Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina?[1]
Through thesis and texts: How does the theme of women inferiority appear in the Freudian essays on feminine sexuality?
Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, núm. 58, pp. 06-29, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Dossiê


Recepción: 06 Febrero 2020

Aprobación: 24 Febrero 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.058.DS01

Resumo: O pensamento freudiano certamente conta entre as próprias condições de possibilidade do feminismo. A tese da bissexualidade originária do ser humano é fundamental nesse sentido porque ela serve de ponto de partida para a ideia de que a sexuação resulta de um processo, resulta de um tornar-se. Não estando dada de uma vez por todas, como se se tratasse de algo natural, ela pode ser entendida tanto no seu fator disruptivo relativamente a uma série de constrições tradicional e ideologicamente vinculadas ao organismo biológico, quanto nas possibilidades históricas que carrega consigo naquilo que concerne à própria construção do humano. Mas, por outro lado, não podemos negligenciar o fato de que as últimas considerações de Freud sobre a sexualidade feminina apresentam teses inapelavelmente inaceitáveis. Entre elas, lembremos que Freud situa as mulheres na contracorrente da civilização ao sustentar que nós seríamos menos capazes de sublimação e que possuiríamos um Supereu mais fraco. O objetivo do artigo é mostrar em detalhe como Freud tece suas teses a respeito da inferioridade feminina, sem diminuir o tom dessas teses, sem escamoteá-las e, ao mesmo tempo, tentando mostrar como elas produzem suas próprias armadilhas, ou seja, tentando destacar os momentos em que a argumentação de Freud simplesmente não se sustenta, ficando refém de modo não marginal de alguns preconceitos próprios.

Palavras-chave: Psicanálise, Sexualidade feminina, Feminismo.

Abstract: Freudian thinking certainly counts among feminism's own conditions of possibility. The thesis of human originary bisexuality is fundamental for that matter because it serves as a starting point for the idea that sexuation results from a process, results from a process of becoming. Not being given once and for all, as if it were something natural, it can be understood both in its disruptive factor in relation to a series of constrictions traditionally and ideologically linked to the biological organism, and in the historical possibilities it carries within it in what concerns the very construction of the human. But, on the other hand, we cannot neglect the fact that Freud's latest considerations on feminine sexuality present unacceptable theses. Among them, let us remember that Freud places women in the countercurrent of civilization by maintaining that we would be less capable of sublimation and that we would have a weaker Superego. The purpose of the paper is to show in detail how Freud weaves his theses about feminine inferiority, without diminishing their tone, without concealing them and, at the same time, trying to show how they produce their own traps, that is, trying to highlight the occasions when Freud's argument simply cannot be sustained, being held hostage in a non-marginal way by his own prejudices.

Keywords: Psychoanalysis, Feminine sexuality, Feminism.



Se vocês [...] acharem que a influência da falta de pênis na configuração da feminilidade não passa de uma ideia fixa minha, naturalmente não terei como me defender (Freud, 1933/2010, p. 290).

O debate entre feminismo e psicanálise, como sabemos, já possui uma longa história. Ele é extremamente complexo e sinuoso. Não podemos, no entanto, a meu ver, entrar nele, sem lembrar, antes de mais nada, que o pensamento freudiano certamente conta entre as próprias condições de possibilidade do feminismo. A tese da bissexualidade originária do ser humano[2] — assumida como um fato biológico/filogenético nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e, além disso, como um fato psíquico nos textos das décadas de 20 e 30 — é fundamental nesse sentido porque ela serve de ponto de partida para a ideia de que a sexuação resulta de um processo, resulta de um tornar-se. Não estando dada de uma vez por todas, como se se tratasse de algo natural, ela pode ser entendida tanto no seu fator disruptivo relativamente a uma série de constrições tradicional e ideologicamente vinculadas ao organismo biológico, quanto nas possibilidades históricas que carrega consigo naquilo que concerne à própria construção do humano.

Mas, por outro lado, não podemos negligenciar o fato de que as últimas considerações de Freud sobre a sexualidade feminina apresentam teses inapelavelmente inaceitáveis. Entre elas, lembremos que Freud situa as mulheres na contracorrente da civilização ao sustentar que nós seríamos menos capazes de sublimação e que possuiríamos um Supereu mais fraco. Isso é especialmente inaceitável, para dizer o óbvio, porque corresponde a uma argumentação que tende a corroborar a longa tradição patriarcal de alijar as mulheres da esfera pública, tornando, afinal, sem sentido o debate feminista, assim como tornaria sem sentido qualquer debate em que a participação de mulheres contasse como algo relevante: nós estaríamos destituídas das condições para tal participação. Os argumentos de Freud em torno desse ponto enraízam, de modo paradoxal, reivindicações que podem ser caracterizadas como democráticas em pretensões de naturalização, pois, embora uma mulher tenha que se tornar uma mulher, aquilo que é decisivo e irredutível para o autor no ponto de partida desse percurso é o fato de a criança possuir ou não possuir um pênis. O problema, a meu ver, não é o fato de a presença do órgão peniano ser relevante ou irrelevante, mas a direção em que isso é tomado como relevante, pois se trata de uma direção que pretende respaldar a inferiorização da mulher; ou seja: valer-se do dado anatômico para com ele construir — como se uma coisa se seguisse da outra — todo um conjunto de valores morais, políticos e sociais, incorporando, reeditando e mesmo produzindo elementos profundamente normativos. Assim, esse ponto precisa ainda ser retomado e retrabalhado no sentido não apenas de fazermos a crítica das teses freudianas sobre a sexualidade feminina, crítica que já conta com extensa bibliografia, mas também de mantermos a psicanálise em um lugar que, na verdade, sempre foi o seu: o lugar de fazer uma leitura do nosso tempo.

Ademais, essa ambiguidade, entre fornecer elementos que promovem a emancipação da mulher ou reforçar argumentos que corroboram com sua condição de subalternidade, marca o próprio modo pelo qual Freud afirma que uma mulher se torna mulher a partir da bissexualidade originária da criança. Isso porque em nenhum momento ele rebate essa tese para o menino. É a mulher quem tem que adentrar o processo do tornar-se porque o dado de saída é a referência ao falo. Isso não significa que, para Freud, a sexualidade masculina também não seja um processo. Ela é, no entanto, um processo considerado mais simples, pois, como veremos na sequência, não envolve, assim pensa Freud, nem uma troca de objeto nem uma troca de genital. É essa suposta simplicidade que permitiria situar a sexualidade masculina em um lugar de referência de partida para a sexualidade feminina. Na verdade, o que conduz a isso são alguns preconceitos do autor. Mas é importante reconhecer que eles são aqui dissimulados sob a tese da simplicidade.

Apesar disso, e na direção da tarefa de diagnosticar o próprio tempo, precisamos de ferramentas que nos ajudem a compreender a constituição da subjetividade moderna e os aspectos inconscientes da opressão. O feminismo não pode se esquivar desses problemas e é nessa medida que não parece interesante, do ponto de vista político, simplesmente evitar a teoria psicanalítica.

