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A “interdição do reconhecimento” em Frantz Fanon: a negação colonial, a dialética hegeliana e a apropriação calibanizada dos cânones ocidentais
The “interdiction of recognition” in Frantz Fanon: colonial denial, the Hegelian dialectic and the Calibanized appropriation of western canons
Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, no. 59, pp. 455-481, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Dossiê


Received: 22 March 2021

Accepted: 10 July 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.DS07

Resumo: Neste artigo, discutem-se as relações entre Frantz Fanon e a dialética hegeliana. A Dialektik von Herr und Knecht é uma das chaves analíticas mais importantes de Phänomenologie des Geistes, publicado por G. W. F. Hegel em Jena, em 1807. No entanto, em seu Peau Noire, Masque Blancs, escrito aos 25 anos e publicado em 1952, Fanon argumenta que sob o jugo colonial a reciprocidade, característica basilar da dialética, não se efetiva. A pergunta que se procura responder, no presente estudo, é: o argumento apresentado pelo autor representa uma ruptura, reafirmação ou transfiguração da dialética hegeliana? Diante desse desafio, são postos em diálogo alguns trechos de Phänomenologie e de Peau Noire, Masques Blancs, bem como outros escritos posteriores de Fanon, para, em seguida, problematizar as proximidades, tensões e rupturas entre ambos. O argumento aqui apresentado girará em torno da defesa da existência de uma apropriação transfigurada (calibanizada) da dialética, por Fanon, a partir de três elementos interdependentes: 1. Fanon partilha do pressuposto hegeliano segundo o qual a identidade é produzida na relação recíproca com sua alteridade; 2. O estranhamento colonial interdita essa reciprocidade ao promover um decaimento da dominação política para o patamar de negação coisificadora e bestializada; 3. A negação colonial não é ontológica, mas histórica e, portanto, pode ser superada a partir de uma negação prático-sensível, levada a cabo pelos próprios colonizados. Ao longo deste paper, discutem-se, ainda, algumas implicações do argumento aqui defendido diante da literatura especializada no pensamento de ambos os autores.

Palavras-chave: Frantz Fanon, Colonialismo, Dialética, Reconhecimento, G W. F. Hegel.

Abstract: In this article, the relations between Frantz Fanon and Hegelian dialectics are discussed. Dialektik von Herr und Knecht is one of the most important analytical keys of Phänomenologie des Geistes, published by GWF Hegel in Jena in 1807. However, in his Peau Noire, Masque Blancs, written at 25 and published in 1952, Fanon argues that under the colonial yoke, reciprocity, a fundamental characteristic of dialectics, is not effective. The question that is sought to be answered in this study is: does the argument presented by the author represent a rupture, reaffirmation or transfiguration of the Hegelian dialectic? Faced with this challenge, some excerpts from Phänomenologie, and from Peau Noire, Masques Blancs, as well as other later writings by Fanon, are put into dialogue, to then problematize the closeness, tensions and ruptures between both. The argument presented here will revolve around Fanon's defense of the existence of a transfigured (calibanized) appropriation of the dialectic, based on three interdependent elements: 1. Fanon shares the Hegelian assumption that identity is produced in the reciprocal relationship with its otherness. 2. Colonial strangeness (Entfremdung) forbids this reciprocity by promoting a decay of political domination to the level of objectifying and bestialized denial; 3. Colonial negation is not ontological, but historical and, therefore, can be overcome by a practical-sensitive negation, carried out by the colonized themselves. Throughout this paper, some implications of the argument defended here before the literature specialized in the thinking of both authors are discussed.

Keywords: Frantz Fanon, Colonialism, Dialectic, Recognition, G W. F. Hegel..

Introdução

Em 1951, um jovem martinicano de 25 anos chamado Frantz Omar Fanon (1925-1961) diagnosticava, em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Psiquiatria Forense da Universidade de Medicina de Lyon[2], um incômodo limite à Dialektik von Herr und Knecht .Dialética do Senhor e do Servo[3]), de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), quando aplicada ao colonialismo: sob o jugo colonial, a reciprocidade necessária ao processo de reconhecimento de si e do outro, como sujeitos de igual dignidade, não se efetivaria. É, pois, sobre esse diagnóstico, os efeitos subjetivos e as implicações teóricas para as ciências sociais que o presente artigo se debruça.

A Dialektik von Herr und Knecht é uma das chaves analíticas mais importantes de Phänomenologie des Geistes[4] [Fenomenologia do Espírito], publicado por Hegel em 1807 em Jena/Alemanha, ainda sob o calor, por ele aclamado, da Revolução Francesa e subsequente invasão de Napoleão, “a alma do mundo [...] montado em seu cavalo” (HEGEL, 1990), sobre o então território prussiano. Com e a partir dela, desdobra-se, no conjunto da obra hegeliana, a discussão a respeito de temas cruciais para o seu pensamento, como a negação, a vida, a morte, a dominação, a reciprocidade, a cognição, o reconhecimento, a identidade e a consciência. Há, nessa alegoria, a explicitação de um confronto intersubjetivo, em que o desejo e a submissão — mas também as possibilidades de afirmação, reciprocidade, diferença e identidade — são descritos como parte da história humana, em seu caminho de reconhecimento de si, como sujeito da história. Como afirma: “A consciência-de-si só alcança sua satisfação em uma outra consciência-de-si” (HEGEL, 1999, p. 124-5, §175).

Está implícita nessa formulação a determinação reflexiva entre identidade e diferença onde a consciência se percebe e se constitui na relação com aquilo que lhe é ou aparece ser exterior e, sobretudo, a ideia de um sujeito universal e autocentrado, que se constitui, se reconhece e autodetermina relacionalmente, a partir da razão na história (LUKACS, 1979). Nesse sentido, o reconhecimento é o momento de identidade (reconciliação) do espírito absoluto consigo mesmo, i.e., ponto de chegada da dialética, acessível à consciência apenas após o confronto com a sua exterioridade, que pode ser constituída tanto pela objetividade alienada que se lhe aparece como outra de si quanto pelo confronto com outra(s) subjetividade(s).

O ponto que interessa ao presente trabalho é que embora Fanon concorde que essa reciprocidade é característica ontológica daquilo que nos torna humanos, afirmará enfaticamente em seu esforço para desvelar as particularidades históricas da sociabilidade colonial afirma enfaticamente: “aqui o senhor difere essencialmente daquele descrito por Hegel. Em Hegel há a reciprocidade, aqui o senhor despreza a consciência do escravo [...]” (FANON, 2008, p. 183). Do mesmo modo, “o escravo não é de forma alguma assimilável àquele que, perdendo-se no objeto, encontra no trabalho a fonte de sua libertação [...]. Em Hegel, o escravo afasta-se do senhor e volta-se para o objeto. Aqui, o escravo volta-se para o senhor e abandona o objeto” (FANON, 2008, p. 183).

A pergunta que surge, a partir desta posição, é: o diagnóstico fanoniano representa uma ruptura, reafirmação ou transfiguração da dialética hegeliana? Com vistas à essa questão, serão postos em diálogo e confronto aqui alguns escritos de Hegel e Fanon. Como se poderá constatar, parte-se do pressuposto aqui de que a alienação colonial .aliénation) apresentada pelo psiquiatra martinicano guarda proximidades com a noção de estranhamento (Entfremdung) oferecida por George Lukacs (2013), em seu Para uma Ontologia do Ser Social, ao apresentar o que se nomeia aqui por estranhamento colonial, em suas dimensões econômicas e ideológicas, como fenômeno histórico complexo de cisão entre o indivíduo (colonizado) e a dimensão genérica da sua humanidade (FAUSTINO, 2013).

