Fluxo contínuo

O que é, o que é: a morte? Notas e reflexões sobre o conceito de morte em Martin Heidegger

What is, what is: death? Notes and reflections on the concept of death in Martin Heidegger

João Cardoso de Castro [a]
Centro Universitário Serra dos Órgãos, Brasil
Murilo Cardoso de Castro [b]
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

O que é, o que é: a morte? Notas e reflexões sobre o conceito de morte em Martin Heidegger

Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, núm. 59, pp. 556-571, 2021

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recepción: 18 Febrero 2019

Aprobación: 21 Mayo 2021

Resumo: Tendo como ponto de partida a expressão “Um humano [Mensch] logo que nasce já é bastante velho para morrer”, escrita por Martin Heidegger em Ser e Tempo, este artigo se apresenta como uma ousada tentativa de releitura do conceito de morte, dada a dificuldade de interpretação de sua magnum opus, em especial da segunda parte da obra. Esta empreitada se concentrou em buscar compreender a morte, o ser-para-a-morte e a antecipação, conceitos fundantes do pensamento heideggeriano e reunidos aqui sob uma nova perspectiva. Para além da interpretação cotidiana deste conceito — que deve ser de imediato colocada em suspenso — ou ainda de uma parte significativa das leituras especializadas de Heidegger, este trabalho entende que a morte, no horizonte do pensamento heideggeriano, é o processo cotidiano de atualização (ato) de possibilidades (potência) no interior da experiência humana. Tendo a fenomenologia como recurso de análise, e o fenômeno da morte como chave de acesso à questão do sentido da morte, foi possível reunir aqui um conjunto de notas e direção para se compreender todos os existenciais como sinônimos de morte, o que se evidencia na condição cotidiana de um Dasein impróprio, inautêntico, e no aparecimento (Erscheinung) de um mim-mesmo prevaricado com a-gente (das Man), à semelhança caricatural de um “morto-vivo”, um “zumbi”, tema muito em voga, nos dias de hoje, em filmes e séries. Embora o “humano” — cotidianamente sujeito a representações sucessivas — se atenha a isto ou aquilo, em ser-para-a-morte se está livre de todo apego a isto ou aquilo, na aquiescência tanto disto quanto daquilo, na proximidade de tudo e pertencimento a nada, no “deixar-ser” (Gelassenheit).

Palavras-chave: Morte, Ser-para-a-morte, Fenomenologia, Heidegger.

Abstract: Taking as a starting point the expression "A human [Mensch] as soon as he is born is already old enough to die", written by Martin Heidegger in Being and Time, this article presents itself as a daring attempt to reread the concept of death, given the difficulty of interpretation of his magnum opus, especially of the second part of the work. This enterprise concentrated on seeking to understand death, being-towards-death and anticipation, founding concepts of Heidegger's thought, and gathered here in a new perspective. In addition to the everyday interpretation of this concept - which must be immediately put on hold - or even a significant part of Heidegger's specialized reading, this work understands that death, within the horizon of Heideggerian thought, is the daily process of actualization (actuality) of possibilities (potentiality) within the human experience. Phenomenology as a resource for analysis, and the phenomenon of death as the key to access to the question of the meaning of death, it was possible to gather here a set of notes and direction to understand all existential (existentiell) as synonyms of death which is evidenced in the daily condition of an improper, inauthentic Dasein and the appearance (Erscheinung) of a self-prevaricated the-they (das Man) in the caricature of a "living dead", a "zombie", highly in vogue these days in movies and TV shows. Although the "human" - daily subjected to successive representations - clings to this or that, in being-towards-death one is free from all attachment to this or that, in the acquiescence of this and that, in the proximity to everything and belonging to nothing, in the "letting-be" (Gelassenheit).

Keywords: Death, Being-towards-death, Phenomenology, Heidegger.

1. Introdução

O termo “humano” neste título abriga não somente os significados corriqueiros que compartilhamos cotidianamente. Entretanto, por mais que se procure de antemão recusar qualquer definição de “humano” como aquém do sentido dado por Heidegger em Ser e Tempo, não somos capazes de estabelecer este sentido sem acompanhar a argumentação que o próprio Heidegger elabora sobre o “ser” humano ao longo de todo seu pensamento[3]. Neste artigo, o foco é mais restrito, “ser” humano e ser-para-a-morte, como tratado no início da Segunda Seção de Ser e Tempo (2012a).

Considerando a imensa dificuldade de uma imersão nesta Segunda Seção, devido ao tema em si e à linguagem adotada por Heidegger para tratá-lo, o esforço todo será de seguir de perto sua argumentação atentando a cada passo para os termos e expressões chaves que a configuram. Uma ponta do fio da meada a seguir é dada por um ditado citado de Heidegger no § 48: “Um humano [Mensch] logo que nasce já é bastante velho para morrer” (HEIDEGGER, 2012a, p. 677). Trata-se de nota relevante em direção ao pensamento de Heidegger sobre um sentido significativo de “o que é o humano?[4]”, que será examinado fazendo recurso ao notável livro de Michel Haar (1990), Heidegger et l’essence de l’homme.

