Dossiê

Recepción: 30 Noviembre 2020
Aprobación: 26 Febrero 2021
DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.058.DS09
Resumo: Escrito em 1963, três anos depois do seminário sobre A ética da psicanálise, o texto de Jaques Lacan, Kant com Sade, possibilita férteis discussões a respeito da prática analítica. Quais os limites desta prática? Qual é a razão que a sustenta? A prática analítica é um saber, uma ética ou uma terapêutica? Quais os pressupostos que orientam a sua ação? É evidente que não dispomos de condições necessárias e suficientes para respondermos a tais perguntas no limite de um artigo, tampouco temos a pretensão de fazê-lo. Entretanto, as tomaremos como bússola em busca de pistas sobre a prática analítica lacaniana e o solo em que repousa até a década de 1960. A partir do texto Kant com Sade e do Seminário VII, A ética da psicanálise, ambos escritos por Lacan, buscaremos as semelhanças e diferenças irreconciliáveis entre a lei moral kantiana, a vontade de gozo sadeana e a ética psicanalítica, apontando que é a partir das consequências práticas, efetuadas pelo Marquês de Sade, da aplicação de uma razão pura, tal qual proposta por Kant, que Lacan buscará um novo horizonte para a prática analítica não mais baseada no desejo puro. Nesse sentido, tanto o filósofo alemão Immanuel Kant quanto o escritor francês Marquês de Sade, contemporâneos dos ares da modernidade, expõem um princípio universal pelo qual a ação é valorada. Princípio cuja execução evidencia sua dimensão ética, política e, com Lacan, clínica. Nessa pista, faremos uma discussão a propósito da perversão e da melancolia como limites à prática analítica.
Palavras-chave: Perversão, Lei, Desejo, Ética, Melancolia.
Abstract: Written in 1963, three years after the seminar on The ethics of psychoanalysis, the text by Jaques Lacan, Kant with Sade, enables fruitful discussions about analytical practice. What are the limits of this practice? What is the reason that supports it? Is analytical practice knowledge, ethics or therapy? What are the assumptions that guide its activity? It is evident that we do not have the necessary and sufficient conditions to respond such questions within the limits of an article, nor do we intend to do so. However, we will take them to search for clues about Lacanian analytical practice and the area on which it rests until the 1960s. From the text Kant with Sade and Seminar VII, The ethics of psychoanalysis, both written by Lacan, we will seek the irreconcilable similarities and differences between the Kantian moral law, the Sadean desire for jouissance and the psychoanalytic ethics, pointing out that it is from the practical consequences, made by the Marquis de Sade, of the application of a pure reason, as proposed by Kant, that Lacan will seek a new horizon for analytical practice no longer based on pure desire. In this sense, both the German philosopher Immanuel Kant and the French writer Marquis de Sade, contemporaries of modernity, expose a universal principle by which action is valued. Principle whose execution shows its ethical, political and, with Lacan, clinical dimension. Following this reasoning, we will discuss on perversion and melancholy as limits to analytical practice.
Keywords: Perversion, Law, Desire, Ethic, Melancholy.
I. A razão kantiana
Ao contrário do que sugere uma visão ingênua e simplista, de senso comum, a respeito de um modelo filosófico que tenha por missão pensar os fundamentos da razão ancorados no imperativo do dever e da moral, a Crítica da Razão Prática, de Immanuel Kant (2020/1788, p. 16), parte de um problema fundamental que margeia toda a filosofia do Ocidente, qual seja, a liberdade, a qual constitui, segundo o filósofo, “a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura”, de modo que, em seu sistema, não há antinomia entre lei moral e liberdade, antes o oposto: a condição de possibilidade de uma lei moral é a própria liberdade: “O conceito de liberdade é o obstáculo para todos os empiristas, mas é a chave dos princípios práticos mais sublimes para os moralistas críticos que, com isso, discernem que têm necessariamente de proceder racionalmente” (KANT, 2020/1788, p. 20-21).
Deste modo, o uso prático da razão pura conduz à perfeita eleição de objetos necessários para o cumprimento da lei moral, determinada por uma vontade livre. Essa vontade livre, entretanto, só é exercida mediante o afastamento de todo objeto que turve seu caminho em direção à lei moral, ao bem supremo. Quais os objetos que serviriam ao perfeito cumprimento da lei? Como podem ser usados pela vontade em sua livre determinação? Quais os objetos que se colocam frente a essa vontade?
Para Kant, a verdadeira ação moral seria determinada por uma vontade livre, a qual escolhe a razão em detrimento do prazer oriundo dos inúmeros objetos da experiência que se oferecem ao sujeito, ele mesmo, diga-se de passagem, eivado de vícios do empírico. À razão especulativa que fundamenta a razão na apreensão da coisa em si, o filósofo opõe a razão prática, cujo “objeto suprassensível da categoria da causalidade, a saber, a liberdade” (KANT, 2020/1788, p. 19), pressupõe e comporta um a priori, quer dizer, uma determinação anterior a qualquer enunciado, a qualquer ação. Eis o motivo de não haver nesse modelo espaço na determinação da razão e, por conseguinte, da ação, para a faculdade de desejar – fundada que seria nos sentimentos de prazer e desprazer –, bem como para os objetos patológicos – forjados no sensível – posto que estes apenas afastariam a razão da livre determinação da vontade. Nessa perspectiva, a lei moral coincide com o princípio da apatia (sem pathos), e a liberdade, como objeto suprassensível, é o reconhecimento da necessidade do cumprimento da lei universal que se afirma como “mera forma” (KANT, 2020/1788, p. 44).
Ora, se todos são livres na determinação de suas vontades, ou seja, capazes de determinar a sua própria causalidade, disso nada mais resulta que o perfeito cumprimento da lei moral, visto que essa lei propõe um princípio universal para a ação descolado de qualquer contingência e que não valha em nenhum caso se não puder valer para todos. Isto é, a razão prática, que busca se ocupar dos determinantes da vontade, encontra como fundamento a própria vontade, cujo a priori é a liberdade, a qual emerge como imperativo categórico de validade universal. Categórico porque a priori, não contingente, ou seja, não submetido aos sabores do empírico; universal porque não subjetivo, visto que não vale apenas para a vontade do sujeito particular, mas seu pressuposto é sustentado na objetividade da ação. A consequência prática extraída desses enunciados está expressa na lei objetiva fundamental da razão pura prática kantiana: “aja de modo que a máxima de sua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 2020/1788, p. 49).