O termo “estranhamento” foi empregado por Karl Marx nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos, de 1844, como sinônimo de desumanização e desidentificação do homem com sua vida humano-genérica: “O trabalho estranhado faz [...] do ser genérico do homem, tanto da natureza quanto da faculdade genérica espiritual dele, um ser estranho a ele [...]. Estranha do homem o seu próprio corpo, assim, como a natureza fora dele, tal como a sua essência espiritual, a sua essência humana. [...] uma consequência imediata disto [...] é o estranhamento do homem pelo [próprio] homem” (MARX, 2010, p. 85-6). Em sua Ontologia, George Lukacs retoma o “estranhamento” (Entfremdung) — em sua diferenciação com o termo alienação (Entãusserung), como exteriorização ou objetivação (Vergegentãndlinchung) — como uma alienação negativa, construída pelos próprios homens, que obstaculiza o seu processo de autoconstrução e bloqueia o pleno desenvolvimento do gênero humano (LOPES, 2006).

Apesar de os autores supracitados estarem falando do estranhamento do trabalho posto pela sociabilidade do capital, Lukacs (2013) compreenda também outras formas de estranhamentos que se articulam a essa enquanto complexo de complexos[5]. O argumento que estrutura o presente trabalho se pauta pela matização do racismo moderno como um estranhamento colonial. O que se buscará evidenciar aqui, no entanto, é a originalidade do argumento de Fanon, ao apontar a particularidade desse estranhamento, diante de um complexo maior de complexos estranhados que compõem a sociabilidade do capital e, sobretudo, chamar a atenção para a relevância desse diagnóstico para as ciências sociais contemporâneas.

A presente exposição apresenta e problematiza três elementos interdependentes, que se identifica como basilares ao estatuto teórico de Fanon: 1. Fanon partilha do pressuposto hegeliano segundo o qual a identidade é produzida na relação recíproca com sua alteridade. 2. A interdição colonial do reconhecimento é um decaimento da dominação política para o status de negação da humanidade; 3. Tal estranhamento não é ontológico, mas histórico e, portanto, pode ser superado a partir de uma negação prático-sensível, levada a cabo pelos próprios colonizados.

1 O senhor, o servo e a reciprocidade

Em seu estreito comprometimento com a concepção de sociedade civil oferecida pelos economistas burgueses de sua época, Hegel (2008, p. 29-30) elaborou uma teleologia teológica inovadora que identificava o Estado moderno como a “auto-realização da razão”, ou, como afirmava, a “justificação de Deus na história”. Se, por um lado, essa formulação desenvolve-se a partir de uma lógica filosófica que atribuía à Europa capitalista a universalidade auto-antecipadora do espírito universal, por outro, contraditoriamente, oferece um esquema especulativo que aponta para uma abertura radical da história, como “processo multifacetado dos intercâmbios sócio-históricos” (MÉSZAROS, 2008, p. 130), que abrigam, portanto, a possibilidade de uma transformação social.

Para ele, a consciência de nossa existência dependia da interação e, sobretudo, do reconhecimento que os outros nos atribuem, pois é na relação com eles – enquanto exterioridade objetiva – que nos fazemos e percebemos Nós/Eu. Em suas palavras: “A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma outra: quer dizer que só é como algo reconhecido” (HEGEL, 1988, p. 126, §178). Como lembra Axel Honneth, a principal contribuição do filósofo alemão é a afirmação do caráter recíproco da identidade uma vez que “o conflito prático que se acende entre os sujeitos é por origem um acontecimento ético, na medida em que objetiva o reconhecimento intersubjetivo das dimensões da individualidade humana” (HONNETH, 2003, p. 48).

No mesmo caminho, mas direcionando a reflexão para pensar o dilema do negro na sociedade moderna, Fanon (2008, p. 180) inicia a seção B – Le Nègre et Hegel .O Preto e Hegel), do capítulo Le Nègre et la Reconnaissance (O Preto e o Reconhecimento), em PNMB, afirmando que o “homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido”[6]. A dialética do reconhecimento, continua Fanon, pressupõe que Eu e o Outro nos façamos humanos em uma relação recíproca, evitando enclausurar um ao outro em uma “realidade natural”, caso contrário, a dialética não se efetivaria, tornando “irrealizável o movimento nos dois sentidos” (FANON, 2008, p. 180).

Tanto em Hegel quanto em Fanon a consciência de si é em-si e para-si porque é legitimada por outra consciência e, portanto, o movimento de reconhecimento pressupõe ir além do em-si do próprio sujeito, identificando o seu ser no Outro. Ocorre que, para o filósofo alemão, o movimento dessas duas consciências, cada qual desejando fazer da outra o objeto de sua satisfação, é expresso por uma luta (de vida ou morte) para provar a si mesma e a uma outra o valor de sua existência, e é somente a partir dessa luta que a consciência pode elevar-se à certeza de si, pois o “indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente. Assim como arrisca a própria vida, cada um deve igualmente tender à morte do outro; pois para ele o Outro não vale mais que ele próprio” (HEGEL, 1988, p. 128-129, §187).

Esse aspecto é crucial, pois aquele que não arriscou a vida em busca da afirmação de si como liberdade não pode ter a “certeza de si mesmo”; ao contrário, “sua essência se apresenta como um outro, [que] está fora dele; [e, portanto] deve suprassumir seu ser fora-de-si”[7] (HEGEL, 1988, p. 128-129, §187). Em Hegel, como se nota, em primeiro lugar, a consciência independente, que se afirma, é o senhor e a dependente, que não se arriscou, é o servo[8] que vê seu ser subsumido, fora de si. Em segundo lugar, essa coisidade inessencial, atribuída ao último, é marcada por uma negatividade ontológica que o separa decisivamente do senhor, apartando o que é idêntico a si (mesmo = idem) de toda a diferença suposta.

No entanto a polarização existente entre uma consciência dependente e uma independente apresenta-se tal e qual apenas em um nível mais primário e imediato de consciência (certeza sensível). Ao longo da alegoria — ao fazer do servo a coisa que transforma o seu desejo em gozo - o senhor se torna dependente do trabalho dele, “enquanto a independência deixa-o ao servo, que a trabalha” (HEGEL, 1999, p. 130, §190), percebendo-se, ao final, que “a consciência inessencial é, nesse reconhecimento, para o senhor, o objeto que constitui a verdade da certeza de si mesmo” (HEGEL, 1999, p. 130, §192), ou seja, o Senhor deixa de estar certo de si como verdade e percebe que a sua verdade é uma “consciência inessencial” que está fora dele, no servo.

Em contrapartida, a verdade, como “consciência independente”, emerge como própria da consciência servil rumo ao reconhecimento recíproco do ser em-si em para-si do outro (HEGEL, 1999, p. 131-2, §193), fazendo com que os últimos (servos) se elevem à posição de primeiros .para-si). Para a socióloga estadunidense Judith Rollins (2007), nessa passagem, a dialética materializa a possibilidade bíblica de “os últimos se tornarem os primeiros” aqui mesmo, no reino dos homens[9], ou seja, a possibilidade dos dominados emanciparem-se dos estranhamentos históricos que vivenciam, não apenas no plano lógico-especulativo – ou teológico –, mas também, como reivindicará Marx, posteriormente, em um sentido distinto de Hegel, no plano prático-sensível (materialista), transgredindo efetivamente a própria ordem social que lhes nega enquanto sujeitos. Do mesmo modo, pode-se pensar as experiências emancipatórias, como a Revolução do Haiti[10], as lutas anticoloniais de libertação nas colônias europeias e estadunidenses da África, Ásia e América, bem como a concretização prática dessa possibilidade.