O que pode ser dito de antemão é que, para qualquer vislumbre do sentido de humano em Heidegger, seria preciso abdicar totalmente seu sentido ordinário que o situa até mesmo aquém do sentido aristotélico de “animal racional” e do sentido criatura de um Criador, da tradição judaico-cristã. Com efeito, o sentido ordinário de “humano” oscila em um limbo de insignificância, quanto mais ou menos prevaleça o sentido moderno de “animal”, quanto mais pese a marca cartesiana de uma simbiose corpo e mente, e quanto mais tenha vigência a ilusória encarnação de um “mim-mesmo”, indeterminado e vazio, suposta única fonte e determinação de todo e qualquer pensar, sentir, atuar, agir e fazer; enfim, o imaginal de um “mim-mesmo”, com todas suas fantasias conjunturais e contingenciais, que o apresentam travestido de sujeito[5]. Esta é justamente a grande dificuldade enfrentada em alcançar um entendimento do “humano” em Heidegger como algo “a priori”, anteriormente não no tempo, mas na constituição do dado (es gibt sein) na abertura do que Heidegger denomina Dasein[6]. Com todo risco de simplificar, o que será melhor elaborado adiante: um “fulano de tal” não é o “humano”, mas uma ilusão de “mim-mesmo”, de sujeito; entretanto, o “humano” é o “aí” (Da)[7], lançado em sua facticidade e finitude[8], no aparecimento (Erscheinung) como “fulano de tal”, que na tese aqui sustentada, é “nulidade” (Nichtigkeit) no “abandono do ser” (Seinsvergessenheit), é a própria morte[9]

É digno de pensar por que a morte é a primeira e primaz consideração elencada por Heidegger, em Ser e Tempo, para tratar do “próprio”, do “autêntico”, “ser” humano. Para tal, o termo “morte”, em tal conjuntura e circunstância, precisa ser despido de vestes e mais vestes interpretativas que se acumularam, para que se tente alcançar uma aproximação daquilo que Heidegger indica como tal e ao qual postula um existencial: “ser-para-a-morte”[10]. Aplicando seu “método” favorito, a “indicação formal”, em que o que aparece apenas indica formalmente o que se busca, o existencial, o ontológico, nega-se a “morte” como cessar-de-viver, deixar-de-viver, falecimento, perecimento, ou qualquer outra “morte” que não seja a “absoluta impossibilidade da possibilidade do aí”. Eis a “grande charada” vital: “o que é o que é... morrer?”, sem ser obrigatoriamente cessar-de-viver, deixar-de-viver, falecer, perecer?

Para abordar convenientemente a “charada”, caberia responder algumas questões prévias (HEIDEGGER, 2012a, p. 655): não sendo o Dasein um subsistente (Vorhandenheit), o que seria uma qualquer referência ao seu “fim”? Em se tratando de Dasein, o que seria tal referência com sentido genuinamente existenciário (existenzial)? A expressão “morte”, no tocante ao Dasein, tem um sentido biológico ou ontológico-existenciário? Porém, antes mesmo dessas questões, é preciso clareza quanto ao sentido do acima repetido qualificador “existenciário”, conforme a tradução brasileira de Fausto Castilho (HEIDEGGER, 2012a). Este qualificador se aplica à caracterização de estruturas ontológicas do “ser” humano, tais como ser-no-mundo (in-der-Welt-sein), discurso (Rede), ser-para-a-morte (Sein zum Tode). Distingue-se de “categorial” (kategorial) assim como de existencial (existentiell), por sua referência ao “ontológico”, cujos temas por determinação demonstrativa têm na fenomenologia seu modo-de-acesso, e, ao mesmo tempo, têm por seu embasamento no “fenomenológico”, o sentido de que não busca caracterizar “o quê de conteúdo-de-coisa dos objetos da pesquisa filosófica, mas o seu como” (HEIDEGGER, 2012a, p. 101). Comecemos, então, pelo sentido que Heidegger propõe à fenomenologia.

2. A Fenomenologia como método

Em Heidegger, este sentido do fenomenológico — que proporciona acesso ao ontológico — é fundamental. No §7 de Ser e Tempo (2012a, p. 103 et seq.), o “fenômeno” investigado pela fenomenologia, é caracterizado como “o que se mostra, o se-mostrante [das Sichzeigende], o manifesto [das Offenbare]”, em uma única e importante expressão “o-que-se-mostra-em-si-mesmo”. O que assim se mostra em si mesmo é o ente, o sendo, havendo a possibilidade de que se mostre como o que não é em si mesmo, ou seja, um aparentar, parecer-ser (Scheinen). Assim, em um primeiro momento, há no fenômeno dois sentidos: o de “mostrar-se” (Sichzeigende) e o de “parecer-se” (Schein), embora o segundo sentido pressuponha o primeiro: só é possível aparentar o que se mostra. Entretanto, há ainda um terceiro sentido: o aparecer (Erscheinen), “o anunciar-se de algo que não se mostra por algo que se mostra”. Neste último sentido, o aparecimento (Erscheinung) conta com três significados: apenas o anunciar-se ou, outrossim, o anunciante, ou ainda, o “mero aparecimento”. Este último “se mostra em si mesmo e de tal maneira que, como reverberação do que anuncia, deixa-o, porém, precisa e constantemente encoberto em si mesmo”.

Fenômeno — o mostrar-se-em-si-mesmo — significa um modo assinalado de algo vir-de-encontro. Aparecimento significa, ao oposto, uma relação-de-remissão ôntica, dentro do ente ele mesmo, e isso de tal maneira que o remetente (o anunciante) só pode cumprir sua possível função se se mostra em si mesmo, sendo “fenômeno”. Aparecimento [Erscheinung] e aparência [Schein] fundam-se eles mesmos, de modo diverso, no fenômeno. A confusa multiplicidade dos “fenômenos” que é designada com os nomes de fenômeno, aparência, aparecimento, mero aparecimento só pode ser desemaranhada se, desde o início, se entende o conceito de fenômeno como o-que-se-mostra-em-si-mesmo (HEIDEGGER, 2012a, p. 109).

