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Entrevista com Renaud Barbaras: Uma cosmologia fenomenológica
Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, no. 59, pp. 705-728, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Entrevista


Received: 11 April 2021

Accepted: 01 July 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.EN01

Apresentação1

Reinaldo Furlan

No projeto de pesquisa que realizo atualmente estava previsto um estágio de curta duração na França, no qual me encontraria com o professor Renaud Barbaras para a discussão de sua filosofia e de aspectos do meu trabalho. Na impossibilidade da realização deste estágio, devido às medidas de isolamento social diante da pandemia da Covid-19, o professor Barbaras aceitou gentilmente a ideia da realização desta entrevista. Agradeço sua disponibilidade e generosidade por esta oportunidade.

O objetivo desta apresentação sucinta é oferecer, aos leitores interessados, a opção de um ponto de partida para a entrevista sobre a obra de Renaud Barbaras, em particular sobre seu último trabalho, intitulado L’appartenance. Vers une cosmologie phénoménologique (BARBARAS, 2019). Mais precisamente, trata-se de uma apresentação, certamente limitada e eventualmente passível de ajustes ou correções, da noção de “pertencimento”, que guia este último trabalho e com a qual Barbaras busca superar os impasses da relação entre sujeito e objeto, presentes, ainda, nas diferentes versões da fenomenologia histórica, ora favorecendo um dos termos, como é o caso do subjetivismo de Husserl, ora não superando o seu dualismo, apesar deste propósito, como é o caso de Merleau-Ponty (a carne do mundo e a minha carne), para ficarmos com dois exemplos destacados por Barbaras nesta obra.

O sentido do pertencimento, do sujeito ou qualquer ente, implica três dimensões: pertencimento como participação em um mesmo solo (sol) ontológico da realidade, ao qual atribuímos de forma genérica o nome de Natureza; pertencimento como participação nessa realidade de um local (site) específico do solo, ao qual atribuímos de forma genérica o nome de ente, indivíduo ou coisa, definidos por seus corpos; e pertencimento como lugar (lieu) da participação do site (corpo) no solo (Natureza), ao qual atribuímos de forma genérica o nome de mundo. São três dimensões do pertencimento que Barbaras resume com os termos “ser do mundo (solo), ser no mundo (site) e ser ao mundo (lieu)” (p. 27)[2], ou ainda, “cada ente tem um site, posto por sua identidade; um solo, inerente a seu ser; e um lugar desdobrado por sua existência” (p. 27).

Para evitar uma concepção ingênua de espaço, Barbaras precisa que o site (local) é o ponto metafísico de participação no solo ontológico que, por sua vez, deve ser entendido como fonte dinâmica de tudo que se manifesta no mundo por meio da ação do ente em direção ao próprio solo ou a si mesmo, o que, como veremos, é a mesma coisa. A dificuldade, portanto, é entender essas três dimensões do pertencimento, topológica (site), ontológica (solo) e fenomenológica (mundo) não no sentido de um recipiente (corpo, natureza e mundo) de forma estática ou extensiva que recebe um conteúdo substancial (consciência, seres vivos e coisas), mas como forma dinâmica de espacialização ou acontecimento da realidade ôntica em direção ao solo ontológico, que se mostra, assim, como ser indiviso na dispersão e reunião de entes, como diferenciação e síntese do Mesmo.

Esse movimento de todos os entes em direção ao solo, Barbaras entende por meio do termo mobilidade, mobilidade da qual o movimento da vida animal e humana é um caso particular, ainda que privilegiado, sobretudo no caso do homem. E se tudo se passa e se mostra na fenomenalização do mundo, é porque o site e o solo são termos fixos, referências últimas na forma como aparecem ou são visados no mundo. Mundo é o lugar, pois, onde ente e solo ontológico estão presentes, não redutíveis a ele (por falta e por excesso, respectivamente), mas visados e, no caso humano, compreendidos de alguma forma a partir dele, isto é, da fenomenalização do mundo.

Para maior clareza e ilustração da proposta, destacamos o exemplo dos entes não humanos. A árvore, por exemplo, e cada árvore, em particular, tem seu modo de se dirigir ao solo ontológico, reunindo-se à terra, à água, ao ar, ao sol e formando com eles um mundo. Nesse sentido podemos falar de relação de mundos, do mundo dos pássaros, por exemplo, com este das árvores, dos homens etc. e vice-versa, isto é, de mundos de perspectivas cruzadas, que acessamos a partir da fenomenalização do mundo humano, que no seu reconhecimento do solo ontológico abre-se para o sentido da fenomenalização do Mundo em geral.

Entrevista[3]

Reinaldo Furlan: Para você, quais são os resultados mais importantes deste seu último trabalho, L’Appartenance. Vers une cosmologie phénoménologique, no percurso do seu pensamento?

Renaud Barbaras: Agradeço-lhe pela sua apresentação, ao mesmo tempo sintética e clara. Sem dúvida, esse meu último livro dá um passo importante em relação aos livros anteriores. Como no caso dos meus livros mais importantes, ele foi motivado pela consciência de uma dificuldade, de uma insuficiência nos trabalhos precedentes, mais precisamente em Dynamique de la manifestation, que eu considerava como sendo meu livro mais importante e mais sistemático até agora. Nesse livro, para dar conta da diferença entre seres vivos e seres não vivos eu distinguia dois processos diferentes que correspondiam a dois princípios de individuação. Primeiro, o processo pelo qual o mundo se realiza enquanto mundo ao se diferenciar nele mesmo sob a forma de entes individuados — a individuação procedendo da diferenciação —, processo que eu chamava de arqui-movimento. Arqui-movimento, pois não se trata simplesmente de um movimento do qual o mundo seria o sujeito, como o movimento de qualquer ente, mas do movimento pela qual o mundo se torna mundo e do qual provêm todos os movimentos dos entes intramundanos. Nesse nível, individuação significava diferenciação, ou seja, delimitação, definição. Mas precisava dar conta dos seres vivos e, particularmente, dos seres humanos, caracterizados por um movimento orientado para o mundo, por uma tentativa de superar a separação com o mundo, tentativa que eu chamava de desejo. É de se notar que essa diferença entre os seres não vivos, inseridos no processo do mundo, e os seres vivos, que ficam separados do mundo, já é problemática na medida em que pressupõe que a condição da vida, do dinamismo vital é uma separação em relação ao mundo. De certa forma, tal é o pressuposto que eu nunca tinha criticado até meu último livro, pressuposto que ainda é um resíduo do subjetivismo e do transcendentalismo: a ideia de que a especificidade do sujeito é incompatível com um pertencimento ao mundo e implica, portanto, uma separação com ele. Seja como for, para dar conta dos seres vivos, eu precisava de um evento, que eu chamei de arqui-evento, que consistia numa inflexão do movimento do mundo (como um clinamen), tomando a forma de uma separação do mundo consigo mesmo, de uma forma de negação ou de queda do mundo em si mesmo. Precisava usar o conceito de evento porque, se essa separação afetava o arqui-movimento do mundo, como um movimento no movimento, ela não podia ser causada pelo mundo (cujo movimento não envolvia a menor negatividade) e, nesse sentido, não tinha causa nem razão. Daí um segundo processo de individuação, não por limitação, mas por separação ou expulsão. O que me guiava, na época desse livro, era a ideia de que a condição ontológica dos seres vivos, e particularmente dos homens, era uma forma de exílio.