Não é à toa que Hegel, ao constatar esses riscos, buscou amenizá-los oportunamente[11]. Se não é possível se vacinar contra as consequências subversivas da dialética, quando se pensa a história humana em seu para-si contraditório, em busca da expansão de liberdade, que, pelo menos, se defina, com critérios precisos, quem ou o que pode ser considerado humano. Em Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte (Filosofia da História)[12], escrito anos depois de Phänomenologie des Geistes, Hegel apresentará uma visão racional predeterminada da história humana universal, pautada por uma geografia racializada da razão[13] em que a África subsaariana não faz parte enquanto a Europa, ou o ocidente – em seus pressupostos liberais-burgueses – apresenta-se como polo mais desenvolvido ou até, o seu fim acabado: o ponto de chegada da história.

O ponto a ser destacado aqui, a despeito desse visível eurocentrismo de Hegel, é, em primeiro lugar, a dimensão relacional da consciência de si com aquilo que lhe . ou lhe aprece ser outro: a afirmação de Fanon (2008, p. 180), segundo o qual é “no outro” que o homem “condensa o sentido da sua vida”, seguido de uma citação direta da Fenomenologia, localizada no primeiro parágrafo da seção “O Preto e Hegel”, sugere que, tanto para ele quanto para o filósofo alemão, a relação entre identidade e diferença é de reciprocidade e não exclusão, i.e., o Eu é dependente do Outro e se constitui com ele em uma determinação reflexiva de negação e afirmação. Não se desconsidera, no entanto, que a tematização da identidade como reconciliação formal apenas com aquilo que lhe é idem(ticamente) o mesmo (A = A e portanto não é B ) fundamentou a exclusão, submissão e até o extermínio, de tudo e todos que eram historicamente considerados diferentes. O que se destaca – e essa foi a base da crítica de Fanon ao nacionalismo, por exemplo[14] - é a dimensão relacional e reciprocamente dependente entre a identidade e a diferença, presente na própria dialética.

Em segundo lugar, a reciprocidade implícita à dinâmica de negação e afirmação, identidade e diferença, através da história, permite que o Eu também se converta em outro para um Outro, de modo que o sujeito se reconheça também objeto dependente, e em alguma instância, objeto do desejo desse outro, em um jogo de afirmação, negação e dependência recíproca. A dominação política, nesse caso, é legitima não apenas porque se ampara em convenções contratualistas, tradicionais ou carismáticas, mas, sim, porque é exercida entre sujeitos – mesmo que assujeitados - da mesma espécie e, portanto, não é improvável que mesmo sob opressão, os últimos almejem ser os primeiros.

Em terceiro lugar, e a essa altura, pode-se introduzir o aspecto central da presente reflexão: se a reciprocidade é a característica desse processo de desenvolvimento do espírito humano, o que faz com que os africanos e seus descendentes – entre os quais se incluem os revolucionários haitianos em sua efetivação concreta dos termos abstratos da Revolução Francesa – não sejam reconhecidos como parte deste processo de desenvolvimento humano universal? É sobre estas questões que nos debruçaremos a seguir.

2 A negação racializada e a interdição do reconhecimento

Embora Fanon parta de Fenomenologia do Espírito para pensar o reconhecimento como reciprocidade, mas, sobretudo, como fruto de uma luta de vida e morte pela liberdade, o jovem estudante aponta, em PNMB, uma anomalia na dialética, quando aplicado à situação colonial.

Historicamente, o preto (nègre), mergulhado na inessencialidade da servidão, foi liberto pelo senhor. Ele não sustentou a luta pela sua liberdade. De escravo (esclave), o preto emergiu à sala (lice) onde se encontravam os senhores. Como esses domésticos a quem, uma vez por ano, se permite dançar no salão, o preto procurou um apoio. O preto não se tornou senhor. Quando não há mais escravos não há mais senhores. (FANON, 1952, p.198, tradução livre).

Observa-se, aqui, em primeiro lugar, que o autor, fiel à tradução francesa de Hegel, oferecida por Hyppolite, utiliza o termo escravo (esclave), e não servo, para empregar a Dialektik von Herr und Knecht.Dialética do Senhor e do Servo) aos propósitos de seu empreendimento. Em segundo lugar, que o emprego – apenas possível na língua francesa – da palavra nègre, em vez de noir, para definir esse sujeito assujeitado pela colonização, exprime o status rebaixado de sua humanidade para o nível da animalidade objetificada[15]. Em uma analogia com o contexto anglófono, nègre poderia ser traduzido como o ofensivo nigger, enquanto noir, simplesmente, como black, ou seja, antônimo de white (GORDON, 2015, p. 22).

Esse decaimento (estranhamento) – que para Fanon (2010) poderia ser aplicado a outras situações de opressão e exploração onde a dimensão humana de alguém seja ontologicamente negada – à condição de nègre, e, portanto, escravo inessencial, tem consequências objetivas e subjetivas que precisariam ser descortinadas, caso se almeje entender – e, sobretudo, transformar – as relações postas pela universalização desigual e combinada do capital nas colônias. Para ele, o colonialismo, em sua vinculação umbilical e contraparte estranhada àquilo que o ocidente gestou de melhor, do ponto de vista da generalidade humana, sustenta-se, enquanto complexo de complexos, por uma interação econômico-ideológica que impede, de um lado, que a consciência “independente” (HEGEL, 1999) do colonizador se veja como parte da outra que a compõe e, do outro lado, que a “consciência dominada” do colonizado alcance a “verdadeira independência” como “consciência-de-si livre” como previsto na Dialektik von Herr und Knecht.

Diante desse estranhamento (colonial), o Outro não se lhe aparece – embora continue sendo – como elemento constituinte do Eu (SEKYIE-OTU, 1999). Em consequência, a dimensão humano-genérica, historicamente presente em cada particularidade universal[16], aparece como própria a apenas uma delas: o pretenso senhor (branco). Por conseguinte, o europeu, em seu movimento antropofágico de descobrir-se sujeito da história em contraposição à natureza, ao dizer “o que é o humano” [17], com as mãos cheias de sangue e a consciência turva pelo véu do racismo (DU BOIS, 1999), consegue apenas descrever a si mesmo, excluindo como menos ou não humano qualquer outro que não lhe pareça ele próprio.

O negro, por sua vez, cercado por esses “espelhos de vidro duro e deformante” (ELLISSON, 1990:07), dependente do olhar alheio para compor a própria imagem, assiste impaciente ao “desmoronamento” do próprio ego (FANON, 2008, p.103). A consequência dessa interdição, para o negro, é uma consciência duplicada, em que se vê, apenas, a partir do olhar do outro, que não o vê (DU BOIS, 1999)[18] e, uma vez imbuído e interiorizado esse olhar reificador, acaba aprisionado a essa particularidade amaldiçoada e “esmagadora” (DU BOIS, 1999, p. 103) ou, pior que isso, diante dela, age direcionando as suas agressividades pulsionais[19] contra si próprio[20] em vez de direcionar ao outro que opõe resistência ao seu para-si.