Este agir, como exposto, longe de buscar o bem-estar, das Wohl, de si e do outro ˗ o que o tornaria nulo moralmente, pois determinado patologicamente ˗ tem como horizonte o Bem, das Gute, objeto suprassensível próprio à vontade livre, bem além do utilitarismo e para além do prazer, em oposição à das Wohl, e cuja determinação não é anterior à lei moral, mas a consequência desta lei (KANT, 2020/1788; BAAS, 2001). Assim, é “a lei que faz a ação moralmente boa, e não o fim empírico que serve ou é suposto servir esta ação”, e a vontade boa, por sua vez, “é a vontade que age por dever e, somente por dever” (BAAS, 2001, p. 18). Temos, portanto, dois registros: o da ação moralmente determinada e o da vontade cuja virtude é o cumprimento do dever. Uma ação moral é aquela feita por dever, ou seja, relacionada ao imperativo categórico da vontade livre: síntese do empírico com o a priori, realizada pela razão prática e, mais radicalmente, identificação do sujeito com a lei (BAAS, 2001). Disso resulta que,
Toda a análise de Kant está assim fundamentada sobre a identificação do sujeito com a lei e sobre sua “apatia”, o que Lacan chama de “rejeição radical do patológico”. Rejeitando todo sentimento, o sujeito escapa a toda a lógica do interesse sensível, e pode identificar-se à lei, afirmando-se legislador da qual se submete (BAAS, 2001, p. 20).
Serão, portanto, a identificação à lei, a rejeição do patológico, a vontade conformada à ação e a liberdade como a priori que remetem à própria lei que servirão de lastro para a aproximação efetuada por Lacan (1963) entre Kant e Sade.
II. A razão sadeana
Tornado público, provavelmente, em 1795, portanto 7 anos após a Crítica da Razão Prática, Filosofia na Alcova expõe um modelo de razão que testa os limites de uma racionalidade que determine para si mesma os princípios de sua ação. Partindo de um desprezo absoluto por qualquer virtude, sentimento e consideração pelos múltiplos objetos, a razão sadeana incita e reclama o direito de gozo. Este, incompatível com qualquer arranjo social que não pressuponha a liberdade dos corpos, o uso ilimitado e intenso das formas de gozar, de modo que a liberdade sadeana só encontra um limite na lei sem lei do desejo do outro. A liberdade, em Sade, o é como imperativo de uma lei estranhamente imanente, a única lei válida e universal, a lei da natureza, que não encontra termo, exceto no esgotamento da matéria. E mesmo aí, no esgotamento, no fim da matéria, na destruição e morte, o sargento do sexo, como assim Foucault (2009) definiu Sade, encontra um princípio de renovação e criação. A tagarelice infinita do sexo, num “é preciso dizer tudo”, encontra com o seu fundamento: a infinitude da natureza, sempre mortífera, sempre renovada. A vítima, na obra de Sade, não morre, pois ainda não ouviu tudo, num correlato da impossibilidade de extinção das formas de gozar visto que, enquanto imperativo da natureza, a morte é criação: criação de novas possibilidades, de outros gozos. A destruição, como lei natural, também é princípio de renovação (SADE, [1995]/1795).
O princípio condutor de todas as experiências realizadas na alcova não é a sensibilidade que escorrega pelas formas de prazer, antes a apatia, ou, ainda, a dor, que “tem uma repercussão muito mais ativa sobre nós e orienta muito mais enérgica e rapidamente os espíritos animais na direção que lhes é necessária para atingir a volúpia” (SADE, [1995]/1795, p. 198), de modo que liberdade e despotismo coincidem, posto que o direito ao gozo, inalienável, coloca-se independente dos efeitos que sua prática produz. Tal imperativo fica claro quando Sade se refere às mulheres: “a natureza não provou que temos esse direito dando-nos a força necessária para submetê-las a nossos desejos?” Ainda, prossegue o autor, a mulher, por ter igual liberdade de desfrutar de todos os prazeres a que os homens têm direito, não se subtrai da obrigação de “em função do meu prazer, posso constrangê-la a me satisfazerem caso queiram se recusar” (SADE, [1995]/1795, p. 171). Ao que Eugênia, a vítima, exclama: “você é cruel em prazeres”, para, em seguida, interrogar: “como encara você os objetos que servem a seus prazeres?” (p. 198). Ao que Domancé responde: “Para mim não valem nada, minha cara. Que eles participem ou não dos meus gozos, que experimentem satisfação, apatia ou mesmo dor, são-me absolutamente indiferentes, desde que eu seja feliz”.
Entretanto, ao final da filosofia da Alcova, frente ao objeto que coroaria com a ação os seus ensinamentos, Domancé, o executor da lei sadeana, recusa matar. Segue os seus mandamentos, enunciados no início da sua dissertação, de negar à lei o direito de matar, pois, uma vez privada de paixões, não pode ˗ ou nada justificaria ˗ a ação da lei fundamentada no pathos. A morte é pura necessidade da natureza, dela não pode advir satisfação. Aqui, afirma Lacan (1998/1963), o desejo sadeano encontra a lei, mistura-se com ela, confunde-se, tem-na como princípio: a suprema lei universal, a lei da natureza. A recusa a matar a vítima expõe o caráter negativo do desejo em Sade, define-o pelo que ele não é: o desejo sadeano não é pathos, transcende-o. O desejo rebate-se na norma, transgride-a para reencontrá-la despida na forma de lei.
Domancé recusa. Recusa o gozo vaginal, recusa expor aos parceiros da orgia, e a nós, leitores, seu desejo mais íntimo, encobre-o com o véu do silêncio e da ausência. Domancé recusa matar a mãe, aquela que, num rompante apaixonado, dele e de seus parceiros, sobretudo a filha, exporia a falha do desejo em submeter-se à lei do gozo. Recusa matar, mas expõe à morte. Deixa à natureza, única lei aceitável, que se encarregue do desfecho. Deixa morrer. Soberania da vontade de gozo, tirania da Lei.