Ora, essa construção, por mais satisfatória que fosse, levantava vários problemas. Primeiro, o fato de introduzir um arqui-evento, sem causa nem razão, para dar conta da subjetividade, equivalia a dizer que o sujeito era, por excelência, um ente sem razão, ou seja algo impensável e, assim, a assumir uma forma de impotência ou de fracasso do pensamento. O sujeito e, por conseguinte, a fenomenalidade da qual ele é a fonte, acabava sendo justamente aquilo que a fenomenologia não podia pensar, devia desistir de pensar. Além disso, me pareceu logo que a distinção entre arqui-evento e arqui-movimento era um rastro de dualismo, dentro de uma perspectiva que pretendia superá-lo, dualismo deslocado, mas radical, entre um plano cosmológico (arqui-movimento) e um plano metafísico (arqui-evento). Ora, esse dualismo era a consequência coerente da dualidade assumida, de que já falei, entre seres vivos e não vivos, entre sujeitos e entes inertes. Mesmo que eu procurasse uma univocidade ontológica, esta encontrava-se comprometida pela dualidade residual, que eu não tinha conseguido superar, entre o sujeito e o mundo, em outras palavras, o a priori da correlação husserliana, que constituía, de fato, o ponto de partida de vários livros meus. Meu último livro é justamente uma tentativa para explicitar as condições de uma genuína univocidade ontológica, ou seja, de um monismo fenomenológico radical. Assim, logo depois da redação de Dynamique de la manifestation, me pareceu necessário pensar mais adiante a relação entre arqui-evento e arqui-movimento, a fim de tentar superar o caráter radical demais dessa dualidade. Mas, de fato, era um projeto fadado a fracassar já que eu definia justamente o arqui-evento pelo fato de ser um mero evento, ou seja, de surgir de nada, de não ter causa. Na realidade, precisava abrir mão dessa distinção e, em consequência, pôr em questão o pressuposto de uma diferença radical entre sujeitos vivos e entes não vivos, como se a única maneira de dar conta da fenomenalidade fosse referi-la a um sujeito alheio ao mundo. Essa dificuldade geral que, é claro, eu não tinha conseguido identificar na época do livro, se manifestou no próprio livro na questão do corpo próprio, que veio cristalizar todos os problemas. Com efeito, não tinha lugar para o corpo nesse meu dispositivo na medida em que ele pertencia aos dois processos, ficava dos dois lados. De um lado, enquanto Körper, fragmento de matéria, ele pertencia ao arqui-movimento, como qualquer ente inerte; por outro lado, enquanto corpo vivo ou subjetivo, ou seja, carne (Leib), ele ficava separado do processo mundano, era afetado pelo arqui-evento. Assim, havia uma incompatibilidade entre a unidade fenomenal do corpo próprio, que é indiscernivelmente corpo e sujeito, e a dualidade entre o plano cosmológico e o plano metafísico, de modo que manter esse dispositivo significava desistir de pensar o corpo enquanto tal. Ora, a fenomenologia do corpo, correlativa de uma fenomenologia da percepção, tinha sido desde o início, na esteira de Merleau-Ponty, meu objeto teórico privilegiado. E, justamente, eu tinha me dado conta de que o projeto merleau-pontiano de uma fenomenologia da carne, ou seja, a tentativa de pensar a univocidade da carne, para além da distinção entre minha carne e a carne do mundo, tinha fracassado. Como ele repara numa nota de trabalho em O visível e o invisível, “A carne do mundo não é sentir-se como minha carne” (MERLEAU-PONTY, 1964/2000, p. 227), o que equivale a dizer que a diferença entre consciência e objeto, sentir e ser sentido, volta dentro da carne, comprometendo assim sua univocidade. Ora, apesar de ter percebido isso, ao situar o corpo dos dois lados do arqui-evento, eu caía na mesma armadilha.

Assim, o ponto de partida desse meu último livro foi a decisão de enfrentar, de uma vez por todas, essa questão do corpo à luz dos limites que eu tinha reparado nos meus livros anteriores. Minha constatação foi a de que os fenomenólogos, fossem quem fossem, não tinham conseguido superar, a respeito ao corpo, a dualidade entre um plano mundano e um plano subjetivo, uma dimensão empírica e uma dimensão transcendental, e, apesar das minhas críticas ao dualismo, eu me encontrava na mesma situação. Ora, como sempre quando se avança em filosofia, me dei conta de que o problema não tinha sido bem colocado. Mais precisamente, entendi que o corpo não era um problema, não porque era fácil de pensar, mas porque já era uma resposta, resposta a uma pergunta que não tinha sido formulada e ficava, portanto, escondida. Assim, o corpo não é problemático pois ele remete a um outro problema, um verdadeiro problema, de que ele já é uma solução. Esse problema é o do pertencimento. Assim, não é por termos um corpo que pertencemos ao mundo; é na medida em que pertencemos a um mundo que temos um corpo. O corpo é uma determinação, cheia de pressupostos, de nosso pertencimento ao mundo. Essa descoberta é, de certa forma, um convite a abandonar a questão do corpo em proveito da do pertencimento, que dá ao livro seu título. Ter um corpo quer dizer, sem mais nem menos, pertencer. Em outras palavras, descobri que a única maneira de pensar o modo de ser do corpo em sua unidade originária era tentar fazer uma fenomenologia do pertencimento, que é o intuito do livro. À luz dessa descoberta, torna-se óbvio o fato de que a abordagem clássica, segundo a qual é enquanto temos um corpo que podemos pertencer ao mundo, traz consigo vários pressupostos que impossibilitam qualquer solução. Com efeito, essa abordagem pressupõe que o sujeito que tem um corpo é, enquanto tal, alheio ao mundo e que o pertencimento é sinônimo de inclusão objetiva, remetendo a uma determinação do corpo como fragmento de matéria e do mundo como extensão objetiva. Em outras palavras, na perspectiva clássica, que é também a da fenomenologia, o corpo joga no mundo um sujeito que não tem nada a ver com ele (pode-se pensar na Geworfenheit heideggeriana, mas sem corpo), de modo que se torna definitivamente impossível dar conta da unidade do corpo, rasgado pela dualidade entre dois mundos.

