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“Aqui a voz da Argélia...”
“Here’s the voice of Algeria…”
« Ici la voix de l’Algérie… »
Revista de Filosofía Aurora, vol. 33, no. 59, pp. 677-704, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Tradução


Received: 05 May 2021

Accepted: 10 July 2021

DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.TRAD01

Resumo: O presente artigo foi originalmente publicado no ano de 1959 por Frantz Fanon (1925-1961) durante a Revolução Argelina (1954-1962) no livro que ganha o título de Sociologie d’une Révolution (L’An V de la Révolution Algérienne). No presente texto, Fanon nos oferece uma narrativa sobre o cotidiano da população argelina durante esse contexto, enfatizando a maneira na qual houve a apropriação e ressignificação dos aparelhos de rádio, como contrapartida aos veículos midiáticos da colônia francesa.

Palavras-chave: Frantz Fanon, Rádio, Libertação, Revolução.

Abstract: This article was originally published in the year 1959 by Frantz Fanon (1925-1961) during the Algerian Revolution (1954-1962) in the book entitled Sociologie d’une Révolution (L'An V de la Révolution Algérienne). In the present text, Fanon offers us a narrative about the daily lives of the Algerian population during this context, emphasizing the way in which there was the appropriation and resignification of radio devices, as a counterpart to the media vehicles of the French colony.

Keywords: Frantz Fanon, Radio, Libertation, Revolution.

Introdução

Neste capítulo, nos propomo-nos a estudar as novas atitudes adotadas pelo povo argelino, no curso da luta de Libertação, em relação a um instrumento técnico preciso: o aparelho de rádio. Veremos, então, que por detrás destas novas condutas, é a situação colonial como um todo que está posta em questão. Teremos a ocasião de mostrar tudo ao longo deste livro, que a contestação do princípio mesmo da dominação estrangeira provoca mutações essenciais na consciência do colonizado, na percepção que ele tem do colonizador, na sua situação de homem no mundo.

Radio-Alger, estação transmissora francesa instalada na Argélia depois de dezenas de anos, reedição ou eco da Radiodifusão Nacional Francesa instalada em Paris, exprime, antes de tudo, a sociedade colonial e seus valores. Os Europeus da Argélia, no geral, possuem um aparelho de rádio. Antes de 1945, os aparelhos de rádio[2] (T.S.F: transmissão sem fio) estavam, na proporção de 95%, entre as mãos dos Europeus. Os argelinos que também o possuíam se recrutam principalmente no seio da “burguesia evoluída” e em algumas cabilas antigamente emigradas, que depois regressaram à cidade. A brutal estratificação econômica entre as sociedades dominante e dominada explica em grande medida este estado de coisas. Mas, naturalmente, como em toda situação colonial, esta categoria de realidades se pinta de maneira específica. É assim que as centenas de famílias argelinas cujo nível de vida tornou possível a aquisição de um rádio não o fazem. Não há, contudo, uma decisão racional e circunstanciada de recusar este instrumento. Não há uma resistência organizada à esta técnica. Não colocamos em evidência, mesmo após um inquérito, as verdadeiras linhas de contra-aculturação tais como encontramos descritas em certas monografias consagradas às regiões subdesenvolvidas. Sinalizamos, todavia, e este argumento pôde parecer confirmar as conclusões dos sociólogos, que, questionados sobre as razões desta reticência, os argelinos com muita frequência respondem o seguinte: “As tradições de respeitabilidade revestem-se em nós com uma tal importância e uma tal hierarquização, que nos é praticamente impossível ouvir em família os programas radiofônicos. As alusões eróticas, ou mesmo as situações burlescas, que querem fazer rir, evocadas na rádio, provocam no seio da família tensões insuportáveis”.

A eventualidade, sempre possível, de rir diante do chefe de família ou do irmão mais velho, de escutar em comum as palavras amorosas ou as palavras suaves, atrasa, evidentemente, a difusão do aparelho de rádio na sociedade autóctone argelina. É em referência a esta primeira racionalização que é preciso compreender o hábito tomado pelos serviços oficiais da radiodifusão na Argélia, de sinalizar os programas que podem ser escutados em comum, e aqueles ao curso dos quais as formas tradicionais de sociabilidade arriscam serem gravemente postas à prova.

Eis, portanto, num certo nível explicativo, a apreensão de um fato: os aparelhos receptores se impuseram com dificuldades à sociedade argelina. Em geral, ela recusa esta tecnologia que coloca em causa sua estabilidade e os tipos tradicionais de sociabilidade; a razão é que os programas na Argélia indiferenciados porque são calcados sobre o modelo ocidental, não se adaptam à hierarquização patriarcal do tipo estrito, ou mesmo feudal, e as múltiplas proibições morais da família argelina.

A partir desta análise, as técnicas de abordagem podiam ser propostas. Entre outras, a distribuição das emissões em função da família tomada como totalidade, visando o grupo dos homens, das mulheres etc. Veremos, descrevendo as transformações ocorridas neste domínio à ocasião da guerra nacional, o que uma tal explicação sociológica contém de artificial, o quanto de erros ela encerra.

Já assinalamos a rapidez com a qual o rádio é adotado na sociedade europeia. A introdução do rádio na sociedade colonizadora se desenrola numa cadência que lembra aquela das regiões ocidentais mais desenvolvidas. É preciso sempre recordar que na situação colonial, em que, como vimos, a dicotomia social atinge uma intensidade incomparável, há um aburguesamento frenético e quase caricatural dos cidadãos da metrópole. Possuir um aparelho de rádio, para o europeu, é, certamente, inaugurar o círculo sempre presente da posse pequeno-burguesa ocidental, que vai do rádio para a casa, passando pelo carro e a geladeira. É também sentir viver e palpitar a sociedade colonial, com suas festividades, suas tradições que ansiaram para se estabelecer, seus progressos, sua radicação. Mas é, sobretudo, no bled, nos ditos centros de colonização, o único meio de ser ligado às cidades, à Argélia, à metrópole, ao mundo dos civilizados. É um dos meios de escapar à pressão inerte, passiva e esterilizante, do “indígena” circundante. É, segundo a expressão costumeira do colonizador, “o único meio de ainda se sentir um homem civilizado”.

Nas fazendas, a rádio lembra ao colono a realidade de um poder e distribui, por sua própria existência, segurança, serenidade. A Radio-Alger fundamenta o direito do colono e consolida sua certeza na continuidade histórica da conquista, portanto, sua exploração agrícola. A música de Paris, os extratos da imprensa metropolitana, as crises governamentais francesas constituem uma tela de fundo coerente, da qual a sociedade colonial retira sua densidade e sua justificação. Radio-Alger mantém o erigir da cultura do ocupante, segrega-a da não cultura, da natureza do ocupado. Radio-Alger, a voz da França na Argélia, constitui o único centro de referência no tocante à informação. Radio-Alger é cotidianamente, para o colono, um convite a não se misturar, a não se esquecer do bom direito de sua cultura. Os blédards[3] da colonização, os aventureiros desbravadores, sabem disto tão bem que, sem cessar, apenas repetem que “sem o vinho e a rádio, nós já seríamos arabizados[4].”.

Na Argélia, antes de 1945, a rádio, enquanto instrumento técnico de informação, se multiplica na sociedade dominante. Então ela é, nós o vimos, assimilada ao mesmo tempo como um meio de resistência entre os europeus isolados e como um meio de pressão cultural da sociedade dominada. Entre os agricultores europeus, a rádio é, em geral, vivida como laço com o mundo civilizado, como instrumento de eficácia de resistência à influência corrosiva de uma sociedade indígena imóvel, sem perspectiva, atrasada e sem valor.

Em contrapartida, entre os argelinos a situação é totalmente diferente. Nós vimos que a família abastada hesita em adquirir um aparelho. No entanto, não é constatada uma resistência explícita, organizada e fundada, mas antes um desinteresse desolado por este pedaço de presença francesa. Nos meios rurais e nas regiões afastadas dos centros de colonização, a situação é mais clara. Há a ignorância do problema, ou, mais precisamente, o problema está, neste ponto, afastado das preocupações cotidianas do autóctone, tanto que prevemos de maneira muito nítida o escândalo que haveria em perguntar ao argelino a razão pela qual ele não possui o aparelho de rádio.

O investigador que durante este período exige respostas satisfatórias não chega a dissipar sua ignorância. Na realidade, todos os pretextos propostos devem ser recebidos com o máximo de circunspecção. Ao nível da experiência vivenciada, não é preciso esperar para obter uma racionalização das atitudes e das coisas.