III. Sade, mais honesto que Kant — ou, Lacan e a divisão do sujeito
Lacan encontra em Sade a verdade kantiana, visto que ambos se guiam pelo imperativo de uma lei transcendente, seja a Lei da razão, em Kant, ou a Lei do gozo, em Sade. Imperativo moral e/ou de prazer que dispensa os objetos sensíveis enquanto objetos de apreensão. A pura ideia, a pura razão, o puro gozo dispõem os objetos da materialidade, mas enquanto função a ser atravessada para o bem supremo, alcançado somente enquanto recusa a tornar os meios, fins. Recusa como fio que alinhava as experiências de Kant e de Sade.
Kant recusa os objetos patológicos que turvam a consciência e a afasta da afirmação da ação moral cujo objetivo não é outro que ela mesma. Solipsismo da ação que compõe o núcleo da atitude ética kantiana. Sade recusa a paixão cuja função não é outra que afastar o corpo do seu “mais-gozar” (LACAN, 2008/1968-1969), de sua potência natural de extrair prazer (gozo) e cujo domínio, domínio das paixões, expõe a fraqueza da alma, as fraquezas do espírito. Solipsismo do corpo que compõe a estratégia cruel sadeana.
É nesse sentido que entendemos a afirmação de Lacan (1998/1963) segundo a qual Sade é mais verdadeiro que Kant, pois expõe a divisão do sujeito, escamoteada pela voz da consciência kantiana, ao exigir o direito a todos os corpos não para o prazer que advém do patológico, mas para o cumprimento da pura forma da lei, mesmo que desse cumprimento só se encontre a apatia, a dor. Em objeção à sensibilidade, a apatia, ou, mais precisamente, a dor, diz-nos Sade, a qual “tem uma repercussão muito mais ativa sobre nós e orienta muito mais enérgica e rapidamente os espíritos animais na direção que lhes é necessária para atingir a volúpia” (SADE, [1995]/1795, p. 198). Ou seja, Sade expõe um princípio para além do prazer, que deve guiar a conduta, mesmo que dessa obrigação sobrevenha dor, questão que evidencia a condição irreconciliável do sujeito entre prazer, obrigação e mal-estar. Kant também assume o desprazer como preço para se alcançar das Gute, o bem supremo. Entretanto, essa assunção não passa por conflito. Nada no sujeito kantiano aponta para o descumprimento da Lei, tem-se uma totalidade na vontade livre, uma vez que o mesmo sujeito que formula a lei moral a executa, pois livre, e se submete a lei, já que dotado de uma vontade boa (BAAS, 2001): autor-executor-sujeito da lei moral.
Em Sade, contudo, a divisão do sujeito é desnudada pelas personagens: “ainda não, Domancé. Espere. Essa parte do corpo exerce sobre você um tal império que você perderia facilmente a cabeça e não saberia mais refletir a sangue frio. Antes disso precisamos de suas lições. Vamos a elas” (SADE, [1995]/1975 p. 47), prescreve Madame de Saint-Age a Domancé, o executor da lei, antes de ele agarrar a vítima Eugênia. Temos, portanto, na Filosofia da Alcova, três personagens: Madame de Saint-Age, Domancé, Eugênia; “o que manifesta a conjunção dessas iniciais é o estilhaçamento do sujeito “Sade” nessa espécie de partição trinitária: SA-D-E” (BAAS, 2001, p. 25).
Como, então, esse sujeito partido persegue o gozo através do desejo? Ou, mais precisamente, como o desejo pode sustentar uma busca de gozo que o joga para fora do limite do prazer e o submete à condição de mero instrumento da lei? “O que é que, no sujeito, torna possível a perda que precede o desejo” (BAAS, 2001, p. 32) e a fantasia que tenciona reencontrar o que se perdeu pelas vias do gozo? O que é o sujeito?
IV. Sujeito e desejo transcendente
Para Lacan, a construção do sujeito é marcada pela entrada na linguagem, a qual opera um corte, uma fratura e divisão, visto que, incapaz de simbolizar tudo, deixa um resto inapreensível. Esse resto é o próprio Real, “a expulsão para fora do sujeito” (LACAN, 1998/1954, p. 390), a Coisa que não se deixa simbolizar, que não se submete à inscrição representacional no sistema de signos; o inconsciente traumático, como a marca da entrada na cultura (LÉVI-STRAUSS, 2009 e que, na Verwerfung retorna sob a “forma de construções imaginárias” (SAFATLE, 2006, p. 56). O que faz Sade que não buscar a volta ao estado de natureza, onde esta é a única lei, único guia? Estado anterior sem resíduo, estado de completude onde a Coisa (em si e per si), esse inominável, é apreendida e consumida num movimento de destruição e (re)criação incessante. Gozo supremo, gozo puro, morte, reinvenção. “Não é, portanto, para o seu próprio prazer sensível que age o libertino, mas para o gozo da natureza” (BAAS, 2001, p. 21); sujeição total à lei.
Lacan encaminha a problemática do desejo de um modo diferente daquele proposto por Freud (1900), o qual vê na experiência de satisfação a origem e o protótipo do desejo, que o amarra numa experiência empírica saturada de objetos ˗ perdidos. O psicanalista francês, por sua vez, instaura uma transcendentalidade do desejo que interroga não apenas o que se perde e o que se busca pelo desejo, mas a própria condição de possibilidade do desejo, seu a priori. Esta operação “implica abandonar a consistência do desejo para reconhecer, antes de todo conteúdo empírico, a pura forma da Lei” (BAAS, 2001, p. 34). Ou seja, ao desejo falta consistência porque ele não se aplica e não se dirige a objetos determinados e discerníveis que o amarrariam num teatro representacional edípico; antes, o desejo, ou mais precisamente, a faculdade de desejar, remete à Lei, articulada pela Coisa que é a própria falta, o “incondicionado absoluto” (BAAS, 2001, p. 34), que não pode ser disposta nas séries de equivalências metonímicas – como vimos com Sade – logo inapreensível, inalcançável, inacessível. Esta Lei, portanto, se referiria à lei do gozo? Guardemos, por hora, essa questão.