Entretanto, em Fanon (2008), o problema adquire expressão ainda mais dramática: o negro (noir) não existe em-si, enquanto ser substantivo; é apenas uma abstração (nègre) produzida por uma Weltanschauung reificada da sociabilidade colonial e, devido a esse estranhamento, a sua presença/existência é atestada, apenas, como predicado à agência do “verdadeiro” sujeito (branco/colonizador). Diante dele, portanto, sua resistência ontológica desfaz-se em um vazio dolorosamente nauseante.

A reviravolta atingiu o negro (noir) por fora (l’extérieur). O negro (noir) foi agido. Valores que não surgiram de sua ação, valores que não resultam da ascensão sistólica de seu sangue, vieram dançar um círculo colorido ao seu redor. A revolta não diferenciou o preto (nègre). Ele passou de um modo de vida para outro, mas não de uma vida a outra [...]. O negro (noir) se contentou em agradecer ao branco [...]. De tempos em tempos, ele luta pela liberdade e justiça, mas sempre se trata de liberdade branca e justiça branca, ou seja, valores secretados pelos mestres. O ex-escravo (ex-esclave), que não encontra em sua memória a luta pela liberdade nem a angústia (l'angoisse) da liberdade de que fala Kierkegaard, fica de pé com a garganta seca diante desse jovem branco que toca e canta na corda bamba do existência. (FANON, 1952, p. 199, tradução livre).

As referências à “náusea” sartreana e à angústia kierkgardiana são bastante elucidativas da posição de Fanon sobre a existência humana e os seus conflitos paradoxais em face da liberdade e indefinição. No entanto, o problema que ele está apontando é outro: o colonialismo provoca um “rebaixamento” (BIRD-POLAN, 2015) ao nível da inumanidade coisificada e, portanto, a náusea que ele se refere não provocada pelo tremor e a angústia diante da liberdade (para-si), mas pelo aprisionamento subjetivo e objetivo do colonizado em uma reificação pretensamente ontológica. Por essa razão, lamenta o autor, não lhe é possível “descer aos verdadeiros infernos” [21] e encarar humanamente a corda bamba da existência. Em outras palavras, ao relativizar o alcance de Hegel, Fanon também relativiza o alcance de seus críticos e herdeiros diante das particularidades coloniais.

Assim, a crítica fanoniana não é dirigida à maneira que este ou aquele autor abordam a dimensão humana e a dominação política, mas, sim, ao decaimento do nègre para baixo da dimensão humana, enquanto coisidade inessencial: “objeto em meio a outros objetos” (FANON, 2008, p. 103). A menção feita pelo autor a Marx, em Le Damnés de la Terre, é bastante didática, a esse respeito:

Quando se observa em sua imediaticidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas cada vez que abordamos o problema colonial. Não há nem mesmo conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, que não exigisse ser repensada aqui. O servo é de essência diferente do cavaleiro, mas uma referência ao direito divino é necessário para legitimar essa diferença estatutária. [...]. Não são as fábricas nem as propriedades nem a conta no banco que caracterizam em primeiro lugar a “classe dirigente”. A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, “os outros”. (FANON, 2010, p. 56, grifos nossos).

Embora ambos, o servo feudal (do alemão, Knecht), que Hegel tinha em mente em sua dialética, e o escravo (em francês, esclave) colonial, analisado por Fanon, encontrassem na religião a fundamentação da sua existência[22], há uma diferença fundamental de status entre eles. Mesmo que a sociedade feudal ocidental ainda não tivesse assistido ao surgimento das novas formas de governo, características da modernidade (FOUCAULT, 2006), pautadas pelos princípios políticos e jurídicos da “igual dignidade” (TAYLOR, 1993; 2005) e a “essência do servo” fosse religiosamente “diferente da do cavaleiro”, ambos eram iguais, enquanto filhos de Deus, e poderiam, a depender do destino divino, ascender ao mesmo paraíso, em outra vida[23]. Assim, a servidão (Knechtschaft) que inspirou Hegel – também traduzida para o inglês como Bondage – guarda, em seu voluntarismo assujeitado, um certo pacto que oferece algum benefício ao submisso, em nome da satisfação do desejo do mestre, mesmo que seja o prazer da sua segurança a partir da inserção garantida em uma comunidade maior.

O caso do escravo moderno a que se refere Fanon é outro: não se faz pacto com um meio de produção, apenas se lhe utiliza, manipula, destrói ou o descarta, caso não seja útil. Para essa coisa (it e não he/she) selvagem ou doméstica, o direito e o acesso ao espaço público da polis (ARENDT, 2014) não são possíveis, exceto enquanto “pano de fundo natural” , animado, ou inerte, “ao lado de palmeiras e os camelos” (FANON, 2010, p. 286). Isso significa que, desde que a democracia burguesa emergiu como o modo político mais adequado à reprodução do capital, até o presente momento – em que ela passa a ser paulatinamente enfraquecida, inclusive nos centros capitalistas – o revezamento entre o direito e a soberania próprio à biopolítica democrática somente se sustentou porque contou, de maneira complementar e invertida, com a permanência contínua de uma necropolítica autocrática sob aqueles a quem a humanidade é inconcebível (TROUILLOT, 1995)[24], como afirmou Fanon em Les damnés de la terre:

O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos policiais. Nas colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino, religioso ou leigo, a formação dos reflexos morais e transmissíveis de pai para filho, a honestidade exemplar de operários condecorados depois de cinquenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado à harmonia e à sabedoria, essas formas estéticas do respeito à ordem estabelecida, criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e de inibição que alivia consideravelmente a tarefa das forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder, interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, em contrapartida, o policial e o soldado, por sua presença imediata, suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e lhe aconselham, com coronhadas ou napalm, que fique quieto. Como vemos, o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não alivia a opressão, não disfarça a dominação. Ele as expõe, ele as manifesta com a consciência tranquila das forças da ordem. O intermediário leva a violência para as casas e para os cérebros dos colonizados. (FANON, 2010, p. 55).

A reciprocidade, empatia, solidariedade, ou a sororidade – mesmo que permeada por lutas, desigualdades e dominações – só é possível entre sujeitos da mesma espécie. Por essa razão, para ele, não apenas a dialética hegeliana ou marxismo, precisariam ser distendidas, mas toda a filosofia política e a sociologia, que analisam o poder e a dominação na sociedade moderna de forma a equacionar a sua vinculação umbilical com os estranhamentos coloniais.

3 A negação da negação colonial

O diagnóstico fanoniano da interdição do reconhecimento foi recebido com entusiasmo por seus interlocutores mais comprometidos com a crítica ao sujeito moderno e à identidade, nomeadamente, os pensadores ligados direta ou indiretamente à chamada filosofia da diferença[25] porque, visto isoladamente, colocaria em xeque tanto as abordagens teóricas propositoras de uma práxis política emancipadora quanto as abordagens liberais, mobilizadas em torno de um reconhecimento da diversidade cultural ou de critérios mais equitativos de distribuição dos recursos no interior da sociedade capitalista[26]. No entanto, quando se aplica ao próprio pensamento de Fanon à sua máxima, segundo o qual toda questão social e teórica deve ser equacionada em seu tempo[27], percebe-se que a constatação da já mencionada interdição não esgota o seu argumento mas, pelo contrário, ganha novos contornos diante das aberturas postas pela conjuntura futura.