Dois níveis de explicação podem ser abordados aqui. Como técnica instrumental, em sentido restrito, o aparelho de rádio desenvolve os poderes sensoriais, intelectuais e musculares do homem numa sociedade dada. O aparelho de rádio, na Argélia ocupada, é uma técnica do ocupante que, no quadro da dominação colonial, não responde a nenhuma necessidade vital do “indígena”. O aparelho de rádio, como símbolo da presença francesa, como sistema material incluso na configuração colonial, é dotado de uma valência negativa extremamente importante. A eventual multiplicação e a possível extensão dos poderes sensoriais ou intelectuais pela rádio francesa são implicitamente rejeitadas ou negadas pelo autóctone. O instrumento técnico, as novas aquisições científicas, quando elas encerram uma carga suficiente para abalar tal dispositivo da sociedade autóctone, nunca são percebidos em si numa quieta neutralidade. O instrumento técnico se insere na situação colonial, em que, o sabemos, os coeficientes negativos ou positivos existem sempre de maneira muito apurada.

Num outro nível, como sistema de informação, como portadora da linguagem, portanto da mensagem, a estação de Rádio pode ser apreendida no seio da situação colonial de maneira particular. A tecnologia radiofônica, a imprensa e, de uma maneira geral, os sistemas, as mensagens, os transmissores de signos, existem na sociedade colonial segundo um estatuto perfeitamente diferenciado. A sociedade argelina, a sociedade dominada nunca participa deste mundo de signos. As mensagens emitidas pela Radio-Alger são captadas apenas pelos representantes do poder na Argélia, por aqueles que estão vinculados ao poder dominante e parecem magnificamente evitar os membros da sociedade “indígena”. A não aquisição de aparelhos de rádio por esta sociedade reforça precisamente esta impressão do mundo fechado e privilegiado de informação colonialista. No plano dos programas cotidianos, antes de 1954, é evidente que os elogios às tropas de ocupação são praticamente inexistentes. Aqui e ali, há certamente no rádio a evocação das grandes datas da conquista da Argélia, ao curso das quais, com uma obscenidade que beira o inconsciente, o ocupante ataca e humilha a resistência argelina de 1830. Há também as manifestações comemorativas nas quais os antigos combatentes “muçulmanos” são convidados a depositar uma grinalda (gerbe) ao pé da estátua do general Bugeaud ou do sargento Blandan[5], os heróis da conquista e assassinos de milhões de patriotas argelinos[6]. Mas, em geral, é impossível afirmar que o conteúdo claramente racista ou antiargelino da rádio dá conta desta indiferença e desta resistência do autóctone. A explicação parece se encontrar mais no fato de que a Radio-Alger é vista pelo argelino, como o mundo colonial falando. Antes da guerra, o humor do argelino havia feito definir a Radio-Alger assim: “Franceses que falam para franceses”.

A partir de 1945, a Argélia vai brutalmente aparecer no cenário internacional. Durante semanas, os 45 mil mortos de Setif e de Guelma, alimentam os jornais e os boletins de informação de regiões até então desconhecidas ou indiferentes à sorte da Argélia. Os próprios argelinos esboçam sinal prévio de transformações mais essenciais, uma mutação a partir dos irmãos mortos ou mutilados e através da simpatia fervente de homens e mulheres da América, da Europa e da África. O despertar do mundo colonial e a Libertação progressiva de pessoas há muito escravizadas situam a Argélia num processo que a ultrapassa, fundando-a. A aparição de países árabes libertados assume aqui uma importância excepcional. A primeira introdução massiva de aparelhos de rádio na Argélia é contemporânea da criação de estações emissoras nacionais da Síria, do Egito e do Líbano.

A partir de 1947-1948[7], os aparelhos se multiplicam, mas de maneira moderada. Mesmo assim, o argelino à escuta se interessa exclusivamente pelas rádios estrangeiras e árabes. Radio-Alger só é sintonizada porque ela difunde a música tipicamente argelina, a música nacional. Diante deste início do mercado argelino, as concessionárias europeias se colocam em busca de representantes “indígenas”. As casas europeias se persuadem, então, de que a venda de aparelhos de rádio depende da nacionalidade do comerciante. Os intermediários argelinos são cada vez mais solicitados pelo comércio de aparelhos radiofônicos. Esta inovação no sistema de distribuição destes aparelhos é acompanhada de uma intensificação do mercado. É durante este período que uma certa parte da pequena burguesia argelina vai proceder para a aquisição de aparelhos de rádio.

Mas é em 1951-1952, durante as primeiras escaramuças na Tunísia, que o povo argelino sente a necessidade de aumentar sua rede de informação. Nesses anos Marrocos empreende sua guerra de libertação e, em 1º de novembro de 1954, a Argélia se une à Frente de Magreb anticolonialista. É neste momento que se produzem, no quadro estrito de aquisição de aparelhos receptores, na definição de atitudes novas em face desta técnica precisa de informação, as mudanças mais capitais.

Estas são as reações do ocupante que ensina ao argelino que alguma coisa de grave e de importante se desenrola no país. O europeu, pela tripla rede de imprensa, da rádio e de seus deslocamentos, toma uma noção muito clara dos perigos que cercam a sociedade colonial. O argelino que decifra no rosto do ocupante a derrota crescente do colonialismo sente a necessidade imperiosa e vital de estar inteirado. A impressão difusa de que alguma coisa de fundamental se desenrola é reforçada ao mesmo tempo pela decisão solene dos patriotas que exprime o desejo secreto do povo e incarna a vontade, ontem vazia de conteúdo, de existir enquanto Nação, mas sobretudo pela erosão visivelmente objetiva e apreciável da serenidade do colono.

A luta de libertação, detectável na súbita gentileza do colono ou em suas cóleras inesperadas ou desmotivadas, coloca o argelino na necessidade de seguir, passo a passo, a evolução da confrontação. Neste período de estabelecimento das fronteiras do conflito, os europeus multiplicaram os erros. É assim que nas fazendas os colonos reúnem as obras agrícolas para anunciar que tal “bando de rebeldes”, desconhecido, aliás, na região, foi dizimado nos Aurés ou na Cabila. Outras vezes, oferecem às serventes uma garrafa de limonada ou uma fatia de bolo, pois três ou quatro suspeitos acabaram de ser executados a alguns quilômetros da propriedade.

O argelino, desde os primeiros meses da Revolução, no intuito de autodefesa e a fim de escapar do que considera como as manobras mentirosas do ocupante, se encontra, então, levado a dispor de suas próprias fontes de informação. Saber o que se passa, conhecer ao mesmo tempo as perdas reais do inimigo e as próprias, torna-se fundamental. O argelino, nesta época, tem a necessidade de içar sua vida ao nível da Revolução. Ele tem a necessidade de entrar na vasta rede de informação; ele tem a necessidade de se introduzir em um mundo onde as coisas se passam, onde o evento existe, onde as forças agem. O argelino, através da existência de uma guerra feita pelo seu povo, leva uma comunidade ao ato. Às informações do inimigo, o argelino deve opor suas próprias informações. À verdade do opressor, outrora rejeitada como mentira absoluta, é contraposta, enfim, outra verdade concreta. A mentira do ocupante ganha enquanto verdade, pois hoje ela é uma mentira em perigo, encurralada na defensiva. São as defesas do ocupante, suas reações, suas resistências que salientam a eficácia da ação nacional e a fazem participar de um mundo de verdade. A reação do argelino deixou de ser uma recusa crispada e desesperada. Porque ele se admite confuso, a mentira do ocupante se torna um aspecto positivo da nova verdade da Nação.

Durante os primeiros meses da guerra, é com a imprensa escrita que o argelino tenta organizar seu sistema de informação. A imprensa democrática ainda existente na Argélia e os jornais de tradição anticolonialista ou com vontade de objetividade são, então, avidamente lidos pelo autóctone. É neste setor de informação que o argelino recebe os elementos reequilibrantes. O poder da mensagem colonialista, os sistemas postos em obra para impor e para fazer a verdade[8] são tais que, a maior parte do tempo, o colonizado tem apenas sua convicção interior, cada vez mais desmensurada, para opor às ofensivas eminentemente traumatizantes da imprensa francesa e às manifestações espetaculares do poder militar e policial. Cotidianamente confrontado com a aniquilação das últimas bandas, o civil não escapa ao desespero senão por um ato de fé, por uma crença intratável.

Progressivamente, o auxílio moral, porque objetivo, concedido para a imprensa democrática, cessa. A autocensura dos jornais locais conhecidos por sua honestidade tradicional reforça esta impressão de incompletude, de inacabamento, ou mesmo de traição sobre o plano de informação. Parece, ao argelino, que as peças inteiras da verdade lhe são dissimuladas. Ele tem a quase-certeza de que o poder colonialista está prestes a desabar diante de seus olhos e que ele não está suficientemente seguindo a sua agonia. Ele tem um medo súbito de que esta coisa tantas vezes odiada, ferida de morte no djebel, com os dias provavelmente contados, não desapareça sem lhe deixar a ocasião de ver de perto como se desmantelam este poder e este necrotério. Durante este período, o argelino sente uma impressão de frustração. Sua agressividade fica em suspenso porque ele não conta os pontos, porque ele não registra hora após hora os defeitos do inimigo, porque, enfim, ele não mede centímetro por centímetro a diminuição progressiva do poder ocupante.