Longe de negar a divisão subjetiva, como o pretendia Kant, e aproximando-se de Sade, que explora o máximo da divisão repartindo o sujeito em múltiplas personagens, o que está no centro do discurso lacaniano é a cisão do sujeito operada pela Lei. Diz-nos Lacan (1986/1960, p. 380): “é na medida em que o sujeito se situa e se constitui em relação ao significante, que nele se produz essa ruptura, essa divisão, essa ambivalência em cujo nível se situa a tensão do desejo”. Assim, não há realidade pré-discursiva, ou seja, “não há lugar anterior à lei que esteja disponível e possa ser recuperado” (BUTLER, 2017, p. 103), o que há é um resto que se subtrai à simbolização, entretanto como efeito da própria Lei. Lei simbólica, “proibitiva e germinativa ao mesmo tempo” (BUTLER, 2017, p. 104).
Não à toa que Baas (2001) chama a atenção para duas grafias da lei em Lacan. Uma lei minúscula, como correlato do supereu; outra Lei maiúscula, como o inapreensível que se persegue. “O cadafalso não é a Lei [...], a Lei é outra coisa, como se sabe desde Antígona” (LACAN, 1998/1963, p. 793). Há, portanto, duas leis que se esboçam e esquadrinham um campo de possibilidade para o desejo: uma, imanente; outra, transcendente, nos arriscamos a dizer; lei imanente enquanto forjada na feitura dos corpos, corrompida e corrompível, pois saturada de pathos e de parcos poderes mitológicos[3], que encontra, sempre, o sensível da satisfação originária repousada no corpo materno, como se esboça no desejo freudiano; Lei transcendente enquanto não contingente, que não se altera segundo as disposições dos objetos, pois anterior a estes, sem dialética nem reciprocidade e se exerce como imperativo a priori que se afirma e se completa no momento do ato.
Este ato é a própria perda. A origem, causa e fundamento do sujeito que expõe sua insuficiência e sua fratura. “A Lei moral não é nada além da fenda do sujeito operada por qualquer intervenção do significante: nomeadamente, do sujeito da enunciação para o sujeito do enunciado” (LACAN, 1998/1963, p. 781). No princípio era o ato, e o ato se fez sujeito e habitou entre Outros. Assim, a perda enquanto origem não aponta para objetos, mas para uma condição. Esta condição, por sua vez, é o próprio Real, “o real, enquanto que cortando da simbolização primordial, já está lá” (SAFATLE, 2006, p. 55; LACAN, 1998/1951). Perde-se, portanto, ao ingressar na linguagem, uma parcela do real, do “não-mundo, o in-mundo” (BAAS, 2001, p. 33), anterior a tudo. Sade, em sua fantasia, tenciona restaurar esse momento zero, sem origem, da natureza. Ao que Lacan (1998/1963, p. 790) pontua: “não ter nascido: sua maldição”.
V. Perversão, escrita e fantasia
Para Serge André (1995, p. 25), “no nível da escrita, é a mesma lógica totalitária que guia Sade em sua relação com a letra. ‘A filosofia deve dizer tudo’”. Entretanto, a própria linguagem comporta um limite, algo inapreensível, inexprimível. A fantasia sadeana, embora almeje anular qualquer não-dito, ou seja, negar a ausência na linguagem, numa negação da negação, fracassa. Na alcova tudo é dito, tudo é feito. Não há distância entre ordem e ação. Do gabinete secreto, entretanto, temos, tão somente, o grito surdo, o eco da vítima que ressoa como impossibilidade de escrita. Onomatopeia sem metáfora, onde a palavra é a Coisa em sua impossibilidade de apreensão, de deslocamento, de sentido. “É o limite da transgressão sadiana” (ANDRÉ, 1995, p. 26). Embora fracasse, o imperativo sadeano que porta a fantasia do autor Sade, de “tudo dizer”, carrega a pretensão de, uma vez alcançada tal fantasia, produzir “um discurso que prescindiria perfeitamente do sujeito” (ANDRÉ, 1995, p. 27).
Nessa fantasia colocada em funcionamento pelo sujeito Sade, a metonímia cede espaço à silepse, em que encontramos como fórmula os objetos, somos a lei. Oração em que o sujeito está suprimido, não obstante de fácil reconhecimento. Ausência cuja presença denuncia “a intromissão do sujeito da enunciação da lei” (ZIZEK, 1992, p. 67) como efeito da divisão subjetiva, barrado por Kant[4], e a busca totalizante e totalitária de tudo planificar, homogeneizar e submeter aos desígnios da Lei. Dessubjetivação radical na qual se perde a dimensão dos limites da linguagem, reduzida, ela também, a instrumento, pois, insistentemente, ao dizer tudo, nada se diz, ninguém diz. Repetição infinda, fetiche de significantes cuja função é produzir um significado único. Segundo Serge André (1995, p. 26), “esse projeto de dizer tudo comporta, em última instância, uma verdadeira teoria da língua, na qual a língua seria desprovida de suplemento, e o léxico, desprovido de sujeito”. A frase, portanto, como correlato das posturas por Sade minuciosamente descritas.
Se, como afirma Peixoto Júnior (2004, p. 117), “estar na linguagem [...] significa está infinitamente deslocado com relação a um significado original”, o que permite ao desejo o deslocamento metonimicamente na cadeia de significantes, ao “falar tudo” Sade expõe um desejo que se esgota, transformado em demanda, a meio passo além dos limites impostos pela linguagem, entre a memória do gozo anterior à entrada na linguagem e a fantasia de sua recuperação.
A fantasia amarrada ao cenário, a ordem feita ação e o homem reduzido a sua função de esgotar, em palavras, a sua fantasia. Para André (1995, p. 43), “existe uma maneira perversa de enunciar a fantasia. [...] a perversão, em suma, é uma questão de estilo. Com isso quero dizer que é em sua própria fala que o perverso começa a atuar”. Na selva em que todos se perdem, Sade explora, cartografa, cataloga e compõe esquemas.
VI. Lei do desejo, desejo puro, pulsão de morte
Retornemos à questão lançada no item IV: a que se refere essa Lei transcendente que visa a “libertação” do desejo dos objetos patológicos a fim de alcançar um desejo puro, purificado, longe das contingências do empírico, referido tão somente à lei ou, mais precisamente, à “faculdade de desejar” (BAAS, 2001, p. 14), que não é outra coisa que estabelecer um a priori do desejo? Essa lei se refere, portanto, à lei do desejo ou à lei do gozo? Se essa dúvida é possível, ao levarmos em consideração a ressalva freudiana de que o imperativo categórico é o herdeiro direto do supereu (FREUD, 1996/1923), portanto da lei, grafada com minúscula a partir das pistas deixadas por Lacan, é apropriado pensarmos na pulsão de morte como herdeira direta da Lei, visto que busca se apropriar da Coisa, voltar ao inorgânico atormentado pela vida, restaurar um estado a priori perdido quando do ingresso na linguagem? Neste sentido, Sade nos é exato: “escutemos a voz da natureza, que tem sempre razão” (SADE, [1995]/1795, p. 57). A voz da natureza, significante puro, o imperativo da Lei enquanto desejo puro.