Ao começar pelo pertencimento, escapa-se de saída dessa dificuldade. Com efeito, o pertencimento não é mais um modo de ser do sujeito; pelo contrário, é o sujeito que é uma modalidade do pertencimento. Em outras palavras, o pertencimento designa a modalidade de ser de todo ente, o que equivale a dizer que o mundo como totalidade absoluta engloba qualquer ente, que a mundaneidade é constitutiva do ente: o pertencimento caracteriza doravante o ser do ente. Segue-se daí que só existem modalidades de pertencimento, que essa é a única maneira de distinguir os entes. Por exemplo, aquilo que chamamos de consciência é uma certa modalidade do pertencimento, exatamente como um corpo material é uma outra modalidade desse pertencimento: são várias maneiras de se inserir no mesmo mundo. Como se vê, a oposição clássica da consciência e do objeto e, por assim dizer, o cara-a-cara entre eles desaparece em proveito dessa determinação mais fundamental: ambos situam-se do mesmo lado, ficam igualmente enraizados no mundo. Essa determinação desemboca numa ontologia da univocidade: existir tem em toda parte o mesmo sentido, de modo que a diferença entre os entes só pode ser uma diferença de grau, ou seja, de profundidade no pertencimento. Além disso, essa nova abordagem equivale a dar ao espaço um estatuto ontológico radical, contrariamente a toda a tradição fenomenológica. Com efeito, dizer que qualquer ente deve ser definido por uma modalidade de pertencimento equivale a afirmar que o lugar, longe de ser uma determinação contingente em relação ao ente, é constitutivo do ser do ente. Ser quer dizer estar aí. O lugar é a determinação mais profunda do ente, no sentido em que tal ente, enquanto modalidade de pertencimento, implica tal lugar e tal lugar tal ente. É nesse sentido que falei em “ontologia geográfica”. Enfim, na medida em que o sujeito, enquanto condição da aparição do mundo, pertence ao mundo como qualquer ente, deve-se concluir daí que a fenomenalização é uma dimensão do pertencimento, a outra face dele. Segue-se daí, primeiro, que é o próprio mundo que é o verdadeiro sujeito da fenomenalização, isto é, que ele se fenomenaliza através dos entes e que, em segundo lugar, em razão da univocidade do pertencimento, qualquer ente cumpre uma fenomenalização do mundo, por mínima que seja, tem um mundo, por reduzido que seja. Como Sartre e Merleau-Ponty tinham reparado, uma relação de conhecimento envolve uma relação de ser, ou seja, para conhecer é preciso ter um parentesco ontológico com o conhecido, compartilhar a mesma textura ontológica. Minha proposta é a de assumir a contraposta: uma relação de ser implica uma relação de conhecimento, o que significa que aquilo que pertence ao mundo tem uma relação de fenomenalização com este mundo, por modesta que seja, o percebe de uma certa maneira. Estar no mundo implica ter um mundo.

RF: Você abre seu novo livro, L’Appartenance..., chamando a atenção para a importância da linguagem no princípio de toda filosofia, mais precisamente, para a semântica dos termos implicados na questão inicial de uma filosofia, determinante do caminho ou do campo no qual ela se realizará. Talvez possamos dizer que quase tudo se decide aí, isto é, na forma dessa pergunta, que, como você diz, traz em si toda uma ontologia com a qual a questão se compromete em última instância. Trata-se, então, ao invés de assumir de forma ingênua os termos iniciais de uma filosofia, de tratá-los como sintomas de algo importante, assim como você já fez em Le Désir et le monde, em torno da noção de desejo, enquanto verbo e substantivo. De fato, a tematização da linguagem aparece em diferentes momentos do seu trabalho, e às referências anteriores, podemos acrescentar a concepção de poesia como uma contralinguagem, em Métaphysique du Sentiment, que talvez tenha que ser reajustada agora, com seu novo trabalho. Você poderia indicar a posição da linguagem no contexto atual de sua filosofia, em particular a relação entre poesia e conhecimento? Sua filosofia seria uma espécie de aproximação necessária entre essas duas linguagens?

RB: Essa pergunta é muito ampla e, na verdade, precisaria dedicar um livro inteiro a esse problema, o que ainda não fiz. Tentei enfrentar a questão da linguagem no meu livro intitulado Métaphysique du sentiment, livro escrito na esteira de Dynamique de la manifestation. Digamos que, nesse livro, eu colocava a linguagem do lado da separação produzida pelo arqui-evento e, até, a linguagem era a consequência mais radical e, portanto, a manifestação privilegiada dessa separação com o mundo. De fato, a possibilidade de dizer pressupõe a não-coincidência com aquilo que está sendo dito e, até, uma relação com a ausência. Como a psicanálise mostrou, a linguagem exige uma forma de domínio da ausência. No entanto, diga-se de passagem, não acho, contrariamente a Lacan, que a linguagem seja a condição ou o instrumento da separação: a meu ver, ela pressupõe uma ruptura prévia. Em outras palavras, a distância da ordem simbólica decorre de uma distância ontológica: só pode falar um ser originariamente exilado. Seja como for, essa afirmação levanta um problema muito sério: se for assim, como é possível falar daquilo de que ficamos separados, como se pode falar do mundo enquanto tal, ainda não afetado pelo arqui-evento, ou do solo no meu novo vocabulário? Tentei mostrar que mantemos uma relação originária com nosso solo ontológico, a despeito da separação, através do sentimento, conceito que tomei de empréstimo a Mikel Dufrenne. O sentimento é aquilo que nos abre ao mundo, nos põe em relação com a própria profundidade do mundo e constitui, assim, a condição de possibilidade das emoções e dos afetos que, por sua vez, são relações com um mundo já dado. Dufrenne chamava o poético essa abertura prévia ao mundo. A consequência disto é um primado da dimensão afetiva em relação à dimensão conceitual, da dimensão poética em relação à dimensão teórica. Ora, mesmo que não coincida com ela, o poético se manifesta de uma maneira privilegiada na poesia. Mas, já que a linguagem envolve necessariamente uma distância com o mundo, deve se concluir que a poesia usa a linguagem para ultrapassar os limites da linguagem, é uma forma de recurso da linguagem contra si mesma. É uma maneira de levar a linguagem ao seu próprio limite, de produzir uma forma de silêncio, o silêncio do mundo, na própria linguagem. Se o poético corresponde à relação originária com o mundo, deve se concluir que a linguagem poética é ao mesmo tempo um alicerce e um horizonte para a linguagem filosófica. Portanto, a filosofia deve enfrentar o seguinte desafio: restituir numa linguagem conceitual, ou seja, a mais transparente e clara possível, aquela abertura ao mundo que a poesia, por sua vez, consegue formular. Nesse sentido, como você diz muito bem, a filosofia, pelo menos assim como a compreendo, envolve uma aproximação necessária entre as duas linguagens. Para dizer a verdade, quando escrevo, sempre tenho o sentimento de que a linguagem filosófica é um instrumento grosseiro demais, como uma roupa mal cortada e ampla demais (segundo a comparação de Bergson), para atingir aquilo que ela quer atingir.

