Fluxo Contínuo

Received: 22 March 2019
Accepted: 24 November 2020
DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.058.AO04
Resumo: O objetivo principal deste artigo é analisar os objetos intencionais da teoria da intencionalidade em Franz Brentano em sua primeira fase, ou seja, no período de 1874 a 1904, por meio de sua análise mereológica da consciência. Nesse contexto, irei abordar os diferentes modos de consciência, os correlatos intencionais, a distinção entre seres real e existente assim como a distinção entre objeto e conteúdo na teoria brentaniana. No final, irei defender que o estatuto ontológico dos objetos que existem nos correlatos intencionais e dos objetos representados ou conteúdos intencionais podem ser interpretados como sendo “neutros”, visto que eles são partes apenas conceituais ou abstratas de sua teoria mereológica.
Palavras-chave: Brentano, Intencionalidade, Objeto representado, Mereologia, Estatuto ontológico.
Abstract: The main goal of this article is to analyze the intentional objects in Brentano’s theory of intentionality. I focus on the early Brentano, i.e. on the period between 1874 and 1904, and my analysis is based on Brentano’s mereological account of conscience. I will explore Brentano’s teaching on the different modes of conscience, the intentional correlates, the distinction between real being and existent being as well as the distinction between object and content. Finally, I will defend the thesis that the ontological status of objects that exist within the intentional correlates and of the represented objects or intentional contents can be seen as neutral – for they are only conceptual or abstract parts according to Brentano’s mereology.
Keywords: Brentano, Intentionality, Represented Object, Mereology, Ontological Status .
Introdução
Franz Brentano (1838-1917) é geralmente conhecido como o filósofo que reintroduziu a noção de intencionalidade ou in-existência intencional na filosofia contemporânea da mente através da seguinte passagem de sua obra “Psicologia do Ponto de Vista Empírico” (Psychologie vom empirischen Standpunkte) no ano de 1874, a saber:
Todo fenômeno psíquico é caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade Média chamaram como a inexistência intencional (ou mental) de um objeto (Gegenstand), e aquilo que podemos chamar, ainda que de forma não completamente inequívoca, a relação com um conteúdo, a direção a um objeto (que não deve aqui ser entendido como uma realidade (Realität), ou objetividade imanente. Todo fenômeno psíquico inclui algo em si como objeto (Object), embora nem todos o façam da mesma maneira. Na representação algo é representado, no juízo algo é afirmado ou negado, no amor amado, no ódio odiado, no desejo desejado, e assim por diante. Esta "in-existência" é uma característica exclusiva dos fenômenos psíquicos. Nenhum fenômeno físico exibe algo parecido. Poderíamos, portanto, definir os fenômenos psíquicos, dizendo que eles são aqueles fenômenos que contêm um objeto (Gegenstand) intencionalmente dentro de si (PES II, p. 106-107)[2].
De acordo com a citação acima, podemos afirmar que a intencionalidade ou inexistência intencional é a marca dos atos ou fenômenos psíquicos, visto que Brentano defende duas teses: (i) todos os fenômenos psíquicos são intencionais e (ii) apenas fenômenos psíquicos possuem tal propriedade. O termo “in” que faz parte da expressão “in-existência intencional” não deve ser compreendido num sentido de negação da existência de algo como o sufixo “in” em termos, como por exemplo, “ingratidão”, mas um modo de existência “nos” fenômenos psíquicos. Todavia, a maior dificuldade está em definir esse modo de existência. As principais questões que surgem aqui são:
1. Em que sentido o objeto intencional existe no ato psíquico, isto é, qual é o estatuto ontológico desse objeto?
2. O que Brentano quer dizer quando ele afirma que o objeto intencional não se refere a uma realidade, ou seja, ao que se refere exatamente o ato psíquico?
