Dossiê
Neoliberalismo, democracia e constituição do sujeito em Michel Foucault
Neoliberalism, democracy and the constitution of the subject in Michel Foucault
Neoliberalismo, democracia e constituição do sujeito em Michel Foucault
Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 61, pp. 51-68, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recepción: 12 Febrero 2022
Aprobación: 14 Marzo 2022
Resumo: A partir da análise do curso ministrado por Michel Foucault em 1979, Nascimento da Biopolítica, este artigo apresenta o neoliberalismo como uma racionalidade de governo que impregna tanto a lógica de atuação do Estado quanto a maneira de viver dos sujeitos. A indissociabilidade entre estes dois âmbitos de atuação tem como efeito principal o enfraquecimento da democracia, embora Foucault pouco trate dela neste curso. O Estado regido pela lógica do mercado e o indivíduo produzido como sujeito de interesse são considerados as duas faces do neoliberalismo, em relação às quais é possível propor o exercício da atitude crítica.
Palavras-chave: Neoliberalismo, Democracia, Constituição do sujeito, Michel Foucault.
Abstract: From the analysis of the analysis of the course given by Michel Foucault in 1979, Birth of Biopolitics, this article presents neoliberalism as a rationality of government that permeates both the logic of State action and the way of life of the subjects. The inseparability of these two spheres of action has as its main effect the weakening of democracy, although Foucault deals little with it in this course. The State governed by the logic of the market and the individual produced as a subject of interest are considered the two faces of neoliberalism, in relation to which it is possible to propose the exercise of a critical attitude.
Keywords: Neoliberalism, Democracy, Constitution of the subject, Michel Foucault.
Como citar: CANDIOTTO, C. Neoliberalismo, democracia e constituição do sujeito em Michel Foucault. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 51-68, jan./abr. 2022
Introdução
O problema que circunscreve este artigo diz respeito à difícil relação entre neoliberalismo, democracia e constituição do sujeito. Boa parte das análises derivadas do neomarxismo opõe democracia e neoliberalismo, porém elas prescindem da constituição do sujeito neoliberal e como ele pode ser considerado um vetor importante de fragilização e enfraquecimento da própria democracia. Já a leitura do neoliberalismo realizada por Foucault no curso de 1979, Naissance de la biopolitique, o entende tanto como uma racionalidade que atua na constituição do homo oeconomicus, como no sentido de lógica de governamentalização do Estado. Mas nestes dois âmbitos de sua atuação, Foucault não confronta explicitamente a racionalidade neoliberal com a maneira de viver democrática; ou como o governo democrático do Estado poderia ser impactado pela lógica do mercado. Ao invés disso, ele prefere apresentar o sujeito da competição neoliberal pela sua descontinuidade ao sujeito de interesses do liberalismo econômico clássico.
Essa escolha metodológica teria limitado o olhar crítico foucaultiano em relação ao neoliberalismo, ao circunscrever os limites do sujeito neoliberal no interior da própria imaginação dos economistas políticos liberais do século XVIII, sem qualquer menção às desigualdades resultantes do neoliberalismo e outros efeitos negativos amplamente contemplados pela literatura política advinda da experiência da democracia social.
Na contramão desta leitura, o artigo pretende demonstrar que a dupla dimensão da governamentalização do Estado e da constituição do sujeito, resultantes da leitura do neoliberalismo apresentada por Foucault, é fundamental para evidenciar como esta racionalidade tem como efeito o enfraquecimento da democracia e sua indissociabilidade da constituição do sujeito como sujeito competitivo. Sem falar explicitamente da democracia, a análise de Foucault dá a entender que ela é fragilizadaquando o Estado é governamentalizado pela lógica do mercado e sempre que o indivíduo é produzido como sujeito competitivo.
Apropriações da leitura foucaultiana do neoliberalismo
Há mais de quatro décadas do curso ministrado por Foucault no Collège de France em 1979, Naissance de la biopolitique (FOUCAULT, 2004b), muitas apreciações de suas pistas de pesquisa têm sido feitas, com desdobramentos no âmbito da filosofia social e política. Entendidos como desdobramentos das análises sobre a biopolítica e a governamentalidade, “os neoliberalismos” examinados neste curso estão entre as problematizações de maior repercussão na recepção do pensamento de Foucault, entre 1976 e 1979.
