Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
Querer não querer: A análise foucaultiana da obediência monástica e seu índice crítico à biopolítica em tempos de neoliberalismo
Marcos Nalli
Marcos Nalli
Querer não querer: A análise foucaultiana da obediência monástica e seu índice crítico à biopolítica em tempos de neoliberalismo
To want not want: The foucauldian analysis of monastic obedience and its critical index to biopolitics in times of neoliberalism
Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 61, pp. 69-91, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Pretendo discorrer sobre a análise que Foucault fez da obediência no contexto da experiência da carne, tratado por ele no último volume então publicado de sua História da sexualidade, As confissões dacarne, e buscar considerar se tal análise pode ser viável a fornecer elementos críticos para pensar a governamentalidade biopolítica neoliberal. Para tanto, considero inicialmente a relação entre soberania e liberdade de modo a mostrar que a estrutura da liberdade é sustentada desde a noção de soberania, quer em ruptura ou em identificação a ela. Essa relação entre liberdade e soberania atravessa todo o liberalismo e reflete na noção neoliberal do indivíduo como empreendedor de si mesmo. A seguir, passo a apresentar como o tema da obediência asceta introduz uma experiência de si dessubjetivada que, por sua vez, pode ser um contraponto ao neoliberalismo e sua noção de liberdade.

Palavras-chave: Biopolítica, Neoliberalismo, Experiência da carne, Liberdade, Obediência.

Abstract: I intend to discuss Foucault's analysis of obedience in the context of the experience of the flesh, considered in the last volume then published of his History of Sexuality, The Confessions of the Flesh, and seek to consider whether such an analysis can be viable to provide critical elements for thinking about neoliberal biopolitical governmentality. To do so, I initially consider the relationship between sovereignty and freedom in order to show that the structure of freedom is sustained from the notion of sovereignty, either in rupture or in identification with it. This relationship between freedom and sovereignty runs through all liberalism and reflects on the neoliberal notion of the individual as an entrepreneur of himself. Next, I will present how the theme of ascetic obedience introduces a desubjectified experience of the self which, in turn, can be a counterpoint to neoliberalism and its notion of freedom.

Keywords: Biopolitics, Neoliberalism, Experience of the flesh, Freedom, Obedience.

Carátula del artículo

Dossiê

Querer não querer: A análise foucaultiana da obediência monástica e seu índice crítico à biopolítica em tempos de neoliberalismo

To want not want: The foucauldian analysis of monastic obedience and its critical index to biopolitics in times of neoliberalism

Marcos Nalli[a]
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil
Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 61, pp. 69-91, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recepción: 23 Enero 2022

Aprobación: 01 Marzo 2023

Como citar: NALLI, M. Querer não querer: A análise foucaultiana da obediência monástica e se índice crítico à biopolítica em tempos de neoliberalismo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 69-91, jan./abr. 2022

Dado importante: Já na advertência, Frédéric Gros (2018, p. II; 2020, p. 6), responsável pela edição de As confissões da carne, diz:

O projeto de estudar o dispositivo biopolítico moderno da sexualidade (séculos XVI-XIX) — parcialmente tratado nos cursos do Collège de France — foi abandonado em proveito da problematização — mediante a releitura dos filósofos, médicos, oradores etc., da Antiguidade greco-romana — do prazer sexual na perspectiva histórica de uma genealogia do sujeito de desejo, e no horizonte conceitual das artes da existência. O tomo IV, consagrado à problematização da carne pelos Padres cristãos dos primeiros séculos (de Justino a santo Agostinho), inscreve-se no prolongamento desta nova História da sexualidade, defasada de uma boa dezena de séculos com relação ao projeto inicial, e tendo como ponto de gravitação a constituição de uma ética do sujeito.

Há que se perguntar se, de fato, o projeto foi abandonado. Aliás, qual projeto? Que lugar os estudos sobre o(s) dispositivo(s) biopolítico(s) ocupam na produção teórica de Foucault? Talvez seja possível sustentar que, contrário a Gros, não ocorre realmente um abandono, mas um deslocamento cujo arco de seu desenlace permite identificar linhas de continuidade. O que, por outro lado, jamais deve nos levar à afirmação apressada de que, com sua morte, Foucault não pôde levar a cabo o projeto de análise do dispositivo biopolítico como, por exemplo, Agamben o fez em Homo sacer (1997, p. 12).

Ainda que possa ser considerada em separado, a questão teórica da biopolítica em Foucault tem sua pertinência dentro de um quadro ampliado de análise tridimensional das relações entre sujeito, formas estratégico-funcionais de poder e regimes discursivos de verdade. No que tange tais formas e estratégias de poder, a biopolítica é apenas uma das que o filósofo se empenhou em estudar atentamente. E, sem dúvida, ao se considerar desde sua tridimensionalidade, o sujeito é melhor entendido não como natureza prévia e historicamente invariável, mas a partir dos modos de sujeição e subjetivação que historicamente lhe conformam, principalmente mediante a noção de governo que, por sua vez, se declina em governo de si e governo dos outros.