Em 1951, quando escreve o seu primeiro livro, Fanon já havia defendido que a superação dos estranhamentos ali diagnosticados dependeriam de uma “reestruturação do mundo” (2008, p. 82). Para “sacudir as raízes contaminadas do edifício” (FANON, 2008, p. 28), argumentava, essa reestruturação se efetivaria a partir da luta pela transformação radical das condições sociais concretas, levando a termo a sociedade colonial. Essa abordagem, como sugere Renato Ortiz, é fruto de uma apropriação de Hegel e Marx pelos pensadores franceses – com destaque à Kojève e Hyppolite - que marcaram a formação de Fanon:

Entre 1939 e 1941 é completada a tradução da Fenomenologia do Espírito, e em 1946 são publicados os comentários de Hyppolite e Kojève sobre o sistema hegeliano. Difunde-se a partir de então uma interpretação humanista do idealismo, sublinhando no texto hegeliano a problemática do senhor e do escravo. Ao mesmo tempo tornam-se conhecidos na França os Manuscritos de 44, nos quais Marx compreende o processo de libertação do homem através do conceito hegeliano de alienação. Ao marxismo ortodoxo, representado pelo Partido Comunista Francês, contrapõe-se assim um marxismo humanista, muitas vezes reinterpretado pela tradição católicae existencialista que buscam em Marx e Hegel uma fonte de inspiração. Fanon será profundamente influenciado por esta corrente intelectual. Em diversos escritos irá identificar a relação entre branco/negro, colonizador/ colonizado à dialética do senhor e do escravo. Neste sentido, a libertação do homem é compreendida como um processo de desalienação, isto é, como uma superação de termos que se excluem. Seu entendimento do papel da violência nas sociedades em boa parte se fundamenta numa leitura “kojeviana” do texto hegeliano, pois ela é o meio através do qual a liberdade dos indivíduos se realizaria.

Contudo, no início da década de 1950, a “reestruturação” do mundo, almejada em PNMB ainda não se apresentava como possibilidade histórica concreta (FAUSTINO, 2018a), por isso, lamentou o jovem Fanon: “A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais” (FANON, 2008, p. 25). No entanto, os acontecimentos sociais e políticos dos anos seguintes foram decisivos para a reflexão teórica do autor ao apontar-lhe a possibilidade efetiva de os últimos serem os primeiros[28].

As lutas de libertação protagonizadas pelos povos africanos a partir de meados da década de 1950 – em que se inclui com Argélia que ele habitava neste momento (FAUSTINO, 2018a) –, descortinaram-lhe as possibilidades de superação, tanto do racismo como da exploração do homem pelo homem em geral, inaugurando assim um novo tempo histórico. Nos textos que escreve, a partir de então, a práxis revolucionária teria o poder de negar o estatuto colonial em todas as suas dimensões, restituindo a esse outro reificado a sua posição de sujeito[29], ascendendo, assim, de objeto inessencial a um “novo homem”, como se pode constatar em artigo no qual comenta a revolução argelina:

De facto, a Revolução Argelina restitui à existência nacional os seus direitos. De facto, é testemunho da vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa Revolução residem na mensagem de que é portadora. [...] A Revolução Argelina, propondo-se a libertação do território nacional, visa não só a morte deste conjunto, como a elaboração de uma sociedade nova. A independência da Argélia não é apenas o fim do colonialismo, mas o desaparecimento, nesta parte do mundo, de um gérmen de gangrena e de uma fonte de epidemia. A libertação do território nacional argelino é uma derrota para o racismo e para a exploração do homem; inaugura o reino incondicional da justiça. (FANON, 1964, p. 72).[30]

Em outro texto, escrito dois anos mais tarde, quando o colonialismo francês já dava sinal de esgotamento e algumas mudanças promovidas pela luta de libertação na Argélia já podiam ser visualizadas, ele insiste:

Nós desejamos poder mostrar com este primeiro estudo, que sobre a terra argelina nasceu uma nova sociedade. Hoje, os homens e mulheres da Argélia não se parecem aos de 1930, aos de 1954, aos de 1957. A velha Argélia está morta. [...] A nação argelina não se situa no futuro. [...] Está situada exatamente no centro de um novo homem argelino. Há uma nova natureza do homem argelino, uma nova dimensão de sua existência. A tese que afirma que os homens se transformam no exato momento em que modificam o mundo, nunca foi tão evidente como o é agora na Argélia. [...] Na Argélia assistimos à reposição do homem. (FANON, 1968, p. 10-12).

A esse respeito, quando se tem a Dialektik em foco, a comparação entre Fanon e Nietzsche, mas também com o próprio Hegel - em seu silêncio em relação à revolução haitiana – pode ser reveladora. Timothy Brennan (2014) lembra que Nietzsche repudiava a dialética socrática, justamente porque ela pressupunha a possibilidade das classes baixas ascenderem ao centro do cenário político[31], enquanto Fanon, ao contrário, clamava por ela como possibilidade e necessidade de emancipação. Ocorre que, para Fanon, essa possibilidade se abrira com a eclosão dos movimentos de libertação em todo o chamado Terceiro Mundo e diante dela, portanto, não hesitou em apostar todas as suas fichas, a partir do engajamento, enquanto intelectual orgânico, nas fileiras da Front de Libération Nationale da Argélia (FAUSTINO, 2018a; 2018c).

Em um caminho semelhante a Brennan, Judith Rollins (2007) e Ato Sekyi-Otu (1996) argumentam que a diferença central entre Hegel e Fanon é que o último se afasta da interpretação especulativa da dialética, para se aproximar de um humanismo radical, que se efetiva a partir da práxis revolucionária. A práxis, em Fanon (2010, p. 53), é o momento em que a “coisa colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual se liberta” (grifos nossos) pois, de um lado, atua para dissolver objetivamente os contrários aristotélicos que se fazem socialmente presentes na política, economia e mesmo na cultura, e, por outro lado, favorece, ao colonizado em luta, a emergência de novas possibilidades de percepção do mundo e, consequentemente, a si próprio (FAUSTINO, 2018c). Em suas palavras:

Em qualquer nível que a estudemos – encontros interindividuais, denominações novas dos clubes esportivos, composição humana das cocktails-parties (festas), da polícia, dos conselhos administrativos dos bancos nacionais ou privados – a descolonização é simplesmente a substituição de uma "espécie" de homens por outra "espécie" de homens. Sem transição, há substituição total, completa, absoluta (Fanon, 1968, p. 25 - grifos nossos) .

Pode-se concordar parcialmente, portanto, com Homi Bhabha (2003) quando afirma que os “delírios humanistas” de Fanon não se concretizaram nos desdobramentos posteriores das lutas de independência no continente africano, uma vez que a violência anticolonial, defendida por ele, desdobrou-se em ditaduras corruptas e genocídios fratricidas. No entanto, é importante lembrar que o próprio Fanon já havia alertado, em Les Damnés de la Terre, que a independência política, realizada sob a manutenção da estrutura econômica colonial, dificultava uma saída verdadeiramente independente e resultaria em novas formas de colonialismos. Não se pode negar que os caminhos teocráticos e ditatoriais da Argélia pós-independência; o genocídio em Ruanda; a guerra civil em Angola; o surgimento do Boko Haram e do Daesh, evidenciam os arriscados limites de um nativismo identitário. No entanto, a leitura de Les Damnés de la Terre para além do primeiro capítulo[32] e, sobretudo, com um olhar que transcenda as dimensões psicoafetivas do desejo, como propõe Bhabha, permite sugerir ser justamente a derrota do humanismo e suas aspirações universais concretas, no seio dessas experiências, que impediu que elas superassem a dimensão particular, ao qual foram relegadas, e não se elevassem, portanto, em direção à uma consciência de si aberta à alteridade em consonância com aquilo que Fanon denominou de “novo-humanismo”.