Contudo, se entre 1976 e 1978 a biopolítica e a governamentalidade têm sido utilizadas abundantemente em diversas análises e diagnósticos no sentido de repercutir o potencial crítico do pensamento de Foucault, quando se trata de seus desdobramentos na genealogia da governamentalidade neoliberal, essa repercussão pode ser dividida em dois grupos.
No primeiro deles, os que se atêm à “avaliação” das posições de Foucault a respeito dos neoliberalismos e sua relação com as peripécias da política francesa dos anos 70, tais como o fazem especialmente Michael Behrent (2014), Mitchel Dean & Daniel Zamora (2019), Geoffroy de Lagasnerie (2012) e Daniel Zamora (2014). Estes autores, não com a mesma dosagem, é verdade, destacam a suposta “simpatia” de Foucault em relação às técnicas neoliberais, as quais, na esteira dos movimentos de maio de 68, teriam aberto as portas à pluralidade de escolhas e o elogio à diferença, em vez do emprego de táticas próprias das instituições de sequestro, nas quais, pelo controle do tempo e enquadramento espacial dos corpos, moralizam-se os indivíduos, tornando-os dóceis e úteis.
Segundo estes críticos, se de um lado Foucault teria se simpatizado com a maneira neoliberal de atuar na regulação do jogo, mas sem interferir na liberdade dos jogadores, o que lhe livraria de um efeito moralizante; de outro, ele teria evidenciado o caráter moralizante e regulador da vida por parte das políticas de previdência promovidas pela democracia social e pelo Estado de bem-estar social, especialmente na França. Ao deixar de criticar abertamente os efeitos negativos dos neoliberalismos em suas dimensões econômica, social e política; ao não os identificar como reconfiguração do modo de produção capitalista, como pareceria ter feito Foucault em relação à sociedade disciplinar e ao biopoder[2], ele teria colaborado, segundo estes comentadores, com a fragilização da democracia.
No segundo grupo que discute as lições de Foucault sobre o neoliberalismo no curso de 79, encontram-se aqueles que “prolongam” ou “utilizam” suas análises como “pistas de trabalho” para diagnosticar outras temporalidades e geografias, tais como o fazem Pierre Dardot e Christian Laval (2010) e Wendy Brown (2016, 2019), por exemplo.[3] As apropriações de Christian Laval e Pierre Dardot, particularmente, enfatizam o neoliberalismo é uma forma de existência e constituição do sujeito. Conforme advertem, o neoliberalismo:
não é uma ideologia passageira chamada a se desvanecer com a crise financeira; não é somente uma política econômica que oferece ao comércio e às finanças um lugar preponderante. Trata-se antes de outra coisa, e bem mais: da maneira pela qual vivemos, sentimos e pensamos. O que está em jogo não é, nem mais nem menos, que a forma de nossa existência, ou seja, o modo pelo qual somos pressionados a nos comportar, a nos reportar aos outros e a nós mesmos (DARDOT; LAVAL, 2010, p. 5, tradução nossa).
Os autores ainda apontam que o neoliberalismo tem um aspecto político (a conquista do poder pelas forças neoliberais), econômico (ascensão do capitalismo financeiro globalizado), social (individualização das relações sociais em detrimento das solidariedades coletivas) e subjetivo (aparecimento de um novo sujeito, de novas patologias psíquicas). A complementariedade entre estes aspectos faz dele a “nova razão do mundo”, no duplo sentido de que ele é 1) válido em escala mundial, como também quando 2) estende a esfera econômica a todas as dimensões da existência humana. Por isso, ele tende a totalizar, a “fazer mundo”. Trata-se de uma razão global. “Razão do mundo, ela é ao mesmo tempo uma ‘razão-mundo’” (DARDOT; LAVAL, 2010, p. 6).
Considero esta apropriação da leitura foucaultiana do neoliberalismo muito pertinente. Contudo, ao torná-la uma razão-mundo, como uma configuração ampla da existência em várias dimensões, ao final da leitura do livro,La Nouvelle raison du monde, torna-se difícil pensar na constituição de uma racionalidade que não seja aquela neoliberal a impregnar nossa existência.