3. Há uma distinção entre objeto e conteúdo?
Com relação às questões (1) e (2), existem diferentes respostas, mas podemos destacar duas principiais interpretações. A primeira foi oferecida inicialmente pelos alunos de Brentano, Kraus, Kastil e Mayer-Hillebrand, e influenciou autores como Chisholm (1967), Smith (1995), Chrudzimski (2001) e Jacquette (2004). Conforme essa interpretação, a teoria da intencionalidade em Brentano exige a existência de dois componentes: o ato psíquico e o objeto ao qual ele se refere, ou seja, o objeto representado. Contudo, o próprio Brentano escreveu uma carta para Anton Marty em 1905 rejeitando essa interpretação:
Quando eu falei sobre “objeto (Objekt) imanente”, eu acrescentei essa expressão para evitar um desentendimento, pois alguns denominam objeto algo que está fora da mente. Ao contrário deles, eu falei de um objeto da representação que pertence à mesma quando ela não corresponde a nada fora da mente. Mas, eu nunca defendi a opinião de que o objeto imanente seria igual (=) a “objeto representado” (vorgestelltes Objekt). A representação não tem “objeto representado” como seu objeto, mas “a coisa” (Ding), assim, por exemplo, a representação de um cavalo não tem “cavalo representado”, mas “cavalo” como seu objeto (imanente, isto é, algo a ser denominado verdadeiramente como objeto (Objekt)) (WE, p. 87-88)[3].
Sendo assim, o ato psíquico não se refere a um objeto representado. No entanto, ainda é necessário explicar em que sentido esse objeto existe e o que ele quer dizer quando afirma que o objeto não se refere a algo fora da mente.
A segunda resposta foi oferecida, por exemplo, por Antonelli (2001): O ato mental existe tanto quanto o objeto que existe intencionalmente dentro dele, mas esse último possui um estatuto ontológico neutro, visto que ele não é real e trata-se de uma “parte” puramente conceitual e abstrata advinda de sua teoria mereológica da consciência. Além disso, o ato mental pode se referir tanto a um objeto real quanto a um objeto irreal. Outros estudiosos que aceitam de certo modo a segunda interpretação são Perler (2004), Crane (2007), Fréchette (2013) e Kriegel (2016). Nesse artigo, eu argumentarei a favor dessa última opção e me concentrarei assim nessa abordagem.
Com relação à questão (3), a sua resposta foi durante muito tempo negativa, visto que Brentano não fornece uma distinção entre objeto e conteúdo em seus livros publicados até hoje. No entanto, conforme Fréchette (2013), um manuscrito de Brentano ainda não publicado possui algumas passagens em que ele explica essa distinção. Com base em uma dessas passagens, apresentarei a distinção entre objeto e conteúdo e em que sentido ela se encaixa com a interpretação que defenderei aqui.
Os modos de consciência
Por “consciência”, Brentano entende o conjunto de todos os fenômenos psíquicos, pois como já vimos, todos eles apresentam a propriedade da intencionalidade. No entanto, existem dois modos de consciência, a saber: (i) a consciência primária e (ii) a consciência secundária. A consciência primária (i) trata da relação entre o ato psíquico e o objeto ao qual o ato mental é dirigido. Analisemos aqui o seguinte exemplo: Pedro vê um celular numa loja. Nesse caso, sua experiência visual é o fenômeno psíquico e esse celular é o objeto intencional ou o objeto imanente desse ato psíquico. A consciência primária abrange portanto dois elementos: a visão de Pedro e o celular. Uma das fontes de desentendimento da teoria da intencionalidade de Brentano deriva do fato de que por “imanente” entende-se geralmente algo que é “interno” ou que “está dentro” da mente, porém ele usa o termo “imanente” tanto para o objeto que existe “na” mente quanto para o objeto que existe “fora” dela, visto que o termo “imanente” significa em sua teoria o mesmo que “intencional”. Sendo assim, um objeto é imanente quando ele faz parte de uma relação intencional.
A consciência secundária (ii) trata da relação do ato psíquico consigo mesmo. Para Brentano, quando um sujeito possui um ato psíquico, o próprio ato mental é ele mesmo consciente e intencional. Contudo, a consciência secundária de um ato mental x não introduz a existência de um outro ato mental y, o qual se dirige a x, visto que isso nos remeteria a um regresso ao infinito. Ela é assim um modo de auto-referência intencional. No caso de Pedro, a experiência visual de celular refere-se a ele mesmo, isto é, ele é co-consciente.