Não é possível, no entanto, operar com a contribuição possível da psicanálise para o feminismo se assumirmos uma postura de denegação com relação àquilo que há de não fundamentado, de circular e, ao mesmo tempo, de clara determinação histórico-social em certas teses que são de fato mobilizadas por Freud. Em minha leitura, é preciso ter clareza em relação a isso se não quisermos cair na atitude ingênua de pretender salvar Freud diante do debate feminista, como se o fato de reconhecermos a fragilidade de alguns de seus argumentos pusesse em risco a própria existência da psicanálise. Para mim, trata-se do contrário: a existência e a sobrevivência da psicanálise em nossa sociedade dependem em larga medida de nossa capacidade de pôr em marcha certos problemas que são produzidos pelos textos que Freud dedica à sexualidade feminina, sendo este ainda um dos principais desafios a serem enfrentados atualmente pela teoria psicanalítica. Penso que é preciso, para lidar com isso, conhecer bem o que Freud de fato escreveu. Isso parece algo bastante trivial. E, de fato, é. Curiosamente, no entanto, é muito comum vermos no debate atual uma combinação da atitude de tentar salvar Freud com o isolamento de suas afirmações, como se o fato de retirá-las de seu contexto pudesse respaldar a reinterpretação salvífica pretendida.

Os comentários que Freud tece a respeito da sexualidade feminina não são desvencilháveis do problema, tão revisitado por ele, do antagonismo entre indivíduo e cultura, já que são comentários radicados numa certa forma de cultura: a da Europa da passagem do século XIX para o século XX. Freud estava, a esse respeito, fazendo um diagnóstico da condição da mulher de seu tempo sem explicitá-lo enquanto tal ao mesmo tempo em que lançava as bases para conceber o mal-estar como algo estruturante da civilização. Roudinesco, no capítulo “Com as mulheres” de sua recente biografia de Freud, expressa isso do seguinte modo: que a tese da inveja do pênis “[...] seja exata empiricamente não significa que seja universalizável, na medida em que, mesmo quando em sintonia com a subjetividade infantil, ela pode se modificar em função das transformações da sociedade” (2014/2016, p. 339[3]).

Freud parte, assim, de uma abertura de escuta tão fecunda, promovida no início de seu percurso junto à histeria, para chegar, naquilo que toca a questão da feminilidade, a um ponto tão completamente preso aos preconceitos de sua época[4]. Essa ambiguidade talvez explique, em grande parte, o fato de ser muito comum vermos, de um lado, estudiosos de Freud dizerem que ele absolutamente não era misógino, assim como se poderia, de outro lado, supostamente em prol de um pensamento feminista, jogar fora toda a psicanálise juntamente com as teses misóginas de Freud. No meu entendimento, trata-se de duas atitudes a serem igualmente evitadas. Enquanto a primeira se cega diante da paralisia política embutida na argumentação voltada para a inferioridade feminina, a segunda atua em favor de privar o feminismo de uma ferramenta de reflexão que ele não pode, afinal, dispensar.

Meu objetivo aqui será, então, mostrar em detalhe como Freud tece suas teses a respeito da inferioridade feminina, sem diminuir o tom dessas teses, sem escamoteá-las e, ao mesmo tempo, tentando mostrar como elas produzem suas próprias armadilhas, ou seja, tentando destacar os momentos em que a argumentação de Freud simplesmente não se sustenta, ficando refém de modo não marginal de alguns preconceitos próprios — que são, aliás, preconceitos largamente constitutivos do próprio Ocidente.

***

Ao longo da década de 20 do século passado, Freud procedeu a uma revisão do complexo Édipo que consistiu em acrescentar-lhe certas teses. A maior parte delas concerne à sexualidade feminina. Essa revisão ocorre em três principais textos: A organização sexual infantil (1923), A dissolução do complexo de Édipo (1924) e Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925). Já na década de 30, Freud escreve dois textos sobre a sexualidade feminina que dão continuidade a esse procedimento. São o ensaio Sobre a sexualidade feminina, de 1931, e a conferência A feminilidade, 1933. Por fim, em Análise terminável e interminável, de 1937, Freud situa o repúdio do feminino como núcleo do inconsciente.

Uma das primeiras coisas que Freud escreve em A organização genital infantil é que a depreciação das mulheres e o horror a elas derivam da convicção de que não possuem pênis (1923/2011, p. 173). A constatação de que uma certa mulher não possui pênis não conduz, no entanto, o menino a imediatamente fazer qualquer espécie de generalização. Ele não consegue, diz Freud, fazer essa generalização porque supõe que a falta do pênis é o resultado de uma castração que teria sido executada como punição. Em vez de fazer uma generalização como essa, o que o menino passa a pensar é que apenas pessoas desprezíveis do sexo feminino perderam seus órgãos genitais. Supõe ainda que os perderam porque experimentaram impulsos reprováveis como aqueles que ele mesmo experimenta. Assim, ele não transfere essa ideia para a sua própria mãe: por um longo tempo, ele pensará que ela possui um pênis. Para o menino, nesse momento, ser mulher ainda não é sinônimo de não ter pênis. A mãe só deixa de ter um pênis mais tarde, quando o menino conclui que apenas mulheres podem dar à luz. Ele constrói, então, teorias bastante complicadas para explicar a troca do pênis por um bebê. Em nenhum momento ao longo desse processo, diz Freud, parece ter lugar o reconhecimento da existência de um órgão genital especificamente feminino. O menino imagina que os bebês nascem pelo ânus.

A fase da libido em que o Édipo se expressa é a fase fálica, há pouco tempo descoberta por Freud na clínica, e que ele expõe aqui (no texto de 1923). Isso significa que, para ele, o Édipo tem lugar numa fase que é genital, mas na qual as crianças concebem exclusivamente o genital masculino; a existência do órgão genital feminino permanece, assim pensa Freud, desconhecida pelas crianças.

Desse modo, na organização pré-genital sádico-anal não existe ainda a polarização masculino/feminino, apenas aquela entre ativo e passivo. Na fase fálica, Freud sustenta que existe masculinidade, mas não feminilidade. A antítese que se sobrepõe agora à anterior é a antítese entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado e é apenas com a puberdade que a polaridade sexual coincide com masculino e feminino.

Em A dissolução do complexo de Édipo (1924), em parte como consequência do reconhecimento do que chamou de fase fálica, Freud considera pela primeira vez que o desenvolvimento sexual da menina seria diferente do desenvolvimento sexual do menino.