Sendo o objetivo deste artigo tentar articular dois aspectos da análise de Foucault sobre o neoliberalismo, a saber, uma racionalidade de governamentalização do Estado e ao mesmo tempo uma forma de constituição do sujeito, irei permanecer mais próximo deste segundo grupo que trabalha as leituras de Foucault sobre o neoliberalismo, notadamente das contribuições recentes de Wendy Brown. Ao desenvolver esta articulação e seus efeitos, implicitamente aponto os limites das análises que veem na leitura de Foucault uma espécie de simpatia ou, inclusive, identificação com as posições neoliberais.
Em seu livro de 2019, In the ruins of Neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the west, Wendy Brown ressalta que os neoliberalismos problematizados por Foucault possuem “uma caracterização substancialmente diferente” da perspectiva neomarxista em seu “significado, objetivo e propósito” (BROWN, 2019, p. 30). Esta última o percebe como a reconfiguração contemporânea do modo de produção capitalista. Ao contrário da maioria da recepção crítica, Brown entende que a perspectiva neomarxista pode ser compatível com a caracterização de Foucault dos neoliberalismos, de maneira que suas diferenças não são impeditivas de seu possível cruzamento. Os dois principais aspectos das tecnologias de governo neoliberais desenvolvidos por Foucault que permitiam postular esta compatibilidade são: 1) a permanente “governamentalização” do Estado pela veridicção do mercado; 2) o governo da conduta do homo oeconomicus. Estes dois aspectos desenvolvidos no curso de Foucault de 1979, segundo a pensadora norte-americana, permitem identificar os efeitos nocivos causados pelas formas de governo neoliberais à democracia. Eles sugerem a afinidade entre a fragilização da forma democrática de governar e a maneira de viver, sentir, pensar e agir do sujeito competitivo neoliberal.
A governamentalização neoliberal e a fobia do Estado
Neste subitem, procuro desenvolver o primeiro aspecto da leitura foucaultiana do neoliberalismo, destacado por Wendy Brown, que é o da governamentalização do Estado. Porém, diferentemente dos caminhos por ela percorridos em seu livro de 2019, pretendo correlacionar este aspecto à posição de Foucault a respeito do tema da fobia de Estado.
Foucault entende que no neoliberalismo a racionalidade de mercado é constitutiva da governamentalidade política, encontrando no Estado seu exercício mais expressivo. Além disso, esta racionalidade de mercado é irredutível à governamentalização do Estado, disseminando-se nas práticas sociais, especialmente as laborais, educacionais e médicas.[4]
Neste mesmo diapasão, ele sugere que a competitividade de mercado é considerada pelos neoliberais uma criação artificial. E para que ela seja garantida e resguardada em épocas de grande crise, é necessária sua ancoragem no Estado, razão pela qual este último será permanentemente governamentalizado pelas regras do verdadeiro e do falso deduzidas da veridicção de mercado. Ou seja, o Estado deverá existir para arbitrar o jogo do mercado e ajustar suas regras, inclusive de maneira repressiva, sempre que eles estiverem ameaçados. Em consequência, tem-se a quase completa colonização do caráter político do Estado por parte da racionalidade de mercado, especialmente sua soberania e seu papel importante na proteção e distribuição dos direitos políticos e sociais.
A esse respeito, Brown esclarece que,
na nova racionalidade governamental, por um lado, todo governo é para os mercados e orientado por princípios de mercado, e, por outro, os mercados devem ser construídos, viabilizados, amparados e ocasionalmente até mesmo resgatados por instituições políticas. Os mercados competitivos são bons, mas não exatamente naturais nem autossuficientes (BROWN, 2019, p. 31).
Esta citação de Brown é emblemática quando se considera que Foucault é criticado pela “profunda afinidade” com o neoliberalismo no que concerne à sustentação de uma “suspeita comum em relação ao Estado” (BEHRENT, 2014, p. 46, grifos meus).
Minha posição é a de que Foucault sempre suspeitou do Estado, mas não se trata da mesma suspeita enfatizada pelos neoliberais. Que instituições políticas, como as do Estado, tendam a exceder o exercício de seu poder à medida que se institucionalizam e refinam seus métodos, é algo inegável e que exige vigilância incessante. Foucault suspeita metodologicamente do Estado da mesma maneira que suspeita da prisão, da escola, do manicômio ou do hospital, sempre que sua institucionalização é correlata de práticas sociais que dividem os indivíduos entre normais e anormais ou os dividem no interior de si mesmos. Não obstante, deduzir desta suspeita vigilante do Estado como instância “crítica” uma afinidade com a crítica neoliberal de que “o Estado governa sempre demais”, não somente é exagerada, como também inapropriada.
