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Uma Genealogia da Biopolítica: A Noção de Vida em Canguilhem e Foucault
A Genealogy of Biopolitics: The Notion of Life in Canguilhem and Foucault[a]
Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, núm. 58, pp. 299-323, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Tradução


Recepción: 17 Agosto 2020

Aprobación: 26 Febrero 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.058.TRAD01

Biopolítica: um conceito polêmico

Em 1976, no primeiro volume de História da Sexualidade, Michel Foucault apresenta o que iria tornar-se um conceito polêmico em sua obra, bem como para seus intérpretes: a “bio-política da população” (com um hífen que é deixado de lado nos anos seguintes). Essa noção tem desde então polarizado as leituras da teoria de poder de Foucault e talvez haja desempenhado um papel bem mais importante do que ele jamais pretendeu. Atualmente, a leitura mais proeminente e popular da biopolítica pode muito bem ser a interpretação “ética” em termos de bioética. A biopolítica seria, portanto, a administração “política” das mudanças e novas possibilidades das ciências da vida, predominantemente da biologia e da genética[3]. Essa leitura recobre uma outra linha de interpretação que, a despeito de considerar o biopoder não em termos de governança, mas em termos político-filosóficos, abre espaço a uma dupla má interpretação: ou a análise do biopoder vincula-se estruturalmente a uma análise do regime político como um permanente estado de exceção ou é subtendida como uma política “positiva” da vida que frustra o poder “negativo” sobre a vida. Roberto Esposito denomina essa polaridade da noção de biopolítica de “insuperável oscilação” entre uma leitura positiva e produtiva da relação entre política e vida e uma leitura negativa e trágica implícita na própria escrita de Foucault. Ao passo que a primeira interpretação premia a vida com um poder intrínseco que resiste ao biopoder, como propõem Antonio Negri e Michael Hardt, a última, proposta por Giorgio Agamben, radicaliza o aspecto tanatopolítico na noção de “vida nua”[4].

Essas variadas interpretações da noção de biopolítica são induzidas por uma tentativa de definir a noção de vida em vez dos termos “política” e “poder”: dão uma definição de vida (como vida biológica, como vida nua, ou como poder vital) que Foucault por si próprio, e por razões coerentes, sempre se omitiu de oferecer. Essa omissão parece haver encorajado as leituras ética, produtiva ou trágica da biopolítica de Foucault. Para propor um estudo genealógico do termo “biopolítica”, é importante, portanto, olhar mais de perto a noção de vida que pode haver inspirado a análise foucaultiana, a qual não corresponde, como pretendo mostrar a seguir, a nenhuma das três alternativas referidas acima.

O Nascimento da Biopolítica

Como já mencionado, Foucault fornece uma definição um tanto “canônica” de biopolítica em A Vontade de Saber, em que ele apresenta a “biopolítica” como um lado ou polo de um duplo poder sobre a vida que ele distingue da morte personificada pelo poder soberano. As duas principais formas em que o poder soberano se desenvolveu não são antitéticas, mas antes constituem os dois polos das mudanças que o poder experimenta por volta do século dezessete e cuja função central é “garantir, sustentar, reforçar [e] multiplicar vida” (FOUCAULT, 2017a, p. 148). O primeiro polo é constituído pelas disciplinas, “uma anatomopolítica do corpo humano”, centrada no “corpo como máquina” (FOUCAULT, 2017a, p. 150), para o qual Foucault dedicou uma de suas principais obras, Vigiar e Punir (1975), bem como a série de conferências intitulada Anormal, concedida no Collège de France entre 1974 e 1975[5]. O segundo polo do poder sobre a vida – a biopolítica –, desenvolve-se em meados do século dezoito: é uma forma de poder que se concentra “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte aos processos biológicos” (FOUCAULT, 2017a, p. 150). Esse corpo-espécie é governado (ou “vigiado”) por meio de uma série de intervenções e controles regulatórios que Foucault denomina “uma biopolítica da população” (FOUCAULT, 2017a, p. 150, grifo do autor). Foucault conclui essa primeira apresentação do conceito de biopolítica assim: “A instalação – durante a época clássica, dessa grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo” (FOUCAULT, 2017a, p. 150).

Em resumo, Foucault, por um lado, define a biopolítica por meio de sua referência à vida como seu objeto, em oposição ao poder soberano cujo objeto é o sujeito jurídico e ao poder disciplinar cujas técnicas se dirigem ao indivíduo. Por outro lado, a especificidade das técnicas biopolíticas repousa na positiva e não repressiva relação com a vida e no fato de que tais técnicas são intrínsecas e não exteriores ao seu objeto. Técnicas biopolíticas incrementam, protegem e regulam a vida – em síntese, elas “produzem a vida”, e fazem-no infiltrando os processos da vida (em vez de suprimi-los ou submetê-los) de modo a governá-los ou dominá-los a partir de seu interior.

É importante manter essa dupla definição em mente, uma vez que ela permite neutralizar a redução da biopolítica a uma simples política cujo objeto é a vida, a qual abriu espaço a uma generalização da noção em sua versão (bio-)ética. Ao passo que na primeira ocorrência, em A Vontade de Saber (1976), a atenção de Foucault repousa sobre o fato de que o poder pós-soberano é definido por meio de um novo objeto, a vida da população, em suas palestras dos anos seguintes, Segurança, Território, População (1977-78) e Nascimento da Biopolítica (1978-79), Foucault enfatiza a natureza positiva da relação entre poder e vida. Dessa forma, ele reformula e amplia a noção de biopoder, referindo-se a ela como governamentalidade. A introdução desse novo nome pode ser uma reação a uma talvez muito “estreita” noção de biopolítica que foca, sobretudo, na relação com seu “novo” objeto (vida) e deixa de lado a positividade dessa relação. De todo modo, permite que Foucault redirecione a análise para a produtividade do poder, que depende, como pretendo mostrar, da imitação da dinâmica vital da vida. É na análise da governamentalidade que as implicações da biopolítica como um poder positivo e produtivo sobre a vida são completamente desdobradas.