No geral, o europeu tem tomado as dimensões da rebelião muito objetivamente. Ele não pensa verdadeiramente que uma bela manhã as tropas revolucionárias vão se instalar numa cidade. Com mais ou menos precisão, ele conhece a importância das forças da revolução e ele não deixa de compará-las com aquela das tropas francesas. Cada avião que percorre o céu, cada engenho blindado que avança na manhã, são manchas de sol no mundo antigo e indeciso do colono. O europeu sente a sacudida, mas, nos primeiros meses de 1955, ele pensa que nada está perdido, que sempre há um futuro do colonialismo na Argélia. As declarações oficiais da rádio reforçam esta posição. O próprio argelino, sobretudo aquele das regiões rurais, completa sua ausência de informações com um exagero absolutamente irracional. É assim que surgem reações tão desproporcionais com a realidade objetiva que elas revestem aos olhos do observador um aspecto patológico. No primeiro mês de 1955, acontece que circulam em Constantine os boatos segundo os quais a Argélia se encontrava entre as mãos dos nacionalistas, ou que, na Argélia, a bandeira argelina flutua sobre Constantine, Philippeville, Batna...

Nos pequenos centros de colonização, os colonos não compreendem sempre a brutal e súbita segurança felá[9], e muitas vezes os vemos telefonar para a cidade mais próxima, para confirmar que nada de importante aconteceu no país. O europeu se apercebe que a vida que ele tinha edificado sobre a agonia do povo colonizado perde sua segurança.

Antes da rebelião, há a vida, o movimento, a existência do colono e, opostamente, a agonia continuada do colonizado. Antes da rebelião, há a verdade do colono e a negação do colonizado. Depois de 1954, o europeu constata que uma outra via é posta em ação, paralelamente à sua, e que na sociedade argelina, aparentemente, as coisas não se repetem mais como antes. O europeu, depois de 1954, sabe que alguma coisa lhe é oculta. É o período no qual a velha expressão pejorativa telefone árabe adquire um significado quase científico.

Nos países do Maghreb, os europeus chamam telefone árabe a rapidez relativa com a qual, de boca em boca, as novidades são difundidas na sociedade autóctone. Em nenhum momento se questionou dissimular outra coisa sob esta expressão ou sob o vocábulo. Ora, em 1955, vamos ouvir os europeus e até os argelinos se referirem, confidencialmente e como que revelando um segredo de estado, a uma técnica de emissão à distância que lembra vagamente o sistema de sinais, o tam-tam, tal como encontramos em certas regiões da África. Então o argelino dá ao europeu isolado a impressão de estar em contato permanente com o alto comando da Revolução. Há no autóctone um modo de autoconfiança ampliada, que provoca, no plano das condutas, certas manifestações particulares. É assim que podemos assistir aos fenômenos do tipo amok[10] absolutamente típicos.

Dois indivíduos em plena lufada confessional são, então, lançados fora deles mesmos. Vemo-los se atirarem numa rua ou numa fazenda isolada, sem arma, ou empunhando uma pobre faca de serra, aos gritos de “Viva a Argélia independente. Somos vencedores”. Esta conduta agressiva, de expressão extremamente violenta, se encerra, na maioria das vezes, por uma rajada de metralhadora liberada por uma patrulha. Quando o médico pode conversar com o moribundo, as expressões mais habituais são: “Não acredite neles! Somos mais fortes, nosso povo está vindo, estou encarregado de anunciar a chegada deles. Somos poderosos e esmagaremos o inimigo”.

Há casos em que estes “iluminados” são apenas feridos e confiados aos serviços da polícia para interrogatório. A natureza patológica do comportamento não é vista, e durante dias o acusado é torturado até que a imprensa informa ao público que ele foi abatido tentando fugir durante uma viagem, ou que ele foi morto por uma doença recorrente. No grupo dominante, igualmente, encontramos uma efervescência dos espíritos, assistimos a eclosão do medo coletivo e a aparição, no colono, de fugas frente aos criminosos. A diferença com o caso do colonizado é que sempre há a passagem ao ato no caso do colonizador, mortes reais e múltiplas. Nos propomos a abordar estes diferentes problemas, nascidos da luta da Liberação, num estudo mais diretamente centrado na psicopatologia, suas formas, sua originalidade, sua descrição.

O argelino, no plano da informação, vai se encontrar numa rede estreitamente limitada no espaço. Numa vila, há um acordo entre todo mundo sobre a importância numérica e material do Exército da Libertação nacional (l’Armée de Libértation nationale). Podemos obter, à procura das informações sobre o poder bélico, o programa das próximas operações. Evidentemente ninguém saberia especificar a origem destas informações, mas não há dúvidas. A descrição que foi dada, quando um Exército nacional entra em colapso, da propagação ao povo de novidades alarmantes, catastróficas, desastrosas nos serve de sistema de referência para apreciar o fenômeno inverso. Descobrimos, talvez, os pedaços da Quinta Coluna (Cinquième Colonne) que, em 1940, foi encarregada de inocular no povo francês o vírus da derrota, mas não saberíamos ignorar o fato de que o terreno estava preparado, que havia uma espécie de desmobilização espiritual, explicável pelos xeques sofridos pela democracia na Espanha, na Itália, na Alemanha e, sobretudo em Munique. O derrotismo de 1940 foi o produto direto do derrotismo de Munique.

Na Argélia, em contrapartida — isso é verdade para todos os países coloniais que empreendem uma guerra nacional — toda novidade é boa, toda informação, reconfortante. A Quinta Coluna é uma impossibilidade na Argélia. É a constatação deste fato que leva os especialistas da Sociologia a encontrar a velha explicação que quer que o “indígena” seja inacessível ao raciocínio ou à experiência. Os especialistas da guerra, mais empiricamente, constatam que estes homens têm uma moral de ferro ou que seu fanatismo é incompreensível. O grupo, considerado em sua totalidade, dá a impressão de completar suas informações com uma certeza cada vez mais desligada da realidade. Estas manifestações, estas atitudes de crença total, esta convicção coletiva exprimem a vontade do grupo de se encontrar mais próximo o possível da Revolução, de se antecipar, se possível, à Revolução, enfim, de estar no jogo.

Ao mesmo tempo, dizemo-lo, sobretudo nos centros urbanos, as condutas mais complexas veem o dia (voientle jour). Os argelinos, ávidos de informações objetivas, compram os jornais democráticos que chegam da França. Para estes jornais é um sucesso financeiro incontestável. L’Express, France-Observateur, Le Monde multiplicam e aumentam na proporção de um a três, e até cinco, suas remessas para a Argélia. Os proprietários dos quiosques de jornais, quase todos europeus, são os primeiros a indicar o perigo econômico e, secundariamente, político que representam estas publicações. Quando estudamos o problema da imprensa escrita na Argélia, é preciso sempre se recordar da existência de uma particularidade no sistema de distribuição. Os arautos, todos jovens argelinos, vendem exclusivamente a imprensa local. Os jornais europeus não são levados ao consumidor. Estes jornais devem ser solicitados nos quiosques. Os proprietários da imprensa escrita argelina sentem imediatamente a concorrência que os seus jornais fazem à imprensa vinda da França. As campanhas de denúncia visando a imprensa “cúmplice do inimigo”, e as apreensões repetidas de algumas destas publicações adquirem, evidentemente, uma significação particular. Por sua vez, os proprietários adotam cada vez mais o hábito de responder agressivamente que “a imprensa dos sacanas não chegou hoje”.

Os Argelinos, nos centros urbanos, mas sobretudo nas aglomerações rurais, descobrem, então, que se inquietar com a chegada ou não desta dita imprensa basta para categorizá-los. Na Argélia, como na França, e naturalmente de maneira mais conclusiva, os proprietários da banca de jornais, como o tabaqueiro, são principalmente os antigos combatentes fortemente enquadrados nas formações ultracolonialistas. Para o argelino, solicitar L’Express, L’Humanité ou Le Monde é admitir publicamente, e geralmente a um indicador de polícia, sua lealdade para com a Revolução; é, em todo o caso, indicar sem precaução que mantemos distância em relação às informações oficiais, portanto, “colonialistas”; é manifestar sua vontade de se singularizar; é, para o proprietário do quiosque, a afirmação sem ambiguidade, por este argelino, de uma solidariedade com a Revolução. A compra de tal jornal é, assim, assimilada como um ato nacionalista. Portanto, é prontamente um ato perigoso.