Em que consiste a fase fálica? Ela articula, sustenta Freud, masturbação a complexo de Édipo e encontra-se incialmente descrita do ponto de vista do menino. A masturbação, que não corresponde à totalidade da vida sexual da criança, constitui uma descarga genital da excitação sexual relacionada ao complexo de Édipo. Ficará sempre relacionada a isso, sustenta Freud. O complexo de Édipo ofereceu à criança duas possibilidades de satisfação, uma ativa e outra passiva. Essas duas possibilidades são as seguintes. 1- O menino poderia querer assumir, de modo masculino, o lugar de seu pai e ter relações sexuais com a mãe assim como ele; nesse caso, o pai passa a ser percebido como um empecilho. 2- Ou então o menino poderia querer assumir o lugar da mãe e ser amado pelo pai, caso em que a mãe se tornaria supérflua. É curioso notar que o pai se torna um impedimento enquanto a mãe se torna apenas supérflua. De todo modo, diz Freud, provavelmente a criança tem apenas noções muito vagas a respeito do que é uma relação sexual, mas imagina que o pênis tem um papel nela. Freud diz que a criança imagina isso porque a fantasia da relação entre os pais suscita sensações em seu próprio órgão. O menino imaginava que também as mulheres possuíam pênis. Não duvidava desse fato. Agora que passou a assumir a castração como uma possibilidade concreta, no entanto, reconhece que as mulheres são castradas e isso exige que ele encerre o investimento psíquico nos dois caminhos de satisfação apresentados pelo complexo de Édipo exatamente porque aqueles dois caminhos acarretavam a perda de seu pênis: o caminho masculino acarretava a castração como uma punição e o feminino a acarretava como pressuposto. Estabelece-se assim um conflito entre o amor a objetos externos e o amor a si mesmo. Para Freud, quando o investimento num objeto externo é abandonado, ele é substituído por uma identificação. Assim, aquela autoridade que era percebida nas figuras parentais, especialmente no pai, passa a ser introjetada, sendo isso que dá origem ao Supereu. A severidade que era atribuída ao pai passa a ser uma severidade interna. A proibição do incesto, que era algo que chegava até a criança a partir de um lugar externo, passa a ser uma interdição internalizada. Essa severidade é o que passa a constituir o núcleo do Supereu. Com esse processo, tem lugar uma dessexualização, ao menos parcial, daquelas tendências que constituíam o complexo de Édipo; ou seja: algumas daquelas tendências são sublimadas. Outra parte das tendências libidinais do Édipo é inibida em sua meta e transformada em impulsos de afeição e ternura. Do ponto de vista da fantasia da criança, o resultado desse processo é, diz Freud, uma preservação do pênis: ele afastou a ameaça de castração, mas também impôs ao órgão uma paralisação. É assim que é introduzido, do ponto de vista psíquico, o período de latência, que corresponde a uma interrupção no desenvolvimento sexual da criança.

Há, desse modo, uma série de vinculações entre essas cinco coisas: a organização fálica, o complexo de Édipo, a ameaça de castração, a formação do Supereu e o período de latência. Mas esse resultado poderia talvez ser colocado em xeque, diz o autor, se considerarmos que, no caso da menina, as coisas não podem se passar do mesmo modo. É essa questão que conduz, então, Freud a se deter na especificidade do desenvolvimento sexual da menina.

Nas meninas, o complexo de Édipo levanta um problema a mais, pensa Freud, porque em ambos os casos a mãe é o objeto original. Ele tem que ser, assim, uma formação secundária. O problema pode, então, ser formulado do seguinte modo: qual é o processo que leva as meninas a abandonarem esse objeto original que é a mãe e a substituírem a mãe pelo pai?

A primeira observação que Freud faz a esse respeito é que, no caso da menina, as coisas são muito mais obscuras. Isso é algo que ele já indicava em textos anteriores e em que ele insiste em diversos lugares. Apesar disso, Freud considera que é possível afirmar que também a menina desenvolve um complexo de Édipo, um Supereu, uma organização fálica, um complexo de castração e um período de latência. No entanto, nada disso ocorre do mesmo modo que no menino. Essa diferença, Freud já a vincula à morfologia e, para proceder a essa vinculação, ele faz uma referência ao feminismo. Eis o trecho em que isso ocorre: “Aqui a exigência feminista de igualdade de direitos entre os sexos não vai longe, a diferença morfológica tem de manifestar-se em diferenças no desenvolvimento psíquico. Anatomia é destino, podemos dizer, parodiando uma frase de Napoleão” (1924/2011, p. 211). Nesse trecho Freud diz que a questão morfológica, anatômica, reverbera de maneira muito significativa no psíquico. Mas diz mais do que isso. Ele faz uma passagem brusca entre a dimensão psíquica e a dimensão dos direitos e deixa essa passagem sem nenhuma justificativa, sem nenhuma elaboração.

O que Freud pensa, então, que acontece no caso da menina? A menina compara seu clitóris com o órgão genital de um coleguinha e percebe que “saiu perdendo”. Toma isso como uma injustiça e, ao mesmo tempo, como sinal de sua inferioridade. Por algum tempo ainda vive a expectativa, diz Freud, de que, quando crescer, virá a ter novamente um órgão tão grande quanto o do menino. A menina descobre, por algum motivo — não necessariamente relacionado a conteúdos psíquicos —, o prazer da zona genital como prazer do clitóris. Mas, no caso delas, não ocorre de imediato uma vinculação entre a masturbação e os investimentos objetais do complexo de Édipo. O que acontece, segundo Freud, é que ela percebe o pênis de um irmão ou coleguinha como sendo um correspondente superior “de seu próprio órgão pequeno e oculto, e passa a ter inveja do pênis” (Ibid., p. 290). Nisso tem origem o que Freud chama de “complexo de masculinidade” das mulheres, pois a menina imaginaria que já teve um órgão assim e que este lhe foi retirado. Do mesmo modo, supõe que essa seria uma condição singular sua, enquanto que as outras mulheres seriam providas de pênis tal como os meninos. Para Freud, uma das consequências disso é a seguinte: se o Supereu era o resultado do medo da castração (conforme o modelo da introjeção da autoridade), e se a menina não tem o medo da castração (percebendo-se já castrada), então não se registra nela o principal motivo para a instalação do Supereu e para a interrupção da fase fálica. Na menina, a formação do Supereu e a saída da fase fálica, diz Freud, têm que ser pensadas como o resultado de algo que permanece agindo a partir do exterior; são frutos da educação e o que opera aí é o medo de perder o amor dos pais. Nos meninos, o desfecho do complexo de Édipo conduz ao desenvolvimento da consciência moral: o Supereu é o seu herdeiro. O motivo para esse desfecho era a ameaça de castração. Como nas meninas falta esse motivo, uma vez que já seriam castradas, ele não terá o mesmo destino. O complexo de Édipo poderá ser lentamente abandonado ou submetido ao recalque ou ainda seus efeitos podem se arrastar ao longo da vida psíquica das mulheres. Como quer que seja, sua noção do que é “eticamente normal” tenderá a ser distinta da do homem. Freud escreve, então:

Hesitamos em expressar isso, mas não podemos nos esquivar da noção de que o nível do que é eticamente normal vem a ser outro para a mulher. O Super-eu jamais se torna tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens afetivas como se requer que seja no homem. Traços de caráter que sempre foram criticados na mulher – que ela mostra menos senso de justiça que o homem, menor inclinação a submeter-se às grandes exigências da vida, que é mais frequentemente guiada por sentimentos afetuosos e hostis ao tomar decisões – encontrariam fundamento suficiente na distinta formação do Super-eu que acabamos de inferir (1925/2011, p. 298, grifo meu).

Isso conduz Freud a contestar nuevamente o feminismo dizendo que não é possível aceitar a equiparação e a equivalência que ele pretende existirem entre os sexos. Nesse ponto, afirma que, quando um homem também não alcança os padrões da moralidade é porque nele prevaleceu um desenvolvimento feminino — nesse caso, que surpreendentemente é o caso da maioria, os homens não alcançaram o “ideal masculino” (p. 298), o que se explicaria em virtude da disposição sexual de todos os seres humanos. Fica clara aqui a circularidade com que Freud se compromete: tendo em vista que se assumiu uma equivalência entre feminino e pouca moralidade, pode-se então sugerir que um homem com frágil desenvolvimento desta só pode ser um homem feminino.