Arqueologia da Vida

O propósito deste artigo é analisar o sentido de uma relação “positiva” entre poder e vida. É necessário, portanto, olhar novamente para a noção de vida implicada no termo “biopolítica” como usado por Foucault. Foucault opera com uma noção de vida que ele não determina: vida é um correlato de técnicas e estratégias de poder e de saber. Ela carece de qualquer status ontológico e é ela mesma “produzida” pela constelação de poder-saber, ou, para usar a famosa fórmula de As Palavras e as Coisas, a vida emergena passagem entre a história natural e a biologia, isto é, na ruptura epistêmica que ocorre por volta de 1800. Essa episteme emerge em razão de um deslocamento arqueológico que introduz a noção de “organização” como fundamental para o estudo do vivente e substitui o “tableau” de história natural pela constitutiva oposição entre o orgânico (o vivente) e o inorgânico. Esse deslocamento arqueológico permite pensar a vida como fundamentalmente dinâmica: a vida é a polaridade ou a tensão entre os dois polos do orgânico e do inorgânico. É aqui, explica Foucault, que uma definição de vida por meio da morte, isto é, como “resistência à morte” – como propôs o anatomista e fisiologista francês Xavier Bichat –, torna-se cogitável[6]. A vida – pode-se dizer, parafraseando e transpondo a definição de Canguilhem de normal –, é uma dinâmica e, portanto, polêmica noção[7], uma vez que é forjada na tensão entre esses diferentes polos; é um movimento polarizado entre tendências de autopreservação e de autotransgressão.

É crucial perceber, entretanto, que Foucault, diferentemente de Bichat e de Canguilhem, não busca analisar a dinâmica vital por si própria (i.e., definir a vida como poder vital); em vez disso, Foucault analisa o fato epistêmico de que a vida se torne pensável como dinâmica, vital ou vivente. É essa compreensão da “vida” bem como do “trabalho” e da “linguagem” como “quase-transcendentais” (FOUCAULT, 1985, p. 265), isto é, a arqueologia da vida, que explica a indeterminação da vida no pensamento de Foucault. Essa indeterminação não é, portanto, uma carência ou uma omissão em seu pensamento, como sugere Agamben ao fazer sua própria interpretação da vida como vida nua preencher essa ausência e completar a teoria de poder foucaultiana. Essa indeterminação, pelo contrário, é uma questão metodológica e deve ser levada a sério, uma vez que a acuidade das reflexões de Foucault sobre a biopolítica se deve à própria indeterminação entendida como “normalização” da vida por estratégias de poder-saber. A ausência de uma definição da vida no pensamento de Foucault não é nem um lapso nem uma inexatidão, mas uma indeterminação intencional, que se opõe, por um lado, a uma interpretação da vida como força que a situa para além dos mecanismos de poder e, por outro, a uma reformulação ontológica dessa mesma indeterminação que considera a vida em sua nudez radical.

O fato de que Foucault não ofereça definição de “seu” conceito de vida foi amplamente discutido, por exemplo, por Agamben, em sua análise comparativa da noção de vida no pensamento de Foucault e de Deleuze, intitulada “Imanência Absoluta”. Agamben afirma nesse texto que “uma clara definição do conceito de ‘vida’ parece faltar tanto em Foucault como em Deleuze (AGAMBEN, 2000, p. 182). Ainda que seu texto se volte para uma leitura da noção de vida deleuziana, ele inicia com uma breve interpretação do texto “La vie: l’expérience et la science”, uma reimpressão da introdução à tradução inglesa da obra O Normal e o Patológico, de Canguilhem. Agamben percebe nesse texto “uma curiosa inversão do que havia sido a compreensão inicial de Foucault da ideia de vida” (AGAMBEN, 1999a, p. 220)[8], quando, em Naissance de la clinique, ele entendia a vida, em consonância com o novo vitalismo de Bichat, como “‘o conjunto de funções que resiste à morte’” (AGAMBEN, 2000, p. 169-170). Para Agamben, esse deslocamento seria mais uma documentação da crise por que Foucault alegadamente passou depois da publicação do primeiro volume de História da Sexualidade. Há, contudo, mais a considerar, continua Agamben: “algo como uma nova experiência que obriga a reformular as relações entre verdade e sujeito e que, entretanto, diz respeito ao âmbito específico da busca de Foucault. Arrancando o sujeito do terreno do Cogito e da consciência, ela o arraiga no da vida” (AGAMBEN, 2000, p. 170). Uma vida que é essencialmente errância. Para Agamben, que segue Deleuze a esse respeito, esse “deslocamento da teoria de conhecimento”, quer dizer, a conexão da subjetividade à vida (e não à consciência) anuncia a “virada subjetiva” do segundo e terceiro volumes de História da Sexualidade e “coincide com a abertura dos trabalhos acerca da biopolítica, que poderia ter fornecido a Foucault aquele ‘terceiro eixo, distinto tanto do saber como do poder’, de que ele, segundo Deleuze, tinha necessidade naquele momento” (AGAMBEN, 2000, p. 170).

Agamben, desse modo, levanta duas hipóteses fundamentais: primeiro, ele afirma que Foucault, ao final de sua vida, afastou-se de uma noção “negativa” de uma vida radicalmente exposta à morte em direção a uma subjetividade entendida a partir do ponto de vista de uma noção fundamentalmente dinâmica da vida. Segundo, ele vincula a noção de vida definida por meio da morte ao paradigma biopolítico, isto é, à vida nua, uma vida sempre sujeita ao poder, que constitui o ponto de referência das técnicas biopolíticas. Ao passo que Agamben não fornece quaisquer outros comentários acerca da questão da “subjetividade”, que ele denomina “uma forma de vida” que resiste ao (bio)poder, ele escreve extensamente sobre a noção de vida nua .zoe) que ele considera ser o objeto da biopolítica.

Vida como Substância Biopolítica

Em Homo Sacer: Poder Soberano e Vida Nua, Agamben propõe uma interpretação da noção foucaultiana de biopolítica que depende de uma identidade estrutural entre a biopolítica e a forma soberana de poder. Na introdução, Agamben anuncia que sua investigação se volta precisamente a “este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder” (AGAMBEN, 1998, p. 14). A inclusão da vida no domínio da política constitui o “núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano” cuja “contribuição original” é “a produção de um corpo biopolítico” (AGAMBEN, 1998, p. 14). A “vida biológica” que o estado moderno coloca no centro de sua atenção é, portanto, estruturalmente, a mesma vida exposta ao direito soberano sobre a vida e a morte, e a biopolítica e o poder soberano, desse modo, possuem a mesma origem.