Para entendermos um dos motivos pelos quais Brentano admite que um objeto representado existe “no” ato mental, devemos ainda analisar sua classificação dos atos ou fenômenos psíquicos em: (a) representação (Vorstellung), (b) juízo (Urteil) e (c) comoção ou emoção (Gemütsbewegung). A representação (a) é o fenômeno psíquico mais básico de todos. Ela é responsável pela capturação do objeto intencional e o apresenta para a consciência de modo neutro, isto é, sem que haja algum posicionamento do sujeito acerca do objeto apresentado. Já o juízo (b) é o ato mental, no qual o sujeito se posiciona diante do objeto intencional. Esse posicionamento pode ser simplesmente a aceitação ou a negação da existência desse objeto. Mas os juízos da consciência primária são cegos, ou seja, não evidentes. Já os juízos da consciência secundária são evidentes, visto que há uma identidade entre o ato mental e objeto ao qual ele se refere. No fenômeno mental da emoção ou comoção (c), o objeto intencional será amado ou odiado, isto é, a experiência do objeto será acompanhada por uma emoção positiva ou negativa.
Essa classificação dos fenômenos psíquicos é hierárquica e cumulativa. Isso significa que é possível que um sujeito tenha uma representação (a) sem ter um juízo (b) e uma emoção (c), mas se ele tiver um juízo (b), ele terá também uma representação (a). Caso ele tenha uma emoção (c), então ele terá tanto uma representação (a) quanto um juízo (b). No caso de Pedro, a experiência visual do celular pode ser explicada do seguinte modo: ao ver o celular, um celular foi apresentado para a consciência de Pedro e nela registrada. Além disso, o celular foi julgado por ele e sua experiência visual foi acompanhada por uma emoção positiva.
Todo objeto intencional ao ser capturado pelo ato psíquico da representação (a) tem a sua forma no sentido aristotélico registrada na mesma. Isso quer dizer que no caso de Pedro, a forma de um celular foi apresentada à sua consciência e passou a existir intencionalmente “no” ato mental em questão. Essa interpretação da noção de inexistência intencional é aristotélica, mas o próprio Brentano afirma em uma nota de rodapé de sua célebre passagem (PSE II, p. 106) que já Aristóteles havia defendido essa teoria da intencionalidade ou inexistência intencional. Uma vez que a forma no sentido aristotélico só existe num sentido metafórico, a existência intencional do objeto “no” ato mental também pode ser entendida com um estatuto ontológico neutro. Mas adiante veremos que essa interpretação é coerente com outras ideias defendidas na teoria da intencionalidade em Brentano.
Os correlatos intencionais
Os defensores da primeira interpretação possuem razão ao afirmar que Brentano desenvolveu uma teoria da intencionalidade, especialmente em sua Psicologia Descritiva, que admite a existência de dois correlatos, a saber: o primeiro correlato e o segundo correlato. O primeiro correlato é ato mental e o segundo correlato é o objeto representado, ou seja, o objeto apresentado à consciência. Nas palavras de Brentano:
Não é possível que haja um A sendo pensado sem que haja um A que foi pensado, e vice-versa. Mas não se pode dizer que A sendo pensado seja o A que foi pensado por ele. Ambos os conceitos não são idênticos, mas sim correlativos. Nenhum deles pode corresponder a algo na realidade, sem que o outro corresponda a algo na realidade. Mas apenas o primeiro é o conceito de um ser real (Wesenhaftes), a qual é causada e que causa, o outro é apenas aquele que é causado, como o ser que o acompanha quando esse surge e permanece até que esse se acabe (WE, p. 31)[4].
Contudo, conforme a citação anterior, podemos afirmar que se um sujeito está pensando sobre um objeto A, devemos admitir assim, segundo Brentano, a existência tanto do ato mental de pensar quanto do objeto A representado “no” ato mental da representação. Porém, o objeto A representado existe apenas enquanto o ato psíquico existe. Caso o objeto A seja um objeto real, ele continua existindo mesmo quando o sujeito para de pensar sobre ele, mas o A representado “no” ato mental deixa de existir quando o sujeito deixa de pensar em A. Por exemplo: Pedro pensa em um cavalo. Nesse caso, temos três elementos: (i) o ato mental de pensar, (ii) o cavalo real, ao qual o ato mental se refere, isto é, o objeto intencional da consciência primária e (iii) o cavalo representado “no” ato mental, o qual ele denomina “segundo correlato” que pertence à consciência secundária[5].