Foucault aglutina sua análise dos pensadores neoliberais em 1979, sobretudo aqueles que, como Friedrich von Hayek, escrevem nas décadas de 1930 e 1940, porque percebe que a crítica feita à experiência totalitária, ao dirigismo político e ao socialismo condensada na conhecida fórmula da “fobia do Estado” continua a ser utilizada de maneira extemporânea e generalizada até o final da década de 70, não levando em consideração a singularidade da experimentação do totalitário.
Tanto pensadores de esquerda quanto de direita continuam a alimentar esta mesma suspeita generalizada devido, em boa parte, à falta de imaginação política. Além disso, os próprios neoliberais continuam a defender os mesmos argumentos como manto para acobertar outra coisa. Por isso é que o propósito de Foucault da análise desta experiência neoliberal nos anos 30 e 40 não é decorrente de uma simpatia ou proximidade com ela, mas, pelo contrário, evidenciar a obsolescência de continuar a sustentar uma fobia do Estado quando a experiência desta fobia já inexiste. Neste sentido, ao criticar a generalização da “aversão” ou “fobia do Estado”, Foucault aponta em suas lições que sua provocação procura desafiar esta falta de imaginação política, cômoda tanto para a esquerda quanto para os neoliberais.
Foucault entende que o papel da filosofia é realizar uma analítica da política, no sentido de que ela deve se concentrar nos “usos”, nos limites e possibilidades da racionalidade política, a começar pelo exame da maneira como o poder é exercido em diferentes instâncias. O Estado e as leis não passam de efeitos codificados de relações de poder cuja ancoragem são as lutas que se dão no próprio tecido social. Se até 1978, quando Foucault ministra o curso Sécurité, territoire, population, o Estado é considerado um terreno de disputa das lutas pelo saber e pela verdade — e não a instância de onde emana o poder —, a partir deste curso, ele sugere que o Estado é o efeito de múltiplas relações de governamentalização.
Ora, o ordoliberalismo alemão, o anarcoliberlismo austro-americano e o neoliberalismo mitigado francês, estudados em 1979, conformam as únicas racionalidades de Estado do século XX estudadas por Foucault em seu percurso, depois de ter analisado o Estado administrativo, a Razão de Estado e o Estado de Polícia no curso de 1978. Minha hipótese é que sua longa pesquisa sobre as diversas maneiras refletidas de governar do Estado ocidental tem como propósito tomar distância desse temor generalizado e indiferenciado do Estado, como ainda denota a “fobia do Estado” no final dos anos 70.
Em Naissance de la biopolitique, Foucault ressalta que a “fobia do Estado” é enfatizada pelos neoliberais nos anos 30 e 40 como decorrência da ascensão e consolidação do nazismo, do fascismo e do comunismo soviético. Porém, na aula de 7 de março de 1979, adverte que a continuidade injustificada da invocação da fobia do Estado nos anos 60 e 70 tem sua emergência em duas maneiras de pensar, próprias do neoliberalismo, que se complementam entre si: a primeira, a que concebe que o Estado, em quaisquer de suas operações, tem como alvo principal a limitação dos mecanismos e processos próprios da sociedade civil, dentre eles a liberdade econômica e a espontaneidade do mercado. É como se o Estado tivesse uma tendência endógena, própria de seu dinamismo intrínseco, a exercer uma espécie de imperialismo sobre a sociedade civil. A segunda, consiste na propensão a visualizar em qualquer política de Estado voltada ao social ou a fins sociais uma sorte de “continuidade genética” entre dirigismo econômico, socialismo, fascismo e totalitarismo (FOUCAULT, 2004, p. 191-194). Assim, o Estado administrativo, o Estado de Bem-estar social, o Estado burocrático, o Estado fascista e o Estado totalitário pertenceriam a uma mesma árvore genética, a qual, por sua vez, seria necessário combater conjuntamente em nome da liberdade econômica. Ora, isso é possível identificar em neoliberais como Hayek, especialmente em seu livro The Road to Serfdom (1944). Mas esta identificação indiferenciada jamais é corroborara ou realçada por Foucault no curso de 79.