A vida nua produzida pelo estado de exceção soberano é, além disso, identificada por Agamben, em O que resta de Auschwitz, como a “substância biopolítica absoluta” (AGAMBEN, 1999b, p. 85). A afirmação de uma relação necessária entre biopolítica e poder soberano culmina na provocativa e popular conclusão de que “o campo, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do ocidente” (AGAMBEN, 1998, p. 176). No campo de concentração, povoado pelos homines sacri, que podem ser mortos, mas não sacrificados, a exceção soberana que se tornou regra é unificada ao paradigma biopolítico por meio da produção da vida nua. O corpo biopolítico produzido pelo poder soberano é identificado com essa vida nua, zoe, que, de acordo com Aristóteles, é distinta da vida qualificada, bios. A vida nua, no entendimento de Agamben, seria, então, a origem transcendental da política moderna, e não haveria qualquer diferença estrutural (ainda que existam diferenças históricas) entre o funcionamento do poder soberano e as técnicas biopolíticas. Vida nua é a negação de qualquer qualificação e, portanto, é uma noção transistórica, uma categoria ontológica. Em vez de traçar as descontinuidades na sucessão de formas de poder e de saber, Agamben pretende revelar o oculto ou invisível elemento que determina, de modo latente, toda forma de poder[9].

O fato de que a vida é sempre exposta ao poder é também uma declaração básica em Foucault, que, além disso, não nega que há uma interação entre as técnicas soberanas de exceção e as técnicas biopolíticas. Na conferência de 17 de março de 1976, no Collège de France, Foucault dá o exemplo do racismo, que permite “justificar” a matança de pessoas, populações e civilizações no interior de sociedades modernas que funcionam ao modo do biopoder: “Se o poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo” (FOUCAULT, 2016, p. 216). Para Foucault, todavia, essa constelação está aberta para mudanças e pode ser historicamente situada, não é uma necessidade estrutural, não é a própria “essência” do poder moderno. A intencional má interpretação de Agamben da noção foucaultiana de biopolítica torna-se aparente em sua afirmação de que Foucault não estava ciente do nexo fundamental entre biopolítica e poder soberano e de que sua “morte impediu que [...] mostrasse em que sentido teria aprofundado ulteriormente a sua investigação” (AGAMBEN, 1998, p. 12). Isso pode parecer surpreendente, uma vez que Foucault dedicou as palestras que se seguiram à publicação do primeiro volume de História da Sexualidade às técnicas e dispositivos de segurança (em Segurança, Território, População) e ao Nascimento da Biopolítica, em que ele desenvolveu as implicações da noção de biopolítica em direção a uma teoria da governamentalidade. Em vez de abordar a biopolítica a partir da noção de poder soberano, ele examina a distância e as diferenças entre essas duas modalidades de poder. Essa distância se cristaliza em um entendimento arqueológico da vida como um correlato de técnicas específicas de poder e de saber.

Polaridade da Vida

A articulação do poder que governa os viventes supõe, dessa forma, um conhecimento acerca dos viventes. Na conjuntura epistêmica em que emerge a biopolítica, esse conhecimento é articulado pela medicina e pela biologia do começo do século XIX, ambas vinculadas a um pensamento vitalista específico. A vida é definida por meio de sua variabilidade fundamental, por meio de sua possibilidade de desvio e erro. É nesse desvio ou erro que a vida aparece como fundamentalmente vivente, como tendo uma dinâmica vital. O que está em jogo aqui é, portanto, uma noção dinâmica da vida, que, todavia, não é subsumível a uma mera teleologia do orgânico, como sugere Kant no modo do “como se”, nem a uma concepção vitalista específica da dinâmica da vida como um princípio unitário. O que está em jogo é o entendimento da vida como fundamentalmente dinâmica . errática, da vida como polarização entre diferentes dinâmicas do vivente – a autopreservação do orgânico e a autocriação do vital que vai além da mera preservação de um equilíbrio orgânico. O movimento de autocriação não deve ser desconectado do movimento de autopreservação: a vida, como ela se torna tematizada por volta de 1800, não é nem pura transgressão nem pura autopreservação, mas define-se na tensão entre ambos.

Em seu Recherches Physiologique sur la Vie et la Mort, publicado originalmente em 1800, Bichat formula uma diferença fundamental entre as ciências da vida e as ciências naturais. Ao passo que as leis da natureza são “inalteráveis, invariáveis e constantemente as mesmas a qualquer momento” (BICHAT, 1809, p. 121), as leis orgânicas ou vitais são variáveis, irregulares e instáveis, uma vez que seu objeto – a vida –, é constantemente submetido a variações, erros, desvios e anomalias. Em Anatomie Générale, Bichat distingue:

duas coisas nos fenômenos da vida: primeiro, o estado de saúde; segundo, o estado de doença; a fisiologia encarrega-se dos fenômenos do primeiro estado, a patologia tem como objeto o segundo estado. A história desses fenômenos em que as forças vitais exibem seu tipo natural nos conduz à história desses fenômenos em que essas forças são alteradas (BICHAT, 1994, p. 232).

Canguilhem reformula essa oposição em sua principal obra, Le Normal et le Pathologique, como um “fato epistemológico” (CANGUILHEM, 2011, p. 81). Ao passo que pode haver (e há) uma patologia biológica, não há uma patologia física, química ou mecânica, porque as leis físicas não podem ser alteradas de nenhum modo. Se os fenômenos físicos são indiferentes ao seu entorno, não pode haver, como formula Canguilhem, qualquer “indiferença biológica”:

O fato de reagir por uma doença a uma lesão, a uma infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa. [...] No pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas. E é nesse sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica (CANGUILHEM, 2011, p. 80).

Para Canguilhem, o maior mérito de Bichat consiste em haver reconhecido a produtividade das irregularidades, das falibilidades da vida, em síntese, da “dimensão negativa” – os valores negativos vitais, como anomalia, doença, morte –, para o vivente[10]. Ele fala, nesse contexto, da “inteligência da anomalia”, que recupera os sinais de uma força vital (pouvoir de vivre), transformando esses valores negativos da existência em elementos “significativos” que põe em jogo a dinâmica vital da vida[11]. Canguilhem, portanto, empresta de Bichat, a um só tempo, a tese epistemológica de que o conhecimento da vida é baseado na análise dos fenômenos mórbidos – a vida só é reconhecível por meio de seus erros, que referem todo ser vivo a sua constitutiva imperfeição e incompletude –, e a determinação da vida como uma dinâmica que tende a um “tipo natural”, a uma norma.