Esta breve e imprescindível imersão no esclarecimento de Heidegger sobre o fenômeno, e por conseguinte sobre a possibilidade do fenomenológico, como acesso ao ontológico, oferece a direção requerida para a investigação do sentido existenciário da “morte”. Guiando-se pelas indicações formais apresentadas pelo entendimento ordinário da “morte”, pelo aparecimento e aparência da “morte humana”, ou seja, por uma fenomenologia da morte, libera-se acesso ao seu ontológico. Mais ainda, como será adiante argumentado, evidencia-se o aparecimento do ilusório e encobridor arremedo do “aí-se-é”[11], o que aqui se denomina “aí-não-se-é”, que será contemplado como “morte virtual” ou indício da “morte”, esta enquanto impossibilidade absoluta da possibilidade de ser-aí .Dasein)[12]. Mas não convém se adiantar, deve-se abordar com métis, em seu antigo sentido originário grego, a grande charada, “o que é, o que é... a morte?”.

Afinal: o que é, o que é... a morte?

Ao encalço dessa caracterização ontológica da “morte”, Heidegger descarta qualquer possibilidade de uma aproximação direta pela morte dos “outros”: “o morrer, deve assumi-lo todo Dasein cada vez por si [jeweilig][13] mesmo. A morte, na medida em que “é”, é essencialmente cada vez minha” (HEIDEGGER, 2012a, p. 663). O que reafirma que o morrer é um fenômeno a ser entendido existenciariamente. Por outro lado, a totalidade do Dasein só se dando em sua completude[14], com a morte, poderia se conceber a morte como o que põe um ponto final ao Dasein, incorrendo-se então no erro de considerá-lo como um subsistente que teria completado sua vida com este último faltante, sua morte, porém: “findar não significa necessariamente completar-se” (HEIDEGGER, 2012a , p. 675) e “o ainda-não, que o Dasein cada vez é, resiste a uma interpretação como faltante” (p. 679). Enfim, por tais caminhos a morte não é caracterizada em seu sentido ontologico-existenciário. O que se segue é uma tentativa ousada de interpretar tal caracterização.

Heidegger começa a Segunda Seção de Ser e Tempo, com um primeiro capítulo em que elabora a possibilidade extrema, última e insuperável do Dasein, qual seja, a morte, pois em sua possibilidade jaz a impossibilidade do Dasein. Ou, dito de outra maneira, como o faz Haar (1990, p. 31), “a morte me possibiliza, e permaneço em sursis, suspenso na possibilidade, até minha morte efetiva”. Quando esta possibilidade se torna atualidade, então “sou o que sou, sou idêntico a mim-mesmo somente na morte, e então a morte me precede sempre como o tempo aberto onde ainda não sou, mas onde devo ser” (HAAR, 1990, p. 31). Não há mais “” (Da) do ser-aí .Dasein), restando, portanto, tão somente “ser” como originariamente[15]. Ou, talvez, se deva melhor entender: não havendo mais o “traço de união” entre “ser” e “aí”, este último recolhe-se inteiramente absorvido ao primeiro, “em que” e “de que” .. Afinal como afirmam os dicionários, o traço de união aparenta uma separação onde há unicidade. O traço, assim visto desde o “aí”, pode acalentar a ilusão de uma independência, autonomia, do “aí” que conta com o traço como uma ponte imaginária entre “ser” e “aí”. No entanto, desde a perspectiva “ser”, “aí” é apenas uma “clareira” (Lichtung) que se abre no Dasein, ele mesmo “abertura”.

Este breve exercício de compreensão do Dasein talvez seja melhor elucidado através de uma analogia, ainda que pobre, entre “ser” e uma imaginária tela infinita da qual emergem indefinidos “aí”, “clareiras de ser” (Lichtung), “em que” entes se são dados, em seus diferentes modos de ser (Vorhandensein, Zuhandensein, Mitdasein), “com que” entes se são conhecidos, em seus distintos modos de desvelamento (aletheuein)[16], e “de que” entes se são constituídos ôntica, fenomenológica e ontologicamente. Com toda limitação de uma analogia, invoca-se através desta a relevante figuração de indefinidas imagens concomitantes e sucedâneas sobre uma tela, em aparecimento (Erscheinung) “brilhando adiante” enquanto cenas em andamento e em extinção, sem qualquer rastro ou mácula sobre a tela. Caron (2005, p. 776) prefere a analogia com uma “noite”, ao invés da tela, ou mistério, constituindo o retiro por excelência, ou o vazio mesmo, a obscuridade, que demonstra sua vacuidade a fim de que uma coisa possa impor seus contornos e se oferecer ao olhar. Esta noite com a qual o si entretém uma intimidade estrutural e transcendental permite, portanto, a cada coisa aparecer no aberto da manifestação. “Ser” — mesmo na pobreza da analogia à “noite” ou “tela” — se apresenta como um campo de manifestação e receptividade aberto para instância do fenômeno[17], ou seja, fazendo do si um domínio de aparição do ente enquanto tal, fazendo do si um Dasein: aí-ser, ou melhor, “aí-há-ser”. Caron (2005, p. 776) conclui: “Esta obscuridade transcendental, paradoxal mas logicamente, é para ipseidade a condição de possibilidade de toda luz e de toda visão”.

Essa figuração analógica proporciona acesso a afirmações de Heidegger sobre o Dasein, que serão ainda mais pertinentes a seguir, quando “ser para a morte” se evidenciar como aquiescência da “morte” enquanto “aí”, “humano”, “aí-não-se-é”, aparecimento “em”/“com”/“de” “ser”.