O problema deste parentesco genético entre formas diferentes de Estado é a percepção de seu dinamismo evolutivo constante, de maneira que o intercâmbio indiferenciado entre elas deixaria completamente de lado sua especificidade acontecimental. E, como bem nota Foucault, quando critica este intercâmbio e generalização dos neoliberais, “da seguridade social aos campos de concentração, a especificidade de análise requerida se dilui” (FOUCAULT, 2004, p. 193). Com isso, sugere que é uma aberração deduzir a racionalidade dos campos de concentração a partir da lógica do modus operandi do estado social ou de uma democracia social. Se ambos são suscetíveis de crítica, não significa que devem ser objetos da mesma crítica. Se a suspeita acerca do excesso de governo pode ser feita, tanto ao estado totalitário quando ao Estado de Bem-estar social, é ilusório imaginar que se trate da mesma modalidade de suspeita ou de que a experiência do “excesso” seja a mesma. Assimilar semelhante posição neoliberal à postura de Foucault sobre a fobia do Estado seria destituir sua analítica da política da característica irrenunciável de acontecimentalização.
Ao contrário do que pensa Hayek, quem de maneira mais explícita ignora estas diferentes experiências e seus efeitos, trafegando do Estado social ao comunismo sem grandes distinções, jamais Foucault assimila o Estado de bem-estar ao Estado totalitário. Muito pelo contrário. Concebe que o Estado pode chegar a uma feição totalitária quando se deixa guiar pelo emprego de duas racionalidades governamentais responsáveis pelo enfraquecimento de seu caráter político.
A primeira delas, é a governamentalidade de Partido, segundo a qual os mecanismos próprios do aparelho do Estado são colonizados pela máquina dos partidos, como ocorreu com o Partido Comunista na ex-URSS e o Partido Nacional-Socialista alemão dos anos 1930. E a segunda delas — a que mais importa aqui — está relacionada ao surgimento da governamentalidade neoliberal, cujo exercício envolve a desestabilização contínua dos mecanismos e fins do Estado, como se ele fosse o lugar indiferenciado de um permanente perigo ao qual só resta a aversão e a fobia. Portanto, ao contrário do jogral neoliberal, Foucault se afasta de um anti-estatismo a priori, independentemente das condições históricas de emergência de cada experimentação e racionalidade, encarregadas da formação estatal e seus mecanismos de governo.
Foucault também entende que se o Estado foi assimilado pelos seus contemporâneos como um “monstro frio”, esta percepção não se deve a uma propensão intrínseca de qualquer Estado e, sim, à experimentação propiciada pelas condições históricas de sua fragilização e desestabilização pelo duplo processo de governamentalização, seja partidário ou neoliberal.
Ao contrário do que postulam os críticos do curso de 79, destacados como o primeiro grupo da recepção de Foucault no início deste artigo, na verdade Foucault toma distância da postura laxa dos neoliberais de uma “invariante antiliberal” em todas as formas de Estado, nucleada no dirigismo econômico e político. Se o lugar comum da falta de imaginação política nos anos 60, 70 e 80 consiste na crítica ao inflacionismo do Estado pelo viés da fobia do Estado, Foucault, por sua vez, procura desviar-se deste lugar. Em contrapartida, ele quer investigar o nascimento histórico dessa fobia do Estado por parte dos pensadores neoliberais nos anos 30 e 40 para apontar os limites desta fobia, sempre que ela se torna genérica e indiferenciada em relação à sua experimentação acontecimental.
Consoante ele, desde os anos 70, os neoliberais já não temem o Estado. Pelo contrário, invocam-no recorrentemente para nele imprimir uma racionalidade de mercado governamental, resultando na inevitável fragilização de sua forma democrática, uma vez que o Estado democrático deveria ser governado pela racionalidade do direito público.