O valor da vida, isto é, a vida como valor, a vida em sua normatividade interior, é fundada, portanto, em sua própria incerteza ou precariedade (précarité)[12]. A dinâmica normativa da vida desdobra-se entre dois polos: a preservação do equilíbrio orgânico interno (do milieu intérieur nas palavras de Claude Bernard) e o permanente desafio a esse equilíbrio. Canguilhem, desse modo, diferencia duas dimensões normativas da vida que se encontram em intrínseca relação uma com a outra: uma homeostática, dinâmica autopreservadora que tende à normalidade orgânica, e uma autotransgressora, dinâmica genuinamente normativa que cria normas. Enquanto a precedente pressupõe uma compreensão holística do organismo e é pensada por meio da atividade global de regulação como o fato biológico par excellence, a última transgride esse equilíbrio orgânico e cria novos valores vitais. As normas alcançadas (ou a situação normal) são constantemente colocadas em risco, pois, de outro modo, o vivente iria imobilizar-se no equilíbrio artificial das funções orgânicas.

Normatividade vital, para Canguilhem, não é assimilação ou adaptação, mas permanente desafio ao que está dado. Um ser vivente comporta-se normativamente se ele não simplesmente se adapta a um dado meio ou norma – nesse caso, ele seria patológico –, mas cria suas próprias normas e seu próprio meio. Vida é uma dupla atividade normativa que, por um lado, refere-se, negativamente ou reativamente, às ameaças do meio interno e externo e a seus valores negativos e que, por outro lado, é uma atividade positiva e criativa que produz seu próprio meio e suas normas vitais. Apenas em seu desvio da norma pode a vida ser normativa, isto é, verdadeiramente vital. Normatividade consiste em “romper as normas e criar novas normas [faire craquer les normes]” (CANGUILHEM, 2011, p. 112). Um equilíbrio interior somente é possível sob o pano de fundo de uma tal força criativa: normalidade funda-se em normatividade. O desafio da noção de vida de Canguilhem é o fato de que a normalidade orgânica é permanentemente exposta aos desvios normativos, isto é, que a vida não se mantém em um estado de equilíbrio (como, por exemplo, o estado produzido artificialmente no laboratório), mas que ela coloca esse estado de equilíbrio permanentemente em questão de modo a transgredi-lo. Se a vida fosse “apenas” orgânica, seria patológica; em vez disso, ela é uma polaridade e, portanto, ao mesmo tempo orgânica e criativa, isto é, ela é vivente no sentido preciso do termo[13]. Essa noção de vida em sua polaridade ativa-reativa é esclarecedora para compreender o modus operandi específico das técnicas pós-soberanas de poder, que abarca tanto a técnica biopolítica quanto a governamental.

Biopolítica como vida

Diante desse pano de fundo, a principal hipótese deste artigo é que, de maneira a governar a vida, as formas de biopoder imitam ou mimetizam a própria dinâmica da vida, quer dizer, sua polaridade entre vida e morte, ou entre autotransgressão e autoconservação, entre o normal (leia-se normativo) e o patológico. A vida deve, portanto, ser entendida em um duplo sentido como objeto das técnicas pós-soberanas de poder e, em sua dimensão dinâmica, como seu modelo operacional. Imitação deve ser compreendida, conforme o entendimento aristotélico de mimesis, não como uma simples cópia (arte como cópia da natureza), mas como a reprodução do sentido de um fenômeno ou produção específicos. Assim, as técnicas biopolítico-governamentais adotam a lógica interna da vida como o modelo de sua própria dinâmica e estabelecem uma relação de exterioridade interna com o fenômeno vital. As normas do biopoder operam como se fossem vitais, ou seja, elas adotam o funcionamento vital dos processos da vida como seu modelo e os exteriorizam nas normas sociais. Essa hipótese pode ser explicada por meio de duas noções centrais que Foucault apresenta em sua análise biopolítica: a “população” e o “meio”, ambas possuem uma constituição específica, uma vez que operam na intersecção entre o natural e o artificial, o orgânico (vivente) e o inorgânico (físico), os elementos vitais e sociais. É na produção de uma população e de um meio como fenômeno natural-artificial que a vida se torna governável.

Para Foucault, a biopolítica é uma modalidade de poder que em um momento histórico preciso sobredetermina as outras modalidades de poder. Ele propõe, dessa maneira, uma genealogia do poder que não aspira a revelar elementos transistóricos ou estruturais, ou o lugar fundacional do poder em geral, mas a analisar concretas constelações de poder-saber como condições de possibilidade da constituição e imposição de formas específicas de governamentalidade. Em vez de falar sobre poder ou política da vida, Foucault fala sobre o “governo dos viventes” em sua palestra do final dos anos 70, a fim de destacar a relação indissolúvel entre poder e vida que, todavia, não leva à dissolução da vida ou do poder, mas à sua necessária imbricação. Nesse sentido, mesmo a formulação “poder sobre a vida” que Foucault apresenta no primeiro volume de História da Sexualidade pode parecer ambígua, visto que supõe uma exterioridade entre os processos de vida e poder. É somente em suas conferências sobre governamentalidade que essa ambiguidade será completamente dissolvida naquilo que venho chamando de noção ampliada de biopolítica; isto é, em uma forma de poder que está sempre internamente vinculada à vida, tanto como seu objeto quanto como seu modelo funcional: um governo da vida.

Ao adotar essa compreensão ampliada da biopolítica, Foucault evita aquilo que denomina, na conferência de 7 de março de 1979, uma “redução” das diferentes formas de poder.

Uma análise, por exemplo, da seguridade social e do aparelho administrativo em que ele repousa vai remeter, a partir de alguns deslizamentos de sentido e graças a algumas palavras com as quais se joga, à análise dos campos de concentração. E, no entanto, da seguridade social aos campos de concentração, a especificidade da análise requerida se dilui (FOUCAULT, 2004, p. 260).

De modo a evitar essa dissolução da especificidade da análise e a diluição das diferenças que existem entre os mecanismos do estado de bem-estar social e os campos de concentração em uma noção de poder transistórica e turva, é necessário analisar o fenômeno concreto que corresponde às diferentes modalidades de poder.