O ponto que se quer destacar aqui é a existência de uma “apropriação crítica” (SEKYI-OTU, 1996, p. 25), calibanizada (HENRY, 2000), ou “crioulizada” (BIRD-POLLAN, 2015; J. GORDON, 2014) de Hegel por Fanon, ao longo de seus escritos. Matthieu Renault fala, inclusive, em uma apropriação transfigurada em três níveis, em primeiro lugar, pela tradução de Hegel por Kojève e Hypolite, onde a alienação é tomada como metáfora para pensar as contradições sociais e as suas superações. Em segundo lugar, pela leitura que Simone de Beauvoir (1966, 1976a, 1976b) faz do Hegel de Kojève em Deuxième Sexe . Pour une morale de l’ambiguïté, onde defende tanto a inexistência prévia a uma essência feminina quanto a existência de uma objetificação que impede o reconhecimento das mulheres (o segundo sexo) como seres humanos. A posição de Fanon, segundo Renault, seria o terceiro nível da apropriação, ou como coloca, uma tradução da tradução da dialética hegeliana (Renault, 2014). Esta apropriação (calibanizada) aponta mais para a efetivação, a seu modo, da dialética, do que para a sua recusa. Não fora empreendida isoladamente mas em meio a um contexto social e ambiente teórico, onde não apenas Hegel, mas o próprio marxismo e as suas diversas variantes presentes na metade do século XX foram calibanizados pelos diversos herdeiros da Conferência de Bangund (1955), espalhados pela Ásia e África para as finalidades da luta anticolonial (FAUSTINO, 2018a).

A sua crítica radicalmente intransigente ao narcisismo branco/ocidental não é, em hipótese alguma, resolvida por um narcisismo invertido[33] que descarta o conhecimento humano-genérico historicamente acumulado, apresentado como “branco” pelo colonialismo mas, sim, a recusa da (pseudo)universalidade lhe caracteriza, em busca da apreensão de uma universidade efetivamente concreta das categorias históricas que permitam desvelar a realidade social. Neste esforço, curiosamente, Fanon dirige Hegel – ou melhor a dialética, que não é sua e nem europeia, mas uma dimensão do movimento histórico - contra seu conservadorismo burguês e eurocêntrico ao apontar, em primeiro lugar, para as particularidades complexas – em sua relação com o complexo de complexos que conforma a sociabilidade do capital – do colonialismo e, sem segundo lugar, para romper com conservadorismo burguês que identifica a servidão de classe e a conformação com os limites da sociedade burguesa através do Estado como horizonte máximo de realização do Espírito. A originalidade de Fanon diante de críticas semelhantes, como a de Marx, é a relevância do colonialismo e das lutas anticoloniais para a perspectiva da emancipação humana.

Nesta altura, a menção à Caliban, de The Tempest (2019) - em sua apropriação rebelde da linguagem do senhor para amaldiçoá-lo - é bastante didática para a compreensão do que está se nomeando aqui por calibanização. Na trama, escrito por William Shakespeare, no início do século XVII, quando o contato dos europeus com outros povos já era marcado por toda sorte de fantasias fantasmagóricas e animalizadoras, a personagem de Próspero assume o papel de colonizador, ao submeter a população local de uma ilha “deserta” representada unicamente pelo “monstruoso” Caliban, filho de uma bruxa africana (argelina).

Em uma metáfora que pode ser diretamente associada ao desafio dos intelectuais colonizados diante do repertório teórico – inclusive crítico – produzido na Europa colonial (Henry, 2000), Caliban, que até então vivia isolado na Ilha, aprenderá a falar a partir das palavras que Próspero lhe proferir, e é só a partir do momento em que interiorizar como sua essa linguagem, em geral empregada para inferioriza-lo, que será autorizado a falar. Ocorre que, na trama shakespeariana, em uma performance que antecipa em alguns séculos o cérebre prefácio de Sartre à Anthologie de la Nouvelle Poésie Nègre et Malgache, de Senghor[34] , Caliban aprende a falar a língua europeia, mas a usa para amaldiçoar o seu colonizador retirando-o de seu patamar pseudo-divino (teodiceia) para aclamá-los ou refutá-lo à medida que contribuam ou não para a superação dos estranhamentos sociais existentes.

Só assim, para Fanon, a descolonização radical, como terapia revolucionária (GORDON, 2015) do ser, do poder e do saber, teria a função catártica de elevar a “certeza subjetiva que tenho do meu próprio valor” à “verdade objetiva universalmente válida” (FANON, 2008, p. 181) da humanidade genérica do negro (e outros grupos historicamente subsumidos), superando, assim, o duplo narcisismo (FANON, 2008, p. 27) que compõe o estranhamento colonial ao libertar tanto o negro de sua negrura quanto o branco de sua brancura. Essa superação, no entanto, não se alcançaria nem pela ignorância às particularidades estranhadas da sociedade colonial, nem pela mera afirmação inocente ou negação essencializada à uma universalidade abstrata, mas por uma práxis dialética (e humanista) que permita a afirmação das particularidades negadas, enquanto negação da negação que se afirma diante de pseudo-universalizações castradoras, mas não deixe de se negar - sobre o mesmo processo pelo qual se afirma - a própria condição de particularidade ao qual foi subsumida, em direção ao reencontro com a universalidade concreta do gênero humano. Emancipação esta, incerta, mas possível, não apenas através da superação do colonialismo, mas de todo o complexo de complexos que conforma a sociabilidade do capital.