Como sintetiza o próprio Laval, em outro trabalho, o que nos legou Foucault acerca deste ponto poderia ser resumido assim:
enquanto a doxa antineoliberal interpreta as políticas implementadas como um trabalho de destruição das regras, de desmantelamento das instituições, de liberação das forças espontâneas do capital e da finança, Foucault, como é seu costume e segundo um estilo que lhe é próprio, permite-nos compreendê-las a partir daquilo que elas são, a saber, um trabalho de construção de instituições e de normas neoliberais (LAVAL, 2017, p. 188, tradução nossa).
A constituição do sujeito neoliberal
O segundo aspecto aventado por Foucault no curso de 1979 e enfatizado por W. Brown em seu livro de 2019, é muito mais abrangente que outras análises sobre o neoliberalismo.
Ela consiste na identificação do neoliberalismo — especialmente o americano — como uma racionalidade normalizadora no sentido de que informa não somente a transformação de instituições neoliberais, como a do Estado, mas também a constituição de outra maneira de sentir, imaginar, pensar e agir que produz um sujeito determinado.
Foucault sugere que o neoliberalismo desenvolve um regime de veridicção que transborda a relação entre economia política e governamentalidade estatal, estendendo-a para a condução de condutas e o governo da existência. No fundo, o neoliberalismo é um governo das condutas, que atua tanto no nível do empreendedorismo do sujeito quanto na esfera do reposicionamento do Estado pela lógica do mercado.
Neste sentido é que W. Brown articula o governo da conduta do homo oeconomicus à governamentalização do Estado. Se bem eu siga esta inspiração, minha análise toma outro caminho. Ela procura identificar esta articulação pela lente da problematização foucaultiana do homo oeconomicus no liberalismo econômico clássico como indivíduo das trocas e suas descontinuidades e continuidades com o indivíduo competitivo neoliberal.
Inicialmente, uma singularidade do emprego da estratégia arqueogenealógica de Foucault, consiste na compreensão de que o sujeito produzido pela racionalidade neoliberal não é o mesmo que aquele constituído no âmbito das práticas de governo do liberalismo econômico do século XVIII.
Na Idade Clássica, o homo oeconomicus, como sujeito de interesses, teria alimentado uma espécie de “liberalismo crítico”, posto que ele desafia o poder político ao ser considerado um elemento incapturável pelo poder soberano. E, em contrapartida, nos neoliberalismos contemporâneos, nos quais o homo oeconomicus se torna o indivíduo da competividade, teria ocorrido uma espécie de “décadence”, no sentido de que, ao ser governável e manipulável por meio de respostas sistemáticas às variações realizadas no meio competitivo neoliberal, é o conjunto destes indivíduos competitivos ou indivíduos-empresa que alimenta o Estado, entendido justamente como uma grande empresa.
Contudo, uma leitura atenta do curso de 1979 nos conduz a colocar em questão esta interpretação de uma décadence da constituição do homo oeconomicus entre liberalismo econômico oitocentista e neoliberalismos do século XX. A esse respeito, será necessário entender em que sentido o homo oeconomicus do liberalismo econômico clássico é considerado no curso de Foucault um sujeito de interesses, no sentido de “indivíduo irredutível ao governo”; e, em seguida, até que ponto o homo oeconomicus, o indivíduo da concorrência neoliberal, seria somente um indivíduo “governável” e “manipulável”?
Na verdade, o sujeito de interesse clássico é caracterizado como “um certo tipo de sujeito que permitiria justamente a uma arte de governar se regular segundo o princípio da economia” (FOUCAULT, 2004, p. 275-278). Trata-se de um indivíduo “ingovernável” somente quando está diante de um governo político que não o considera como um sujeito de interesses. Contudo, este homo oeconomicus se comporta e procura se impor como sujeito de interesses em quaisquer condições e sempre segundo a racionalidade do mercado, mesmo quando pretende limitar o exercício do poder político.
Como bem lembra Frédéric Gros, Foucault enfatiza o caráter invisível da “mão” providencial de Adam Smith, a qual harmoniza os interesses egoístas de agentes que nada enxergam além de seus próprios interesses:
O sujeito econômico é cego, no sentido de que é cegado pela busca obstinada de seu lucro pessoal, não querendo enxergar nada além dele, nada que possa aproximar-se de uma lógica coletiva, de mecanismos de solidariedade, de um bem público ou de um interesse geral. [...] Foucault destaca, além disso, um outro aspecto do sujeito econômico - sua irredutibilidade ao sujeito de direito. Esse sujeito que defende cegamente seu próprio interesse é irredutível ao cidadão que defende e faz valer seus direitos: eles são incompatíveis, e é impossível esperar uma síntese harmoniosa dos dois (GROS, 2011, p. 115-116).