Quando levamos a sério a hipótese central do presente texto – que uma noção reformulada e ampliada da biopolítica é uma cujas técnicas referem-se à vida de dois modos, tomando-a não somente como seu objeto, mas também como seu modelo funcional[14] – podemos afirmar que as normas biopolíticas não apenas se aplicam ao fenômeno da vida, mas, sobretudo, que elas mimetizam sua dinâmica, isto é, sua normatividade tal como Canguilhem a apresenta. Essa hipótese é confirmada pela reformulação de Foucault das técnicas biopolíticas sob o nome de “técnicas de segurança” em suas conferências sobre governamentalidade que seguem o mesmo esquema, aquele da normatividade biológica. Com o objetivo de regular, controlar e governar melhor a vida, as técnicas de segurança adotam a dinâmica imanente da vida, que elas exteriorizam, transpondo-a para as normas sociais. Esse mecanismo pode ser observado nos exemplos que Foucault fornece do modus operandi das normas de segurança, as quais “antecipam” o processo aleatório da vida de modo a prevenir maiores desregulações. As técnicas empíricas das campanhas de inoculação para o combate da varíola (la petite vérole), por exemplo, baseiam-se em duas estratégias que são fundamentais para o modus operandi biopolítico: primeiro, parte-se do fenômeno em sua própria realidade (por meio de métodos quantitativos/estatísticos); segundo, incorpora-se ou imita-se a dinâmica de seu objeto de referência.

A primeira estratégia que as técnicas de variolização emprestam das operações biopolíticas é sua relação com a realidade empírica do fenômeno em questão, nesse caso, a epidemia, mais especificamente, a varíola. As técnicas de variolização são desenvolvidas em uma relação de dupla dependência das investigações estatísticas, que, primeiro, indicam quais grupos da população apresentam maior risco, e, segundo, retém o sucesso da campanha de inoculação ao refleti-la na taxa de mortalidade. Foucault denomina essa operação um processo de normalização, que ele distingue, em uma Conferência de 27 de janeiro de 1978, da normação disciplinar. Normação pressupõe um caráter puramente prescritivo da norma que está na base da definição de normal e a(b)normal. Os fenômenos são submetidos à norma, ele são normados. Em contraste, normalização é um processo dinâmico e variável, e sua norma é “uma interação de normalidades diferenciais”. O processo de normalização abrange a vida em sua própria realidade, isto é, em sua multiplicidade vital como uma entidade autorreguladora e autocriativa cuja dinâmica imanente resulta dos permanentes desvios das situações “normais”. Nesse sentido, escreve Foucault, “o normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório” (FOUCAULT, 2008, p. 83). Ou ainda, como ele acrescenta em uma nota, “a operação de normalização consiste em jogar umas em relação às outras essas diferentes distribuições de normalidade” (FOUCAULT, 2008, p. 83).

A segunda estratégia é a mimetização da dinâmica vital pelas técnicas de variolização. Uma vez que a eficiência das técnicas de segurança se baseia na própria realidade do fenômeno, é fundamental levar em conta sua dinâmica. Fazendo-o, o princípio da luta contra a varíola por meio da variolização é assegurar a saúde da população produzindo a doença e, portanto, desencadeando no corpo sua autoimunização. Variolização, explica Foucault:

Não procurava tanto impedir a varíola quanto, ao contrário, provocar nos indivíduos que eram inoculados algo que era a própria varíola, mas em condições tais que a anulação da doença podia se produzir simultaneamente à vacinação, que, portanto, não resultava em uma doença total e completa. Apoiando-se nessa espécie de primeira pequena doença artificialmente inoculada, podia-se prevenir os outros eventuais ataques da varíola. Temos aqui um típico mecanismo de segurança, que possui a mesma morfologia que observamos a propósito da escassez alimentar. (FOUCAULT, 2008, p. 78).

Em relação ao tratamento da escassez, Foucault explica de modo ainda mais claro que:

enquanto os regulamentos jurídico-disciplinares que haviam reinado até meados do século XVIII procuravam impedir o fenômeno da escassez alimentar, o que se procurou, a partir de meados do século XVIII com os fisiocratas, mas também com vários outros economistas, foi apoiar-se no próprio processo de escassez alimentar, na espécie de oscilação quantitativa que produzia ora a abundância, ora a escassez, apoiar-se na realidade desse fenômeno, não procurar impedi-lo, mas, ao contrário, fazer funcionar em relação a ele outros elementos do real, de modo que o fenômeno de certo modo se anulasse. (FOUCAULT, 2008, p. 77-78).

As técnicas dos dispositivos de segurança correspondem, portanto, a um modelo operacional que se baseia não em negar, mas antes em assimilar a dinâmica do fenômeno vital em sua própria realidade, que busca restabelecer seu equilíbrio interno quando este é ameaçado. Imunologia bem como a teoria fisiocrática da escassez são exemplos palpáveis desse mecanismo que responde à dinâmica de um laissez-faire.

A População Vivente e seu Meio

Como explica Foucault, ainda em sua conferência, a generalização desse modo operacional de poder caminha junto com a emergência daquilo que denomina “um personagem político absolutamente novo” (FOUCAULT, 2008, p. 87), a população, a qual é considerada como “um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural” (FOUCAULT, 2008, p. 92). Essa população

não é, portanto, uma coleção de sujeitos em relação individual ou coletiva com uma vontade soberana. [...] é um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e regularidades até nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos e a propósito do qual pode-se identificar um certo número de variáveis de que ele depende e que são capazes de modifica-lo. Com a tomada em consideração ou, se preferirem, a pertinentização de efeitos próprios à população, creio que temos um fenômeno muito importante: é o ingresso, no campo das técnicas de poder, de uma natureza que não é algo a que, aquilo acima de que, aquilo contra o que o soberano deve impor leis justas (FOUCAULT, 2008, p. 98-99).

A natureza que adentra o domínio das relações de poder por meio da população não se refere à noção de soberania, mas àquilo que será uma nova técnica de poder, o “governo”, que é “muito mais que a soberania, muito mais que o reino, muito mais que o imperium” (FOUCAULT, 2008, p. 99).

Essa nova constelação de poder, que se refere a um objeto “natural” cuja dinâmica Foucault explicou em suas conferências do ano anterior, simboliza o ponto central da intersecção entre o vital e o social que é fundamental para a compreensão da noção ampliada da biopolítica, em que esta imita a dinâmica vital da vida exteriorizando-a em normas sociais de segurança. Aqui, Foucault alega que a população é uma reunião de elementos naturais e sociais que são tanto expostos a quanto produzidos por relações de poder. Nesse sentido, a tarefa da biopolítica é instituir mecanismos de regulação no interior do fenômeno natural-social que é a população global:

Trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida [...]; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 2016, p. 207).

O modus operandi das “novas”, pós-soberanas, técnicas de poder é enquadrar o perigoso jogo, a dinâmica vital, o aleatório da vida na população geral. Elas fazem-no sem repressão ou negação dos fenômenos mesmos, permitindo uma aparente liberdade, que, todavia, deve permanecer dentro de limites específicos que, ainda que possam ser bastante[15] amplos, não devem ser excedidos: as técnicas pós-soberanas de poder patologizam a normatividade vital da vida como definida por Canguilhem, reduzindo-a a sua normalidade.