A diferença que caracteriza o complexo feminino de Édipo e o de castração, diz Freud, “marca indelevelmente o caráter da mulher como ser social” (1931/2010, p. 379). Além disso, e de uma forma associada, Freud relaciona a existência das tendências sádicas ao tamanho do órgão fálico, de modo que a ausência de pênis na menina significaria também uma presença menos intensa de impulsos sádicos, o que seria mais um motivo para uma constituição mais frágil do Supereu. Também seria um motivo para que, na menina, a ternura seja mais desenvolvida do que no menino. Escreve Freud ainda em 1933: “A formação do Super-eu tem de sofrer nessas circunstâncias, ele não pode alcançar a fortaleza e a independência que lhe dão a sua importância cultural [...]” (1933/2010, p. 286) e afirma que as mulheres possuem menos senso de justiça porque padecem mais de inveja (ibid., p. 292).

É na questão da diferença anatômica que se instala para Freud um contraste entre os comportamentos dos dois sexos. No caso do menino, quando lhe ocorre observar os órgãos genitais de uma menina, sua reação é ficar indeciso ou desinteressado: “[...] ele nada vê, ou recusa sua percepção, enfraquece-a, busca expedientes para harmonizá-la com sua expectativa” (Ibid., p. 290). A observação de que as meninas não possuem pênis só se torna importante para ele mais tarde, quando ele mesmo se depara com alguma ameaça de castração. Tudo se passa como se a ausência de pênis na menina provasse para o menino que a castração era uma ameaça concreta. Essa situação vai dar lugar no menino a duas reações possíveis: horror ou desprezo pelas mulheres. Essas duas reações podem se tornar fixas e assim determinar que tipo de relação o menino terá futuramente com as mulheres. Mas esses desenvolvimentos levam um certo tempo para ele. No caso da menina, não há esse tempo. As coisas se processam de imediato: “Num instante ela faz seu julgamento e toma sua decisão. Ela viu, sabe que não tem e quer ter” (Ibid., p. 291). Esse é o momento em que se instaura, para ela, o “complexo de masculinidade”, construído em torno da inveja do pênis. Tal complexo poderá trazer desvios para um curso de desenvolvimento esperado para a menina e que é o seu desenvolvimento no sentido da feminilidade. Se o complexo de masculinidade, diz Freud, não for superado suficientemente cedo, haverá dificuldades para que a menina alcance a posição feminina.

Em não sendo assimilada mediante um complexo de masculinidade, a inveja do pênis traria outros tipos de consequências. A primeira seria um sentimento de inferioridade que decorreria dessa ferida narcísica. Inicialmente a menina pensa que se trata de uma inferioridade individual: ela teria sido punida com a ausência de pênis. Depois, quando compreende que se trata de uma característica sexual compartilhada por todas as mulheres, ela passa a partilhar do desprezo que os homens sentem por elas. Esse desprezo assumido envolveria, diz Freud, uma tentativa da menina de, ao menos nisso, ser semelhante aos homens. A segunda consequência da inveja do pênis seria que, mesmo depois de se deslocar de seu verdadeiro objeto, ela continuaria a existir como ciúme, que, para Freud, seria um sentimento mais significativo na vida psíquica das mulheres do que na dos homens. A terceira consequência seria um enfraquecimento da ternura que a menina dirigia à mãe, que passa a ser considerada responsável por sua falta de pênis; a menina culpa a mãe por tê-la trazido ao mundo “tão insuficientemente aparelhada” (ibid., p. 293). A quarta consequência da inveja do pênis seria a que Freud considera a mais importante: as mulheres hesitariam mais em proceder à masturbação do que os homens, e isso ocorreria porque, sustenta o autor, a masturbação do clitóris é uma atividade masculina e a eliminação da sexualidade clitoridiana constituiria uma precondição necessária para o desenvolvimento da feminilidade. Para Freud, o abandono da masturbação clitoridiana tem que ser explicado pela concorrência de um outro elemento, para além das reprovações oriundas da educação; trata-se, para ele, do fato de a menina se sentir inferior em função de não possuir um pênis. “Dessa maneira”, diz Freud, “o reconhecimento da diferença sexual anatômica impele a menina a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina, em direção a novas trilhas que levam ao desenvolvimento da feminilidade” (Ibid., p. 295, grifo meu).

Até esse momento, o desenvolvimento sexual da menina não se referiu ao complexo de Édipo. Agora, porém, sua libido desloca-se: em vez de continuar a desejar um pênis, ela passa a desejar um bebê; e é esse o motivo pelo qual procede àquela substituição da mãe pelo pai em termos de objeto amoroso. Tanto a intensidade quanto a duração da ligação com a mãe tinham sido subestimadas. A menina torna-se “uma pequena mulher”, diz Freud, quando passa a ter ciúmes da mãe; o que significa, para ele, que uma modificação em seu órgão sexual principal conduziu então a uma modificação em seu objeto sexual. Ao final da primeira fase de ligação com a mãe, estabelece-se o motivo que vai levar a menina a afastar-se dela. Esse motivo seria o fato de a menina recriminar a mãe por ter dado à luz a ela como mulher, de modo a ter-lhe negado um verdadeiro órgão genital.

Assim, o complexo de castração é o que conduz as meninas ao complexo de Édipo, enquanto que constituía, para os meninos, a saída dele. A relação entre os complexos de Édipo e de castração é capaz de exibir então o contraste fundamental entre os dois sexos. Essa oposição tem o seu sentido esclarecido pelo próprio conteúdo do complexo de castração: ele inibe e limita a masculinidade enquanto promove a feminilidade. É essa elaboração que Freud considera permitir-lhe vincular estreitamente os caminhos da vida psíquica à diferença anatômica entre os sexos:

diferença, neste trecho do desenvolvimento sexual do homem e da mulher, ele escreve, é uma consequência compreensível da diversidade anatômica dos genitais e da situação psíquica a ela relacionada; corresponde à diferença entre a castração realizada e aquela apenas ameaçada. (Ibid., p. 296, grifo meu).

Freud é muito claro ao afirmar coisas tais como: “No homem, a influência do complexo de castração deixa também certo grau de menosprezo pela mulher, percebida como castrada” (1931/2010, p. 378); já a mulher “[...] admite o fato de sua castração e, com isso, a superioridade do homem e sua própria inferioridade, mas também se revolta contra esse desagradável estado de coisas” (Ibid., p. 378, grifo meu); a menina “descobre a sua inferioridade orgânica” (Ibid., p. 382, grifo meu), ela “se dá conta de seu defeito” (Ibid., p. 383, grifo meu).