Neste sentido, o indivíduo ingovernável designado pelo homo oeconomicus clássico não é aquele que exerce um ato político de liberdade, irredutível ao excesso de um governo qualquer. Tanto o sujeito clássico do interesse quanto o indivíduo competitivo neoliberal só são livres ou assim se sentem ou se imaginam quando realizam seus próprios interesses privados, sem se desprenderem da racionalidade do mercado. Eles somente se rebelam quando este interesse, economicamente estendido a outras instâncias, deixa de ser contemplado.
O sujeito de interesses diante da maneira de viver democrática
Se postulamos que a análise de Foucault é capaz de se apresentar como um trabalho crítico, no sentido de que ela permite algumas saídas ou, ao menos, um desvio das normas instituídas pelo regime de veridicção neoliberal, então isso exige ir além dela, no sentido de saber até que ponto ela possibilita correlacionar a fragilização do estado democrático e sua governamentalização neoliberal. Ademais, como essa governamentalização neoliberal do estado tem como suporte a da constituição de um sujeito determinado?
Para começar, convém reconhecer que a crise da governamentalidade democrática é incompreensível se desconsiderarmos suas concessões à racionalidade de mercado; em seguida, que este reconhecimento é indissociável da produção neoliberal do homo oeconomicus como indivíduo empreendedor de si mesmo ou como indivíduo capitalizável. Em outro estudo, Brown postula a existência de uma continuidade entre o Estado, pensado a partir do modelo do mercado; e os seres humanos, normativamente fabricados como seus atores na condição de homo oeconomicus(BROWN, 2006).
A relação entre governantes e governados em um Estado colonizado pelo regime de veridicção neoliberal nunca foi alterada politicamente por resistências que emergem do homo oeconomicus da competitividade. Pelo contrário, estes indivíduos são sempre governáveis pelas técnicas que estimulam sua adaptação ao meio porque se sentem e se imaginam como empreendedores de si mesmos ou como indivíduos financeirizados em busca da captura de ativos emocionais e consumistas.[5]
Subjetivar-se desta maneira é condição para que a democracia seja considerada um regime político meramente funcional. Quando o indivíduo pretende exercer sua liberdade política a partir de uma maneira de sentir, pensar e agir somente econômica, ele colabora para a “governamentalização” neoliberal do Estado e a fragilização de sua atuação democrática.
Seria muito difícil uma governamentalização neoliberal do Estado sem uma normalização dos indivíduos cujas condutas e crenças estão impregnadas pela competitividade em todas as esferas. O Estado se apequena e pode se tornar autoritário sempre que for reduzido a árbitro do mercado ou a guardião da moral, compensando os desajustes — e desigualdades — do jogo mercadológico por meio da responsabilização dos indivíduos pelas suas más escolhas.
O Estado deixa de ser democrático quando se vale desta imputabilidade substitutiva, ao transferir suas próprias competências e responsabilidades para os próprios indivíduos ou outras instâncias da sociedade. Pensado como uma empresa submetida à racionalidade do mercado, o Estado se torna um agente de moralização ao atuar na constituição do indivíduo empreendedor a partir de uma responsabilização moralizante. Deixa de existir o movimento unilateral e crítico dos indivíduos que deveriam autonomamente vigiar e “suspeitar” politicamente a respeito das maneiras de governar o Estado, bem como da racionalidade que o sustenta. Na verdade, há uma espécie de continuum entre, de um lado, um Estado moralizante e vigilante dos indivíduos; e, de outro, indivíduos que também se vigiam a si mesmos para que suas escolhas não sejam mal tomadas, ou seja, que escolham sempre na condição de sujeitos de interesses (FOESSEL, 2010, p. 19-20).