O Dasein existe como um ente para o qual, em seu ser, está em jogo esse ser ele mesmo. Essencialmente adiantado em relação a si, ele se projetou em seu poder-ser antes de toda mera e posterior consideração de si mesmo. No projeto ele se desvenda como dejectado. Abandonado ao “mundo” na dejecção, ele, ocupado, decai no mundo. Como preocupação, isto é, existindo na unidade do projeto dejectado cadente, esse ente é aberto como “aí” (HEIDEGGER, 2012a, p. 1099).

A tese aqui sustentada parte do princípio que o “ser” humano — no “abandono do ser” (Seinsverlassenheit) e na contumaz identificação ao “humano”, ao “aí”, travestido em um pseudo “mim-mesmo” ressonando o “a-gente”[18] — já prenuncia por antecipação (Vorlaufen) a morte, insinuada pela “culpa” (Schuld), o “ser-fundamento de uma nulidade”, ou seja, a “culpa” de “aí-não-ser”[19]. O leitor deve estar atento, conforme anunciamos na introdução deste artigo, que a “morte” não deve ser entendida em seus contornos tradicionais. Como afirma Maxence Caron (2005, p. 36), o Dasein é “si-mesmo”, e neste sentido deve ser entendido como aquilo sem o que nem “mim-mesmo” nem vividos poderiam aparecer. No entanto, o “si-mesmo”, enquanto abertura desta esfera de aparição, permanece um mistério para o pensar indulgente apenas ao que aparece (Erscheinung).

É de extrema relevância compreender que — no horizonte de interpretação heideggeriano — ser-“” implica poder “”-não-ser, parafraseando Haar[20]. A todo exato instante (Augenblick, “piscar de olhos”) que aí-se-é, também manifesta-se a possibilidade do aí-não-se-é[21]. A relação positiva — isto é, a percepção desta possibilidade de impossibilidade do Dasein, a morte — é denominada “antecipação” (Vorlaufen). A “antecipação” (Vorlaufen), enquanto relação com a morte, é então reconhecida como o existencial (existentiell. ser-para-a-morte. Até o instante definitivo que só resta “ser”, na impossibilidade de “aí”, a cura (Sorge) enquanto essência do ser-aí “possibiliza” o ser-para-a-morte, que assim pode ser “chamado uma ‘concreção’ da cura” (CARON, 2005, p. 29), conjunção de um aí-se-é devidamente “esclarecido” sobre sua condição mais cotidiana[22]: aí-não-se-é. É deste modo, que “ser-para-a-morte contém a totalidade possível do Dasein, não como totalidade morta, mas como totalidade antecipadora de si, totalidade se fazendo” (p. 29), embora “decaindo” (Verfallen) cotidianamente no aí-não-se-é. Dito de outra maneira, na cura (Sorge) de “mim-mesmo” e de todo aparecer na “clareira do ser”, não há cura, ou cuidado de “si-mesmo”, outrossim “abandono do ser”.

Essa concidentia oppositorumaí-ser e aí-não-ser — conjuga tanto temporalidade (Zeitlichkeit), como estrutura unitária de três dimensões do tempo ou ek-stases, quanto temporalidade como abertura de si e a si enquanto projeto (Entwurf). No “aí” imiscui-se tempo (futuro, passado e presente) e abre-se a clareira de ser (Lichtung) “em que” surge “mim-mesmo”[23], ilusório “eu” em constante prevaricação com “a-gente” (Das man), e totalidade de entes, de “sendos”, segundo diferentes modos de ser: ser-subsistente (Vorhandensein), ser-utilizável (Zuhandensein) e Dasein-com (Mitdasein). Como afirma Haar (1990, p. 28), “o ser-para-a-morte possibiliza a temporalidade”. Neste sentido, para o Dasein, o ser é o tempo (p. 31), porém na finitude do “aí” segundo “resolução antecipadora”[24] (Entschlossenheit) de determinada possibilidade-de-ser .Seinsmöglichkeit). Afirma-se, por conseguinte, a finitude na constância de ser-para-a-morte, sobrepondo-se em todas as estruturas do Dasein, até mesmo no ilusório “mim-mesmo”, caricaturalmente assemelhado a um “zumbi” vagando por “aí”. “A angústia diante da morte é a angústia “diante” do mais-próprio, irremetente e insuperável poder-ser. O diante de quê dessa angústia é o ser-no-mundo ele mesmo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 693).

Haar[25] entende, assim, que ser-no-mundo se torna sinônimo da morte, e, ao mesmo tempo, que todos os existenciais se tornam outros nomes da morte. O que se evidencia na condição cotidiana de um Dasein impróprio, inautêntico, e no aparecimento (Erscheinung) de um mim-mesmo prevaricado com a-gente[26] (Das man), à semelhança caricatural de um “morto-vivo”, “zumbi”. O ser-projetado ou ser-lançado (Geworfenheit) é passível de equivalência à morte, do mesmo modo que a “decadência” (Verfallen)[27]. O ser-lançado (Geworfenheit), a decadência (Verfallen), a existência inautêntica (Uneigenlichkeit) são tantas denominações para o aí-se-é em seu processo inexorável em-direção-à-morte ou aí-não-se-é. Resumindo, “o Dasein morre factualmente, enquanto existe, mas de pronto e no mais das vezes, no modo de decair” (HEIDEGGER, 2012a, p. 693).