É curioso notar que, em um texto de 1912, intitulado Sobre a mais geral degradação da vida amorosa, Freud havia observado que é no quadro da impotência psíquica que surge a necessidade do desprezo pela mulher — a necessidade de degradá-la e tomá-la como inferior para que se torne possível sua penetração —, relacionando isso a “razões culturais” (1912/2018, p. 147) que, ao implicarem exigências distintas na “educação” (p. 147) de homens e mulheres, incidiriam em configurações também distintas de suas formas de amar. Dizia, assim, que “a conduta amorosa do homem no nosso mundo atual civilizado” (p. 144, grifo meu) — o que podemos quase ler como “em nossa sociedade patriarcal” — “carrega em si absolutamente o selo da impotência psíquica” (p. 144). Ora, podemos, então, nos perguntar se Freud não havia fornecido elementos que falariam em favor de questionar a origem da sua própria necessidade de, em seus últimos ensaios, atribuir às mulheres o selo da inferioridade de modo tão categórico — isto é, sem referências a modelos de sociedade. Não estaria Freud, nesse caso, colocando em ato algo que ele mesmo denunciou?

No texto de 1931, três caminhos são identificados a partir do reconhecimento, pela menina, de sua própria inferioridade.

O primeiro caminho seria o afastamento da sexualidade — a menina renuncia à atividade fálica e, com isso, renuncia também “a boa parte de sua masculinidade em outros campos” (Ibid., p. 378). Desse modo, o fato de a menina se afastar de características consideradas masculinas seria devido a um processo psíquico dela, e não a imposições exercidas por um determinado contexto histórico-social[5]. Freud situa também a neurose nesse primeiro destino e afirma que a inveja do pênis estraga a fruição da sexualidade fálica. A menina, ele alega, sente prazer no clitóris, mas, mesmo assim, abre mão desse prazer porque alimenta o ressentimento de não possuir um pênis.

O segundo caminho seria o apego teimoso à masculinidade e à fantasia de poder ser um homem; a esperança de ter um pênis é transformada em objetivo de vida. Ou seja, também quando a menina assume características consideradas masculinas, isso resultaria de um desenvolvimento psíquico seu e não de algo que se passou num contexto social. O que acontece aqui, para Freud, é que a menina se recusa a se tornar uma mulher. Com relação a isso, cabe fazer a seguinte observação. Se a “masculinização” da mulher seria algo restrito à natureza de um complexo, isso significa que a pessoa que sustenta tal argumento não tem como rebater a objeção de que a necessidade que um homem tem de separar do corpo feminino aquilo que seriam características masculinas — ou o que ela mesma entende como sendo características masculinas — consiste em um gesto igualmente resultante de um complexo: o de rejeição da mulher. Assim, o modo como Freud argumenta nos autorizaria a sustentar que seu próprio discurso seria resultante de um complexo de rejeição da mulher[6]— hipótese para a qual poderíamos, como vimos acima, mobilizar elementos de outros textos do próprio Freud.

O terceiro é um caminho bastante sinuoso que leva a menina a tomar o pai como objeto e que constituiria a feminilidade “normal”. Freud observa que as opiniões feministas e as mulheres analistas discordam disso. Vale a pena ler o que ele diz dessa vez sobre esse ponto que já sabemos ser recorrente:

Pode-se prever, escreve Freud, que os analistas com opiniões feministas, assim como as mulheres analistas, não estarão de acordo com essas declarações. Dificilmente deixarão de objetar que tais teorias provêm do ‘complexo de masculinidade’ do homem e servem para justificar teoricamente sua inata propensão a rebaixar e oprimir a mulher. [...] Os oponentes dos que assim falam acharão compreensível, por sua vez, que o sexo feminino não queira admitir o que parece contrariar a tão ansiada igualdade com o homem (Ibid., p. 379).

Ora, poderíamos retrucar que, do mesmíssimo modo, as representantes do sexo feminino acharão compreensível, por sua vez, que os homens não queiram admitir uma igualdade entre os sexos no sentido da oposição superioridade/inferioridade. Mais do que isso: a própria teoria freudiana fornece elementos para que essa rejeição se torne inteligível[7]. Para Freud, no entanto, a situação feminina só se estabelece “quando o desejo pela criança substitui o desejo pelo pênis” (1925/2011, p. 284). Mas apenas quando a mulher tem um filho homem sua satisfação é ilimitada (Ibid., p. 291) “Assim, o velho desejo masculino de possuir o pênis ainda transparece na feminilidade consumada. Mas deveríamos talvez reconhecer tal desejo de pênis como um desejo apuradamente feminino.” (Ibid., p. 285) O que Freud escreve aqui senão que o desejo especificamente feminino é, afinal, masculino — o desejo de possuir um pênis?

A psicologia da mulher — da mulher feminina — possuiria ainda outras características que Freud indica aqui retomando coisas que já tinha comentado no ensaio Introdução ao narcisismo (1914/2010): ela tem mais necessidade de ser amada do que de amar; a inveja do pênis se reflete na vaidade física, “pois ela deve apreciar mais ainda seus encantos, como tardia compensação pela inferioridade sexual original”; o pudor corresponderia a uma intenção de cobrir o “defeito” dos genitais. Ressalta agora, no entanto, que “nem sempre é fácil distinguir o que atribuir à influência da função sexual ou à disciplina social” (1933/2010, p. 289).

Toda essa discussão é claramente atravessada por uma superposição entre dois pares de oposição. De um lado a oposição masculino/feminino; de outro lado, a oposição ativo/passivo. Freud, naturalmente, não procede a ela sem problematizá-la. Essa problematização, no entanto, é acompanhada de pontos cegos e de impasses que, aliás, talvez ainda sejam os nossos em larga medida. Freud afirma que a primeira distinção que fazemos quando nos deparamos com uma pessoa é a distinção macho /fêmea. Costumamos fazer essa distinção com “tranquila certeza”, ele diz. Essa certeza não é totalmente partilhada pela anatomia, mas aqui ela corresponde à distinção macho-espermatozoide/fêmea-óvulo. As outras partes do corpo são influenciadas pelo sexo e isso resulta nos chamados caracteres sexuais secundários. Mas a ciência biológica também indica que algumas partes do aparelho sexual masculino se encontram na mulher e vice-versa. “Nisso ela vê sinais de bissexualidade, escreve Freud, como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra” (Ibid., p. 265). Então, por um lado, cada indivíduo, via de regra, produz ou óvulo ou esperma; por outro lado, cada indivíduo se situa numa série de variações extremamente amplas entre masculino e feminino no que diz respeito aos caracteres sexuais secundários. O resultado disso é que não é seguro dizer o que é masculino e o que é feminino a partir da anatomia. Freud se pergunta, então: será que a psicologia poderia, por sua vez, fazer essa distinção? Para tentar responder a isso ele lembra que a psicanálise transpôs a bissexualidade para a vida psíquica. Em consideração a isso,

Dizemos, então, que uma pessoa, seja homem ou mulher, comporta-se de maneira masculina num ponto, e feminina em outro. Mas logo vocês verão que isso apenas significa ceder à anatomia e à convenção. Não podem dar nenhum conteúdo novo aos conceitos ‘masculino’ e ‘feminino’. A distinção não é psicológica; quando falam em ‘masculino’, normalmente querem dizer ‘ativo’, e quando falam em ‘feminino’, ‘passivo’. É certo que existe essa relação (Ibid., p. 266).