Desta maneira, é possível identificar diferenças importantes entre o indivíduo das trocas e o indivíduo competitivo, o primeiro nascido no sistema de equivalência clássica da Análise das Riquezas, e o segundo coetâneo ao surgimento da moderna Economia Política. Isso, porém, não faz do primeiro um sujeito crítico, e do segundo um sujeito acrítico, governável e manipulável. Ou seja, a instância crítica do neoliberalismo, no que concerne à constituição do sujeito, não estaria exatamente no liberalismo econômico do século XVIII. Isso porque, se descontinuidade há entre eles, também há continuidades, no sentido de que, em uma e outra constituição, os indivíduos pensam, sentem e agem como sujeitos de interesses. Foucault está sendo fiel a seu método, quando observa, entre uma e outra época, continuidades e descontinuidades.
Tanto o liberalismo econômico clássico quanto os neoliberalismos apontam os limites do excesso de poder do Estado. Mas isso não quer dizer que apontar estes limites seja uma maneira de fazer a crítica, porque para liberais e neoliberais o estado é excessivo somente quando dirige a atividade econômica ou protege direitos humanos que constrangem o sujeito de interesses; mas este mesmo Estado não é considerado excessivo quando usa do aparato repressivo para sufocar politicamente os movimentos sociais e as camadas mais pobres da população. Essa ambiguidade liberal e neoliberal acerca do exercício de governo estatal é indissociável da constituição do indivíduo como sujeito de interesse.
Considerações finais
Se a dessubjetivação e o direitos dos governados são desdobramentos possíveis da crítica, então torna-se difícil postular a compatibilidade entre crítica e maneira de ser e viver neoliberal. Mas, por outro lado, Foucault certamente não discordaria de que a maneira de ser e viver democrática é inseparável da atitude crítica. O sujeito de interesses ou da competitividade não consegue ser vetor de uma atitude crítica porque esta última exige nosso engajamento em organizações exteriores e de natureza diferente daquela própria do quadro econômico do indivíduo de interesses e da racionalidade privatista que “governa” a esfera pública.
Por essa razão é que considero muito difícil conceber o liberalismo econômico clássico e os neoliberalismos contemporâneos como diferentes formas de imaginação política ou utopias políticas conciliáveis com a vida democrática. Se a democracia, apesar de sua fragilidade e riscos, ainda permanece como nosso horizonte utópico, tanto como processo de subjetivação quanto como governamentalidade política, então ela parece ser dificilmente compatível com o neoliberalismo.
A governamentalização neoliberal coloca em crise a democracia não somente quando o Estado é dirigido pela lógica da racionalidade competitiva da empresa, mas também quando essa racionalidade impregna a percepção que os indivíduos têm de si mesmos como seres permanentemente capitalizáveis. Sempre que a sociedade for entendida como uma “multiplicidade de empresas” ou de sujeitos que competem entre si, ela enfraquece indiretamente os sujeitos que travam diversas lutas na esfera pública, lutas estas irredutíveis à racionalidade do cálculo econômico e fundamentais para uma maneira democrática de ser e viver.
Ainda que Foucault não tenha tratado diretamente da democracia no curso de 1979, resta compreensível que o homo oeconomicus neoliberal, enquanto superfície do poder, é uma espécie de adversário da democracia. Mas este adversário pode residir no interior de nós mesmos e de nossa imaginação, ao mesmo tempo em que, supostamente, lutamos contra ele. Isso ocorre sempre que nos sentimos incapazes ou indispostos para, enquanto governados, nos sensibilizarmos e agirmos em vista do bem comum e das pessoas que o produzem. Somos sujeitos de interesses e sustentamos a racionalidade que enfraquece a racionalidade política do Estado democrático sempre que nos opusermos às políticas migratórias, à conscientização acerca da prevenção e retardo da aceleração da crise climática, limitando-nos a nos revoltar somente quando algum desastre desta ordem vier a nos causar algum prejuízo econômico.
Embora Foucault tenha praticamente prescindido da relação entre o neoliberalismo e a democracia no curso de 1979; e ainda que boa parte das análises que discorrem sobre a relação entre neoliberalismo e democracia deixe de lado o papel normalizador da racionalidade neoliberal nas novas configurações do homo oeconomicus, estas duas perspectivas de leitura, além de compatíveis, podem se revelar mutuamente imprescindíveis para o diagnóstico das formas neoliberais de governar e seus efeitos.
Referências
AUDIER, S. Penser le « néolibéralisme »: le moment néolibéral, Foucault et la crise du socialisme. Lormont: Le Bord de l’eau, 2015.
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Notas