RF: Com o termo mobilidade parece que você apresenta uma nova ideia de expressão que une os conceitos de força e sentido, cuja relação é problemática na história da fenomenologia. A esta força você dá o nome de “negatividade”, responsável pela mobilidade ou expressão de mundo. Cito: “É, pois, nesse aparecer, no sentido preciso de abertura de um lugar (lieu), que consiste a mobilidade em seu sentido mais profundo” (p. 42). A esse acontecer você dá o nome de “topofania”. Ao mesmo tempo, você diz que para a aparição de um mundo propriamente dito é preciso o movimento animal, isto é, “o grau de negatividade exigida para o surgimento de um meio ambiente ou de um mundo” (p. 43). Assim se passa de uma topofania a uma cosmofania, esta, pois, como uma modalidade daquela. Você poderia explicar melhor essa passagem entre topofania e cosmofania, destacando o caso dos entes que não se movimentam? Justifico. Considerando que uma de suas principais metas no livro é ultrapassar certo dualismo presente ainda em suas obras anteriores com a diferença entre seres vivos e não vivos, estendendo a vida, então, a todos os entes, não parece necessário estender também algum grau de percepção de mundo a todos os entes, sem a qual a mobilidade dos entes ou o caráter expressivo de mundo parece voltar às trevas do em si, conforme a ontologia do objeto ou do naturalismo científico que você procura superar? Não é assim que devemos entender a pluralidade dos pontos de vista dos entes (mônadas)?

RB: Como você o sublinha, no meu último livro, a negatividade remete à mobilidade. Aliás, faz muito tempo que, para mim, a única maneira de pensar a negatividade de forma pertinente é confundi-la com a mobilidade. Estar em movimento é uma maneira de se negar incessantemente, de não coincidir com si mesmo: o movimento é a modalidade concreta e efetiva da negação, é uma negação que não tem a menor positividade pois não para de se negar. Assim, conceber a negatividade como movimento é a única maneira de não introduzir uma positividade secreta na negação, de não hipostasiá-la sob forma de um nada. Por conseguinte, a questão da negatividade se desloca para a do movimento e poderia se dizer que um dos intuitos do meu trabalho desde o início é tentar entender o que é o movimento, tentar lhe dar um estatuto ontológico rigoroso. Nos meus livros anteriores, o movimento desempenhava um papel central, já que era para mim o próprio modo de ser da intencionalidade, a modalidade originária de toda fenomenalização. Nesse contexto, o movimento remetia à identidade de um avanço e de uma fenomenalização, de um fazer e de um fazer aparecer. Ela era como um avanço que ilumina seu próprio caminho, uma “força vidente”, segundo a expressão de Patočka. Na verdade, quanto ao lugar e o papel do movimento, não mudei de ideia. Mas minha teoria do pertencimento levanta um problema novo. Como conciliar a ideia de que não há fenomenalização sem movimento com a afirmativa segundo a qual qualquer ente, enquanto pertencendo ao mundo, o fenomenaliza, ou seja, no meu vocabulário, desdobra um lugar? Nos meus livros anteriores, a diferença que eu mantinha entre seres vivos e seres não-vivos repousava justamente sobre o movimento, que não se reduzia a um movimento local, mas envolvia um deslocamento. Em consequência, para ultrapassar essa diferença em proveito de uma univocidade de todos os entes, ou seja, para pensar qualquer ente como tendo um poder de fenomenalização, é preciso atribuir o movimento a cada um, por exemplo à pedra e, portanto, deixar de introduzir o deslocamento na definição do movimento. Em outras palavras, na medida em que todo ente está vivo enquanto fenomenalizante, essa vida remete necessariamente a um sentido mais profundo do movimento. A resposta reside na própria pergunta: o movimento só pode consistir nesse poder de fenomenalização, ou seja, no desdobramento daquilo que chamei de lugar. No sentido mais profundo, o movimento é um acontecimento, precisamente o acontecimento do aparecer: se mover significa fazer aparecer e o movimento propriamente dito, o movimento local é apenas uma das modalidades desse acontecimento, desse fazer aparecer, a modalidade pela qual os animais constituem um meio próprio. Mas há também um movimento da pedra desde que abra a um lugar para além do seu local, da sua mera posição topológica. Assim, o verdadeiro sentido da negatividade é a distância e a tensão entre o solo e o local (site), tensão que envolve necessariamente sua própria redução, distância cujo avesso é uma aproximação: essa aproximação como redução da tensão entre solo e local é o sentido mais profundo do movimento. Com todo o rigor, chamei topofania a constituição de um lugar, maneira pela qual qualquer ente se aproxima de seu solo, tenta se reconciliar com ele. Agora, tem vários graus na potência de fenomenalização na mobilidade e, portanto, na amplitude do lugar desdobrado. Assim, um mundo que, de certa forma, pode incluir o meio animal (os animais têm mundos, às vezes muito ricos, contrariamente àquilo que Heidegger afirmava), é apenas uma modalidade mais ampla e mais rica do lugar, a que corresponde a um movimento implicando um deslocamento. No caso, pode se falar em cosmofania. De fato, todos os entes, como as mônadas leibnizianas, são pontos de vista para o solo, ou seja, o mundo no sentido originário, e cada um fenomenaliza este solo sob a forma de um lugar que pode adquirir a amplitude de um mundo.

RF: Todo ente implica uma insuficiência de ser correspondente a sua distância do solo (“o excesso irredutível do solo sobre o site”, p. 48). Essa distância é a marca da nossa impotência (e de qualquer ente). Como você diz, “A distância do site em relação ao solo reenvia, pois, à diferença entre a potência e isso que ela produz” (os entes) (p. 63). Uma vez que o que desejamos é o solo, que por definição nos excede, podemos dizer que o desejo é desejo de potência?

RB: A potência a qual você está aludindo remete àquilo que chamei de deflagração. Essa deflagração é a determinação dinâmica do solo, enquanto fonte de todos os entes. Com efeito, a physis, a natureza não é apenas a exterioridade e o solo englobando todos os entes: ela também é aquilo onde nascem todos os entes, de onde eles procedem. Essa fonte não é um nada, pois a origem não é uma criação: o solo não começou, sempre existiu. Mas, por outro lado, não é um ente, já que é a origem de todos os entes. A conclusão se impõe: essa origem só pode ser o próprio evento do produzir, o produzir como ser ou, antes, enquanto sentido mais profundo do ser. Assim, a potência não é senão potência de fazer os entes nascerem, potência ontogenética. Agora, como você sugeriu, se desejamos o solo e se o sentido mais profundo do solo é a potência de que acabei de falar, pode se dizer que qualquer ente deseja a potência. Mas é preciso compreender o sentido dessa afirmativa. Não quer dizer que os entes almejam um modo de ser potente, querem ter potência. Pelo contrário, eles desejam é alcançar o solo do qual estão separados pela sua própria identidade de entes, ou seja, pelo seu local; eles almejam é voltar a sua origem cosmológica, o que é impossível, pois implicaria a dissolução da sua própria individualidade. Nesse sentido, eles desejam mais o repouso ou a paz de quem se reconciliou com si mesmo do que a potência enquanto poder de agir ou de fazer: algo como uma morte, mas, como diz Dufrenne, uma morte na vida.