A crítica geralmente feita nesse contexto é: uma vez que Brentano admite que ambos os correlatos existem e possuem o mesmo modo de existência, então os correlatos deveriam ter o mesmo estatuto ontológico. No entanto, devemos observar que, segundo Brentano, o ato mental (i) e o objeto A representado nele (ii) são conceitos correlatos .korrelativ). Ambos correlatos existem, mas isso não significa que eles possuem o mesmo estatuto ontológico, pois apenas o ato mental (i) é um ser real ou um ser que possui essência (ein Wesenhaftes), isto é, algo que está sendo causado e pode causar. Já o objeto representado ou o segundo correlato (ii) só pode ser causado, ou seja, não possui poderes causais.
Para melhor compreendermos porque o estatuto ontológico do objeto representado ou segundo correlato pode ser interpretado como um estatuto ontológico neutro, veremos agora sua análise mereológica da consciência, visto que ela explica em que sentido o ser representado existe “no” ato mental e por último a distinção entre “real” (Reales ou Wesenhaftes) e “existente” (Existierendes ou Wirkliches) admitida por Brentano.
A análise mereológica da consciência
Em sua obra “Psicologia do Ponto de Vista Empírico”, Brentano elabora sua teoria mereológica, ou seja, a relação entre o todo (Ganzes) e suas partes (Teile), a qual é aplicada no âmbito da consciência. A alma (Seele) é um todo que tem como “partes” os atos psíquicos. Como as partes da alma são apenas partes conceituaisou abstratas, ele denomina esses “partes” de “divisivos” (Divisive).
Nesse contexto, ele diferencia dois tipos de divisivos ou partes abstratas, a saber: (1) as partes separáveis .die ablösbaren Teile) e (2) as partes puramente distintivas .die bloß distinktionellen Teile). Exemplos de partes separáveis (1) são tanto as partes de fenômenos físicos, as quais podem ser de fato separadas uma das outras, quanto as partes de fenômenos psíquicos, pois mesmo elas sendo separadas uma das outras, elas continuam existindo. Nesse sentido, alguém pode ir a um concerto do Chico Buarque e apesar dele poder ver e ouvir esse cantor ao mesmo tempo, os dois atos psíquicos podem ser separados um do outro, ou seja, ele pode apenas ver o Chico Buarque ou apenas ouvi-lo cantar.
As partes separáveis (1) podem ser divididas em dois tipos: (1.1) as partes reciprocamente divisivas (die gegenseitige Ablösbarkeit) e (1.2) as partes unilateralmente divisivas (die einseitige Ablösbarkeit). As partes reciprocamente divisivas (1.1) podem ser separadas uma das outras sem que elas cessem de existir. Já as partes unilateralmente divisivas (1.2) só admitem que uma delas seja separada sem que a outra deixe de existir, como por exemplo, a relação entre os atos psíquicos de representação e juízo. Como já vimos, um sujeito pode ter apenas uma representação, mas se ele tiver um juízo, então ele também possui uma representação.
As partes puramente distintivas (2) são distinções apenas conceituaisou diferentes aspectos do mesmo objeto. O exemplo de Brentano para esse tipo de partes é a sua classificação dos fenômenos psíquicos em representação, juízo e emoção. Em sua obra “Psicologia Descritiva”, ele desenvolve essa teoria mereológica da consciência e afirma que as partes puramente distintivas podem ser classificadas ainda em dois tipos: (2.1) as partes puramente distintivas no sentido próprio .die bloß distinktionellen Teile im eigentlichen Sinne) e (2.2) as partes adquiridas apenas através de uma distinção modificante .die durch modifizierende Distinktion zu gewinnenden Teile). Além disso, as partes puramente distintivas no sentido próprio (2.1) são aquelas que podem ser diferenciadas em quatro tipos:
2.1.1 As partes interpenetradas (die sich durchwohnenden Teile): são as partes que estabelecem a determinação de gênero de um objeto. O exemplo de Brentano é o juízo “há uma verdade”. Nesse caso, o juízo pode ser “dividido” em afirmação, direcionalidade, evidência e modalidade apodítica.