A morte, por conseguinte, é o Dasein – seu modo impróprio encobrindo seu modo próprio na cotidianidade –, o que significa que a resolução antecipadora (vorlaufende Entschlossenheit) é aquiescência das possibilidades coincidentes e simultâneas de que aí-se-é e aí-não-se-é[28]. A antecipação da morte, enquanto existencial do Dasein “significa alcançar uma proximidade não presente” (HAAR, 1990, p. 34) em que se aquiesce, dentre as possibilidades de ser, a possibilidade que se atualiza como “possibilidade da impossibilidade”[29]. Como afirma Heidegger (2012a, p. 835), “o ser-resoluto, só como adiantar-se, torna-se, portanto, um originário ser para o poder-ser-mais-próprio do Dasein”, a morte. E ainda, reafirma (p. 837): “Resoluto, o Dasein assume propriamente em sua existência que ele . o fundamento nulo de sua nulidade”. Lembrando que a morte “foi existenciariamente caracterizada como a possibilidade da não-possibilidade da existência, isto é, como a pura e simples nulidade do Dasein”. Por conseguinte, o ser-resoluto é a única e própria “decisão” de “ser” por “ser”, e ainda mais quando antecipador ou precursor (vorlaufende), pois então este ser-resoluto “se ‘qualifica’ como ser para a morte” (p. 837).

Em outras palavras, Dasein — cujo ser é existência[30] (Existenz) e cuja essência é cura, cuidado ou preocupação (Sorge) — é um incessante “ex-sistir”[31] (ek-sistere; estar-fora) em uma inexaurível abertura a todos os entes em seus distintos modos de ser. Sendo e estando fora, “aí”, com e junto a o que vem ao encontro nesta ‘clareira do ser”, o ser-aí guarda uma ambiguidade passível de ser apreciada desde “ser” e desde “aí”, mas que se apresenta como coincidência de opostos (ou ainda, unicidade de opostos), de faces de uma mesma moeda: aí-se-é e aí-não-se-é. A “resolução antecipadora” é a coincidentia oppositorum do Dasein, enquanto abertura do ser. Fédier, Arjakovsky e France-Leonard (2013, p. 1144) acentuam a proximidade de “resolução” (Entschlossenheit) e “abertura” (Erschlossenheit), a ponto de remeterem um ao outro. Derivados do verbo schliessen, que traduz o grego kleio e o latim claudere (cerrar, fechar à chave), um recebe pelo prefixo “Er”, Erschliessen, o sentido de “descerrar”, mas também “detectar”; não esquecendo que em Heidegger o prefixo “Er” “é o índice formal de um movimento de aproximação” (FÉDIER; ARJAKOVSKY; FRANCE-LEONARD, 2013, p. 1144). Por seu lado, Entschlossenheit, se define como “presença de espírito”, onde o prefixo “Ent” acusa um movimento de distanciamento ou de separação, que leva Heidegger explorar um determinado sentido de Entschlossenheit: “a resposta do ser humano face à descoberta da abertura” (p. 1145). Assim é possível entender esta “resolução antecipadora” como vigência do “ser” no prenúncio e aquiescência à ilusão de um “mim-mesmo separado”, em constante prevaricação com “a-gente”, na abertura do ser. Uma “decisão”[32] (decidir, do latim de + caedere, “não à cisão”) resoluta pela unicidade de “ser” na separação do “mim-mesmo” e na multiplicidade de entes na abertura do ser. Em uma frase: coincidentia oppositorum de aí-se-é e aí-não-se-é; ser-si-mesmo (Selbstsein) por “uma modificação existencial de a-gente como um existenciário essencial” (HEIDEGGER, 2012a, p. 373).

Segundo sua essência ontológica, o ser-resoluto [Entschlossenheit] é cada vez aquele de um Dasein factual em cada caso. A essência desse ente é sua existência. O ser-resoluto somente “existe” como resolução que se entende se projetando. Mas em relação a que o Dasein se resolve no ser-resoluto? Para que deve ele se resolver? A resposta somente pode ser dada pela resolução ela mesma. Seria um equívoco completo o querer entender o fenômeno do ser-resoluto unicamente como retomada de possibilidades oferecidas e recomendadas. A resolução é precisamente em primeiro lugar o projetar que abre e o determinar da possibilidade cada vez factual. Pertence necessariamente ao ser-resoluto a indeterminidade que caracteriza cada poder-ser do Dasein factualmente dejectado. O ser-resoluto somente é seguro de si mesmo como resolução. Mas a indeterminação existencial do ser-resoluto, que somente se determina cada vez na resolução, tem, não obstante, sua determinidade existenciária (HEIDEGGER, 2012a, p. 815).

Considerando a afirmação em Heidegger do recuo, recolhimento ou ocultação do ser no sendo, no ente, por conseguinte no “aí”, este último reflete em si a possibilidade simultânea de ser e de não-ser, esta enquanto “morte, a mais elevada testemunha do ser” (HEIDEGGER, 2014, p. 227). O ser-resoluto enquanto “deixar-se-apelar-para-adiante” em um “aí”, conjugando tal ambiguidade, confere possibilidade de escolha (Wahl), mesmo no cotidiano enredar-se em a-gente (das Man), pseudo-identificado como um “mim-mesmo”. Como lembra Maxence Caron (2005, p. 548), “a dação do ser é o perpétuo carrefour de uma escolha possível para o si-mesmo entre ente eclipsando ser e se tornando princípio”; se tornando um “mim-mesmo”, pseudo princípio ecoando o “a-gente”[33], um morto-vivo, um zumbi. Ou, como continua Caron, “o ser se eclipsando ele mesmo e se vendo reconhecido como fundo originário”; simplesmente “ser” enquanto “tela originária” (nossa pobre metáfora acima), fundamento e fonte de aparecimento (Erscheinung) de personagens e paisagens em suas ilusórias “estorinhas”. Esta última alternativa é o sentido que aqui se entende do existencial “ser para a morte”, pois como afirma Heidegger (2007, p. 367): “no lugar em que se trata do nada e da morte, é o ser e apenas ele que é pensado da maneira mais profunda possível”.