Dessa forma, quando o excedente de força vital cria uma desordem nas formas de poder, a vitalidade da vida deve ser dissolvida no interno (e quase-natural) equilíbrio (da população), reduzindo o vital ao normal, que então se torna governável. Consequentemente, a biopolítica e as formas de governamentalidade partilham uma dupla relação com o fenômeno da vida, que governam e cuja dinâmica imitam e transpõem para as normas de poder que operam como se fossem vitais. A força vital é, dessa forma, considerada como um elemento orgânico da biopolítica, que[16], imitando a dinâmica vital, imita também a polarizada interação entre criação e conservação dos processos vitais.

O status específico da população como híbrido artificial-natural é anunciado por Foucault por meio de outra noção central, o “meio”, em que a população se torna perfeitamente governável. O meio é parte do dispositivo biopolítico ou governamental porque permite um acesso não-direto – articulante –, ao vivente. É pela intervenção no meio que a população é regulada: “O que vai se procurar atingir por esse meio é precisamente o ponto em que uma série de acontecimentos, que esses indivíduos, populações e grupos produzem, interfere com acontecimentos de tipo quase natural que se produzem ao redor deles” (FOUCAULT, 2004, p. 28). Os viventes não são expostos diretamente aos mecanismos de poder, estes alcançam os viventes por intermédio do meio, que é manipulado de modo a assegurar o desenvolvimento da população: estratégias pós-soberanas de poder criam um meio no qual a população pode desenvolver sua dinâmica de vida, de maneira que os meios de autoconservação sejam mantidos à disposição dos viventes e a vida possa regular a si própria.

Para Foucault, esse meio é representado paradigmaticamente pela “cidade”, onde a “naturalidade” da espécie humana aflora no interior de um meio artificial. Essa conexão entre o natural e vivente e o político e artificial é fundamental para a biopolítica e constitui a “reformulação” ou ampliação de Foucault do mecanismo das técnicas pós-soberanas de poder. Não é apenas um poder que se refere à vida, mas um poder que cria um meio em que a interação entre o natural e o artificial segue os preceitos do próprio poder. Através do meio da cidade, que é a um só tempo artificial e natural, a população pode ser alcançada, torna-se permeável às técnicas de poder. Referindo-se a Moheau, a quem ele denomina o primeiro grande teórico da biopolítica, e à sua obra Recherches et considérations sur la population de la France, Foucault explica que o que fundamentalmente mudou na relação com a vida e a naturalidade da espécie humana é sua qualidade:

Mas, se [até] então ela aparecia principalmente na forma da necessidade, da insuficiência ou da fraqueza, do mal, agora ela aparece como interseção entre uma multiplicidade de indivíduos que vivem, trabalham e coexistem uns com os outros num conjunto de elementos materiais que agem sobre eles e sobre os quais eles agem de volta (FOUCAULT, 2004, p. 29).

A vida não é mais percebida como fundamentalmente negativa, insuficiente, necessitada, mas como uma dinâmica positiva que os mecanismos de poder podem adotar de modo a governar os viventes de maneira mais eficiente. Não é a vida ela mesma que se torna o objeto do biopoder, mas o vínculo biológico do vivente (a população) à materialidade no interior da qual ele existe, isto é, sua constituição híbrida que oscila entre a dimensão biológica, natural, vivente, e a permeabilidade a uma manipulação artificial, social e material no interior do meio, uma manipulação mediante o poder, que aparece como se fosse natural.

Poder de Resistência

Em conclusão, é possível afirmar, a partir de uma perspectiva epistêmica, que as técnicas da biopolítica participam no momento preciso de redefinição da noção de vida. Elas não se “confrontam” com uma vida que existe para além de suas históricas constelações de poder-saber, antes, elas “invadem” uma vida que é saturada por essas próprias técnicas e constelações, uma vida correlativa, que, consequentemente, carece de um status ontológico, uma vida que é indeterminada e aberta a determinações e normalizações a partir de fora: uma vida híbrida, natural-artificial. Por conseguinte, não são apenas as condições de possibilidade de uma biologiaque surgem por volta de 1800, mas também as condições de possibilidade de uma biopolítica.

Sob uma perspectiva política, é importante considerar de modo cuidadoso os duplos processos da vida e suas relações com a biopolítica, haja vista que a noção “ampliada” de biopolítica (governamentalidade) se distingue das técnicas disciplinares ou soberanas de poder na medida em que o dispositivo de segurança abarca tanto o aspecto autopreservador dos processos vitais quanto o aspecto transgressivo e os inscreve incessantemente, por meio da interação com o meio, nos esforços biopolíticos de constituição de uma população “boa”. O problema que se levanta com essa leitura ampliada da noção de biopolítica é a questão de uma possível “saída” dessa forma de poder positiva e onipresente. Pode-se imaginar, depois da análise da normatividade vital como um elemento fundamental das estratégias pós-soberanas de poder, que é aqui que uma possível resistência às formas de poder se situa, em uma “forma de vida” que transcenda sua inscrição em um mecanismo de poder. É crucial entender, contudo, que a normatividade da vida, mesmo considerada como o paradigma do modus operandi do poder pós-soberano, não é exterior a essas estratégias de poder e, portanto, não pode propor um “fora do poder” como sugerem algumas das recentes interpretações da noção foucaultiana de biopolítica.

Além de desvelar seu quase-orgânico entrelaçamento, Foucault ele próprio não aborda explicitamente o problema da resistência em relação ao biopoder. Dessa forma, na primeira parte de História da Sexualidade, ele apresenta a identificação de uma simples afirmação da sexualidade à resistência ao poder como uma ilusão criada pelo próprio poder. A assim denominada revolução sexual não significa a emancipação de um sujeito dominado, mas a sua mais importante inscrição no dispositivo sexual[17].

Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral de sexualidade. Se, por uma inversão tática dos diversos mecanismos de sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações do poder, será com relação à instância do sexo que deveremos liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não dever ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres (FOUCAULT, 2017a, p. 171).

Essa afirmação um tanto imprecisa não dá muitas pistas para que se compreenda o que pode ser resistência, mas abre espaço para várias leituras “positivas” do “último” Foucault. Essas leituras vinculam a aparente ruptura na teoria de poder (entre biopolítica e governamentalidade) ao terceiro “deslocamento teórico”[18] que, após Foucault, tornou-se necessário para analisar “o que é designado como ‘o sujeito’” (FOUCAULT, 2017b, p. 11).