2.1.2 As partes lógicas (die logischen Teile): esse tipo de partes correspondem a aspectos distintos e unilaterais de um mesmo objeto tais como, por exemplo, a visão de um objeto vermelho. Se um sujeito tem uma experiência visual de um objeto vermelho, então ele teve tanto uma sensação quanto uma visão do objeto vermelho. Desse modo, a sensação e a visão são “partes” lógicas da experiência visual do objeto vermelho.
2.1.3 As partes da consciência, isto é, as relações entre as consciências primária e secundária (die primären und sekundären Beziehungen des Bewusstseins): a consciência primária e a consciência secundária são apenas dois aspectos do mesmo ato mental. Por um lado, elas se diferenciam das partes interpenetradas, pois elas não estabelecem uma determinação de gênero. Por outro lado, elas se distinguem das partes lógicas, visto que as partes lógicas se referem a um só objeto, isto é, à verdade. Já as consciências primária e secundária se dirigem a diferentes objetos.
2.1.4 As partes dos correlatos intencionais (die Teile der intentionalen Korrelate): as partes dos correlatos intencionais são o ato mental da representação e o objeto representado. Nesse caso, apenas a primeira parte é real e a segunda é irreal. Sendo assim, o segundo correlato não pode ser separado do primeiro correlato. Mas sempre que o primeiro correlato surge, o segundo correlato surge com o mesmo.
As partes adquiridas apenas através de uma distinção modificante (2.2) podem ser explicadas por meio da distinção entre (a) propriedades determinantes e (b) propriedades modificadoras feitas no período medieval. As propriedades determinantes (a) são aquelas que informam algo sobre o objeto. Tomemos aqui como exemplo a expressão “a blusa vermelha”. Nesse caso, o adjetivo “vermelha” informa algo a respeito desse objeto, ou seja, sua cor. Já as propriedades modificadoras (b) nos fornece um predicado que modifica o objeto. Aqui podemos tomar como exemplo a expressão “o homem morto”. O adjetivo “morto” apresenta o objeto “homem” através de um aspecto modificador, visto que um homem morto não pode ser mais considerado a rigor um homem. De modo análogo, essa explicação funciona com o segundo tipo de partes puramente distintivas, ou seja, com as partes adquiridas apenas através de uma distinção modificante. Nesse contexto, Brentano cita como exemplo a cor que “existe” nos dois correlatos intencionais, pois se alguém tem uma experiência visual de um objeto vermelho, então temos dois correlatos intencionais, a saber: (i) o ato mental da visão e (ii) o objeto representado. O ato psíquico é direcionado ao vermelho e o vermelho passa a existir em ambos correlatos, ou seja, no ato mental e no objeto representado. Contudo, a qualidade do vermelho enquanto objeto intencional será modificada, visto que o vermelho que existe “dentro” do ato mental e “dentro” do objeto representado não é mais a rigor o vermelho. Além disso, conforme Brentano, o segundo correlato também surge como uma distinção modificante, pois assim como o homem morto não existe mais, o objeto representado também não. Isso significa que tanto o objeto intencional que existe nos dois correlatos quanto o segundo correlato são partes adquiridas apenas através de uma distinção modificante e não possuem assim um estatuto ontológico próprio.
Os seres real (Reales) e existente (Existierendes)
O ser real .Reales, Ding ou Wesenhaftes) se refere ao conceito aristotélico de ser como tal (das Seiende als solches), ou seja, tudo aquilo que recai no conceito de categorias em Aristóteles. Exemplos de seres reais são seres concretos ou individuais: um cavalo, um ser humano, grande, vermelho, ou seja, seres enquanto substância ou propriedades. Mas vale ressaltar que o ser real abrange tudo aquilo que pode ser pensado. Por esse motivo, faz parte dos seres reais também os seres imaginários tais como uma montanha de ouro, um centauro, um unicórnio etc. Outro motivo pelo qual os seres imagináveis sejam um ser real (Reales) para esse autor é porque se eles existissem, eles seriam objetos concretos. O contrário de ser real é o ser irreal. O ser irreal se refere a conteúdos de juízos ou alguns modos de privaçõestais como a falta de água ou a cegueira.