Perdido em a-gente já fica cada vez decidido o imediato poder-ser factual do Dasein — as tarefas, as regras, as unidades de medida, a urgência e a amplitude do ser-no-mundo ocupado e preocupado-com-o-outro. A-gente apropriando-se dessas possibilidades-de-ser já as retirou sempre das mãos do Dasein. A-gente encobre mesmo a dispensa que ele em sigilo efetuou da escolha expressa dessas possibilidades. Permanece indeterminado quem “propriamente” escolhe. Esse ser arrastado sem escolha de ninguém pelo qual o Dasein se enreda na impropriedade só pode ser revertido se por si mesmo a partir da perda em a-gente o Dasein voltar a buscar-se a si mesmo. Retorno que, no entanto, deve ter o modo-de-ser cuja omissão fez que o Dasein se perdesse na impropriedade. A busca-de-si que retrocede a partir de a-gente, isto é, a modificação existencial de a-gente-ela-mesma para o ser-si-mesmo próprio, deve ser levada a cabo como um ir em busca de uma escolha. Mas ir em busca de uma escolha significa escolher essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir do próprio si-mesmo. No escolher a escolha, o Dasein se possibilita pela primeira vez o seu poder-ser próprio. (HEIDEGGER, 2012a, p. 735).

A dificuldade para o pensamento moderno, assentado no paradigma sujeito-objeto, é entender que há uma única escolha possível, que não é em absoluto realizada por um “sujeito”, e ainda mais compreender qual seja esta escolha, dado que como diz Nietzsche “a cada instante começa o ser”[34]. Obnubilando a única e necessária escolha com as mais diversificadas considerações, métodos e técnicas de “tomada de decisão”[35], impede-se até de se “escolher a escolha”, reduzindo o Dasein a um “mim-mesmo” e suas fantasias, que reverberam o “a-gente”, o qual “entende a morte como uma acontecimento que vem-de-encontro no mundo-ambiente, pois a certeza a ele relativa não alcança o ser para o final” (HEIDEGGER, 2012a, p. 707).

Voltamos assim ao início deste breve incurso sobre o pensamento de Heidegger a respeito da “morte”. Com Haar abrimos esta jornada e com ele fechamos. Voltamos ao “ser” humano não sendo uma substância corporal animada ou a unidade de duas substâncias (corpo e alma), mas definitivamente a ek-sistência (ek-sistenz), ou seja, abertura, transcendência, relação ek-stática ao “ser”, enquanto seu traço essencial (HAAR, 1990, p. 95). Desta maneira, as propriedades e os poderes do “ser” humano não são de seu qualificador “humano”, que não lhe outorga “ser”, nem relação a “ser”, nem centralidade entre a totalidade de entes, muito embora o “ser” humano se dê no mi-lieu desta totalidade, como “clareira do ser”. Nesta situação, “em que” ganha todo sentido o “morrer”, também se relativiza toda e qualquer decisão que só se importe com a subjetivização do “si-mesmo” em “mim-mesmo” conjuntamente com a objetivização de entes, apresentando-se assim segundo à primeira forma de “des-velamento”, a techne, como simples “perícia produtiva” em “pensamentos calculativos”.

Pela diferença instaurada entre o mim-mesmo e o si-mesmo, Heidegger parte em demanda do que tornará o si-mesmo isto que ele é propriamente (eigen): ele estabelece a ipseidade em seu Eigentlichkeit [autenticidade]. Ora, este ser-si-mesmo-propriamente revela o si-mesmo como aquele que, impregnado de ser, designa em direção ao ser como ao seu fundo. Este fundo o domina e no entanto o si-mesmo, que é Da-sein, a ele tem acesso: ele conhece aquilo que o abre a si-mesmo, embora estando lançado nesta estrutura que o sobre-põe e o dis-põe. Esta estrutura aparece assim como um ato de apropriação (Er-eignis), aquele do ser que, em enviando o si-mesmo a sua própria ipseidade, o envia igualmente a ele-mesmo ser — de um abismo a outro. O ser se dá assim como este Eignen [apropriar-se] em quem todas as estruturas existenciais postas em relevo por Ser e Tempo encontram sua fonte doadora (CARON, 2005, p. 13).

Conclusão

Dentro das limitações de um artigo, foi feita a tentativa de resumir a máxima relevância da questão da morte do “ser” humano, examinando a contribuição tão significativa de Heidegger para tal. Sua mensagem contundente poderia ser assim provisionalmente enunciada: resoluta, antecipada e propriamente ser-para-a-morte, dado que “o ‘final’ do ser-no-mundo é a morte”, ou seja, o “telos” da constituição fundamental do Dasein, ser-no-mundo, é morte. Embora o “humano” sujeito a representações sucessivas se atenha a isto ou aquilo, em ser-para-a-morte se está livre de todo apego a isto ou aquilo, na aquiescência tanto disto quanto daquilo, na proximidade de tudo e pertencimento a nada, no “deixar-ser”[36] (Gelassenheit = serenidade). Dois pontos devem ser destacados neste deixar-ser que acolhe a morte, aí-não-se-é, em aí-se-é: o “abandono do ser”, com seu corolário mais imediato, “o modus do cotidiano ser-si-mesmo, cuja explicação torna visível o que nos permitimos denominar de o “sujeito” da cotidianidade: a-gente” (HEIDEGGER, 2012a, p. 331). Um segundo ponto em questão, atentar à prevalência crescente do “humano” sempre que se lida com a expressão “ser humano”[37]. Este segundo ponto se faz sobremaneira notar na diversidade cacofônica de respostas ao que é a “essência do homem”. Todo e qualquer ato ou fato humano, inclusive a morte fica assim comprometido, pela ignorância de sua fundamentação: o “ser” humano.