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Notas

[2] Originalmente nomeado como Essai sur la Désaliénation du Noir, o TCC rejeitado foi publicado posteriormente sob o título de Peau Noire, Masque Blancs (FANON, 1952). Esse texto aqui aparecerá grafado como PNMB.
[3] Embora a edição brasileira de Phänomenologie des Geistes aqui adotada, traduzida por Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken (HEGEL, 1999) defina Knechtschaft e Knecht, respectivamente, como “escravidão” e “escravo”, optou-se por traduzi-los, neste paper, como “servidão” e “servo”. Essa opção ampara-se em Rollins (2007), ao lembrar que Hegel tinha em mente a servidão feudal e não a escravidão colonial ao formular a sua alegoria. Essa diferença no estatuto da coerção é fundamental para o argumento aqui adotado, embora se reconheça que a tradução de Knecht como escravo é perfeitamente plausível e que o próprio Fanon (1952, p. 190), ao utilizar a tradução francesa do livro empreendida por Hyppolite (HEGEL, 1939, p. 162), a empregue neste sentido: esclave (escravo). Chama a atenção, no entanto, a nota de rodapé oferecida pelo tradutor francês de Phänomenologie..., na página 156 do livro, ao traduzir Knechtschaft por servidão (servitude) e não escravidão (esclavage): “Nous traduisons ‘Knechtschaft’ par servitude. Hegel, en effet, se souvient de l'étymologie de ‘servus’. L' esclave est celui qui a été conservé (servare), c'est-à-dire celui qui a préféré la vie à la liberté et auquel on a conservé la vie par gráce. La maitre, au contraire, n'a pas eu peur de la mort, il s'est montré indépendant à l'égard de la vie.” (HEGEL, 1939, p. 156).
[4] É possível concordar com Hyppolite (2003, p. 68), quando afirma que esse livro representava para o próprio Hegel um modo de reflexão filosófica, que era a sua marca: “A Fenomenologia era para Hegel consciente ou inconscientemente, o meio de oferecer ao público; não um sistema já pronto, mas a história de seu próprio desenvolvimento”.
[5] Em referência à noção de complexo de complexos empregada por Lukacs, Ester Vaisman, citando Scarponi, afirma: “Esta estrutura constitutiva do ser, a que Lukács designa como um ‘complexo de complexos’ — tomando de empréstimo a terminologia de Nicolai Hartmann — apresenta-se sempre por meio de uma intrincada interação dos elementos no interior de cada complexo. O complexo no interior desta perspectiva é compreendido e determinado como um conjunto articulado de categorias que se determinam reciprocamente, e estruturado de forma decisiva por uma categoria que atua como momento preponderante em seu interior. Desse modo a ‘universal processualidade do ser deriva não somente da complicada interação dos ‘elementos’ (complexos) no interior de cada complexo e dos complexos entre si, mas da presença cada vez de um übergreifendes Moment que fornece a direção objetiva do processo, o qual se configura por isso como um processo histórico’” (VAISMAN, 2007, p. 256).
[6] A utilização do termo homem, como expressão de humano, por Frantz Fanon, foi alvo de discussão em Chow (1999); Fuss (1994); Gordon (2015); hooks (1996); Rabaka (2011); Sharpley-Whiting (1997); Young (1996).
[7] Vale lembrar que embora o verbo alemão “Aufheben” tenha sido traduzido para a língua portuguesa como “suprassumir”, em Hegel, os seus sentidos comportam pelo menos três significados reciprocamente concomitantes: 1. Negar (no sentido de cancelar, anular, suspender); 2. Preservar (conservar) e 3; elevar à um nível superior. Isto significa que o ser-ai (Dasein) da identidade é composta por uma unidade complexa entre Ser (Sein) e Nada (Nichts), configurando-se, portanto, como um vir a ser (Werden) e, ao mesmo tempo, que a Negação presente na suprassunção (Aufhebung) é, também, preservação e elevação da consciência em consciência-de-si, relacional e aberta à alteridade. Este aspecto – que também é a chave para o entendimento da dialética do Senhor e do Servo - será fundamental, mais a frente, para a delimitação da dialética proposta por Fanon.
[8] Susan Buck-Morss (2000; 2009) chama a atenção para o caráter metafórico dos termos senhor, escravo, servidão, etc. para os pensadores do iluminismo, movimento em que se inclui, ainda que tardiamente, Hegel. Tanto para o filósofo alemão quanto para Fanon, apesar de suas diferenças e atribuições, que serão melhor abordadas a seguir, os termos não remetiam, necessariamente, à escravidão colonial legalizada, mas a uma metáfora mais ampla relativa à dominação e à oposição à liberdade.
[9] Na Bíblia cristã, a referida metáfora aparece descrita nos livros de Mateus (19,30 e 20,26), Marcos (10,31) e Lucas (13,30), a partir de diferentes parábolas atribuídas a Jesus Cristo. O que lhes é comum é a analogia a respeito da possibilidade de o sofrimento vivido no mundo dos homens ser aliviado (ou recompensado) no mundo divino. Em termos teológicos, é possível supor que o sofrimento advindo da desigualdade social e da dominação política pudesse ser superado no reino divino por aqueles escolhidos por Deus. No entanto, o critério dessa escolha é o que escaparia à racionalidade e aos juízos morais humanos, uma vez que aqueles que, na ordem social, seriam os últimos, possam ser os primeiros no juízo divino. O que Hegel parece fazer em sua alegoria é, além de secularizar os critérios, anunciar a possibilidade da redenção no mundo humano.
[10] Realizada sob o calor da Revolução Francesa, em uma colônia da França, no Caribe, a Revolução Haitiana, segundo argumenta Susan Buck-Morss (2000), em seu Hegel and Haiti, teria forte influência nas ideias de dialética adotadas por Hegel, embora ele mesmo, pelos motivos que se apresentará a seguir, não pudesse reconhecer essa influência. Vale lembrar, ainda, que não apenas Hegel se omitiu sobre essa revolução que elevou a universalidade do Espírito a um patamar histórico que nem a Europa foi capaz de fazer (ZIZEC, 2011), mas também os seus diversos seguidores, reformadores e críticos modernos, de esquerda e direita, dado o fato de ser inconcebível à mentalidade colonial implícita à modernidade e aos seus críticos. Nas palavras do antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot (1995), “a Revolução Haitiana entrou na história mundial com a característica particular de ser inconcebível ainda enquanto corria”.
[11] Como afirma Mészaros (2008, p. 135-136), “Horrorizado com as implicações explosivas da dialética objetiva do ‘senhor’ e do ‘escravo’ [...] o autor de A fenomenologia do espírito tenta desesperadamente desdizer sua conclusão já na última meia página do capítulo sobre ‘Domínio e servidão’, com o auxílio de malabarismos linguísticos e sofisticação conceitual. Em A filosofia da história (e em A filosofia do direito), as dúvidas de Hegel desaparecem por completo, e a racionalização ideológica da autoafirmação brutal da ordem social, material e politicamente dominante, através da ‘prova de fogo da guerra’, adquire a rigidez antidialética de um postulado metafísico arbitrário”.
[12] Hegel (2008).
[13] Como argumentou: “Por mais que retrocedamos na História, acharemos que a África está sempre fechada no contato com o resto do mundo, é um país criança envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente. O negro representa o homem natural em toda a sua barbárie e violência; para compreendê-lo devemos esquecer todas as representações europeias. Devemos esquecer Deus e as leis morais” (HEGEL, 2008, p. 84).
[14] Ver neste sentido o capítulo “Desventuras da consciência nacional”, de Os condenados da terra (FANON, 2010).
[15] Achille Mbembe, no mesmo caminho, algumas décadas depois, falará da criação moderna de uma “condition nègre” imposta aos africanos escravizados. Para o colonialismo, argumenta Mbembe, nègre representa a redução do africano tanto à bestialidade quanto à objetificação enquanto homem-objeto, homem-mercadoria, homem-moeda (MBEMBE, 2013). Frantz Fanon antecipa essa abordagem.
[16] Sobre o conceito de “particularidade universal”, cunhado por Immanuel Kant (1724-1804), em sua problematização da proposta fanoniana, ver Sekyi-Otu (1996) e Zizec (2011; 2013).