O ser existente (Existierendes) é o ser no sentido de verdade .das Seiende im Sinne des Wahren), o qual está em relação com o juízo, posto que algo é um ser no sentido da verdade quando ele é reconhecido como sendo verdadeiro e apenas os atos psíquicos dos juízos podem ser verdadeiros ou falsos. Por exemplo: A afirmação “A mesa . branca” significa assim “é verdade que a mesa é branca”. O contrário do ser existente é o “ser não existente ou o não ser”, isto é, o ser no sentido da falsidade (das Seiende im Sinne des Falschen oder Nichtseiendes). Assim, algo é um “não existente” quando ele é reconhecido como sendo falso. Nesse caso, a sentença “ a mesa não é branca” significa o mesmo que “é falso que a mesa é branca”. No entanto, tanto a expressão “é verdade que” quanto “é falso que” não correspondem a um predicado real, mas apenas a meros sinais dos juízos de afirmação e negação respectivamente. Desse modo, o termo “existente” significa “ reconhecido como correto” (als richtig Anerkanntes) e o termo “não existente” significa “reconhecido como falso” (als falsch Anerkanntes). Como tanto os seres reais quanto os seres irreais podem ser corretamente reconhecidos ou falsamente reconhecidos, ambos são seres que podem existir no sentido da verdade ou que podem não existir no sentido da falsidade.
De acordo com Antonelli (2008, p. LXI), na passagem famosa de Brentano (PES II, p. 106-107), a negação da realidade não significa que o objeto intencional dos atos psíquicos seja sempre um ser irreal, mas que o objeto intencional pode ser tanto seres reais como um cavalo, um centauro e outro ato psíquico, quanto seres irreais, como, por exemplo, a falta de chuva ou a cegueira. Conforme essa interpretação, em vez de Brentano ter escrito que o objeto ao qual o ato psíquico é direcionado não é uma realidade (Realität), ele deveria ter sido mais preciso e escrito que o objeto ao qual o ato psíquico é direcionado não deve ser entendido apenas como uma realidade (Realität).
A questão que surge aqui é: Mas por que então Brentano também afirma na passagem (WE, p. 87) que ele acrescentou o termo “imanente” para se referir a um objeto da representação que pertence à mesma quando este objeto não corresponde a nada fora da mente. Para respondermos essa questão, devemos considerar em primeiro lugar que, nessa passagem, Brentano usa o termo “real” como significando “existente” (reell ou wirklich). Isso significa que o objeto imanente ou intencional não existe no sentido da verdade, ou seja, eles são reconhecidos como falsos. Em segundo lugar, os objetos intencionais da consciência primária são os fenômenos físicos experenciados através da percepção externa, a qual não nos oferece um conhecimento completo da coisa (Ding) em si. Por esse motivo, os juízos da consciência primária ou da percepção externa são sempre cegos, isto é, não evidentes.
Os fenômenos da luz, do quente, do lugar e do movimento de lugar, dos quais ele (o cientista) se refere, não são coisas (Dinge) que existem de modo verdadeiro e real. Eles são indícios de algo real (von etwas Wirklichem) que através de sua influência produz sua representação. Mas eles não são por isso nenhum modelo correspondente desse real, e fornecem dele apenas um conhecimento em um sentido muito imperfeito (...) A verdade dos fenômenos físicos é, tal como se expressa, uma verdade puramente relativa (PSE I:35)[6].
Por “fenômenos físicos”, entende-se tanto qualidades sensitivas tais como o quente, o frio, etc., quanto um cavalo ou uma paisagem, a qual eu vejo. Isso deriva do fato que algo é um fenômeno na medida em que surge à consciência. Desse modo, podemos aqui diferenciar três elementos na teoria brentaniana: (i) o fenômeno psíquico, (ii) o fenômeno físico e (iii) a coisa em si .Ding an sich). Uma árvore é uma coisa em si, mas ao surgir à consciência, ela se torna um fenômeno físico ou melhor, um conjunto de fenômenos físicos tais como forma, cor etc. Porém, isso não significa que Brentano defende que os fenômenos físicos só existem “na” mente dos sujeitos de modo intencional, pois do ponto de vista lógico é possível que eles existam tanto “na” mente do sujeito quanto “fora” dela, mas que o seu modo de existência intencional não é real (reell, wirklich) (PSE II: 111)[7].