Cada vez que o argelino solicita um destes jornais, o representante do ocupante, que é o proprietário do quiosque, vê nisso a expressão do nacionalismo, o equivalente de um ato de guerra. Progressivamente, os adultos argelinos, por estarem agora realmente engajados nas atividades para a Revolução, ou por prudência compreensível, se nos referimos à atmosfera da raiva xenófoba instalada pelos colonos franceses em 1955, criam o hábito de confiar aos jovens argelinos o cuidado de comprar estes jornais. Apenas algumas semanas e o novo “truque” fica obsoleto. A partir de um certo período, os proprietários também recusaram a venda do l’Express, l’Humanité e Libération aos menores. Os adultos são, então, pressionados a se desmascarar ou a se contentar com l’Echo d’Alger. É neste momento, sobretudo, que a direção política da Revolução dá a ordem de boicotar a imprensa local argelina.

Esta decisão respondia a um duplo objetivo. Primeiro, responder à ofensiva das multinacionais argelinas por uma medida com consequências econômicas. Ao privar os jornais argelinos de uma grande parte de sua clientela autóctone, o movimento revolucionário abala de forma muito eficaz o mercado da imprensa local. Mas sobretudo a direção política estava convicta que, entregues a uma única informação colonialista, os argelinos sofreriam progressivamente a ação massiva e nociva destas páginas inteiras, onde dados e fotos se espalhavam complacentemente e onde cada manhã, em todo caso, podíamos ler claramente a eliminação da Revolução.

Ao nível das massas, que ficaram relativamente à margem dessa luta em torno da imprensa escrita, faz-se sentir a necessidade da procura dos aparelhos de rádio. É preciso lembrar, com efeito, que o analfabetismo generalizado do povo o deixou indiferente às coisas escritas. Nos primeiros meses da Revolução, a grande maioria dos argelinos identificou todas as coisas escritas em língua francesa à expressão do poder conquistador. A morfologia da escrita do l’Express ou do l’Echo d’Alger era o signo da presença francesa.

A aquisição de um aparelho de rádio na Argélia, em 1955, representa o único meio de obter notícias da Revolução de origem não francesa. Esta necessidade assume um caráter imperioso quando o povo descobre que do Cairo, todo dia, os argelinos fazem o balanço da luta de Liberação. Do Cairo, da Síria, de quase todos os países árabes refluem assim sobre a Argélia grandes páginas escritas nos djebels pelos irmãos, pelos parentes, os amigos.

No entanto, apesar destas informações novas, a introdução de aparelhos de rádio nas casas e nas alfândegas mais remotas se faz de maneira progressiva. Não assistimos um verdadeiro choque, para um fluxo enorme de rádios receptores.

É ao fim de 1956 que se produz a verdadeira mudança. Com efeito, nesta época são distribuídos panfletos que anunciam a existência de uma Voix de l’Algérie Libre .Voz da Argélia Livre]. As horas de escuta e os comprimentos de onda de emissões são estabelecidos. Esta voz “que fala a partir dos djebels”, não situada geograficamente, mas que conduz para toda a Argélia a mensagem grandiosa da Revolução, adquire desde já um valor essencial. Em menos de vinte dias, todas as reservas de aparelhos de rádio são retiradas. Nos azoques[11] o comércio de aparelhos usados faz sua aparição. Os argelinos, aprendizes dos europeus eletricistas de rádio, abrem pequenas oficinas. Além disso, o comerciante deve responder às necessidades originais. A não eletrificação de regiões imensas na Argélia coloca efetivamente ao consumidor problemas precisos. É assim que os rádios à pilha são, a partir de 1956, os mais demandados no território argelino. Em algumas semanas, alguns milhares de rádios são vendidos aos argelinos. Rádios individuais, rádios adquiridos por famílias, grupos de casas, as alfândegas, os mechtas[12].

A partir de 1956, na Argélia, a compra de um rádio não é vivida como adesão a uma técnica moderna de informação, mas como o único meio de entrar em comunicação com a Revolução, de viver com ela. No caso particular do rádio móvel de pilha, forma melhorada e de vanguarda do rádio fixo funcionando à eletricidade, os especialistas em mudanças técnicas nos países subdesenvolvidos poderiam ver aí a marca de uma mudança radical. O argelino dá, de fato, a impressão de saltar uma etapa e de alcançar, desde já, as formas mais modernas de informação[13].

Em realidade, vimos que este “progresso” se explica pela ausência de eletricidade nas alfândegas argelinas.

As autoridades francesas não compreenderam naquele momento a importância excepcional desta modificação do povo argelino em relação ao aparelho de rádio. As velhas resistências intrafamiliares explodem e podemos ver em uma alfândega os grupos de familiares nos quais pais, mães, filhos, lado a lado, perscrutam a tela do rádio a esperar a Voix de l’Algérie. A família argelina, de repente indiferente ao velho poder, à antiga sociabilidade esterilizante e desprovida de fraternidade, se descobre imunizada contra as piadas perversas ou as frases amorosas que o operador aqui e ali sustenta de passagem.

O instrumento técnico, o aparelho de rádio, perde quase que magicamente — mas temos visto a progressão concertada e dialética das novas necessidades nacionais — suas características de objeto do inimigo. O aparelho de rádio não faz mais parte do arsenal da opressão cultural do ocupante. Fazendo da rádio um meio singular de resistir às opressões psicológicas e militares cada vez maiores do ocupante, a sociedade argelina, por um movimento autônomo interno, decide assumir a nova técnica e estar, assim, ligada aos novos sistemas de sinalização postos no mundo pela Revolução.

La Voix de l’Algérie combattante [A voz da Argélia combatente] terá, sobre o plano da coesão, da tomada em massa do povo, uma importância capital. Veremos que a utilização das línguas árabe, cabila e francesa, expressão de uma concepção não racista como o colonialismo teve de convir, teve a vantagem de desenvolver e reforçar a unidade do povo, de fazer existir a Djurdjura ao combate para os argelinos patriotas de Batna ou de Nemours. Os atos cortados e fragmentados, publicados pela correspondência de um jornal mais ou menos atado à dominação colonial, ou comunicados pelas autoridades militares adversas, perdem sua característica anárquica e se organizam num pensamento político nacional e argelino, tomam lugar numa estratégia de conjunto, da reconquista da soberania popular. Os atos esparsos se inserem numa vasta epopeia e os Cabilas não são mais “aqueles das montanhas”, mas os irmãos, que com Ouamrane e Krim[14] levam a vida dura para as tropas inimigas.

Ter seu rádio é pagar seu imposto à Nação, comprar o direito de entrar nesse povo reunido em vista da luta.

As autoridades francesas, no entanto, começam a perceber a importância do progresso popular na técnica da informação. Após alguns meses de hesitação, as medidas legais aparecem. A venda dos rádios é, então, interditada, sob reserva de produção de um bom documento emitido para a segurança militar ou os serviços da polícia. A venda dos rádios à pilha está sujeira a uma proibição absoluta e as pilhas de reserva são praticamente retiradas do mercado. Os comerciantes argelinos têm, então, a ocasião, multiplicando as fraudes, de fazer um ato de patriotismo, garantindo assim, com uma regularidade excepcional, o abastecimento do povo com pilhas de reserva[15].

O argelino que deseja viver ao mesmo nível que a Revolução, finalmente tem a possibilidade de ouvir uma voz oficial, aquela dos combatentes, para lhe explicar o combate, lhe contar a história da Libertação em marcha, incorporá-lo, enfim, à nova respiração da Nação.

Aqui se situa um fenômeno suficientemente original para que ele retenha a nossa atenção. Os serviços técnicos franceses com muita experiência adquirida para a ocasião de guerras modernas, rompidos na prática da “guerra das ondas”, tinham rapidamente de localizar os comprimentos de onda do aparelho transmissor. Os programas foram, então, sistematicamente mexidos e, progressivamente, la Voix de l’Algérie combattante se tornou inaudível. Uma nova forma de luta nasceu. Os panfletos aconselharam os argelinos a se manter à escuta de maneira permanente durante duas ou três horas. Ao curso de uma mesma emissão, um segundo aparelho, emitindo em um outro comprimento de onda, transmitia a primeira estação de rádio com interferências. O ouvinte que foi incorporado na batalha das ondas percebia a tática do inimigo e de maneira quase física, muscular, enganou a estratégia adversária. Muitas vezes, somente o operador, de orelha colada contra o aparelho, tinha a chance inesperada de ouvir La Voix. Os outros argelinos presentes na sala recebem o eco daquela voz por intermédio do intérprete privilegiado que, desde o fim da emissão, é literalmente cercado. As questões precisas são, então, colocadas nessa voz encarnada. A assistência deseja se informar sobre tal batalha relatada pela imprensa francesa das últimas vinte e quatro horas e o intérprete, embaraçado, carregado de culpa, admite, por vezes, que la Voix não faz menção.