RF: Mas, se entendi bem, o movimento do ente em direção ao solo usa da própria potência herdada da sobrepotência. Ou seja, usufrui de certa potência, representada pelo conceito de pulsão em Le désir et le monde. Nesse sentido, o desejo de união com o solo não é desejo de mais potência para esse fim? Ou seja, quanto mais potência de fenomenalização, mais proximidade com o solo, o que excita mais a falta ou distância do solo, exigindo, assim, mais potência de fenomenalização ad infinitum.

RB: No movimento em direção ao solo, é preciso distinguir a dimensão propriamente dinâmica e a meta desse movimento. É claro, a potência desse movimento provém da sobrepotência da deflagração, mas, mesmo que o solo, enquanto tal, seja uma sobrepotência, a reconciliação com ele, a superação da distância significaria, para o ente separado, o fim do movimento e, portanto, uma forma de imobilidade. No entanto, isto é apenas o horizonte do ente pois, na realidade, a distância é insuperável e o movimento inacabável.

RF: Em Métaphysique du sentiment você aponta para a mercantilização da vida como uma forma de alienação do desejo do homem, que é desejo de mundo e não de coisas. Gostaria de estender essa linha de raciocínio, considerando também este seu último trabalho, L’Appartenance.... Podemos dizer que a substituição da arte, do conhecimento e do amor pelo dinheiro e o poder, assim como a desmedida da violência, para além da necessidade de manutenção da vida, pode ser compreendida como uma forma de alienação do homem na busca de mais potência, dada nossa condição de falta de potência ontológica? Podemos pensar todos esses fenômenos como um curto circuito ou decadência do desejo, que se fixa na coisa ou no corpo mais próximo, aos quais podemos acrescentar ídolos laicos ou religiosos, diante da abertura do desejo de um ser de lonjuras e inalcançável?

RB:Você tem toda razão. Esses fenômenos podem ser compreendidos como uma forma de curto circuito ou de decadência do desejo. Mas, esse processo de alienação enraíza-se na própria natureza do desejo. Como mostrei, o desejo é intrinsecamente desejo do mundo e é por isso que ele permanece insaciável, mas, as maioria das vezes, ele não sabe que é desejo do mundo, ou seja, não sabe claramente que é o próprio mundo que é sempre visado através de qualquer objeto de desejo e que torna, assim, o desejo insaciável. Se o soubesse claramente, significaria provavelmente a extinção do desejo, uma forma de renúncia, pois o verdadeiro objeto do desejo, a saber, o mundo, que anima qualquer desejo empírico, apareceria como sendo definitivamente inacessível. Assim, há uma forma de ilusão constitutiva do desejo, pela qual se acredita que tal coisa vai, não apenas satisfazê-lo, mas preenchê-lo. Nesse sentido, a alienação seria inerente ao desejo. Daí precisaria estabelecer uma forma de hierarquia entre as coisas suscetíveis de satisfazer o desejo e mostrar que, para quem é vítima dessa ilusão, quanto mais longe do mundo, ou seja, quanto mais definida e acessível a coisa, mais parece convir ao desejo. Mas, por outro lado, por ser uma ilusão, a satisfação vira imediatamente decepção e acirra assim um novo desejo por uma nova coisa (como acontece por exemplo com as crianças) e assim por diante. A ilusão, que desemboca numa lógica de consumo infinito, é acreditar achar no plano dos entes aquilo que só pode ser alcançado no próprio mundo. Desse ponto de vista, o artista, o filósofo ou o amante seria aquele que entendeu que é ilusório buscar a satisfação num objeto mundano, que o único objeto verdadeiramente desejável é o que abre para o próprio mundo, cristaliza um mundo.

RF: Você faz duas breves colocações sobre a ideia de Deus no livro. A primeira, que “Deus mesmo pertence ao mundo e a única questão é saber qual modo de pertencimento pode distingui-lo dos outros entes” (p. 18), e a segunda, que o sujeito, “à exceção de Deus, é considerado como o mais estrangeiro no mundo” (p. 24). Por outro lado, você afirma: “tanto de mundo, tanto de sujeito; tanto de transcendência, tanto de ipseidade” (p. 76), e que “esta potência de fenomenalização da qual procede o sujeito é proporcional à profundidade de seu enraizamento no solo, isto é, à sua proximidade da origem” (p. 105). Esta seria a fórmula para a concepção de Deus em sua filosofia, enraizado de forma absoluta no solo, onde mundo e solo não se distinguem e sua ipseidade é na mesma proporção? Você poderia apresentar a concepção de Deus nos termos de sua filosofia?

RB: Como você percebeu, Deus não tem um lugar importante no meu trabalho e, na verdade, nunca foi um objeto de reflexão. Quando falei de Deus foi de passagem, para não esquecer nenhum tipo de ente, já que defendo uma ontologia da univocidade. No entanto, como você reparou muito bem, é possível outorgar a Deus um estatuto coerente no âmbito do meu trabalho. Com efeito, a potência de fenomenalização de qualquer ente é proporcional à profundidade do seu enraizamento no solo, isto é, à sua proximidade da origem. Essa tese é extremamente importante para mim, pois ela situa meu trabalho nas antípodas de toda a tradição moderna e, até, fenomenológica. Para esta, a condição do poder de fenomenalização é a distância ou a separação do sujeito em relação ao mundo; é por não pertencer ao mundo que o sujeito pode ter um mundo, ou seja perceber. Assim, quanto mais distância ou diferença, mais fenomenalização, ou seja, mais subjetividade. A consequência da minha abordagem é rigorosamente oposta a essa. De acordo com minha teoria do pertencimento como determinação do ser dos entes, deve se dizer: quanto mais proximidade ao solo, mais fenomenalização; quanto mais enraizamento, mais subjetividade. Em termos merleau-pontianos, minha carne e a carne do mundo não são mais mutuamente excludentes, mas, pelo contrário, congruentes: é por ser carne do mundo, ou seja, inserida nele que minha carne pode ser minha, ou seja, carne subjetiva. Daí se deduz o lugar de Deus na minha perspectiva. Deus pode ser considerado, por definição, como um ou o sujeito absoluto, capaz de fenomenalizar tudo, excluindo a possibilidade de qualquer opacidade ou obscuridade, ou seja, onisciente. Mas, de acordo com a proporção que acabei de recordar, a condição da existência desse sujeito absoluto é um enraizamento radical no solo mundano, ou seja, a coincidência com esse solo. Em outras palavras, é por ser o próprio solo que Deus pode conhecê-lo em transparência. Aqui coincidem a profundidade absoluta do solo e a transparência de uma fenomenalização absoluta, sem limites, o que seria, afinal de contas, uma nova formulação de tese parmenidiana de identidade entre ser e pensamento. Mas, se vê imediatamente o problema levantado por essa definição de Deus: sua determinação significa seu desaparecimento. Com efeito, se ele for o próprio solo e, portanto, um poder absoluto de fenomenalização (que não é senão o poder do solo, já que é sempre o próprio solo que se fenomenaliza através dos entes), ele desaparece enquanto ente, ou seja enquanto individuado. Dito de uma outra maneira, já que a condição de qualquer ente é a separação, nenhum ente pode ser divino, pois a separação significa falta, desejo, impotência, em resumo, uma finitude incompatível com a divindade de Deus. Assim, a única determinação possível para Deus no âmbito do meu trabalho exclui a existência de Deus como ente singular. Afinal de contas, se puder haver um Deus na minha perspectiva é apenas no sentido de Deus sive natura, de um Deus que não é senão a potência da physis ontogenética.