Para sustentar essa existência, Freud refere-se aos organismos sexuais elementares: o óvulo é imóvel e aguarda passivamente ser penetrado pelo espermatozoide. Isso seria um “modelo” para o coito. O macho persegue, agarra e penetra a fêmea. Mas isso não parece resolver muita coisa, ele observa, porque em algumas espécies são as fêmeas que são mais fortes e agressivas e os machos restringem a sua atividade exclusivamente ao ato sexual. A função de gerar e criar a prole também não é invariavelmente atribuída à fêmea. Assim, “mesmo no âmbito da vida sexual humana vocês logo percebem como é insatisfatório identificar a conduta masculina com a atividade e a feminina com a passividade” (Ibid., p. 267). Mas, para Freud, essa insatisfação, esse “erro de superposição” aparece, na verdade, quando nos afastamos do âmbito sexual. As mulheres podem ser ativas em diversas esferas de suas vidas e os homens precisam desenvolver uma passividade, uma docilidade, para convier com seus iguais, que obviamente são pensados aqui como sendo outros homens. Se é assim, se todos os seres humanos possuem as duas tendências — à atividade e à passividade — então, de onde vem aquela superposição? Freud diz aqui, em 1933, que ela não passa de uma convenção. Com isso, ele toma bastante distância com relação a alguns de seus próprios textos anteriores que haviam assumido — e não questionado — tal superposição[8]. Eis o trecho:

Se vocês agora disserem que esses fatos demonstrariam justamente que tanto os homens como as mulheres são bissexuais no sentido psicológico, concluirei apenas que decidiram fazer ‘ativo’ coincidir com ‘masculino’ e ‘passivo’ com ‘feminino’. Mas aconselho que não o façam. Parece-me inapropriado e nada acrescenta ao que sabemos (1933/2010, p. 267).

Isso parece gerar uma enorme confusão na reflexão de Freud porque ele percebe agora que aquela superposição não é nem um pouco tranquilamente sustentável. Afirma, então, que assumir metas pulsionais passivas exige “uma boa dose de atividade” (Ibid., p. 268). Ora, isso não deveria reverberar sobre a alegação da inferioridade feminina? Por que Freud não retira as consequências do que identifica aqui? Em vez disso, o que ele faz é recorrer ao fator constitucional na consideração de que, embora se torne preciso reconhecer o papel da determinação social, ela precisa ser emparelhada a essa interferência: “A supressão da agressividade, prescrita constitucionalmente e imposta socialmente à mulher, favorece o desenvolvimento de fortes impulsos masoquistas, que, como sabemos, têm êxito em ligar-se eroticamente a inclinações destrutivas voltadas para dentro” (Ibid., p. 268). Mas isso, a seu ver, permite-lhe concluir em favor de uma determinação ahistórica ao dizer que “o masoquismo [...] é realmente feminino” (p. 268). Outro problema coloca-se, então, aqui: se o masoquismo é o fundamento da moralidade, se quanto mais um sujeito agride a si mesmo mais ele se conforma às exigências éticas da cultura, Freud não deveria retirar disso a conclusão de que a sexualidade feminina favoreceria um Supereu mais fortalecido do que no caso do homem? Quer dizer: não deveria concluir a partir disso o contrário do conteúdo de sua insistência em corroborar com o alijamento das mulheres com relação às práticas culturais? Como quer que seja, Freud recua, no espaço de uma página, do questionamento da sobreposição entre feminino e passividade e entre masculino e atividade, indicando uma solução para o impasse em torno da ideia de que certas mulheres seriam masculinas enquanto certos homens seriam femininos.

Tendo em vista a impossibilidade que é apontada de realizar essa sobreposição, é necessário reconhecer, diz Freud, que a psicologia também não soluciona o enigma da feminilidade. Podemos nos perguntar por que afinal, esse enigma não é também o enigma da masculinidade?[9] De todo modo, Freud escreve que a psicanálise conseguiu investigar “como a mulher vem a ser, como se desenvolve a partir da criança inatamente bissexual” (ibid., p. 269). Diz que foi importante para essa investigação o fato de algumas mulheres terem passado a atuar como psicanalistas e que lhe é fácil retrucar às objeções de suas colegas que lhe acusam de adotar preconceitos com relação à sexualidade da mulher porque bastar-lhe-ia dizer que, quando argumentam isso, tais mulheres estariam sendo masculinas (ibid., p. 269). Freud chega a dizer que o próprio fato de algumas mulheres se tornarem psicanalistas consiste em um destino do desejo de possuir um pênis.

Relevante nesse contexto é o fato de Freud afirmar que a bissexualidade é mais nítida na mulher do que no homem (1931/2010). O autor relaciona isso ao fato de a mulher possuir dois órgãos sexuais enquanto o homem possui apenas um. Os dois órgãos da mulher são situados, para ele, do seguinte modo: a vagina é propriamente feminina e o clitóris é um análogo do membro masculino. Mesmo que não seja verdade que inexistam sensações vaginais na infância, certo é, sustenta Freud, que o essencial das experiências genitais da infância na mulher ocorre no clitóris. Assim, a vida sexual da mulher possui duas fases, das quais a primeira é uma fase masculina e “apenas a segunda é especificamente feminina” (ibid., p. 376). Isso significa que, para Freud, o desenvolvimento da mulher implica, em algum sentido, abrir mão de ser homem e isso porque ele identificou o prazer clitoridiano como prazer masculino; Freud escreve no texto seguinte: “a garota pequena é um pequeno homem” (1933/2010, p. 271). O desenvolvimento da mulher exige, a seu ver, um abandono da masculinidade. Essa substituição também requer, como já vimos, uma troca de objeto: da mãe pelo pai. A transformação da menina em mulher é mais difícil e mais complicada do que a transformação do menino em homem porque implica duas tarefas a mais: trocar de zona erógena e trocar de objeto. A questão deve, então, pensa Freud, concentrar-se no seguinte: como a menina passa “da sua fase masculina para a que lhe é biologicamente destinada, a feminina?” (Ibid., p. 272, grifo meu). Assim, o que Freud está dizendo aqui é mais ou menos o seguinte: todos os seres humanos vivem na infância uma fase sexual masculina; alguns se deslocam dela — as mulheres efetivam esse deslocamento porque ele lhes é biologicamente destinado. A ideia do “tornar-se” é mais forte para a mulher do que para o homem — uma mulher teria que se tornar feminina porque, em primeiro lugar, ela foi masculina. Mas é importante não esquecer que, para Freud, se uma mulher se torna mulher, esse processo é, afinal, a seu ver, enraizado em determinações biológicas.