Mas, de um comum acordo, depois uma troca de opiniões, ocorre que la Voix se faz perfeitamente pronunciada sobre estes eventos, mas que o intérprete não apresentou as informações difundidas. Um verdadeiro trabalho de elaboração é, então, colocado em obra. Todo mundo aí colabora e as batalhas de ontem e antes de ontem são reconstruídas segundo o desejo profundo e a crença inabalável do grupo. O ouvinte atenua a característica fragmentária das novidades por uma criação autônoma de informação.

Ouvir la Voix de l’Algérie combattante não é se preocupar em ouvir o outro lado, mas uma exigência interior de fazer corpo com a Nação em luta, de recuperar e de assumir a nova formação nacional, de escutar e de repetir a grandiosa epopeia realizada lá em cima, nos rochedos e sobre os djebels. A cada manhã o argelino comunica o resultado de suas horas de escuta. A cada manhã ele completa a intenção de seu vizinho ou de seu camarada, as coisas caladas pela Voix e responde às questões insidiosas colocadas pela imprensa inimiga. Às afirmações oficiais do ocupante, aos boletins esmagados do adversário, ele opõe as informações oficialmente proclamadas pelo Comandante da Revolução.

Às vezes, é o militante que lança na circulação o ponto de vista suposto da direção política. Por causa de um silêncio sobre este ou aquele feito e que, prolongado, poderia se revelar angustiante e perigoso para a unidade do povo, a Nação inteira agarra-se à passagem da emissão dos retalhos de frases e lhes confere uma significação determinante. Mal-entendida, coberta por um ruído incessante, obrigada a se deslocar duas ou três vezes sobre as ondas, ao curso de uma mesma emissão, la Voix de l’Algérie combattante quase nunca é entendida de maneira seguida. É uma voz picada, descontínua. De uma vila à outra, de um gourbi até outro gourbi[16], la Voix d’Algérie diz as coisas novas, relata as batalhas cada vez mais gloriosas, desenha claramente o desmoronamento do poder ocupante. O inimigo perde sua densidade e, ao nível da consciência do ocupado, inicia uma série de quedas essenciais. Esta Voix de l’Algérie que durante vários meses viverá perseguida pelas redes potentes da interferência do adversário, esta “Parole”, ainda que inaudita geralmente, alimenta a fé do cidadão na Revolução.

Esta Voix que sentimos presente, com a qual adivinhamos a realidade, comparada com a importância das ondas de interferência emitidas pelas estações inimigas especializadas, adquire cada vez mais peso. É a potência da sabotagem inimiga que sublinha a realidade e a intensidade da expressão nacional. Parole da Argélia em luta e a Voix de cada argelino, o caráter quase fantasmagórico da rádio dos Moudjahidines[17] confere ao combate seu máximo de existência.

Nestas condições, afirmar ter ouvido la Voix de l’Algérie é, num certo sentido, alterar a verdade, mas é sobretudo a ocasião de proclamar sua participação clandestina na essência da Revolução. É fazer uma escolha deliberada, embora não explícita nos primeiros meses, entre a mentira congenital do inimigo e a própria mentira do colonizado que adquire subitamente uma dimensão de verdade.

Esta voz, geralmente ausente, fisicamente inaudível que cada um sente entrar em si, fundada sobre uma percepção interior que é aquela da Pátria, se materializa de maneira irrecusável. Cada argelino, de sua parte, emite e transmite a linguagem nova. A modalidade de existência daquela voz lembra até um tal título da Revolução: presente atmosfericamente, mas não objetivamente, em pedaços destacados[18].

O aparelho de rádio é a garantia desta mentira verdadeira. Em cada noite, de 21 horas a 24 horas, o argelino se coloca na escuta. No fim da noite, não ouvindo la Voix, ocorre de o ouvinte abandonar a agulha sobre uma faixa de interferências ou de simples parasitas e de decretar que aí se encontra a voz dos combatentes. Durante uma hora, a sala se enche do barulho lancinante e penível da interferência. O argelino, atrás de cada modulação, cada ruído ativo, adivinha não somente as palavras, mas as batalhas concretas. A guerra das ondas, no gourbi, reedita a intenção do cidadão, a confrontação armada de seu povo e do colonialismo. Em regra geral, a vitória reaparece para a Voix de l’Algérie. As rádios inimigas, uma vez a emissão terminada, abandonam seu trabalho de sabotagem. A música militar da Argélia em guerra que encerra as emissões pode, portanto, livremente encher o peito e a cabeça dos fiéis. Algumas destas notas de bronze recompensam três horas de espera cotidiana, desempenham durante os meses um papel fundamental na formação e no reforço da consciência nacional argelina.

Sobre o plano psicopatológico, é importante evocar alguns fenômenos relacionados com a rádio e que surgem na ocasião da guerra da Libertação. Antes de 1954, as monografias escritas sobre os argelinos alucinados assinalam constantemente a dita fase da ação exterior, das vozes radiofônicas fortemente agressivas e hostis. Todas estas vozes metálicas, desagradáveis têm no argelino um caráter acusador, inquisitorial. A rádio, ao nível do normal, já apreendida como modalidade de ocupação, como tipo de invasão violenta do opressor, adquire no domínio do patológico significações altamente alienantes. A rádio, além destes elementos mágicos de aspecto irracional encontrados na maioria das sociedades homogêneas, ou seja, donde é ausente toda opressão estrangeira, possui na Argélia uma valência particular. Temos visto que a voz ouvida não é indiferente, não é neutra: é a voz do opressor, aquela do inimigo. A palavra não é recebida, decifrada, compreendida, mas rejeitada. A comunicação jamais está em questão, mas rejeitada, pois é precisamente a abertura de si para outro que é organicamente excluída da situação colonial. Antes de 1954, a rádio é, no domínio psicopatológico um mau objeto, inquieto e maldito.

A partir de 1954, a T.S.F (transmissão sem fio) toma significações totalmente novas. A rádio, o aparelho receptor, perdem seu coeficiente de hostilidade, se despojam de seu caráter de estranheza e se organizam na ordem coerente da Nação em luta. Nas psicoses alucinadoras, a partir de 1956, as vozes radiofônicas se tornam protetoras, cúmplices. Os insultos e as acusações desaparecem e dão lugar às palavras de encorajamento. A técnica estrangeira, “digerida” na ocasião da luta nacional, torna-se um instrumento de combate para o povo e um órgão protetor contra a ansiedade[19].

Sobre o plano da comunicação é sempre preciso assinalar a aquisição pela língua francesa, de valores inéditos. Efetivamente, a língua francesa, a língua de ocupação, veículo de poder de opressão, parecia condenada para a eternidade ao julgar pejorativamente o argelino. Toda expressão francesa que diz respeito ao argelino foi de conteúdo humilhante. Toda palavra francesa ouvida foi uma ordem, uma ameaça ou um insulto. O encontro do argelino e do europeu é delimitado por estas três esferas. A difusão em francês das emissões da Algériecombattante vai liberar a língua inimiga de suas significações históricas. A mesma mensagem, transmitida em três línguas diferentes, unifica a experiência e lhe dá dimensão universal. A língua francesa perde seu caráter maldito, se revelando capaz de transmitir igualmente, para a intenção da Nação, as mensagens de verdade que esta última espera. Por mais paradoxal que isso pareça, é a Revolução argelina, é a luta do povo argelino que facilita a difusão da língua francesa na Nação[20].

Em psicopatologia, as frases em francês perdem seu caráter automático de insulto e de maldição. Os alucinados argelinos que entendem as vozes francesas assinalam as propostas cada vez menos agressivas. Ao fim, não é raro ver as alucinações do ocupante tomarem um aspecto amigável de apoio, de proteção[21].

As autoridades ocupantes ainda não mediram a importância da nova atitude argelina em face da língua francesa. Se exprimir em francês, compreender o francês não é mais assimilável a uma traição ou a uma identificação empobrecedora com o ocupante. Utilizada pela Voix des combattants, transitando de maneira marcante a mensagem da Revolução, a língua francesa se tornou também um instrumento de libertação. Ainda que em psicopatologia toda e qualquer voz francesa, num delírio, exprima a rejeição, a condenação e opróbrio, vemos se iniciar, com a luta da Libertação, um trabalho capital de exorcismo da língua francesa. Assistimos praticamente a uma tomada responsável, pelo “indígena”, da língua do ocupante[22].

É depois do Congresso de Soummam, em agosto de 1956, que os franceses tomam consciência do fenômeno. Nos lembramos que, nesta ocasião, os responsáveis políticos e militares da Revolução se reuniram no vale da Soummam, precisamente no setor de Amirouche[23] então comandante, para lançar as bases doutrinais da luta e constituir o Conselho Nacional da Revolução Argelina (C. N. R. A.). O fato de que os trabalhos se desenrolaram em francês revelavam subitamente às forças de ocupação que a relutância geral tradicional do argelino para utilizar o francês no seio da situação colonial podia não existir mais, por isso que uma confrontação decisiva lançava face a face a vontade de independência nacional do povo e do poder dominante.

