas interpessoais contêm características e elementos que oportunizam aos alunos que reestruturem seus pensamentos e reelaborem novos sentidos sobre conceitos científicos. Assim, para que a criança consiga se apropriar de conceitos e construir significados relativos às ciências, é necessário que o professor estabeleça, em relação ao que ensina, mediações significativas por meio de interações professor/aluno nas situações enunciativas de ensino-aprendizagem (PAVIANI, 2012. In: SILVA et al, 2021, p. 06).
Na construção de conceitos científicos o trabalho docente é o principal elemento de mediação para a evolução conceitual do aluno, pois são as intervenções do professor que irão orientar os alunos a modificarem o pensamento e a produção, fazendo-os reverem situações sob uma nova ótica, possibilitando a reorganização de ideias na tentativa de encontrar a solução para determinado problema. Como mediador, o professor transforma situações que desencadeiam, de modo espontâneo nos alunos, processos cognitivos ou comportamentais que dificultam ou impossibilitam estratégias mentais convenientes em situações que facilitam seu desenvolvimento (PASCUAL-LEONE, 1996).
Ao mediador cabe a função de favorecer e construir estratégias que direcionem o aprendiz à sua tarefa, independente dos obstáculos que possa encontrar, trabalhando numa perspectiva de superação, que é inerente ao processo de construção do conhecimento. Nessa perspectiva, deve direcionar estratégias que levem o aprendiz à construção de seu próprio conhecimento, numa atitude ativa e coerente centrada na necessidade e na oportunidade de reflexão sobre o porquê e sobre a forma de fazer cada tarefa. Quando isso ocorre, a reflexão proporciona a construção da autorregulação, gerando a assimilação do processo pelo sujeito, muitas vezes, de forma despercebida. (BEBER et. al., 2014, n.p).
Situações facilitadoras do desenvolvimento são aquelas que incidem na zona de desenvolvimento proximal dos alunos, entendida como o espaço existente entre o nível de desenvolvimento real (aquilo que o aluno consegue fazer sozinho, sem a ajuda de parceiro mais experiente) e o nível de desenvolvimento potencial (capacidade de realizar atividades com a ajuda de parceiros mais experientes). O professor ao conhecer e atuar no nível de desenvolvimento real dos alunos possibilita o avanço do conhecimento espontâneo para o científico, permitindo a ampliação das funções psicológicas superiores e garantindo, pela aprendizagem, seu desenvolvimento.
Concomitante ao exposto, BRUNER (1985) introduz o conceito metafórico de “andaime” (scaffolding) para explicar como os indivíduos mais experientes da cultura podem auxiliar o desenvolvimento dos menos experientes. Para ele, a intervenção do adulto na zona de desenvolvimento proximal constitui-se no “andaime” necessário de suporte que possibilita o desenvolvimento da aprendizagem pois
(...) se a criança é capaz de avançar sob a tutela de um adulto ou par mais competente, então o tutor ou par serve ao aprendiz como uma forma de consciência emprestada até que o aprendiz seja capaz de realizar sua própria ação sob sua própria consciência e controle (p. 24-25).
Para que o processo de “andaimaria” se torne eficiente é necessário que na interação a mediação semiótica realizada pelo professor seja adequada, isto é, que se utilizem os instrumentos apropriados a fim de que cada participante possa tornar acessível e coerente ao outro sua representação da situação para poder negociá-la e, eventualmente, realizar sua modificação (COLL, 1996). Portanto, cabe ao professor o planejamento de atividades que possibilitem aos alunos alcançarem, de modo progressivo,
(...) níveis mais elevados de conhecimento e procedimento, dando-lhes tarefas cada vez mais complexas e provendo o suporte e apoio necessários para que o aluno consiga realizá-las com o auxílio também dos colegas e companheiros. Por meio de diálogos entre pessoas e, mais enfaticamente, graças ao papel do professor, os jovens passam a conhecer o mundo simbólico. Assim, no ensino de ciências é importante não só o contato com objetos, mas também com os esquemas conceituais vigentes, que lhe são apresentados pelo representante dessa ciência que com ele interage: o professor (KRASILCHIK, 2004, p. 28).
Não obstante, considerando-se as diferentes interações que ocorrem e a heterogeneidade da sala de aula, pode-se considerar que nem sempre as relações que ocorrem na zona de desenvolvimento proximal são simétricas e harmoniosas, envolvendo atitudes de contradições e de conflitos que são próprias da dinâmica social.
Como na escola o aprendizado e o resultado desejável, é o próprio objetivo do processo escolar, a intervenção é um processo pedagógico privilegiado. O professor tem o papel explícito de interferir na zona de desenvolvimento proximal dos alunos, provocando os avanços que não ocorreriam espontaneamente. O único bom ensino (...) é aquele que se adianta ao desenvolvimento. Os procedimentos regulares que acontecem na escola – demonstração, assistência, fornecimento de pistas, instruções – são fundamentais na promoção do “bom ensino” (OLIVEIRA, 1993, p. 62).
Consequentemente, a sala de aula precisa ser um ambiente parecido com aquele que ocorre na elaboração do conhecimento científico: na produção científica a orientação dos trabalhos dos pesquisadores iniciantes é feita pelo pesquisador mais experiente, tal como precisa acontecer na sala de aula nas relações entre professor e alunos. À medida que os alunos evoluem na escolaridade as relações que estabelecem com os indivíduos mais experientes do seu grupo social e com os diferentes tópicos dos conteúdos estudados permitem o desenvolvimento do vocabulário e a ampliação da cognição, possibilitando a ocorrência de constantes reflexões, o que facilita a gradativa elaboração dos conceitos científicos.
Todavia, se o aluno não for conduzido pelo professor a realizar diferentes tipos de atividades para executar operações mentais para mobilizar, incorporar, interpretar e relacionar informações e conhecimentos para experimentar um problema real, ou a visualizar a coerência e consistência de uma determinada concepção, a construção e a consequente internalização do conceito científico fica comprometida.
Assim, na concepção socioconstrutivista o ensino é visto como uma ação intencional nos processos intelectuais, sociais e afetivos do aluno, em uma relação consciente e ativa com os objetos do conhecimento. Nessa ótica, o objetivo maior do ensino consiste em conduzir o aluno a construir seus conhecimentos, em um processo em que as ações pedagógicas devem ser planejadas e executadas colocando-o como sujeito do processo, em atividade diante do meio externo, o qual deve ser inserido no processo como objeto de conhecimento, isto é, o aluno deve ter com esse meio uma relação ativa, uma espécie de desafio que o leve a um desejo de conhecê-lo (CAVALCANTI, 2005).
Para concluir, entendemos que, do ponto de vista didático, o exercício docente necessita de conhecimento teórico para a criação de condições sobre o fazer pedagógico, pois “a teoria sem a prática vira verbalismo, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade” (FREIRE, 1996, p. 25). Nesta acepção, faz-se necessário a consideração pelos professores da importância de um estudo epistemológico que contribua para o entendimento sobre o processo de aprendizagem de conceitos científicos buscando um equilíbrio integrador e eficiente entre a teoria e a prática, além da disposição para mudanças de postura e de abertura nas relações interpessoais para entender cada aluno como um sujeito singular.