Objeto e conteúdo
Analisemos agora a seguinte passagem dos manuscritos de Brentano sobre a Lógica e Psicologia Descritiva escritos no período entre 1870 e 1880, na qual Brentano faz a distinção entre objeto e conteúdo:
O representado (das Vorgestellte) não necessita existir porque foi representado. É algo diferente, ser e ser representado. Apenas o representado enquanto tal precisa ser, mas não da forma como aquilo que é representado. Por exemplo, eu represento a deusa Vênus. Aquilo que eu represento não existe nesse caso. Mas uma Vênus representada existe na medida em que eu represento Vênus. O representado enquanto representado denomino conteúdo da representação. O representado da forma como aquilo que é representado, caso exista, denomino objeto da representação. Se algo é representado, assim é sempre um conteúdo. Mas falta frequentemente um objeto da representação. Pode ser que muitos objetos diferentes correspondam a um só conteúdo de representação. Pode ser também que um só objeto corresponda a vários conteúdos diferentes (PS, p. 48) apud Fréchette (2013, p. 1)[8].
A partir da citação acima, podemos afirmar que o objeto representado enquanto representado é o conteúdo da representação. Já o objeto, caso ele exista, é o objeto da representação. O objeto não existe necessariamente, mas a partir do momento em que algo é representado, existe um conteúdo do ato psíquico dessa representação. Isso significa que o “objeto representado” ou ainda o “segundo correlato” corresponde a rigor a um conteúdo e não a um objeto (Ding) da representação mental. No caso da representação da deusa Vênus, não temos assim um objeto intencional, mas apenas dois correlatos intencionais: o ato mental da representação e o seu conteúdo, ou seja, a deusa Vênus representada. Se retornarmos à célebre passagem de Brentano (PES II, p. 106-107), podemos agora afirmar que esse ato psíquico possui uma relação com um conteúdo, mas não a direção a um objeto, visto que ele não existe[9]. Em todo caso, o ato psíquico apresenta a característica da inexistência intencional, visto que o ato psíquico possui algo “dentro” de si.
A afirmação de que o objeto representado existe enquanto ele é representado, também é feita na seguinte passagem de sua obra “Psicologia descritiva” (Deskriptive Psychologie), a qual foi editada a partir de suas aulas no período entre 1887 e 1889: “Um centauro real não existe, mas um centauro representado sim, e tão frequentemente, enquanto eu o representá-lo” (WE, p. 48)[10]. Mas, infelizmente, ele não esclareceu nessa obra que o objeto representado é na verdade um conteúdo da representação.
Considerações finais
Após as explicações feitas nesse artigo, podemos responder sumariamente as três questões iniciais sobre a teoria da intencionalidade em Brentano. A questão (1) pode ser respondida do seguinte modo: O estatuto ontológico tanto do objeto intencional que existe “no” ato mental quanto do objeto representado deve ser considerado como neutro devido os seguintes motivos: Em primeiro lugar, o objeto que existe “no” ato psíquico corresponde à formano sentido aristotélico e por isso só existe nele em um sentido metafórico. Em segundo lugar, em sua teoria mereológica da consciência, o objeto que existe “nos” dois correlatos intencionais e o objeto representado (a rigor conteúdo intencional) correspondem a partes adquiridas por meio de uma distinção modificante. Isso significa que tanto o objeto representado quanto o objeto existente nos correlatos intencionais deixam de ser a rigor um objeto (ein Reales). Se esse objeto deixa de ser um objeto, ele deve ser considerado um objeto imanente, no sentido que só existe na mente do sujeito. Em terceiro lugar, a expressão “in-existência intencional” se refere a uma propriedade dos atos psíquicos de “ter” o objeto com um modo de existência apenas intencional. Nesse sentido, a sua teoria da intencionalidade abrange duas teses: (i) a tese psicológica de que os atos mentais possuem um objeto com um modo de existência apenas intencional e (ii) a tese da direcionalidade dos atos psíquicos aos objetos intencionais.