Safatle (2006) nos convida a pensar a pulsão, em Lacan, no singular, pois “toda a pulsão é virtualmente pulsão de morte” (Lacan como citado por SAFATLE, 2006, p. 275) como aquilo que ocupa o espaço teórico do desejo puro, apontando que este desejo está mais próximo à Trieb freudiana que ao Wunsch. Ainda, nos alerta Safatle (2006, p. 88), a radicalidade do conceito de desejo puro pode, sem muito esforço, nos conduzir a uma psicanálise que reduz a falta ao puro nada, “ou ainda, a transformar esse desejo puro em puro desejo de morte e de autodestruição”. Ora, a partir do exposto, parece-nos que Sade oferece a verdade de (ou a) Lacan no sentido de que pensar o desejo como transcendente e descolado dos objetos empíricos e aportar a ética da psicanálise no deslocamento do desejo em relação a tais objetos, que, supostamente, alienariam o desejo, no limite, conduziria a psicanálise ao elogio da perversão e/ou do aniquilamento.
VII. Sade mais honesto que Lacan?
Ao traçar uma linha entre Kant e Sade, ou, de outro modo, ao fazer uma crítica a Kant a partir da leitura de Sade, Lacan[5] teria reconhecido os limites da própria prática analítica tal qual se dedicava até então. Em que consistia essa prática?
Lacan pensava a ética da psicanálise assentada num espaço intersubjetivo em que a estrutura subjetiva teria como fundamento um desejo puro, desejo sem objeto, e que pensar essa relação/espaço passava, indissoluvelmente, pela relação entre o desejo e a Lei simbólica (SAFATLE, 2006). Assim, pensar Kant com Sade representou (re)pensar a atividade analítica, ao menos às bases que a sustentava até então.
Com Sade Lacan (1998/1963) percebeu que o acesso à coisa é recusado para ser reencontrado na escala invertida da Lei do desejo, ou seja, o gozo não vem mais da apreensão da Coisa, mas do cumprimento da Lei. Longe de se opor ao desejo, essa Lei oferece uma determinação objetiva ao desejo puro, um imperativo: goze desse jeito. Assim, do cumprimento da Lei advém o gozo e não mais da coisa em si. Lei simbólica a serviço do desejo, velado pela fantasia, que o sustenta.
O que se tem é um circuito no qual o desejo busca atingir a Coisa, mediante gozo, que deve ser barrado para ser reencontrado no retorno e reconhecimento da pura forma da Lei, que, por sua vez, impulsiona o desejo. Nesse círculo, os objetos empíricos, patológicos estão excluídos. Desta feita que uma Lei restritiva está a serviço do desejo puro: oferecendo-lhe determinações objetivas que, uma vez alcançadas, produzem o gozo. Gozo da Lei, pela Lei, para a Lei. Não seria essa mesma determinação que serviria de substrato à ética analítica proposta por Lacan (1986/1959-1960) no seminário da ética? Não esqueçamos que Lacan tece um elogio a Kant por ter o filósofo proposto uma moral purificada de todo o interesse patológico ligado ao sensível: “para que se trate do campo que pode ser valorizado como puramente ético, é preciso que não estejamos, de modo algum, interessados em nada” (p. 378, grifo nosso).
Frisemos, por hora, a locução adverbial “de modo algum”, pois ela nos coloca na direção de um imperativo categórico que traspõe o dever moral kantiano em uma espécie de dever moral do desejo, no qual a razão prática é sustentada por um “tu deves incondicional” (LACAN, 1986/1959-1960, p. 378), com a diferença de que a vontade livre kantiana, enquanto medida da ação, transcreve-se, na escrita lacaniana, em desejo. Embora Lacan reconheça que o imperativo do dever, cujo princípio, norte e horizonte é a vontade livre, pode com facilidade ser substituído pela fantasia de gozo, como o é em Sade, o psicanalista francês, nesse momento teórico, não recua frente o imperativo do desejo, mesmo que da satisfação do desejo se pague com “uma libra de carne”, um “mal-estar”, “que é o gozo” (LACAN, 1986/1959-1960, p. 386). Portanto, o dever moral do desejo, se assim pudermos enunciá-lo, comporta tão somente como culpa “ter cedido de seu desejo” (p. 385). Fazer, agir não em nome de um bem alheio ao sujeito, mas em nome do desejo em sua dimensão trágica. Articula-se assim a ação com o desejo que a possibilita para daí extrair e valorar a atitude ética.
O paradoxo desse esquema, que se encaixa perfeitamente àquele do herói sadeano, estará, quando transposto para a experiência analítica, na própria Lei: como essa Lei de aspiração universal, fálica e paterna, a qual oferece um espaço de reconhecimento intersubjetivo, pois mostra como o sujeito só advém enquanto tal e, portanto, é reconhecido, a partir do momento em que o desejo passa pelo universal da castração ˗ “só existe progresso para o sujeito através da integração a que ele chega de sua posição no universal” (LACAN, 1998/1951, p. 225) ˗, como essa Lei pode, ela mesma, carregar o perigo de exclusão dos objetos patológicos que compõe o espaço intersubjetivo?
Interrogando a estrutura da divisão sexual operada pela Lei lacaniana, Judith Butler (2017, p. 104-105) põe em questão a credibilidade de um sistema Simbólico que “exige conformidade a uma lei que se mostra impossível de cumprir”, como se houvesse uma “romantização ou mesmo uma idealização religiosa do fracasso, a uma humildade e limitação diante da Lei, o que torna a narrativa de Lacan ideologicamente suspeita”. Suspeita, pois parece requerer dos sujeitos apenas obediência, subserviência e sofrimento frente à onipotência da Lei. Ainda, prossegue a autora:
A construção da lei que garante o fracasso é sintomática de uma moral do escravo, que renega os próprios poderes generativos que usa para construir a “Lei” como impossibilidade permanente. Que poder cria essa ficção que reflete a sujeição inevitável? Qual o interesse cultural de conservar o poder nesse círculo de abnegação, e como resgatar esse poder das armadilhas de uma lei proibitiva que é esse poder em sua dissimulação e autossujeição? (BUTLER, 2017, p. 106, grifo da autora).