Em vez de seguir esse caminho que vincula a virada subjetiva a uma reformulação da teoria de poder (que alegadamente terminou em um “dilema”) e à possibilidade de um espaço para além do poder, o qual não parece totalmente coerente com o pensamento de Foucault[19], gostaria de focar em um modo alternativo de abordar o fenômeno da resistência mediante uma breve consideração daquilo que Foucault apresenta sob o nome de “contraconduta” ou “contradiscurso”. Em sua leitura da obra de Foucault, Deleuze descreve a questão da resistência no interior do biopoder do seguinte modo:

Quando o poder se torna biopoder, a resistência se torna poder da vida, poder-vital que vai além das espécies, dos meios e dos caminhos desse ou daquele diagrama. A força vinda do lado de fora – não é uma certa ideia da Vida, um certo vitalismo, em que culmina o pensamento de Foucault? (DELEUZE, 2013, p. 99).

Deleuze afirma de maneira explícita a existência de uma força vital que é fundamentalmente resistente e escapa às técnicas biopolíticas: “uma força que vem de fora”. Desse modo, ele realiza duas operações que, conforme meu entendimento da biopolítica, seriam inadmissíveis: ele identifica a vida como o suporte ontológico para uma força que resiste e ele localiza essa resistência em um “fora” do poder. Ao fazê-lo, deixa escapar dois pontos cruciais na análise foucaultiana do poder. Deleuze não é capaz de pensar a dinâmica do poder como a imitação (social) ou reconstituição da dinâmica vital (uma vez que essa operação colocaria a resistência vital em perigosa proximidade ao poder). Ele deixa escapar também a ubiquidade do poder pós-soberano, que é uma de suas principais características e não representa um “dilema”.

Entretanto, a força vital ou o vitalismo específico que Deleuze entende como o terceiro eixo necessário para Foucault na crise posterior à publicação de História da Sexualidade volume I, como recorda Agamben, pode parecer similar à dinâmica vital que Canguilhem apresenta. A vida como compreendida por Canguilhem, contudo, é um conceito normativo, definido na polaridade entre duas tendências, autorregulação e autotransgressão. A vida é a tensão normativa entre esses dois polos e é fundamentalmente relacionada a valores vitais negativos como anomalia, doença e morte. Para Canguilhem, não há autorregulação sem autotransgressão e vice-versa. A homeostase do organismo é produzida por meio dos desvios do organismo, desvios que não são redutíveis a sua função orgânica, mas que permanentemente transgridem o ciclo de equilíbrio do organismo, de modo a serem totalmente vitais, quer dizer, normativos. A noção de vida é essencialmente determinada por essa polaridade. O poder sobre a vida refere-se à vida na medida em que esta é polar, ou seja, ele engloba tanto a dimensão orgânica quanto a dimensão vital da vida. A força da vida, desse modo, não é uma alternativa ao poder, mas antes um elemento estrutural (um elemento orgânico) do poder. Dessa forma, para Foucault, a produção tática de desvio deve ser entendida como um passo adiante em direção à inscrição da vida no paradigma do poder pós-soberano. De fato, essa forma de poder adota as características de uma democracia imunitária, quer dizer, as características de uma forma de poder que tende a imunizar a vida em sua totalidade, de modo que a produção de diferenças (sob o mote global do multiculturalismo) possa ser considerada nada além do último giro desse mesmo poder[20].

É precisamente o modus operandi do biopoder, o qual imita a dinâmica da vida, que torna essa afirmação mais transparente. A operação governamental do biopoder consiste em reduzir o potencial normativo da vida ao seu equilíbrio normal a partir do momento em que essa dinâmica-normativa potencial tende a transgredir os limites admissíveis para o bom funcionamento do governo, ou, para seguir com a metáfora biológica, quando a força criativa da vida e a sua tendência à autotransgressão tendem a exceder as tendências autorreguladora e autoconservadora (homeostática) da vida. A biopolítica nesse sentido ampliado é caracterizada por essa dupla dinâmica. Logo, é impossível falar de um poder da vida que impõe ou excede o poder sobre a vida. A biopolítica admite o livre jogo das tendências criativas da vida enquanto possam ser integradas no equilíbrio global da população. Se excedem os limites de integração e ameaçam tornar-se ingovernáveis, sua normatividade deve ser reduzida à sua normalidade, porque a sociedade deve ser defendida.

Em relação ao segundo ponto da análise de Deleuze, é importante levar a sério a afirmação de Foucault de que não há fora do poder. Mais do que em seus livros, é em seus escritos “menores” – os quais Deleuze certa vez denominou de o outro lado do pensamento de Foucault, em que linhas de atualização podem ser traçadas –, que Foucault adota o que ele mesmo iria posteriormente chamar de uma “postura crítica”. Em uma entrevista que Jacques Rancière realizou com Foucault para a recém fundada revista Les Revoltes Logiques, em 1977, um ano após a publicação de História da Sexualidade: Volume I, ele o coloca do seguinte modo:

Não há relação de poder sem resistência; estas são mais reais e eficazes, uma vez que se formam lá mesmo onde se exercem as relações de poder; a resistência ao poder não precisa vir de outro lugar para ser real, nem é ela inexoravelmente frustrada por ser a compatriota do poder. Ela existe tanto mais por estar lá onde está o poder; portanto, como o poder, a resistência é múltipla e pode ser integrada às estratégias globais (FOUCAULT, 1980, p. 142).

A questão da resistência não pode ser perguntada fora da análise do poder; e a resistência deve ser formulada como “contracondutas” ou “contradiscursos”. Não há exterior ao poder na teoria foucaultiana de poder, a resistência vincula-se intrinsecamente à própria dinâmica do poder e, portanto, inicia a interminável espiral de poder e contrapoder. A resistência ao poder não deriva de uma teoria da exclusão social, mas é ela mesma uma “teoria” no sentido foucaultiano: uma “prática não-totalizante, local e regional”, uma “prise de parole” daqueles expostos às relações de poder. Essas “palavras [paroles]” compreendidas como contradiscursos e contracondutas podem desestabilizar as condições sensíveis de visibilidade e de dizibilidade, ou, antes, a determinação e restrição dessas condições, ou seja, a partição do sensível, para acompanhar Rancière. E elas irão reabilitar um estágio da política em que a suposta naturalidade das constelações de poder e de saber são expostas e possivelmente desconstruídas.