RF: Você afirma que a força (energia) de que o ente dispõe para se dirigir ao solo que lhe falta provém da própria força (superpotência) que o gera, e que, “neste sentido, é o solo que, em e por este ente, tende a se reunir a si mesmo, a superar a cisão em seu seio” (p. 66). O desejo de união é do ente separado e do solo consigo mesmo a uma só vez? O desejo em mim ou de cada ente não é apenas meu ou de cada ente, mas do solo também? Ou o termo “desejo” não é apropriado para esta tendência do solo em se manter indiviso?

RB: Está certo. Mas, mesmo que a energia que permite ao ente se aproximar do seu solo provenha do próprio solo, mais precisamente da energia da deflagração, só pode se falar em desejo a respeito de um ente separado. Assim, de fato, mesmo que a potência do desejo seja a da deflagração, o termo de desejo não é apropriado ao solo e só convém a um ente. Aliás, diga-se de passagem, não se pode falar exatamente numa “tendência do solo em se manter indiviso” pois o modo de ser mais profundo do solo é o da deflagração, ou seja, de uma saída de si mesmo, de uma divisão, de uma ferida originária. Assim, o solo é deiscência, separação de si mesmo, existência fora de si. Em consequência, a reconciliação só pode ser a obra do ente: ele é que deseja superar a divisão de que ele procedeu, cumprir a indivisão dele com a fonte.

RF: Nesse caso, acho que me escapou a sutileza do “como se”, pois essa tendência, que cito do seu texto, aparece em mais duas passagens do livro: “Tudo se passa, com efeito, como se fosse o solo mesmo que, existindo como potência ontogenética, tentasse se reunir através disso que ele produz, de voltar a si no e pelos entes nos quais ele se separou, de converter a distensão em coincidência” (p. 67). E mais à frente: “[...] como se os lugares fossem a maneira pela qual uma sobrepotência originária tentasse voltar a si mesma através de seu outro, de se reencontrar ainda ao seio do disparate que ela dispersa, de se reunir ela mesma fora de si mesma, em resumo, de reconquistar sua indivisibilidade no múltiplo” (p. 99). É isso mesmo?

RB: De fato, o “como se” é muito importante, pois, na realidade, o modo de ser da fonte é a deflagração, ou seja, a saída de si mesmo, a deiscência. A fonte é a unidade imediata do Uno e do Múltiplo. Nesse sentido, a fonte não pode querer nada, não pode tentar voltar a si aquém da separação originária já que existe como essa separação. Assim, é apenas o ente individual que almeja voltar ao solo. Mas, na medida em que a origem do dinamismo do ente é a sobrepotência da fonte, o sopro da deflagração, pode se dizer que é como se o solo tentasse voltar a si mesmo através do ente individual.

RF: Na sua concepção anterior de subjetividade, os animais penetram mais no Aberto do que o homem. Em uma frase lapidar, você afirma que “ao homem falta isso que possui o animal, a saber, uma aptidão para penetrar dinamicamente no mundo e a se juntar, assim, ao mundo mesmo: ele permanece à distância, em uma relação de face a face que é à exata medida de sua impotência” (BARBARAS, 2013, p. 349), ou ainda, “que o Aberto só existe enquanto tal, ou seja, reconhecido, quando ele já está perdido; e, pelo contrário, só atinge o Aberto quem não o reconhece de nenhuma maneira” (BARBARAS, 2011, p. 170). Sua nova concepção de subjetividade inverte esta relação, reconciliando-se com a ideia “segundo a qual toda relação de conhecimento supõe uma relação de ser. Com efeito, se o homem tem de próprio que ele pode conhecer seu próprio solo, ou antes se aproximar dele sob a forma do conhecimento, isso só pode ser porque ele lhe pertence profundamente, é separado dele apenas parcialmente” (p. 77). Em que medida essa inversão altera a noção de Sentimento destacada por sua metafísica, até então?

RB: Você tem toda razão: com respeito aos lugares respectivos do animal e do homem, a posição do meu último livro é contrária à dos anteriores. De fato, o poder de fenomenalização, ou seja, de conhecimento do homem, enraíza-se numa proximidade com o solo, num pertencimento radical. No entanto, proximidade não significa identidade, pertencimento não quer dizer coincidência. Enquanto entes individuados, ou seja, tendo um local (site), ficamos separados do solo e, até, radicalmente separados no sentido em que não há reconciliação possível, senão ao preço da nossa dissolução, da nossa morte. Ora, como o mostrei no meu livro Métaphysique du sentiment, para poder se aproximar do solo, para que o desejo possa ir na direção certa, é preciso já ter uma relação com este solo, “conhecê-lo” de uma certa maneira. Assim, há necessariamente uma relação na separação, uma proximidade na distância. Em suma, não existe desejo sem experiência de separação, mas não existe sentimento de separação sem uma iniciação àquilo de que se está separado. Um ente radicalmente separado nem se sabe separado. Tal é exatamente o papel do sentimento: iniciar-nos àquilo de que estamos separados, abrir ao mundo para o qual avançamos, nortear o desejo. Assim, a noção de sentimento não fica alterada por minha metafísica do pertencimento; ele é até o único conceito que permaneceu totalmente incólume. Pensando bem, acho que o uso desse conceito é mais coerente na minha abordagem atual do que na anterior. Com efeito, poderia se dizer que quanto mais distância do mundo, mais precisa do sentimento. Ora, na teoria do pertencimento, descobri que os animais estão menos enraizados, mais separados do que os homens. Daí o primado da dimensão afetiva nos animais: são entes que, contrariamente aos homens, existem principalmente no nível do sentimento. Em ambos os casos (animal, homem) o sentimento é a modalidade originária de abertura ao mundo, a única maneira de se relacionar com aquilo que, por definição, não pode ser intuído, fica necessariamente ausente. Nesse sentido, pode se dizer que o sentimento é sempre sentimento da profundidade, sendo que a profundidade é aquilo em que avançamos, e que, por conseguinte, não podemos desdobrar ou intuir. A profundidade é o modo de doação do mundo enquanto intotalizável e inacessível, e o sentimento é nosso modo de relação com a profundidade. Isto quer dizer que, seja para quem for, há sempre uma prevalência do sentimento em relação ao conhecimento. No entanto, isto não impede que haja diferenças entre os entes em termos de capacidade de fenomenalização, por assim dizer aptidão a encher a profundidade, em resumo a conhecer. Ora, no caso dos homens, em razão de sua proximidade com o solo, a dimensão do conhecimento, a capacidade de determinar, de dar um conteúdo ao sentimento é muito maior do que no caso do animal. É nesse sentido que se pode dizer que o animal existe principalmente no plano do sentimento. Mas, não é por excesso de sentimento, é só por falta de conhecimento — palavra que deve ser entendida, é claro, como sinônima de fenomenalização.