Assim, o paradoxo da Lei simbólica é exposto pelo perverso, que, para Lacan, foi a obra de Sade. O perigo ao desejo, o inimigo do desejo que o aliena não são os objetos patológicos, como o queria Kant em sua busca pela determinação da ação a partir da vontade livre, ou como o queria Lacan nos rastros de um desejo puro. Sade, assim o demonstrou. O inimigo do desejo é o gozo, que o transforma em demanda, depois em identificação e, por fim, aliena-o na repetição do mesmo, cujo objetivo é tão somente a repetição trágica do gozo. Tal determinação aparece na perversão como gozo da própria Lei, que também aliena. Nesse sentido, enunciaria facilmente o perverso: “eu posso não fazer meu desejo passar pela castração e, mesmo assim, obedecer rigorosamente à Lei”. Como isso é possível? Segundo os seus a prioris.
Se, em Kant (2020), a causalidade pela liberdade pressupõe a eliminação do determinismo de qualquer objeto empírico, em que o objeto próprio à vontade livre é das Gute, ou seja, um objeto suprassensível, um bem para além do utilitarismo e para além do prazer, em Lacan o desejo puro, visado pela Lei, também prescinde dos objetos patológicos em nome de um objeto suprassensível, qual seja, das Ding, de modo que a vontade livre kantiana e o desejo puro lacaniano coincidem. “a lei moral não é outra coisa que o desejo em estado puro” (Lacan como citado por SAFATLE, 2006, p. 154). Ou seja, se só é possível cumprir a Lei livre das determinações dos objetos empíricos ˗ cuja contingência expõe o ser falante ao erro, ao fracasso do cumprimento da lei ˗ a necessidade de cumprir tal lei expõe o sujeito à fratura da sua própria condição de possibilidade, qual seja, o espaço intersubjetivo em que o sujeito se reconhece enquanto tal ao passar pelo crivo da castração. Por conseguinte, cumprir a Lei só é possível como virtualidade, ou seja, como meta nunca alcançável.
Desta constatação decorre a crítica de Judith Butler (2017) a Lacan, para quem parece haver uma romantização da impotência do ser frente à Lei, amarrando o sujeito numa sujeição inevitável. O sujeito só se torna sujeito sujeitando-se à Lei.
Nesse ponto, a perversão aparece como limite para o circuito desenhado por Lacan: para o perfeito cumprimento da Lei, a estrutura perversa rechaça, destrói, elimina sem pudor qualquer objeto que turve seu caminho. Em nome da Lei, restringe-se o mundo. A Lei simbólica, que, a princípio, serviria para estruturar o sujeito a partir da castração e do falo, submete-o e o reduz a mero instrumento para o seu cumprimento. Sujeição total à Lei.
O sujeito perverso enuncia: “eu posso não fazer meu desejo passar pela castração, logo, pela Lei simbólica, e, mesmo assim, cumpri-la rigorosamente”. Perguntamos acima como isso é possível, agora temos pistas: através de um desejo que recusa a castração e busca alcançar das Ding, o objeto transcendental adequado ao desejo puro. Porque o reconhecimento da Lei, enquanto “inscrição da ausência da Coisa”, exporia ao perverso a sua insuficiência. Entretanto, no lugar de reconhecer a Lei e os limites da castração, o sujeito perverso toma a Lei como a Coisa, de modo que a ausência é negada. Disso decorre que “a conformação perfeita da vontade à Lei promete um gozo para além do prazer” (SAFATLE, 2006, p. 155). Gozo do cumprimento da Lei.
Assim, essa Lei que buscava criar um espaço intersubjetivo a partir do reconhecimento da castração, num esforça para ser o sujeito, ainda, insuficiente (BIRMAN, 2017), torna-se totalizante na escala invertida do que se propõe. Não há um nós que se articula e se recompõe a partir da ausência, da falta e do vazio, mas uma dissolução do sujeito, marcando a intransitividade da lei, uma lei sem rosto (SAFATLE, 2006). Esse pode ser o caminho traçado por uma vontade livre, uma vontade de gozo ou um desejo puro que dispensa os objetos sensíveis em nome do primado da Lei. Caminho percorrido por Lacan nos rastros de Kant.
Nesse sentido, podemos falar em um fetiche da Lei? Ao tomar a Lei como objetivo último, o perverso identifica a Lei, enquanto modo de ação, a Coisa, como objeto suprassensível, e o desejo enquanto vontade de gozo: Lei, Coisa, Desejo. Assim que é possível ao perverso identificar-se com a Lei sem reconhecê-la, dito de outro modo, goza da lei segundo seu rígido a priori, qual seja, abandonar os objetos patológicos para o puro cumprimento da Lei, entretanto não fazendo deslizar os significantes metaforicamente. A consequência desse processo está na negação: negação da metáfora, enquanto mecanismo privilegiado para a simbolização, pois expressa e expõe a incapacidade dos significantes de darem conta de um significado único, totalizante e totalitário, se alcançado. Antes, o perverso acopla-se aos significantes silepticamente, quer dizer, os objetos, somos a lei, como afirmado anteriormente. É a maneira kantiana, sadeana e lacaniana de buscar o primado da lei sobre os objetos empíricos na determinação transcendental da vontade. Estilo perverso?
Nesse esquema, teríamos, portanto, uma tríade composta por Kant, com sua busca implacável da vontade livre através do imperativo categórico; Sade e a vontade de gozo; Lacan com a Lei do desejo puro, todos buscando uma transcendentalidade que, no limite, conduziria ao aniquilamento de toda materialidade em prol de um além - além da vontade, além do gozo, além do desejo de objeto. Tanto André (1995) quanto Baas (2001) e Safatle (2006) propõem que, fazendo uso de Kant e de Sade, Lacan reconhece o limite da experiência analítica baseada no desejo puro, cujo alcance seria a instrumentalidade do desejo e a instauração de uma lógica perversa na experiência analítica. Safatle (2006), entretanto, é mais enfático ao afirmar que foi a partir do texto Kant com Sade que Lacan teria esboçado um novo percurso para sua teoria em que a construção da clínica psicanalítica seria inseparável, ou mesmo o efeito, de uma ética pautada no desejo impuro e no reconhecimento.