As autoridades francesas foram singularmente derrotadas por este fenômeno. Primeiro elas viram aí a prova, depois sempre afirmada, da incapacidade da língua árabe para manter os conceitos operatórios de uma guerra revolucionária moderna. Mas, ao mesmo tempo, as decisões tomadas no sistema linguístico do ocupante levam este último a tomar consciência do caráter relativo destes signos e dirigiram a confusão e a desordem de seu dispositivo de defesa. Entre as diretrizes provenientes da 10ª Região Militar da Argélia e aquelas do comando da zona d’Aïn Bessem, se instala um circuito de cumplicidade, uma forma de prolongamento da quantidade. As duas ordens de realidade se objetivam por intermédio de um único sistema linguístico.

Os partidários da integração, de sua parte, veem aí uma nova ocasião de afirmar “Argélia francesa”, fazendo da língua do ocupante o único meio prático de comunicação posta à disposição das Cabilas, dos Árabes, dos Chaouis, dos Mozabitas etc. Esta tese, ao nível da língua, retoma a doutrina própria do colonialismo: é a intervenção da nação estrangeira que ordena a anarquia original do país colonizado. Nestas condições, atribui-se à língua francesa, a língua do ocupante, uma função de Logos com as implicações ontológicas no seio da sociedade argelina.

Tanto em um como em outro caso, utilizar a língua francesa é, ao mesmo tempo, domesticar um atributo do ocupante e se mostrar permeável aos signos, aos símbolos, enfim, a uma certa ordem do ocupante. Os franceses não estudaram com suficiente seriedade este novo comportamento do argelino em face de sua língua. Antes de 1954 a maior parte dos trabalhos dos Congressos dos Partidos nacionalistas têm lugar na língua árabe. De maneira mais precisa, os militantes da Cabila ou dos Aurés aprendem o árabe na ocasião de suas atividades nacionais. Antes de 1954, falar o árabe, recusar o francês como língua e como modalidade de opressão cultural é uma forma privilegiada e cotidiana de singularização, de existência nacional. Antes de 1954, os partidos nacionalistas mantêm a esperança dos militantes e formam a consciência política do povo valorizando, uma a uma, as diferentes configurações, os diferentes atributos da Nação ocupada. A língua árabe é, então, o tipo de existência, o meio mais real que tem o Ser da Nação de se revelar [24].

Em agosto de 1956, a realidade do combate e a desordem do ocupante removem da língua árabe sua característica sagrada e da língua francesa suas categorias malditas. A nova linguagem da Nação pode, então, se fazer anunciar para a ajuda de múltiplas redes significantes.

Vimos que, com a criação da Voix de l’Algérie combattante, os aparelhos de rádio se multiplicaram em proporções extraordinárias. Antes de 1954, o instrumento de recepção, a técnica radiofônica de comunicação do pensamento à distância, não é somente um objeto neutro na Argélia. Visto como correio de transmissão do poder colonialista, como meio do qual o ocupante dispõe para impregnar a nação fisicamente, o rádio é investido de significações pejorativas pelo povo. Antes de 1954, virar o botão da rádio é dar asilo à palavra do ocupante, é permitir que a linguagem do colonizador se infiltre no coração do próprio lar, último dos supremos bastiões do espírito nacional. Antes de 1954, um aparelho de rádio em um lar argelino é a marca de uma europeização em curso, de uma disponibilidade. É a abertura consciente para a influência do dominador, para a sua pressão. É a decisão de dar voz ao ocupante. Ter um rádio é aceitar ser assediado no interior pelo colonizador.

É manifestar que escolhemos a coabitação no quadro colonial. É, sem dúvidas, entregar as armas ao ocupante.

Temos evocado as razões pelas quais o povo explicava suas reticências em relação ao rádio. A preocupação de manter intactas as formas tradicionais de sociabilidade e a hierarquia da família foi a principal justificativa.

“Sempre ignoramos qual programa vai cair”, “dizemos qualquer coisa” e, algumas vezes, um argumento religioso de aspecto peremptório faz sua aparição: “É uma rádio de infiéis”. Vimos que tais racionalizações são apenas mecanismos criados de todos os documentos para justificar a rejeição da presença do ocupante.

Com a criação de uma Voix de l’Algérie combattante, o argelino se encontra na obrigação vital de escutar a mensagem, de assimilá-la e, em breve, de assumi-la. Comprar um rádio, se colocar de joelhos, a cabeça contra a tela, já não é mais querer as informações, ao nível da formidável experiência que se desenrola no país, é ouvir as primeiras palavras da Nação.

Visto que a nova Argélia em marcha decide se contar e se dizer, o aparelho de rádio se torna indispensável. É ele que permite a la Voix se enraizar nas vilas e sobre as colinas. Ter um aparelho de rádio é, solenemente, entrar na guerra.

Com a ajuda da rádio, técnica instrumental rejeitada antes de 1954, o povo argelino decide a retomada da Revolução. À escuta da Revolução, o argelino existe com ela, a faz existir.

A memória das rádios livres, nascidas ao curso da segunda guerra mundial, faz sobressair a especificidade do exemplo argelino. Os povos poloneses, belgas, franceses, sob a ocupação alemã, guardaram, através das emissões difundidas de Londres, o contato com uma certa imagem de sua Nação. A esperança, o espírito de resistência ao opressor, foram, então, cotidianamente alimentados e mantidos. Por exemplo, escutar a voz da França livre era, lembramos, um modo de existência nacional, uma forma de combate. A participação fervente e quase mística do povo francês, com a voz de Londres, foi suficientemente sinalizada, então não insistimos nisso. Na França, de 1940 a 1944, escutar a voz da França livre é sem dúvida uma audição privilegiada, essencial. Mas a escuta radiofônica, como conduta, não é novidade. A voz de Londres toma lugar no vasto repertório dos aparelhos emissores que já existia para o francês antes da guerra. Da conduta global, instrumental do ouvinte, emerge uma figura preeminente, aquela da França ocupada, recebendo a mensagem de esperança da França livre. Na Argélia, as coisas se revestem de características particulares. Primeiro, há o despojamento do instrumento de seu cortejo tradicional de interditos e de proibições. Progressivamente, o instrumento adquire não somente categoria de neutralidade, mas é afetado por um coeficiente positivo.

Aceitar a técnica radiofônica, comprar um rádio e viver a Nação em luta coincidem. O frenesi com o qual o povo esgota os estoques do aparelho de rádio dá uma ideia bem precisa de seu desejo de tomar parte no diálogo que, a partir de 1955, se instaura entre o combatente e a Nação.

Na sociedade colonial, Radio-Alger não é uma voz entre outras. É a voz do ocupante. Sintonizar na Radio-Alger é dar razão à dominação, é manifestar seu desejo de fazer um bom ménage[25] com a opressão. É dar razão ao inimigo. Virar o botão da rádio é fundar a fórmula: “Aqui é a Alger, radiodifusão francesa”. A aquisição de um rádio livra o colonizado do sistema do inimigo e prepara a expulsão da esperança de seu coração.

Em contrapartida, a existência da Voix de l’Algérie combattante modifica profundamente os dados do problema. Cada argelino se sente, de fato, convidado e quer se tornar um elemento reverberante da vasta rede de significações nascida do combate libertador. A guerra, nascente de eventos cotidianos do tipo militar ou político, é amplamente comentada nos programas de informação das rádios estrangeiras. Em primeiro plano, se destaca a voz dos djebels. Nós vimos que o caráter fantasmagórico e rapidamente inaudível dessa voz não altera em nada sua realidade entendida e seu poder. Radio-Alger, a radiodifusão na Argélia, perde seus atributos de soberania.

Já passou o tempo em que virar o botão do rádio mecanicamente constituía um convite ao endereço inimigo. Para o argelino, a rádio, enquanto uma técnica, se diferencia. O aparelho de rádio não está mais diretamente e unicamente ligado à boca do ocupante. À direita e à esquerda da banda de emissão da Radio-Alger, em comprimentos de onda diferentes e múltiplos, podem ser captadas incontáveis estações de rádio dentro das quais é permitido discernir os amigos; os cúmplices dos inimigos; os neutros. Nestas condições, ter um rádio não é nem se colocar à disposição do ocupante, nem lhe dar voz, nem fazer a parte do fogo. É, ao contrário, sobre o plano estrito de informação, manifestar o desejo de tomar suas distâncias, de entender outras vozes, de se abrir para outras perspectivas. É ao curso da luta de Libertação e graças à criação de uma Voix d’Algérie combattante, que o argelino experimenta e descobre concretamente a existência de vozes diferentes de seu silêncio antigo e da voz desmedidamente amplificada do dominador.

Os velhos monólogos da situação colonial já abalada pela existência da luta desaparecem totalmente a partir de 1956. La Voix de l’Algérie combattante e todas as vozes captadas pelo aparelho de rádio revelam agora para o argelino o caráter frágil mais relativo, a impostura, enfim, da voz francesa apresentada, até aqui, como única. A voz do ocupante se dessacraliza.