RF: Em uma frase que você repete algumas vezes neste seu último trabalho, entrar em si é o mesmo que sair de si (p. 81; 97; 107), recuando a alteridade para a identidade do próprio si, “de um si que só é si permanecendo outro” (p. 48), ou que “o outro em direção ao qual se porta o desejo é apenas o si” (p. 51). Posto isso, no caso da relação com o outro, podemos dizer que quanto mais próximo de seu ser, mais próximo de si próprio ou, quanto mais do outro, mais de si e, inversamente, quanto menos do outro, menos de si, como no caso da pedra, que repousa ou se concentra em si, com grau mínimo de fenomenalização ou de mobilidade em direção à diferença? Em síntese, podemos dizer que o máximo de si é o mesmo que o esquecimento de si, na medida em que inundado de mundo ou de outro, tal como você desenvolve por meio da estética em Métaphysique du sentiment e por meio do amor em Le désir et le monde? Esquecimento que corresponde, ao mesmo tempo, à máxima intensificação de si?

RB: Não tenho nada a acrescentar: você resumiu perfeitamente uma orientação teórica que permeia meus últimos livros. A intuição seminal de tudo isso é a convicção de que não há vida interior, de que a interioridade e, de certa forma, o eu, não existem. Somos de ponta a ponta relação com a exterioridade e, sem dúvida, é ao penetrar no mundo, ao se abrir a uma alteridade que se volta a si mesmo, ou, antes, se constitui como um “eu”. É na medida em que me encho com o mundo que posso adquirir uma individualidade, o que significa que não há alternativa entre o anonimato e a singularidade, entre a generalidade e a individualidade. Assim, se eu me voltar diretamente para mim mesmo, não acho nada, a não ser o vazio. Nesse sentido, sim, entrar em si é o mesmo que sair de si.

RF: Você assume o conceito de profundidade de Merleau-Ponty como condição para a fenomenalização de mundo: “há lugar porque o sujeito avança em direção ao mundo, mas só há avanço possível no seio da profundidade” (p. 51); então, se entendi bem, todos os entes da natureza se dirigem ao solo ou à sua própria origem por meio de sua experiência modal de profundidade, avançando na espessura do mundo. Considerando sua afirmação de que o sentido mais profundo da negatividade é o de fundar a mobilidade de todo ente (p. 42), você poderia falar um pouco sobre a relação entre negatividade e profundidade? É uma relação entre atividade e passividade, de um ponto de vista ôntico e mesmo ontológico, considerando que os entes e a espessura do mundo decorrem da atividade de negação que define a potência de dinamismo da realidade? (p. 70).

RB: A resposta a essa pergunta decorre diretamente da resposta à questão do sentimento. Como mostrei no meu livro sobre o pertencimento, não basta dizer que qualquer ente tende para seu solo ontológico. Para poder realizar essa aproximação o ente já deve ter uma relação com o solo, ser iniciado a ele. Como Platão já tinha mostrado, não posso procurar alguma coisa para conhecê-la se não a conheço previamente: nesse sentido, o conhecimento se pressupõe a si mesmo. Em outras palavras, mesmo que o avanço para o solo seja a condição da fenomenalização, deve haver uma fenomenalidade do próprio solo para que o avanço seja possível. Daí o conceito de profundidade, que designa exatamente a maneira pela qual o solo se fenomenaliza, a modalidade própria de aparição do solo enquanto solo, isto é, enquanto ainda não desdobrado sob forma de lugar. De fato, através da profundidade, o espaço se dá imediatamente como aquilo que posso percorrer indefinidamente, mas que, no entanto, ficará desdobrado só se eu percorrê-lo. A profundidade é a iniciação específica ao mundo enquanto tal, ou seja, como onienglobante, antes de qualquer forma de extensão. Nesse sentido, a profundidade é uma dimensão mais profunda do que as outras e, na realidade, a condição dessas: a largura ou a altura são relativas à distância em relação a mim, ou seja, ao grau de profundidade. Como Merleau-Ponty diz, ela é “minha participação num Ser sem restrição, e primeiro no ser do espaço para além de qualquer ponto de vista”. Assim, dá para entender que a profundidade é o correlato rigoroso do sentimento, aquilo que é desvelado por ele e só por ele. O sentimento é, antes de mais nada, sentimento da profundidade, acesso específico a ela, de modo que, quando se fala em profundidade de um sentimento, essa palavra (profundidade) é neutra em relação à distinção entre a esfera afetiva e a esfera mundana: a profundidade é indiscernivelmente psicológica e cosmológica. Agora, dizendo respeito à relação entre profundidade e negatividade, na medida em que a negatividade se confunde com a tensão ou a distância entre local e solo (poderia se dizer que essa negatividade comporta duas vertentes: a própria distância e o movimento, mas são as duas faces da mesma situação) eu diria que a profundidade é o modo específico de aparecer do negativo. Aquilo que existe como transcendência, que, por princípio, não pode ser alcançado — o que é exatamente o sentido do negativo — manifesta-se através da profundidade ou, antes, como profundidade. Ela é a presença de uma ausência irredutível.

RF: Você elabora uma cosmologia própria ao nosso modo de fenomenalização de mundo. Você diz que “isso que chamamos mundo propriamente dito” não é senão “o lugar desdobrado pelo ente que somos, o correlato de nossa mobilidade própria” (p. 83). Mais importante ainda, afirma que “se o lugar é a maneira na qual o solo do mundo se figura para o ente, o solo como tal se encontra perdido nesta figuração na medida em que ela só se produz do ponto de vista do site (local). Não é jamais o mundo mesmo que libera o lugar: esse acesso ao mundo como tal exigiria com efeito uma forma de ubiquidade ontológica da qual o site (local) é a negação” (p. 49). Desta forma, ao mesmo tempo em que você elabora uma cosmologia a partir de nossa fenomenalização de mundo, você afirma claramente a particularidade ou finitude dessa nossa modalidade de fenomenalização. Ou ainda, assim como podemos penetrar mais no solo ontológico que outros entes que participam de nosso mundo, a possibilidade de outros entes mais dotados do que nós da capacidade de penetração no solo, aponta para os limites modais do acesso de nosso mundo à realidade ontológica. Você enfatiza que essas diferenças de modalização são de grau de participação em uma mesma realidade. Podemos dizer que essas diferenças são apenas quantitativas ou de grau, de um ponto de vista ontológico, porém qualitativas ou de “natureza”, de um ponto de vista fenomenológico?