Imaginemos agora que Pedro deseje um novo celular. Por um lado, enquanto Pedro deseja um novo celular, a relação intencional ocorre na consciência primária, isto é, entre o ato mental de seu desejo (A) e o objeto intencional desse ato (no caso, um celular x). Do ponto de vista mereológico, o desejo de Pedro (A) possui “partes” puramente distintivas que são a representação, o juízo e a emoção. A representação captura a “forma” desse objeto que passa a existir de modo apenas intencional dentro do ato mental. No juízo, o objeto intencional (um celular) será julgado pelo sujeito, mas de modo cego, ou seja, não evidente, pois aqui não temos uma identidade entre o ato mental com o seu objeto intencional. Além disso, o ato mental do desejo (A) será acompanhado por uma emoção (nesse caso, positiva). No entanto, esses elementos são apenas distinções conceituais de um só fenômeno psíquico, isto é, o desejo de Pedro (A). Por outro lado, enquanto Pedro deseja um novo celular, a relação intencional também ocorre na consciência secundária, ou seja, entre o ato psíquico do desejo consigo mesmo. Desse modo, o ato psíquico (A) tem como objeto intencional o próprio ato psíquico (A). Contudo, não temos aqui uma duplicação do ato psíquico do desejo (A), mas apenas dois aspectos do mesmo ato psíquico (A).
Na consciência secundária, Brentano também faz a distinção entre partes puramente distintivas: a representação, o juízo e a emoção. Desse modo, há uma representação mental do próprio ato mental que captura a si mesmo, um juízo que é evidente, visto que há uma identidade entre o ato mental com o objeto ao qual ele se refere e por último, temos o sentimento positivo ou negativo que acompanha o ato mental do desejo. Além dessas distinções conceituais, ele acrescenta ainda outras partes puramente distintivas no sentido próprio que são os correlatos intencionais, isto é, o ato mental do desejo (A) e o objeto representado (no caso, o conteúdo ou celular representado x’). O primeiro correlato (A) é real, pois ele foi causado e possui poderes causais, mas o segundo correlato (x’) foi apenas causado e é portanto irreal. De um ponto de vista mereológico, ainda temos a parte no sentido modificante que é o objeto que existe de modo intencional nesses dois correlatos, ou seja, um celular x’’. Esse objeto x’’ corresponde ao objeto x modificado pela relação intencional, visto que ele deixa de ser um objeto e passa a existir apenas de forma intencional nos correlatos. Tanto um celular representado (x’) quanto o objeto existente nos correlatos (x’’) são partes conceituais adquiridas por meio de uma distinção modificante e existem apenas de modo intencional. Isso quer dizer que essas “partes” ou “divisivos” são partes apenas conceituais ou abstratas que resultam de sua análise mereológica da consciência secundária.
Com relação à segunda questão (2), podemos afirmar que ao defender que o objeto intencional não se refere a uma realidade, Brentano quis dizer que os atos psíquicos se referem tanto a objetos irreais tais como a cegueira ou falta de chuva quanto a seres reais .Reales). Mas como os atos psíquicos se referem a fenômenos físicos, os quais são reconhecidos como falsos e não são portanto reais no sentido da verdade, podemos afirmar que o objeto intencional não corresponde a uma realidade.
Por último, podemos responder a questão (3) esclarecendo sua distinção entre objeto . conteúdo conforme a passagem citada de seu manuscrito ainda não publicado. O termo “objeto” denomina aquilo ao qual o ato mental se refere, quando ele existe. Já aquilo que é apenas representado no ato de representação, Brentano denomina “conteúdo” da representação. No caso de objetos reais e imaginários tais como, por exemplo, a deusa Vênus, o ato psíquico de representação de Vênus não se refere a nada, pois ela não existe no mundo atual. Todavia, a representação da deusa Vênus possui uma relação intencional com um conteúdo, isto é, com a deusa Vênus representada. Isso quer dizer que é falso afirmar que os objetos intencionais na teoria da intencionalidade de Brentano são apenas objetos imaginários, pois nesses casos, nem sequer poderíamos falar a rigor de uma referência ou direcionalidade intencional a um objeto, mas apenas de uma relação com um conteúdo puramente abstrato ou conceitual.
Referências
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Notas
Author notes