A Parole da Nação, o Verbo da Nação, ordenam o mundo e o renovam.

Antes de 1954, a sociedade autóctone em conjunto rejeita o aparelho de rádio, se fecha para a evolução técnica dos métodos de informação. A sociedade argelina, em seu conjunto, não aceita a radiodifusão. Não há atitude receptora diante da importação organizada pelo ocupante. Na situação colonial, o aparelho não responde a nenhuma necessidade do povo argelino[26]. O rádio é, pelo contrário, percebido, nós o vimos, como meio que o inimigo tem de prosseguir, sem despertar a atenção, com seu trabalho de despersonalização.

A luta nacional, a criação da Radio-Algérie libre­, provoca no seio do povo uma mutação fundamental. A rádio se introduz por força e não por implantações progressivas. Não há a acumulação de ganhos locais e adição de regiões atingidas pouco a pouco. Assistimos a uma perturbação completa de meios de percepção, do próprio mundo da percepção. Na Argélia, nunca houve, a bem dizer, em relação à rádio, a conduta receptora, de adesão, de aceitação. Como um processo mental, assistimos, a partir de 1956, a uma quase invenção da técnica.

A Voix de l’Algérie, criada do nada, faz existir a Nação e emite para cada cidadão um novo estatuto, o faz saber explicitamente.

A partir de 1957, as tropas francesas em operação criam o hábito, no curso das incursões, de confiscar todos os aparelhos. Ao mesmo tempo, é estabelecida a proibição de captar um certo número de emissões. Hoje as coisas evoluíram. La Voix d’Algérie combattante está multiplicada. Da Tunísia, de Damasco, do Cairo, do Rabat, os programas são difundidos para intenção do povo. São os argelinos que organizam os programas. Os serviços franceses não tentam mais interferir nestas emissões potentes e numerosas. O argelino tem em cada dia a ocasião de ouvir de cinco a seis emissões diferentes, em árabe ou em francês, a favor dos quais ele pode seguir passo a passo o desenvolvimento vitorioso da Revolução. Sobre o plano da informação, vimos tornar-se mais precisa uma desmonetização da palavra do ocupante. Depois de ter imposto a voz nacional, face ao monólogo do dominador, o aparelho de rádio acolhe os signos difundidos de todos os cantos do mundo. A Semana da Solidariedade com a Argélia, organizada pelo povo chinês, ou as resoluções do Congresso dos povos africanos sobre a guerra da Argélia conectam o felá à imensa onda arrebatada das tiranias.

Incorporada nestas condições para a vida da Nação, a rádio terá, na fase de construção do país, uma importância excepcional. Na Argélia, não poderia haver, depois da guerra, a inadequação entre o povo e o que é admitido exprimir. Para a pedagogia revolucionária, a luta de Libertação deve normalmente se substituir por uma pedagogia revolucionária da construção da Nação. Por conseguinte, medimos a utilização fecunda que pode ser feita deste instrumento que é o aparelho de rádio. A Argélia conheceu uma experiência privilegiada. Durante muitos anos, a rádio terá sido, para muitos, um dos meios de dizer não à ocupação e de acreditar na Libertação. A identificação da voz da Revolução com a verdade fundamental da Nação abriu horizontes ilimitados.

Referências

FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002.

FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

FANON, F. Ici la voix d’Algérie. In: FANON, F. Sociologie d’une révolution: L’na V de la Révolution algérienne. Paris : François Mapero, 1959. p. 51-82.

CENTRE NATIONAL DE RESSOURCES TEXTUELLES ET LEXICALES. Bled, França [s.n]. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition/bled. Acesso em: 05 out. 2010.