RB: Mais uma vez, você deu conta perfeitamente da minha posição e sua proposta final me parece particularmente relevante. De fato, como eu já disse, na perspectiva do pertencimento como sentido de ser dos entes, só existem diferenças modais e, num plano de univocidade, essas diferenças remetem necessariamente para diferenças de grau. Essas diferenças de grau decorrem da deflagração enquanto ela envolve diferenças de distância em relação ao próprio evento originário. Falar em deflagração equivale a reconhecer que não há apenas uma pluralidade, mas há também uma pluralidade na pluralidade na medida em que os estilhaços caem mais ou menos longe da própria explosão. Este é o ponto de vista ontológico. Mas, como você o disse muito bem, a diferença quantitativa dá lugar a uma diferença qualitativa no plano fenomenológico, no sentido em que a maneira como cada ente (cada estilhaço) se relaciona com sua própria origem, aproveitando da potência de que ele provém, desdobra lugares, até mundos fenomenologicamente diferentes. A distância em relação ao solo torna-se diferença na maneira de se relacionar com ele, isto é, de fenomenalizar.

RF: Você afirma que “a síntese sobre a qual repousa a fenomenalidade é como o eco, no coração ôntico, de sua origem cosmológica indivisa” (p. 97). Podemos dizer que o Uno é a origem e o fim do dinamismo da realidade?

RB: Sim, pode se dizer que o Uno é a origem e o fim do dinamismo da realidade. Mais precisamente, mostrei primeiro que cada ente é caracterizado pela tentativa de voltar a sua origem, de se reconciliar com o solo, em resumo, por um desejo que se realizaria ao voltar à fonte. Em outras palavras, a sobrepotência que é a origem dos movimentos também lhes é a meta. No entanto, faltava mostrar que este movimento do desejo é fenomenalizante, isto é, dá lugar a um lugar, que pode tomar a forma de um mundo. Trata-se aqui da questão da origem do sentido. Estabeleci primeiro, apoiando-me sobre a obra de Patočka, que a unidade é o a priori da fenomenalidade: a aparição de um mundo é aparição de um mundo. Assim, enquanto fenomenalizante, o movimento é necessariamente um movimento de unificação: ele faz aparecer enquanto ele produz unidade. Ora, a resposta a essa questão torna-se óbvia se se levar em conta o fato de que a origem desse movimento é uma deflagração que, enquanto tal, é caracterizada pela indivisibilidade: aquilo que dá lugar à pluralidade é necessariamente indiviso, Uno. Mais precisamente, há uma diferença entre a unidade e a indivisibilidade e, como mostrei, a distância ontológica entre os mundos e a fonte corresponde a essa distância, a unidade de um mundo qualquer sendo sua maneira de se aproximar da indivisibilidade da origem. A dificuldade é entender que a fonte ou a origem, enquanto deflagração, envolve uma multiplicidade e, portanto, não pode permanecer indivisa. Há dois níveis de resposta. Primeiro, eu diria que isso é exatamente a definição e, de certa forma, o mistério de uma deflagração eterna: um indiviso que se multiplica, a unidade imediata do indiviso e do dividido. Mas, segue-se daí a necessidade de sublinhar a singularidade dessa indivisão, que tem a ver com o Uno plotiniano: ela é sobrepotência, compressão infinita, densidade absoluta e, nesse sentido, mais do que unidade (pois não há unidade sem uma multiplicidade que ela vem unificar). Por conseguinte, a unidade fenomenalizante aparece como o rastro ou o sedimento dessa indivisão originária no plano da pluralidade. Tal unidade é o que sobra da compacidade da deflagração nos próprios estilhaços. Ao procurar a indivisão da origem, cada ente dá lugar a uma certa unidade, unifica os outros entes e, assim, os faz aparecerem. Segue-se daí que podemos distinguir três sentidos do mundo. Primeiro, o mundo designa o solo originário de onde provêm os entes; em segundo lugar, ele designa a pluralidade dos entes, enquanto separados do solo; enfim, ele designa os modos de unificação da pluralidade enquanto rastros da indivisão da origem e, mais radicalmente, a unidade de todos os entes. Repara-se que esses três sentidos do mundo remetem à triplicidade do solo, do local e do lugar. Assim, o mundo é ao mesmo tempo natureza, conjunto aditivo dos entes e, enfim, totalidade; ele pode ter um sentido cosmológico, empírico ou fenomenológico. Portanto, para voltar a sua proposta, eu diria que o Uno é, sim, a origem do dinamismo da realidade e o fim da unidade fenomenal do lugar.

RF: Se com este trabalho você retoma e responde a uma questão que estava em trânsito nos trabalhos anteriores, há uma nova questão que já se encontra em elaboração, a partir deste seu último trabalho?

RB: Tem de entender que este livro é mais um programa do que uma conclusão. Portanto, falta desenvolver e aprofundar muitas coisas. No entanto, como anuncio no final, a nova questão que eu gostaria de tratar é a da obra de arte, do estatuto e do papel ontológicos da obra de arte. Em outras palavras, acho que esse trabalho pode desembocar numa estética original. É essa estética que eu gostaria de desenvolver agora, mesmo que seja, a meu ver, a coisa mais difícil em filosofia.

RF: Para encerrar, há algum comentário que você gostaria de fazer para completar alguma coisa importante que ficou de fora, no contexto desta entrevista?

RB: Não tenho nada a acrescentar. Fiquei muito satisfeito com esta entrevista, pela qual agradeço-lhe de novo.

Referências

BARBARAS, R. L’appartenance. Vers une cosmologie phenomenologique. Louvain-La-Neuve (Bélgica): Peeters, 2019.

BARBARAS, R. Investigações Fenomenológicas. Curitiba: UFPR, 2011.

BARBARAS, R. Dynamique de la Manifestation. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013.

BARBARAS, R. Le Désir et le Monde. Paris: Hermann, 2016.

BARBARAS, R. Métaphysique du Sentiment. Paris: Les Éditions du Cerf, 2016.

MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. Trad. José A. Gianotti; Armando M. l’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Original publicado em 1964).

Notas

1 Este trabalho conta com o Auxílio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), processo n. 2018/24315-4.
[2] As traduções dos originais em francês são do entrevistador.
[3] A entrevista foi por escrito. O professor Barbaras respondeu às perguntas diretamente em português.

Author notes

[a] Doutor


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