Deste modo, perde-se contato com a raiz do agir humano, ser-para-a-morte e, portanto, com a serenidade da aquiescência, do deixar-ser, unicidade de aí-ser e aí-não-ser. Elaboram-se há mais de um século considerações, métodos e técnicas visando tipificar e formalizar processos decisórios e de tomada de decisão, como se fossem prerrogativas do “ser” humano, e não apenas um “jogo” do humano: cenas, personagens e estorinhas na tela do “ser”. Tudo ganha importância e elaboração submetido ao reconhecimento do “ser” humano, como “demasiadamente humano”, nas palavras de Nietzsche. Ou, em termos heideggerianos, um “ser-subsistente” (Vorhandensein) entre a totalidade de entes, dotado de razão, reduzida ao cálculo e a instrumentalidade.

O “ser” humano é cativo de um “jogo mortal”, o “humano”, que lhe encobre a verdade do “ser”. Somente na “morada do homem”, no êthos, nesta habitação na proximidade da morte, enquanto possibilidade extrema do Dasein, se é capaz da mais alta revelação do “ser” e sua verdade. Somente desde esta moradia é possível comensurar-se ao incomensurável e des-encobrir a tão esquecida verdade do “ser”, resgatando e retomando a essência do homem como mortal e do “ser” como “realidade” (Wirklichkeit), “vigência”, o que sempre vige. Nas palavras de Mestre Eckhart (Sermão 8), a quem Heidegger admirava: “O homem deve se dar de boa vontade à morte e morrer, a fim de que lhe seja partilhado um ser melhor” (ECKHART, 2006, p. 81).

Bibliografia

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HEIDEGGER, M. Contribuições à Filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2014.