Notas

[2] Traduzimos por “aparelhos de rádio”, o que, na versão original, é descrito como « le poste T.S.F ». O « poste » pode ser transladado, dentre outras possibilidades, como “posto”, “aparelho” ou “estação”. Cuidamos de identificar qual seria a possibilidade mais adequada dentre as menções de Fanon ao « poste T.S.F ». A sigla T.S.F quer dizer « Transmition sans fil » (Transmissão sem fio) que, neste contexto, se trata da transmissão do sinal de rádio (N. do T.).
[3] Embora não tenhamos encontrado uma tradução precisa para blédard, julgamos interessante deixar como contribuição a forma como esta palavra carrega um duplo sentido, pois, ao mesmo tempo que possui uma carga semântica afetiva, carrega também o seu oposto, servindo como uma expressão pejorativa. No seu prefixo há a palavra bled que pode indicar, de forma geral, uma região do norte da África ou uma região do campo, de modo que quem é do bled não é habitante da cidade. A carga pejorativa advém do fato de que seu uso pode evocar uma “região subdesenvolvida”, “atrasada” ou “incivilizada”. Em tom menos carregado, o termo blédard pode ser uma referência ao imigrante com dificuldade de se integrar, em decorrência de sua cultura diferente. Seu sentido afetivo, porém, se manifesta geralmente no uso de autóctones e descendentes diretos, em referência ao lugar onde vivem e/ou nasceram, quando reportam seu lugar de origem. É no livro Os condenados da terra Fanon também utiliza este termo. Diante dele, o tradutor José Laurênio de Melo o verteu por “habitantes dos desertos”. Vejamos a versão traduzida e a versão original em paralelo: “Os colonialistas, aliás, utilizam essa oposição em sua luta contra os partidos nacionalistas. Mobilizam os habitantes das montanhas e dos desertos contra os moradores das cidades.” (FANON, 1968, p. 96) [Les colonialistes utilisent d'ailleurs cette opposition dans leur lutte contre les partis nationalistes. Ils mobilisent les montagnards, les blédards contre les gens de la ville. (FANON, 2002, p. 111)]. A primeira parte desta nota foi elaborada tomando como base os dados do site do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales. Para maior aprofundamento, acessar: CENTRE NATIONAL DE RESSOURCES TEXTUELLES ET LEXICALES. Bled, França [s.n]. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition/bled. Acesso em: 05 de out. 2010. (N. do T.).
[4] Radio-Alger é, aliás, uma das numerosas amarras que alimenta a sociedade dominante. Radio-Monte-Carlo, Radio-Paris, Radio-Andre desempenham igualmente um papel protetor contra a “arabização”. (N. do A.).
[5] Ambas as personalidades citadas atuaram na invasão e manutenção do poder colonial sobre a Argélia. Thomas Robert Bugeaud (1784-1849) foi marechal e governador da Argélia. Jean Pierre Hippolyte Blandan (1819-1842) foi um soldado que atuou na guerra contra o país. Este morreu em campo de batalha e foi considerado um herói, sendo nomeado Cavalheiro da Legião de Honra. A imagem à qual Fanon faz referência, esculpida por Charles Gauthier (1831-1891), situava-se em Boufarik desde 1887. Sua retirada se deu após a conquista da independência por parte dos argelinos e foi transferida para o pátio de um quartel-general, na cidade de Nancy. (N. do T.).
[6] É válido mencionar a maneira na qual Fanon abordou este tema da história oficial criada pelo colono em Os condenados da Terra. Acerca disso, ele disse: “O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constantemente à história de sua metrópole, indica de modo claro que ele é aqui o prolongamento dessa metrópole. A história que ele escreve não é portanto a história da região por ele saqueada, mas a história de sua nação no território explorado, violado e esfaimado,” (FANON, 1968, p. 38) - (N. do T.).
[7] É válido notar que estes acontecimentos mencionados por Fanon ocorreram logo depois do término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Durante aquela Guerra, forças democráticas organizaram-se no enfrentamento do totalitarismo nazifascista. O próprio Frantz Fanon deixou a Martinica e seguiu como soldado do exército francês para combater os alemães. Após a vitória dos Aliados contra o nazifascismo iniciou-se a retomada da normalidade democrática, porém, apareceu flagrante contradição: muitas nações democráticas exerciam flagrante exploração colonial contra países africanos e asiáticos. Houve, então, um período com crescentes manifestações de revolta por parte dos países colonizados em busca de liberdade e autodeterminação. Muitos países africanos deram início às mobilizações que culminaram na série de guerras de independência. Fanon adentrou ao movimento revolucionário argelino, tendo desenvolvido diversas tarefas em prol da libertação. A FLN (Frente de Libertação Nacional argelina) designou funções estratégicas a Fanon, reconhecendo a importância da participação dele no movimento dos escritores negros e a inserção junto a lideranças de outros países africanos. (N. do T.).
[8] Esta conduta do colono em fazer a verdade foi retomada por Frantz Fanon no texto Da Violência presente em Os condenados da Terra. Neste texto, o psiquiatra compreendeu esta conduta como um elemento inaugural e de manutenção da colonização, quando constatou que “É o colono fez e continua a fazer o colonizado.” [C’est le colon qui fait et qui continue à faire le colonisé.] (FANON, 2002, p. 40) – (N. do T.).
[9] A palavra felá, de origem árabe, designa “lavrador” ou “agricultor” (N. do T.).
[10] A expressão amok, de origem malaia, faz referência a uma síndrome constatada pela primeira vez na Malásia, caracterizada por um ato de suicídio realizado após período de meditação. A medicina passou a fazer uso desta palavra, como meio de descrever um comportamento marcado pelo súbito impulso de matar outras pessoas e, após isso, cometer suicídio. (N. do T.).
[11] O azoque ou soco se trata de um mercado público tradicional em países do norte da África, geralmente árabes (N. do T.).
[12] O termo mechta indica, de maneira geral, um povoado oriundo da Argélia e/ou da Tunísia. Há também o significado que o prescreve como grupo de pequenas casas. Entretanto, pode significar também uma pequena casa de alvenaria, em um sentido marroquino (N. do T.).
[13] No plano das comunicações militares, uma tal constatação poderia igualmente ser feita. O “sistema de ligações e telecomunicações” do Exército de Liberação nacional ascendeu em menos de quinze meses ao nível das melhores realizações de um exército moderno (N. do A.).
[14] Amar Ouamrane (1919-1992) e Krim Belkacem (1922-1970), foram revolucionários de destaque pela libertação da Argélia. Ouamrane teve papel importante por ter sido um dos pioneiros na insurreição e resistência armada à colonização francesa. Foi também membro do partido Frente de Libertação Nacional (FLN) e coronel do Exército de Libertação Nacional. Krim Belkacem também teve importante papel durante a guerra e na assinatura dos Acordos de Évan, tratado de 1962 cuja finalidade era a independência da Argélia (N. do T.).
[15] Evidentemente que a chegada pelo caminho regular de novos rádios e pilhas na Argélia se torna, por conseguinte, cada vez mais difícil. A partir de 1957, é da Tunísia e do Marrocos, pelas maquis, que o abastecimento se fará. A introdução regular destes meios de estabelecer o contato com a voz oficial da Revolução se tornou para o povo tão importante como as armas ou as munições para o Exército Nacional. (N. do A.).
[16] Gourbi se trata de um tipo construção de casas, lares ou habitações. Ainda que algumas definições compreendam que sua construção seja caracterizada por ser rudimentar, julgamos que esta não seria a adjetivação mais apropriada, sobretudo se considerarmos o rudimentar como relativo ao que seja primitivo. O que podemos dizer, nos restringindo na mera descrição sem emitir nenhum juízo de valor, é que tal construção se edifica tendo ramagem e terra seca como matéria prima. Evitamos o juízo de valor pela via de que o fato de não ser feito uso de alvenaria ou madeira como matéria-prima não destitui necessariamente a arquitetura de beleza e aplicabilidade (N. do T.).
[17] Moudjahidine é uma expressão transliterada do árabe que designa combatente, militante ou resistente (N. do T.).
[18] Na mesma ordem de ideias, é preciso assinalar a experiência de audição na Cabila. Agrupados por dezenas e até centenas à volta de um rádio, os camponeses ouvem religiosamente “a voz dos Árabes”. Raros são aqueles que compreendem o Árabe literário utilizado nessas emissões. Mas o rosto é sério e a máscara se endurece quando a expressão “Istiqlal” (Independência) rebenta no “gourbi”. Uma voz árabe que, quatro vezes por hora, martela “Istiqlal” é suficiente para este nível de efervescência da consciência conservar a fé na vitória (N. do A.).
[19] A aparição dos temas de proteção mórbida e sua importância como técnica de autodefesa e até de autorregeneração no desenvolvimento histórico das doenças mentais já foram estudadas na psiquiatria clássica. Perseguido pelas suas “vozes” acusadoras, o alucinado não tem outro recurso senão criar as vozes amigas. Será preciso recuperar o mecanismo de transformação e seu contrário que assinalamos na situação colonial em vias de desagregação (N. do A.).
[20] Diante desta descrição dos resultados provenientes da assimilação da cultura francesa somada à tomada de consciência dos colonizados, identificamos na prática, a efetivação daquilo que Fanon expressou já em Pele negra, máscaras brancas sobre a possibilidade de adotar um posicionamento crítico, mesmo que pelo uso da linguagem imposta. No texto supracitado ele reconheceu: “Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana.” (FANON, 2008, p. 34). No contexto do capítulo O negro e a linguagem, Fanon indicou diversos exemplos de tomada de posição que culminavam no reforço ao complexo de inferioridade da pessoa antilhana. Porém, ele não negou a possibilidade de tomada de posição com um intento oposto. Ou seja, se por um lado ele reconheceu que “Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (FANON, 2008, p. 33), por outro lado ele afirmou que “Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito. Já se vê aonde queremos chegar: existe na posse da linguagem uma extraordinária potência [...].” (FANON, 2008, p. 34). É possível inferir, pois, que mediante o reconhecimento desta potência que o povo argelino assimilou parcialmente a cultura da metrópole (N. do T.).
[21] Não se trata aqui da emergência de uma ambivalência, mas sim de uma mutação, de uma mudança radical de valência; não de uma oscilação, mas de uma superação dialética (N. do A.).
[22] Inversamente, a “Voix d’Algérie” será ouvida sob a forma de condenação à morte por certos colaboradores argelinos. Atingidos por acessos depressivos graves, estes homens pertencem, na maioria das vezes, aos serviços da polícia, são assaltados, insultados, condenados pela rádio dos “rebeldes”. Da mesma forma, as europeias, os europeus, apresentam sopros de agitação ansiosa, percebem mais nitidamente as ameaças ou as condenações na língua árabe. Estes tipos de fenômenos eram praticamente desconhecidos antes de 1954 (N. do A.).
[23] Amirouche Aït Hamouda (1926-1959), ou coronel Amirouche, foi um líder da resistência argelina às tropas francesas, considerado um herói nacional (N. do T.)
[24] Ao mesmo tempo, a direção política decide a destruição da Rádio francesa na Argélia. A existência de uma voz nacional leva os responsáveis a considerar o silêncio da Radio-Alger. Os importantes estragos são causados nas instalações técnicas pela explosão de bombas-relógio. Porém, não demorou muito, as emissões retomaram (N. do A.).
[25] A tradução literal da palavra ménage nos dá a ideia de trabalhos domésticos, de maneira que « faire le ménage » quer dizer, a princípio, “fazer os trabalhos domésticos”. Entretanto, há também um sentido que indica tanto uma família, assim, « l’amoreux ménage » quer dizer “a família amorosa” como; um casal, de modo que « une jeune ménage » se traduz por “um casal jovem”. Entretanto, existe também o sentido carregado de erotismo, tal como se expressa no Brasil, pois a expressão francesa « ménage à trois » faz referência à uma relação sexual com três integrantes. Vemos, com isso, os múltiplos sentidos para os quais este termo nos leva. Poderíamos optar por substituir esta palavra por outra que indicasse o mesmo sentido da construção de Fanon, assim como notamos na tradução para o espanhol, em que o verbo ménager foi, aparentemente, substituído pelo ajouter (agregar, somar). Porém, acreditamos que, tomando esta via, estaríamos comprometendo o estilo do autor, bem como a sua intenção, talvez sarcástica. Portanto, por não encontrarmos uma tradução precisa para esta palavra, resolvemos deixar assim como Fanon escreveu, indicando ao leitor esse amplo horizonte de sentido que o termo carrega. Traduzimos « faire bon ménage » por “fazer um bom ménage” (N. do T.).
[26] Nesta ordem de ideias, é preciso assinalarmos a atitude das autoridades francesas na Argélia de hoje. Sabemos que a televisão existe depois de alguns anos na Argélia. Até este dia, um comentário bilíngue simultâneo acompanha as emissões. Depois de alguns tempos, o comentário árabe cessou. Esse fenômeno exprime ainda mais uma vez que a Radio-Alger responde perfeitamente à fórmula: “Os franceses falam aos franceses”. (N. do A.).

Author notes

[a] O presente artigo foi originalmente publicado no ano de 1959 com o título « Ici la voix d’Algérie... » por Frantz Fanon (1925-1961) no livro Sociologie d’une Révolution (L’An V de la Révolution Algérienne). A editora Companhia das Letras, detentora dos direitos autorias no Brasil, gentilmente autorizou a tradução e a publicação deste capítulo no presente dossiê. Para este fim, o artigo foi traduzido por Jeferson da Costa Vaz, Mestre em Filosofia atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Vale mencionar que o presente material foi revisado e debatido no Grupo de Estudos Experimentais de Filosofia da Tecnologia Afrodiaspórica (PUCPR), coordenado pelo Dr. Ivo Pereira de Queirós, pelo Dr. Sérgio Luis do Nascimento e pelo proponente desta tradução.


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