Em Análise terminável e interminável (1937/2010), o repúdio ao feminino passa a ser hipostasiado. Freud trata aqui uma realidade relativa como se fosse uma verdade absoluta. Desaparecem as questões da tipicidade, da determinação social e da “validade mediana”, que constavam — ainda que marginalmente e ainda que apenas para serem afinal suprimidas — nos outros textos, especialmente no último, o de 1933. Trata-se, para ele, de destacar aqui dois temas relacionados ao complexo de castração que fornecem ao analista quantidade inusitada de trabalho: na mulher, a inveja do pênis — um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino — e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro homem. Ambos registram o que Freud chama agora de “repúdio da feminilidade”. Há, diz o autor, uma forte heterogeneidade na presença desse tema nos dois sexos: nos homens, o esforço por ser masculino é completamente egossintônico desde o início. A atitude passiva pressupõe uma aceitação da castração; nessa medida ela é energicamente reprimida, só podendo ser identificada mediante o seu contrário: a expressão de compensações excessivas. Nas mulheres, o esforço na direção da masculinidade só é egossintônico em determinado período: na fase fálica, período que é, portanto, anterior ao desenvolvimento para a feminilidade. Após esse desenvolvimento, o esforço por masculinidade [na mulher que virá a ser “normal”] sucumbe a um intenso processo de recalque. Freud escreve, nesse sentido:

Em nenhum momento do trabalho analítico padece-se mais da sensação opressiva de empreender repetidamente um esforço em vão e da suspeita de ‘pregar ao vento’ do que quando se quer dissuadir as mulheres de seu desejo irrealizável por um pênis e quando se pretende convencer os homens de que uma atitude passiva para com outros homens nem sempre tem o significado de uma castração e é indispensável em muitos relacionamentos na vida (1937/2010, p. 253)

A resistência relacionada a esses pontos impede a ocorrência de qualquer mudança no tratamento: “tudo fica como era”, indicando seu fim. É nesse contexto, então, que Freud levanta a hipótese de que o repúdio da feminilidade talvez seja, afinal, um fato biológico.

***

Apesar de todos esses esforços de Freud, é difícil, afinal, e por diversos motivos (de ordem teórica, epistemológica e política) compreender como o investimento narcísico do homem no pênis poderia justificar o resultado do ódio e da depreciação direcionados às mulheres. Pois entre uma coisa e outra o espaço permanece sendo o de um salto. Talvez, se pudesse alegar que encontraríamos elementos para preencher essa lacuna na própria teoria psicanalítica ao considerarmos a fantasia originária de retorno ao ventre materno. Nela, como aliás em qualquer fantasia, o que estaria em jogo seria algo que provocaria simultaneamente desejo e pavor. O ventre materno representa aí tanto um lugar idílico para o qual se poderia fugir diante de um contexto mundano de desamparo e de desamor, quanto o lugar da mais profunda ameaça na medida em que ir até lá corresponderia, para o sujeito, a deixar de existir. A questão, todavia, permanece a mesma: por que essa ambiguidade depositada fantasisticamente no sexo capaz de conceber precisou ser traduzida socialmente em sua depreciação e psicanaliticamente em sua inferiorização? Por que essa convergência de afetos tão intensos se modulou de maneira longeva na expectativa de situar o feminino como algo externo a uma caracterização decisiva da cultura?

A leitura dos textos de Freud sobre a sexualidade feminina parece permitir destacar dois pontos essenciais concernentes a essas questões:

  1. 1- Tais textos de fato pretendem desdobrar um novo enraizamento teórico para a necessidade patriarcal de impor a inferioridade como traço feminino. O compromisso das teses freudianas sobre a especificidade da sexualidade feminina para com essa consequência e essa intenção não pode ser camuflado nem contemporizado.

  2. 2- De outro lado, foi possível identificar pontos em que Freud reconheceu a fragilidade das equivalências assumidas, como se estivesse prestes a abrir portas na direção de um questionamento fundamental, apesar de, na sequência, ter recuado daquilo que pôde apenas vislumbrar.

Isso dá lugar, para encaminhar o encerramento deste artigo, à possibilidade de levantar as seguintes perguntas: em que direção poderíamos explorar a porta de hesitação entreaberta por Freud — precisamente o momento em que ele reconhece que nem mesmo a psicologia estava preparada para definir os termos masculino e feminino — de um modo tal que a teoria psicanalítica não precise continuar a corroborar o peso da tradição patriarcal? Seria isso possível? Como preservar a importância da reflexão sobre a diferença sexual — ou sobre as diferenças sexuais — sem que isso signifique subscrever o repúdio do feminino, que Freud de modo acertado enxergou como algo profundamente entranhado em nossa cultura, embora não o tenha reconhecido como um fator histórico? Como essas questões poderiam reverberar sobre a construção do complexo de Édipo? Faria sentido preservá-lo como operador teórico ou seria necessário pensar para além dele?

Evidentemente precisamos lembrar aqui, por fim, do caráter ambíguo que Freud atribui à moralidade. Ela tem, afinal, sua origem no par sadismo/masoquismo. Diante dessa ambiguidade, não seria mérito do feminino sua localização marginal? O problema, a meu ver, não consiste em questionar a importância subjetiva das margens da moralidade, pois de fato, como Freud mesmo nos ensina, há muitas armadilhas em torno do Supereu e muitos paradoxos em torno da rigidez moral. O problema é a insistência em dizer — de uma maneira que nunca chega a se fundamentar — que esse lugar é, para o bem e para o mal, o do feminino. Mais do que isso, como vimos, em Freud, esse lugar é irredutivelmente vinculado a um dado anatômico[10], de modo que, como diria Beauvoir, ele é tomado como algo, afinal, de algum modo, determinante do destino das mulheres. Ocorre que estar advertida para com os paradoxos da rigidez moral não corresponde, evidentemente a abrir mão da própria inserção cultural.

Referências

AGOSTINHO. A Cidade de Deus – Contra os pagãos. Parte II (Livros XI a XXII) Trad. Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 2002.

AMBRA, P. O que é um homem? Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. São Paulo: Annablume, 2015.

BASTONE, P. A teoria da sexualidade feminina em Sigmund Freud e a crítica da supervalorização do homem em Simone de Beauvoir. Dissertação (Mestrado em psicologia) — Programa de pós-graduação em psicologia da UFSJ, 2019.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2 volumes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016 [1949].

BIRMAN, J. Gramáticas do erotismo – A feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003 [1990].

FEDERICI, S. Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017 [2004].

FREUD, S. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In. Obras completas. V. 6. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 [1905].

FREUD, S. “Sobre a mais geral degradação da vida amorosa”. In: Amor, sexualidade, feminilidade. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018 [1912].

FREUD, S. “Introdução ao narcisismo”. In. Obras completas. V. 12. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1914].

FREUD, S. “A organização sexual infantil”. In. Obras completas. V. 16. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1923].

FREUD, S. “A dissolução do complexo de édipo”. In. Obras completas. V. 16. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1924].

FREUD, S. “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”. In. Obras completas. V. 16. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1925].

FREUD, S. “Sobre a sexualidade feminina”. In. Obras completas. V. 18. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1931].

FREUD, S. “A feminilidade”. In. Obras completas. V. 18. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1933].

FREUD, S. “Análisis terminable e interminable”. In. Obras Completas. V. XXIII. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 2010 [1937].

KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

LAQUEUR, T. La Fabrique du sexe: Essai sur le corps et le genre en Occident. Paris: Gallimard, 2013 [1992].

MITCHELL, J. Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In. Psicanálise da sexualidade feminina. Trad. Luis Orlando C. Lemos. Rio de Janeiro: Campus, 1988 [1974].

OLIVA, J. Da sexualidade reificada à reciprocidade erótica no pensamento de Beauvoir. Tese (Doutorado em filosofía) — Programa de pós-graduação em filosofia da Unifesp, 2018.

PARENTE, A. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.

ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. (Trad. A. Telles). Rio de Janeiro: Zahar, 2016 [2014].