Notas

[3] “Será que o que conhecemos como sendo o homem, o animal, o bobo da civilização, o guardião da cultura, talvez mesmo a personalidade, será que tudo isso só se apresenta nele como a sombra de algo totalmente diverso, disso que chamamos o ser-aí!” (HEIDEGGER, 2003, p. 8).
[4] “Mas o ser (essência em sentido verbal) do homem, ‘o ser-aí do homem’ não é nada de humano.” (HEIDEGGER, 2008, p. 407); razão para o uso neste ensaio da expressão “ser” humano. “O ser do Dasein não deve ser deduzido de uma ideia do homem” (HEIDEGGER, 2012a, p. 509).
[5] “Para um ‘olhar’ ôntico-ontológico não prevenido, a-gente [das Man] se desvenda como o ‘sujeito mais real’ da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2012a, p. 369).; “A-gente ela-mesma é quem executa o “natural” discurso-do-eu” (HEIDEGGER, 2012a, p. 877).
[6] Usa-se indiscriminadamente Dasein e sua mais comum tradução em português, ser-aí, dando preferência a esta última quando se quer acentuar o ser e/ou o aí.
[7] “O homem não está aí, ele é o Aí” (CARON, 2005, p. 776).
[8] “Sua finitude não significa primariamente um terminar, mas é um caráter da temporalização ela mesma” (HEIDEGGER, 2012a, p. 897).
[9] “[...] sum moribundus [‘sou moribundo’], moribundus não como alguém gravemente doente ou ferido, mas enquanto sou, sou moribundus. O moribundus primeiro dá ao sum seu sentido” (HEIDEGGER, 1985, p. 317).
[10] Ao longo deste artigo vai ficar evidente a pobreza desta tradução de “das Sein zum Tode”, pois, como afirma Heidegger (Cahier de l’Herne – Heidegger, HAAR, 1983, p. 118), “trata-se de fato de ser em direção a morte”.
[11] “O Dasein não é o ‘ser-aí’ mas ao invés, e se necessário traduzir isto que todo mundo admitiu intraduzível, o ‘aí-ser’: aí, há ser enquanto ser” (CARON, 2005, p. 774).
[12] “Nela [na angústia] o Dasein se encontra ante o nada da possível impossibilidade de sua existência. [...] O ser para a morte é essencialmente angústia” (HEIDEGGER, 2012a, p. 729).
[13] “No morrer se mostra que a morte é ontologicamente constituída pelo ser-cada-vez-minha e pela existência” (HEIDEGGER, 2012a, p. 663).
[14] “Somente a morte é, no entanto, o único ‘final’ [Ende] do Dasein e, formalmente tomado, é só um dos termos finais abrangendo a totalidade do Dasein. O outro ‘final’ é o ‘começo’, o ‘nascimento’. Só o ente sendo ‘entre’ o nascimento e a morte exibe o todo buscado” (HEIDEGGER, 2012a, p. 1011).
[15] “O Dasein não se junta de novo completamente ao ser, no sentido de seu próprio ser senão morrendo!” (HAAR, 1990, p. 31).
[16] “Cinco são os modos, portanto, nos quais o ser-aí humano descerra [aletheuein] o ente como atribuição e negação. E esses modos são: saber-fazer [techne] — na ocupação, na manipulação, na produção —, ciência [episteme], circunvisão [phronesis] — intelecção —, compreensão [sophia], suposição apreendedora [noûs]” (trad. de Heidegger da Ética a Nicômaco Livro VI, Capítulo 3, 1139b15ss, em HEIDEGGER, 2012b, p. 21).
[17] A pobreza dessa analogia está no risco de incidência no primeiro preconceito dado por Heidegger (2012a, p. 35) para se descartar a “questão do ser”: a universalidade do ser. “‘Ser’ não delimita a região suprema do ente”.
[18] “Gozamos e nos satisfazemos como a-gente [das Man] goza; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e arte como a-gente vê e julga; mas nos afastamos também da “grande massa” como a-gente se afasta; achamos “escandaloso” o que a-gente acha escandaloso. A-gente, que não é ninguém determinado e que todos são, não como uma soma, porém, prescreve o modo-de-ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2012a, p. 365).
[19] “A ideia existenciária formal do ‘culpado’, nós a determinamos, portanto, assim: ser-fundamento de um ser determinado por um não — isto é, ser-fundamento de uma nulidade” (HEIDEGGER, 2012a, p. 777).
[20] “Ser-‘aí’ implica poder não ser-‘aí’” (HAAR, 1990, p. 28).
[21] “O Dasein, do mesmo modo que enquanto é, já é constantemente o seu ainda-não, já sempre também o seu final” (HEIDEGGER, 2012a, p. 677).
[22] “Na cotidianidade do Dasein a maior parte das coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não era ninguém” (HEIDEGGER, 2012a, 367).
[23] Segundo Maxence Caron (2005, p. 14), o mim-mesmo (subjetividade) aparece a princípio como o resultado da atividade fenomenalizante do si-mesmo (ipseidade).
[24] “Permanecer aberto ao aberto: tal é a significação de Entschlossenheit, que se traduz correntemente e muito aproximativamente por ‘resolução’" (CARON, 2005, p. 923). Segundo Caron (2005, p. 942), ser-para-a-morte e resolução antecipadora são as duas atitudes fundamentais do si-mesmo em seu desdobramento.
[25] “A morte como poder-ser se torna o equivalente do ser-no mundo na absoluta singularidade” (HAAR, 1990, p. 32).
[26] “A-gente mesma diz eu, eu muito frequentemente e em voz mais alta porque no fundo não é propriamente ela mesma e se desvia do poder-ser próprio” (HEIDEGGER, 2012a, p. 877).
[27] “[...] todos os existenciais se tornam nomes da morte. Assim se estabelece uma equivalência entre morte e Geworfenheit ou ser-dejectado, entre morte e Verfallen ou decair” (HAAR, 1990, p. 32).
[28] “Aberto no seu “aí”, ele [Dasein] se mantém com igual originariedade na verdade e na não-verdade” (HAAR, 1990, p. 817).
[29] “A nulidade que originariamente atravessa de um extremo ao outro o ser do Dasein, dominando-o, se lhe descobre a ele mesmo no ser-para-a-morte próprio” (HEIDEGGER, 2012a, p. 837).
[30] “O ser ele mesmo, em relação ao qual o Dasein pode comportar-se e sempre se comporta desta ou daquela maneira, é por nós denominado existência” (HEIDEGGER, 2012a, p. 59).
[31] Em nota à tradução de Ser e Tempo, de Márcia Schuback (HEIDEGGER, 2006, p. 562): "Devido à pregnância desse conjunto semântico é que Ser e Tempo reservou ‘existência’ para designar toda a riqueza das relações recíprocas entre presença e ser, entre presença e todas as entificações, através de uma entificação privilegiada, o homem. Nessa acepção, só o homem existe. A pedra ‘é’ mas não existe. O carro ‘é’ mas não existe. Deus ‘é’ mas não existe. Privilégio não diz aqui exercício de poder e dominação mas a aceitação do dom da existência que lhe entrega a responsabilidade e a tarefa de ser e assumir esse dom.“
[32] “[...] o abuso quase fantástico do termo “decisão” não pode nos impedir de reservar para esse termo aquele conteúdo por força do qual ele permanece ligado à cisão mais intrínseca e à distinção mais extrema” (HEIDEGGER, 2007, p. 371).
[33] “Mas o si-mesmo da cotidianidade é a-gente...” (HEIDEGGER, 2012a, p. 695).
[34] Citado por Heidegger em seu ensaio “O Eterno Retorno do Mesmo” (2007, p. 238).
[35] “A decisão mais elevada que pode ser tomada e que se transforma respectivamente em fundamento de toda história é aquela entre o predomínio do ente e a dominação do ser” (HEIDEGGER, 2007, p. 371).
[36] É de Mestre Eckhart, para Heidegger o “mestre de leitura e de vida”, que o acompanhou desde 1910, que seu pensamento toma o termo Gelassenheit (gelâzenheit em alemão medieval). Segundo Fédier, Arjakovsky e France-Leonard (2013, p. 521), vem do verbo lâzen, deixar, sem o sentido de rejeitar, mas de liberar, e assim Gelassenheit se traduz geralmente por “deixar-ser”.
[37] O homem, enquanto transcendência ex-sistente, superabundante em possibilidades, é um ser do longínquo [NT: duplo sentido simultâneo: um desdobramento do longínquo — ele mesmo (Wesen der Ferne)]. E é somente por estes longínquos originais que ele se molda em sua transcendência em direção ao ente em seu conjunto e que se dá nele a verdadeira proximidade das coisas. E é somente o poder-compreender ao longe que, para o Dasein enquanto si-mesmo, desperta a resposta de uma co-presença, no ser-com pelo qual ele pode sacrificar o mim-mesmo, para se conquistar como si-mesmo próprio (HEIDEGGER, 1968, p. 158).

Notas de autor

[a] Doutor em Doutor em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva
[b] Doutor em Geografia e Doutor em Filosofia
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