VIII. A profaníssima trindade: Lacan com Kant com Sade, ou agistes para além do seu desejo?
A saída de Lacan para esse impasse, que poderia conduzir à psicanálise a uma lógica perversa, posto que nega aos objetos empíricos o primado na determinação da ação em detrimento de uma Lei transcendente do desejo puro, de acordo com Safatle (2006), é submeter o desejo puro ao desejo de reconhecimento. Logo, buscar-se-ia na experiência analítica modos de simbolização da falta-a-ser mediante o reconhecimento da “irredutibilidade ontológica da negatividade da subjetividade aos processos de objetificação” (SAFATLE, 2006, p. 89). Ou seja, inscrever a negação, a falta que é origem, sem negá-la, “instituir a falta-a-ser no interior do objeto”. Ora, não seria esse o mecanismo privilegiado na melancolia? Voltaremos a esse ponto no próximo item.
Altera-se, por conseguinte, a própria ética da psicanálise lacaniana. A máxima “não ceder do seu desejo” (LACAN, 1986/1959-1960, p. 384), ou “agistes em conformidade com o seu desejo?” (p. 372) passa a “agistes para além do seu desejo” (SAFATLE, 2006)? A transmutação da máxima nos parece necessária visto que agir conforme a lei do desejo carrega o perigo de transformar o sujeito em mero objeto da lei. Uma ética sempre aquém da possibilidade, determinada e identificada com a ação. Agir para além do desejo é sair da condição de objeto da lei para sujeito da Lei, em que o princípio de identidade entre a ação e a lei cairá por terra para ceder espaço à diferença irreconciliável entre elas, em outras palavras, é necessário à prática analítica atravessar a lei fálica, paterna. Pois, o indeterminado do ato é o que expõe a fratura insuturável do sujeito. “Agir sem garantias” (SAFATLE, 2006, p. 169). Trair a lei; “para não perverter a lei é necessário atravessá-la”. Como?
IX. Melancolia, ou trazer para a linguagem o impossível do gozo
A partir do exposto, sustentamos que a melancolia é algo que possibilita a apreensão do desejo puro na medida em que nos traz o reconhecimento da incompletude e do vazio. Não há objeto possível que tampone o desejo, pois este não se refere a objetos, mas à busca, através de objetos velados pela fantasia, da parte de si mesmo perdida ao ser marcado pela linguagem (GUYOMARD, 1996). Eis a verdade do desejo do melancólico, que não se deixa enganar pelo objeto e encontra “a castração, a aniquilação e a morte”. Por isso que Lacan (1998/1963) faz uma distinção entre as fantasias do autor Sade, plasmadas em seus escritos, e as do homem Sade, que “não se deixa enganar pelo seu desejo”. Seria o autor Sade um melancólico?
A melancolia, pois, como saída para o engodo da fantasia. Segundo André (1995, p. 251), o que se perde na melancolia não é propriamente o objeto, antes, perde-se o que esse objeto ocultava: o objeto da pulsão. “Despido de seu brilho imaginário e reduzido ao objeto real da pulsão”, cru frente ao sujeito, provoca horror. Há, na melancolia, uma distância entre o objeto amoroso feito a partir de uma escolha narcísica, aquele que supostamente se perde, e o objeto de identificação, aquele cujo desvelamento expõe sua impropriedade e, portanto, só pode ser expulso, “rejeitado ou sacrificado”. Dito de outro modo, a perda de um objeto ideal (narcísico) expõe o desvelamento do objeto real da pulsão e a consequente identificação com esse objeto. Disso decorrem os reclames infindos do melancólico, pois se sabe identificado com um resto que, como sobra, só pode ser lamentado. Ao contrário do perverso, o melancólico não persegue o objeto ., não o tem como fim e, ao encontrá-lo, rejeita-o virulentamente. Ao se identificar com o objeto . o melancólico não estaria expondo a verdade do seu desejo? Não foi isso que o homem Sade fez em vida?
A relação do melancólico com o desejo singulariza-se, assim, por uma denúncia virulenta da aparência, do véu idealizado que circunda o objeto visado pelo desejo, deixando subsistir apenas o objeto causa do desejo, em seu despudor essencial. A mania e a melancolia, em suma, objetam à comédia humana, à regra que pretende que o desejo seja conduzido por um engodo (ANDRÉ, 1995, p. 254).
Se Lacan (1992/1969-1970) propõe como caminho possível para o tratamento histericizar o discurso, seria possível pensarmos em um modelo de análise que pudesse melancolizar a estrutura perversa? Melancolizar, trazer para a linguagem o impossível do gozo, o impossível de ser apreendido enquanto real. Inscrever metaforicamente esse algo que se recusa à identificação ao transmutar para o campo do discurso aquilo que não se vivencia. Não se deixar enganar lá onde todos se enganam pelas sete camadas de véu, mas entrar no labirinto, ou na selva da fantasia, já agarrado aos fios de Ariadne.
Entretanto, nada é tão simples em matéria de perversão, melancolia e análise.
Se, na perversão, deve-se interrogar a relação estabelecida entre o sujeito e a Lei simbólica, na melancolia a relação deve ser entendida a partir da “constituição do desejo inconsciente e de seu objeto” (ANDRÉ, 1995, p. 25), tanto o objeto do desejo quanto o objeto causa do desejo (causa de gozo). Assim, o que se abala na melancolia é a relação com o objeto que encobre o objeto ., qual seja, o falo, o qual aparece desnudo em toda a sua inconveniência. Para Serge André (1995), o mote do sintoma melancólico não está no esvaecimento do ideal do eu, antes na destituição do valor fálico desse esvaecimento. Ou seja, o sujeito melancólico é aquele que sabe que sabe. E esse saber provoca-lhe horror.