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Notas

[a] Esse artigo foi originalmente publicado como "A Genealogy of Biopolitics: The Notion of Life in Canguilhem and Foucault", escrito por Maria Muhle e contido na obra The Government of Life: Foucault, Biopolitics and Neoliberalism, editada por Vanessa Lemm e Miguel Vatter (Nova York: Fordham University Press, 2014, p. 77-97). A autora e a editora original gentilmente autorizaram a tradução e publicação do capítulo em língua portuguesa, traduzido por Davi Maranhão De Conti.
[3] Para essa leitura da noção de biopolítica, veja GEYER, 2001; para a crítica de uma eugenia liberal, veja Habermas, 2005.
[4] Veja Esposito, 2010.
[5] Ainda que o tópico central das palestras acerca do anormal seja o funcionamento do poder disciplinar em sua institucionalização psiquiátrica, a passagem do poder disciplinar para o poder biopolítico é mais explícita aqui do que em Vigiar e Punir. É possível, portanto, afirmar que a genealogia foucaultiana da biopolítica começa com essas palestras.
[6] Bichat não entende a vida, como na tradicional definição vitalista, como a atualização de um princípio de vida prefigurado nem, como no modelo mecanicista, como uma série de ações e reações sujeitas a uma causalidade determinada e, portanto, calculável. Ele escreve acerca da tradicional noção vitalista da vida em suas Recherches Physiologiques sur la Vie et la Mort (1800): “A maior parte dos médicos que escreveram sobre as propriedades vitais começaram por procurar seu princípio... A alma de Stahl, a arché de Vanhelmont, o princípio vital de Barthez, o poder vital de alguns, etc., considerados, a cada momento, como o centro único de todos os atos que portam a marca da vitalidade, foram alternadamente a base comum em que se apoiaram, em última análise, todas as explicações fisiológicas. Cada uma dessas bases colapsou sucessivamente”. Após Foucault, o clássico debate entre vitalismo e mecanicismo é apenas o fenômeno de superfície do deslocamento arqueológico constituído pela oposição entre orgânico e inorgânico.
[7] Em O Normal e o Patológico, Canguilhem afirma que: “O normal não é um conceito estático ou pacífico, e sim um conceito dinâmico e polêmico” (CANGUILHEM, 2011, p. 189). Foucault retoma essa formulação em suas conferências acerca do anormal: “A norma não é simplesmente um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo exercício do poder se acha fundado e legitimado. Conceito polêmico – diz Canguilhem. Talvez pudéssemos dizer político” (FOUCAULT, 2001, p. 62).
[8] Optamos, forçosamente, por uma tradução direta da citação de Muhle porque o uso da tradução brasileira acarretaria prejuízo de sentido.
[9] Para uma interpretação da teoria agambeniana do homo sacer e do estado de exceção em termos de latência, veja Haverkamp, 2004.
[10] Foucault analisou essa inversão do vitalismo em um “mortalismo” em Nascimento da Clínica: “A irredutibilidade do vivo ao mecânico ou ao químico é secundária com relação ao liame fundamental da vida com a morte. O vitalismo aparece tendo como pano de fundo esse ‘mortalismo’” (FOUCAULT, 1977a, p. 166). Sua leitura de Recherches physiologiques sur la vie et la mort, de Bichat, e sua afirmação da permanente presença da morte na vida o levou à reformulação da noção de doença por aquela de “vida patológica”. Em seu curto texto acerca da noção de vida no pensamento de Foucault e de Deleuze, Agamben refere-se a essa noção de vida determinada pela morte (a vida como uma reação à morte) como o “primeiro” entendimento de vida, que será substituído nas reflexões de Foucault pela vida apresentada por Canguilhem como o domínio próprio do erro. Em oposição a Agamben, gostaria de argumentar que não há nem um deslocamento na teoria do conhecimento nem uma virada subjetiva anunciada por ela. Em vez disso, a relação fundamental entre vida e morte prefigura a falibilidade da vida, que abre espaço para sua dinâmica bipolar e representa o modelo funcional do governamental.
[11] Veja Macherey, 1998.
[13] Canguilhem atribui tal “valor propulsivo” às constantes fisiológicas que permitem ao vivente comportar-se normativamente no sentido exposto e as opõe às constantes patológicas: “Ao contrário, o estado patológico expressa a redução das normas de vida toleradas pelo ser vivo, a precariedade do normal estabelecido pela doença. As constantes patológicas têm valor repulsivo e estritamente conservador” (CANGUILHEM, 2011, p. 166).
[14] Para uma extensa discussão dessa hipótese, veja Muhle, 2008.
[15] A ausência de repressão ou negação não pressupõe, como Foucault tão claramente aponta em diferentes ocasiões, uma forma de poder “melhor”, “humanista” ou libertária. O que muda profundamente é que o poder sobre a morte (que, como lembra Foucault, jamais alcançou uma extensão maior do que no século XX) existe como elemento complementar (a “contraparte”) às estratégias biopolíticas que não são direcionadas ao sujeito jurídico, nem ao indivíduo disciplinar, mas à população biopolítica. As modernas tanatopolíticas são executadas sob premissas biopolíticas, isto é, de modo a assegurar a existência de todos: “massacres tornaram-se vitais” (WK, 137). A “guerra de raças” é seu exemplo paradigmático.
[16] Veja Lemke, 2007, p. 67.
[17] A pequena análise que Foucault apresenta dos direitos humanos, o “‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades” (FOUCAULT, 2017a, p. 157), tão “incompreensível” para o sistema jurídico clássico, deve ser compreendida de maneira similar. Para uma extensa discussão, veja Raimondi, 2011.
[18] O primeiro deslocamento, que se orienta em direção ao “progresso dos conhecimentos”, isto é, as formas de práticas discursivas que articularam as ciências humanas, e o segundo deslocamento, que analisou o que é descrito como poder: “as relações múltiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes” (FOUCAULT, 2017b, p. 10)
[19] Para essa discussão, veja Muhle, 2008, p. 276-281; Saar, 2007; e Sarasin, 2005. Saar e Sarasin interpretam as tecnologias foucaltianas do eu, a partir de diferentes perspectivas, como a virada para o sujeito e, portanto, um “antídoto” ao poder.
[20] Para um desenvolvimento da noção de “democracia imunitária”, veja Brossat, 2003.

Notas de autor

[b] Ph.D em Filosofia


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