RUBIN, G. “The traffic in women: Notes on the ‘political economy’ of sex”. In: REITER, R. R. Toward na anthropology of women. Nova York: Monthly Review Press, 1975.

SILVEIRA, L. “Assim é a mulher por trás de seu véu? Questionamento sobre o lugar do significante falo na fala de mulheres leitoras dos Escritos”. Lacuna: Uma revista de psicanálise, v. 3, p. 8-8, 2017.

SILVEIRA, L. “Sexualidade feminina, alienação corporal e destino: Discutindo algumas teses de Freud a partir da crítica de Beauvoir”. Ipseitas, v. 5, p. 106-127, 2019.

Notas

[1] O conteúdo deste artigo foi apresentado como parte da palestra Emancipação feminina e psicanálise: Alguns problemas em torno do Édipo e da teoria da cultura, realizada no 5º Encontro de Filosofia, História e Epistemologia da Psicologia, Unifor, Fortaleza, outubro de 2017.
[2] Para uma crítica dessa tese, ver o capítulo “Freud e a melancolia do gênero” de Problemas de gênero, J. Butler, 1990/2003.
[3] O breve trecho de Roudinesco alinha-se, a meu ver, com o conteúdo do artigo de J. Mitchell, publicado já na primeira metade da década de 70. Digo isso porque é importante reconhecer em Mitchell – apesar de suas próprias ambiguidades – o papel precursor de desenvolver um tipo de argumentação que situa as teses freudianas sobre a sexualidade feminina como teses que possuem sua validade (ou parte dela) restrita a mulheres que pertenceram a um certo tempo e a um certo lugar. Embora apenas mais recentemente o feminismo tenha começado a enfrentar o problema da própria referência à mulher (a leitura central aqui é o livro de J. Butler já referido acima e publicado pela primeira vez em 1990), questionando a capacidade do termo de significar algo fixo e estável, é interessante verificar que a entrada da psicanálise no debate feminista, que ocorre de fato com a obra de J. Mitchell, já trazia sólidos elementos nessa direção. Outra referência importante no sentido da argumentação voltada para situar as teses de Freud sobre a sexualidade feminina como teses que podem ser compreendidas como estando a serviço de fazer um diagnóstico do tempo em que foram formuladas é o ensaio de G. Rubin, 1975. Para uma defesa da legitimidade do termo “mulher” como categoria de análise, ver Federici, 2004/2017.
[4] Não se trata aqui de insinuar que fosse plausível exigir de Freud que ele não tivesse preconceitos. Todo autor é em alguma medida refém de sua época, por mais que, em certos aspectos (e no caso de Freud eles eram numerosos), estejam à frente dela. Trata-se, antes, de insistir, desde o interior do próprio território psicanalítico, na necessidade de nos afastarmos dos pontos cegos de Freud no que diz respeito ao feminino. Não deposito no presente texto a pretensão de realizar essa tarefa, mas apenas a de ensejar mais um passo em sua direção.
[5] A ingerência de valores sobre o fato de a menina perceber a si mesma como castrada é destacada por Simone de Beauvoir no contexto do desenvolvimento de sua crítica a Freud: “Ele supõe”, escreve Beauvoir, “que a mulher se sente um homem mutilado. Porém, a ideia de mutilação implica uma comparação e uma valorização […]. […] a inveja da menina resulta de uma valorização prévia da virilidade. Freud a encara como existente quando seria preciso explicá-la” (1949/2016, pp. 70-1). Remeto a leitora à dissertação de mestrado de Petra Bastone (2019), à tese de doutorado de Juliana Oliva (2018) e a meu próprio artigo Silveira, 2019. Para evidenciar que a questão inteira é de valorização, basta nos perguntarmos o seguinte: por que, afinal, em nenhum momento, nem Freud nem aparentemente seus pacientes cogitam que a posse do pênis poderia (como possibilidade lógica) surgir na fantasia da criança como um castigo? O fato disso não ser cogitado significa que a valorização – positiva da masculinidade, negativa da feminilidade – já foi assumida, ideologicamente, de saída. Impossível não lembrar aqui das palavras de Agostinho n'A cidade de Deus: "por que não acreditamos que os órgãos da geração, no ato da geração, poderiam obedecer docilmente à vontade humana, como os demais, se não existisse a libido, justo castigo da desobediência?" (2012, n.p.)
[6] Esse argumento não é meu. Foi apresentado por Thaís Salgado quando de sua participação como discente, no segundo semestre de 2016, na disciplina “Tópicos especiais em história da filosofia: Elementos do debate entre feminismo e psicanálise” do curso de Filosofia da UFLA. M. R. Kehl, em Deslocamentos do feminino, desenvolve uma reflexão que articula os pontos cegos de Freud a respeito da mulher ao lugar que ela possuiria em seu próprio desejo. Na apresentação do livro, indica o problema com as seguintes palavras: “Sabemos, pelo próprio Freud, que o mistério que paira sobre o objeto do desejo não reside no objeto; ele é efeito da operação psíquica que produz o fetiche, a partir da denegação que se opera do lado desejante. Assim, cada vez que um psicanalista, depois de Freud, sustentar que existe um ponto impossível de se desvendar sobre o querer das mulheres, devemos lhe responder, como Sócrates: 'indaga-te a ti mesmo'... Pois só o que um homem recusa saber sobre o seu desejo é capaz de produzir o mistério sobre o objeto ao qual ele se dirige, o desejo de uma mulher” (2008, p. 14).
[7] Que algo se torne inteligível, não significa, obviamente, que se torne aceitável.
[8] Veja-se, por exemplo a nota acrescentada em 1915 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud, 1905/2016, p. 139.
[9] A masculinidade, do ponto de vista da psicanálise freudiana, nunca é dada como algo certo. Um dos principais conflitos do indivíduo do sexo masculino é entendido aí exatamente como a luta para afirmá-la. Mas isso só é assim porque o feminino é tomado como aquilo que se repudia e de que se tem pavor. Evidentemente, tal estado de coisas envolve um exercício de poder. Se a sexualidade masculina não é, apesar de tudo, caracterizada no Ocidente como enigma, isso se deve, como diria Beauvoir (1949/2016), ao fato de o homem ocupar o lugar do mesmo, com o que a mulher se constitui como segundo sexo. Esse problema é abordado por Birman (2001), que identifica em Freud, a partir de Laqueur (1992/2013), a preservação do modelo do sexo único no qual prevalece a equivalência entre, de um lado, masculino e perfeição e, de outro, feminino e imperfeição. Em Ambra (2015) encontramos uma pesquisa sobre a masculinidade do ponto de vista psicanalítico em que se assume que ela também seria um “continente negro” (expressão usada por Freud para se referir à feminilidade) apesar de ocupar o lugar da dominação. Para um estudo sobre o modo pelo qual uma crise do patriarcado (que implica a condução da masculinidade para um lugar de fragilidade) fez parte do contexto a partir do qual Freud gestou suas ideias, ver Parente, 2017.
[10] A meu ver, apesar de muitas vezes alegar o contrário, Lacan também não se desvencilhou dessa referência anatômica. Argumento isso em Silveira, 2017.

Notas de autor

a Doutora em Filosofia (UFSCar)


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por