[17] Não se pode ignorar a importância atribuída à fala na sociedade ocidental do Verbo gerador de tudo, na Bíblia cristã (João, 1,1-5, A BÍBLIA, 2002) à virada linguística; quem pode falar, ascende ao patamar de Deus. Lewis Gordon (2015) argumenta que o racismo antinegro eleva o branco, e a cultura europeia à categoria de divindade (teodicy).
[18] Para Du Bois (1999, p. 54), que também foi um leitor de Hegel, o negro estadunidense, separado em African e American experiencia “essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com o divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir a sua duplicidade — americano e negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce”.
[19] Para uma análise sobre a importância do conceito freudiano de “pulsão de morte” em Fanon, ver: Bird-Pollan (2015).
[20] “o preto inferiorizado passa da insegurança humilhante à auto-acusação levada até o desespero” (FANON, 2008, p. 66).
[21] Como afirma Fanon (2008, p. 26): “Há uma zona de não ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer”, mas a “maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros infernos”. Ao comentar essa passagem, Lewis Gordon (2015, p. 19-20) retoma a ideia fanoniana de “Zona do não ser” (Zone of nonbeing) para problematizar as angústias existenciais de se viver em mundo onde não se é considerado humano. Para o autor, a proposta de PNMB é nos apresentar a possibilidade da descida, ora como Virgílio, ora como o próprio Dante Alighieri, ao nível genuinamente humano da existência.
[22] Pelo menos no início, no caso do negro, uma vez que, com o amadurecimento da sociedade capitalista, o racismo religioso foi substituído pelo racismo científico, no século XIX, e pelo racismo cultural, após a Segunda Grande Guerra europeia (FANON, 1964).
[23] Lukacs (2013, p. 627), em seu intento de caracterizar o estranhamento religioso, lembra que, embora o cristianismo tenha se convertido, no feudalismo, em uma ideologia da edificação e estratificação social instransponível, deve sua vigência mundial justamente ao fato de, pelo menos em seu início, ter proposto uma neutralização radical de todas as edificações até então existentes: “todos somos filhos de Deus”.
[24] O filósofo brasileiro José Chasin (2000), em sua tarefa de captar as particularidades do capitalismo brasileiro, argumenta que o país caracteriza-se “via colonial de entificação capitalista”, em que, ao contrário das experiências clássicas europeias, em que a consolidação do capital exigiu uma ruptura com a velha sociedade feudal e a defesa, ao menos abstrata, de relações sociais novas, pautadas pela democracia e a universalização dos direitos, no Brasil o “novo” se funde com o velho (colonial) engendrando o nascimento apodrecido de uma economia débil e ideologias retrógradas, presas ao passado colonial, mas, sobretudo, uma política que oscila entre a autocracia institucionalizada e o bonapartismo. Algumas décadas antes, Fanon (2010), no capítulo Desventuras da Consciência Nacional, de Les damnés de la terre, chegava às mesmas conclusões, ao caracterizar o capitalismo e a burguesia nacional criada em função das necessidades da metrópole.
[25] A filosofia da diferença compreende um conjunto vasto e heterogêneo de pensadores em torna da crítica à identidade, estrutura, meta-narrativa ao sujeito moderno, tal como defendido pelo humanismo ocidental (PETERS, 2000; DOSSE, 1993; LUC-FERRY; RENAUT, 1988). Alguns herdeiros dessa tradição são: o chamado pensamento pós-colonial, a teoria Queer e a esquizoanálise para a qual Fanon é nomeado como um referencial teórico fundamental. Bhabha (1996) chega a eleger o psiquiatra martinicano como inaugurador da prerrogativa pós-colonial e Sibertin-Blanc (2015) como inventor da esquizoanálise. Butler (2006), por sua vez, embora identifique em Hegel a articulação entre reconhecimento e desejo, retoma a constatação fanoniana da interdição do reconhecimento para criticar a noção moderna de identidade, presente na categoria “humano”.
[26] Para uma sistematização mais elaborada das diversas concepções de justiça que permeiam o debate contemporâneo, ver Fraser (2001; 2002).
[27] Como expressou o autor: “A arquitetura do presente trabalho situa-se na temporalidade. Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro. E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência. [...] Pertenço irredutivelmente à minha época”. (FANON, 2008, p. 29).
[28] Destacam-se, nesse período que sucedeu a escrita de PNMB, em 1952, a realização do Congresso de Manchester, em 1945, e a volta de Nkrumah a Gana, apelando para a revolução nacional como único caminho viável para a independência; a independência dos países asiáticos no pós-guerra e a conquista de independência da Líbia (1951) vão resultar, a partir de 1956 — época que Fanon já vivia em Blida, na Argélia, como médico-chefe de um hospital psiquiátrico — na chamada avalanche negra, a partir da independência do Sudão, do Marrocos e da Tunísia, em 1956; da independência de Gana, em 1957; e Guiné, em 1958, seguidas pelas de Camarões, Somália, República do Congo, Senegal e Togo, em 1960, entre outras. Ver, nesse sentido, Faustino (2018a; 2018c).
[29] Observa-se, aqui, um estreito diálogo com a noção hegeliana de suprassunsão (Aufhebung) onde a negação provocada pela luta anticolonial adquire um sentido diferente da negação colonial. Ela é negação mas, ao mesmo tempo, preservação e elevação da consciência ao nível de auto-consciência. Por essa razão, Fanon afirma inequivocamente – em um trecho ainda mal compreendido por boa parte da crítica especializada – que “No nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Ela livra o colonizado do seu complexo de inferioridade, das suas atitudes contemplativas ou desesperadas. Ela o torna intrépido, reabilita-o aos seus próprios olhos. Mesmo se a luta armada foi simbólica e mesmo que ele seja desmobilizado por uma descolonização rápida, o povo tem o tempo de convencer-se de que a libertação foi um problema de todos e de cada um, que o líder não tem um mérito especial. A violência eleva o povo à altura de líder” (FANON, 2010:112).
[30] Artigo publicado no jornal El Moudjahid, n. 10, set. 1957. Disponível também em Pour la Révolution Africaine (Écrits Politiques), de 1964 (FANON, 1964).
[31] O trecho mencionado consta na famosa crítica de Nietzsche à razão socrática, vista por ele como representante sintomática de uma cultura adoecida, não apenas por apostar na razão como pressuposto humano, mas porque a razão, segundo constata, abre a possibilidade de as plebes (a classe trabalhadora, no caso intraeuropeu, ou, pior que isso, as colônias) ascenderem ao “topo”, destronando, portanto, a aristocracia imperialista do qual fazia parte. Como afirma o filósofo germânico: “com Sócrates, o paladar grego transforma-se em favor da dialética: o que acontece aí propriamente? Acima de tudo é um gosto nobre que cai por terra. A plebe ascende com a dialética. Antes de Sócrates, recusavam-se as maneiras dialéticas na boa sociedade: elas valiam como más maneiras, elas eram comprometedoras. Se advertia a juventude contra elas. Também se desconfiava de todo aquele que apresentava suas razões de um tal modo. As coisas honestas, tal como as pessoas honestas, não servem suas razões assim com as mãos. É indecoroso mostrar os cinco dedos. O que precisa ser inicialmente provado tem pouco valor. Onde quer que a autoridade ainda pertença aos bons costumes, onde quer que não se ‘fundamente’, mas sim ordene, o dialético aparece como uma espécie de palhaço: ri-se dele, mas não se o leva a sério. — Sócrates foi o palhaço que se fez levar a sério” (NIETZSCHE, 2000, p. 7, grifos nossos).
[32] Ver, nesse caso, o capítulo II, Grandeza e Fraquezas da Espontaneidade, do CT, onde Fanon (2010) alerta para os limites e contradições implícitos à violência, bem como às noções reificadas de identidade, propostas pelo nacionalismo anticolonial.
[33] Fanon fala em “duplo narcisismo” para descrever a prisão do branco em sua brancura e do negro em sua negrura (FANON, 2008, p. 27).
[34] “O que esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava estas bocas negras? Que vos entoariam louvores? Estas cabeças que nossos pais haviam dobrado pela força até o chão, pensáveis, quando se erguessem, que leríeis a adoração em seus olhos?” (SARTRE, 1960, p. 105).

Author notes

[a] Doutor em Sociologia


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