O homem Sade sabe da impossibilidade de apreender o objeto causa de desejo, e, por tê-lo encontrado mediante o gozo da pura forma da lei, sente-se digno de toda a sorte de maldizeres, ao mesmo tempo que sabe que nenhum objeto é capaz de encobrir, esconder e velar este objeto que é causa. Em sua fantasia, materializada nos escritos, nada, nenhum objeto é digno de ser elevado à categoria de objeto de desejo, ao mesmo tempo em que, através deles, busca reencontrar o objeto causa de desejo. Entretanto, mesmo na fantasia, Sade recua. Recua em matar a mãe de Eugénie, assassinato que daria acesso à Coisa. Seu ideal de eu já não tem qualquer valor fálico, ao mesmo tempo em que o acesso ao objeto causa do desejo só lhe provoca horror. O herói da narrativa sadeana, entretanto, recusa a lei fálica, determinada e conduzida pelo supereu, para reencontrá-la na Lei implacável da natureza em seu imperativo de gozo.
A escrita de Sade busca velar sua impotência. O herói sadeano goza de todas as formas, em todas as situações, enquanto o autor Sade está aprisionado[6]. Seria essa escrita uma tentativa de inscrição, de transformar o gozo corrosivo em um sistema metafórico?
No rompimento da relação amorosa e no luto, o outro, bruscamente desvelado, despojado de sua máscara fálica, muda de natureza: presentifica-se, desde então, como objeto a, como objeto perdido. E todo o trabalho de luto que então se impõe ao sujeito consiste em reinscrever esse objeto real no simbólico e no imaginário pela intervenção do falo. Quando este é denunciado como podre ou como falho, como acontece com o melancólico, é compreensível que o rompimento amoroso e o luto sejam impossíveis com o objeto perdido, isto é, com o objeto a como tal, e se sacrifique em seu lugar (ANDRÉ, 1995, p. 257).
X. Perversão, melancolia e desmentido
Se, na perversão, o sujeito é o próprio objeto de fetiche ˗ ao se colocar como algo que pode tamponar a falta do outro e, assim, oferecer-se como objeto a no momento mesmo em que expõe e explora a divisão do Outro como modo de oferecer-lhe a “cura”, a completude, ou a totalidade ˗, “eu sou a sua cura”, dirá o perverso, ou, de outro modo: os objetos, somos a Lei; o melancólico, ao contrário, denuncia a impropriedade desse objeto . ao desejo. Insulta-o a partir de si, sacrifica-se para que ele subsista: Aos objetos, carece a lei.
À vista disso que, na perversão, há o desprezo absoluto pelo objeto de desejo, posto que este porta como índice a falta primordial. O perverso recusa o objeto e, em contrapartida, apega-se à fantasia como modo de dissuadir o desejo de que há um impossível. Na melancolia, por sua vez, o desprezo é pelo próprio eu que se identificou com o objeto ., que é, ele próprio, falta fundamental. O melancólico identifica-se com o próprio vazio e, portanto, não há fantasia possível que burle, ou seja, que suporte o desejo. Embora faça “uma espécie de travessia selvagem da fantasia” (ANDRÉ, 1995, p. 258), a melancolia detém-se frente à lei. Onde o perverso transgride e engana com a fantasia, posicionando-se como o próprio objeto . para o Outro, aquilo que sutura a falta e denega sua presença, o melancólico, identificado com o objeto ., efeito da Lei, extrai pura interdição, torna-se pura ausência.
Para Serge André (1995),
o melancólico, na realidade, recua diante da revelação que lhe é feita e procura opor a ela a mais radical denegação. [...] Que a mãe permaneça intocada e que a coisa permaneça velada pelo pudor, essa é a regra pela qual o desejo se liga à lei, e é essa proibição que o melancólico se esforça por restaurar (p. 258).
Lei maiúscula e minúscula que se imbricam e se confundem. A Lei (L), articulada ao objeto a, perseguida na perversão e rejeitada na melancolia; lei (l) do supereu articulada ao objeto perdido, restaurada na melancolia e rejeitada na perversão. Resumindo, ao se identificar como o objeto a e restituir a dignidade aos objetos de desejo, o melancólico mantém-se atado à pequena lei superegoica[7]. Ao se posicionar como objeto a, o perverso confunde-se com a própria Lei e se apaga frente a sua onipotência.
Conclusão
Quer entendamos o desejo como imanente, cuja gênese é empírica, como o fez Freud (1996/1900), ou como transcendente, como o postula Lacan (1998/1963), o horizonte de possibilidade do desejo estará sempre referido a uma lei: lei superegoica; Lei a priori, respectivamente. Ambas as perspectivas carregam o perigo de uma moral que mortifica o desejo ao limitar as conexões, os agenciamentos com os objetos sensíveis, cuja consequência impõe-se como dificuldade ao desejo em deslizar pela cadeia significante.
A Lei lacaniana, já sabemos, não é a lei freudiana. Nesse sentido, Freud teria sido mais honesto que Lacan ao pontuar, desde o princípio, uma lei que, enquanto correspondente da lei moral, do imperativo categórico kantiano, o supereu teria por função assegurar o gozo trágico da lei? Anacronismos a parte, pois também sabemos que Freud não fala em gozo, mas satisfação do cumprimento da lei, resta-nos pontuar que, se a satisfação da lei, em Freud, é uma satisfação negativa, pois advém de uma restrição, em Lacan o gozo trágico da Lei é o limite de um desejo no campo de sua radical pureza, o qual conduz ao sacrifício, aniquilação e morte.
Uma ética que teria por objetivo recusar a recusa da perversão e da melancolia assentar-se-ia, então, na travessia das leis e na afirmação dos múltiplos e contingentes objetos que compõem o cemitério do eu. “Eu” de fronteiras borradas, nem melancólico nem perverso, antes constituído como falta-a-ser, marcado pelo limite da castração, pela falta primordial do objeto, nunca alcançável, nunca tamponado, e que por isso o lança num movimento incessante de busca, constituição e reconstituição.
É o reconhecimento da falta, do vazio que impulsiona o desejo. É a recusa da falta que precipita o gozo. Nesse sentido, dizer não ao sadismo com o qual nos atormenta o supereu é afirmar a incompletude do sujeito enquanto ser faltante, pois dividido; dizer não ao gozo é afirmar sua impotência enquanto fiador da Lei que busca preencher a falta; por fim, dizer não ao gozo e ao supereu é afirmar a experimentação de si e do mundo, os quais se confundem e se coordenam num balé cujas pegadas desenham a fita de Möbius. Resistir às leis sem recusá-las: é preciso saber dizer não. Imperativo que insiste desde Mefistófeles.
Referências
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Notas
Notas de autor