Portanto, ao se considerar desde a tridimensionalidade analítica que atravessa todo pensamento foucaultiano, talvez seja mais adequado pensar em termos de deslocamento. De qualquer modo, é imperioso ser um tanto mais preciso. Qual é o deslocamento propriamente dito? Ou que deslocamentos se operaram?

Parece que Gros em sua advertência nos dá alguma pista ao considerar a gênese do livro, ainda que persevere no argumento do abandono. Diz ele:

Pode-se então dizer, para retomar o conjunto do percurso desde A vontade de saber (1976), que, a partir de 1977-1978, o projeto de uma história da sexualidade moderna (séculos XVI-XIX), num primeiro momento (1979-1982), é abandonado em prol de uma centralização dirigida a uma problematização histórica da carne cristã – por meio de: os principais “atos de verdade” (exomologese e exagorese), as artes da virgindade, e a doutrina do casamento dos Padres cristãos dos primeiros séculos; e, em seguida, num segundo momento (1982-1984), em prol de uma descentralização voltada para as artes de viver greco-romanas e o lugar que nelas ocupam os aphrodisia (GROS, 2018, p. VI; 2020, p. 10).

Aliás, vê-se na citação, a apresentação esquemática das Confissões da carne. O livro, inacabado em certo sentido na medida em que Foucault não teve tempo hábil para as correções e ajustes finais para a sua publicação, embora sua redação definitiva se situe entre os anos 1981 e 1982 (GROS, 2018, V; 2020, p. 9), se estrutura em torno de três grandes eixos (que corresponde aos seus três capítulos), a saber: A formação de uma experiência nova, as artes de ser virgem e a doutrina do casamento, tendo como objeto de análise os Padres da Igreja nos quatro primeiros séculos da era cristã. Claro, há um radical abandono e uma adoção de um novo e inusitado material documental, que exigiram da parte de Foucault um laborioso e paciente trabalho de estudo e análise desde Sócrates até os Padres da Igreja, passando pelo estoicismo e pelos cínicos. Mas provavelmente as questões que nortearam as pesquisas de Foucault ainda são, ao menos em suas linhas gerais, as mesmas: Quais os acontecimentos que funcionam como duplos histórico-transcendentais que constituem nosso modo atual de ser, que constituem a ontologia de nosso presente?

*

Neste sentido, quero aqui considerar um desses acontecimentos, qual seja, o da liberdade. E por quê? Porque permite entender os lastros de continuidade, dentro da arquitetônica teórico-discursiva de Foucault, como seus estudo e interpretação dos Padres da Igreja se articulam com a interpretação que nos fornece da liberdade no contexto de suas análises da governamentalidade neoliberal. Mas para isso, preciso recapitular de modo sumário como Foucault tratou da temática da liberdade no contexto do neoliberalismo.

Em artigo recente (NALLI, 2020) explorei essa questão, considerando o curso de 1978-1979, O nascimento da biopolítica, sobre a relação entre liberdade e governo, de que modo, a meu ver, a questão para Foucault residia em entender por que, como e sob que condições nós, presentemente, aceitamos ser governados, por que deliberadamente nos sujeitamos a ser governados — problema geral, portanto, do projeto de uma história política da governamentalidade em tempos marcantemente neoliberais.

*

A bem da verdade, a tensão estabelecida entre liberdade e governo não é uma novidade posta pelo neoliberalismo. Ela já está no cerne do pensamento moderno. Claro que, para isso, é preciso deslocar, ou recolocar, a noção de governo em suas ligações com outra noção, aquela de soberania, ou melhor, de poder soberano. Assim, vejamos dois exemplos que, embora caracterizados demasiado esquematicamente tal qual uma caricatura, servirão para nos guiar em direção aos elementos fundamentais da relação entre liberdade e soberania que parecem marcar ainda hoje nossa visão da liberdade. Consideremos um pouco de Rousseau e Kant.

Se atentarmos, por exemplo, ainda que muito rapidamente, ao pensamento de Rousseau, já se vislumbra como o pensador genebrino concebe a liberdade. Primeiramente num sentido discricionário, isto é, no sentido de uma liberdade concebida como uma “ilimitada soberania individual [...] indicando assim que o indivíduo desfruta de total arbítrio para atuar ou não” (DENT, 1996, p. 158), pela qual o indivíduo, nascido, naturalmente livre, não está intrinsecamente subjugado à vontade soberana de outrem, isto é, como Rousseau observa em Emílio, “minha liberdade consiste nisso mesmo que só posso querer o que me é conveniente ou o que julgo conveniente, sem que nada de estranho a mim o determine” (ROUSSEAU, 1979, p. 237; destaque meu). Aqui se vê bem o sentido negativo geralmente prevalecente nas análises e interpretações do pensamento de Rousseau, e que, por isso, cada indivíduo é, naturalmente, “diretor soberano de suas próprias ações, sem ter que explicar-se ou responder perante ninguém mais” (DENT, 1996, p. 157; cf. HUET, 2010) — ou seja, seu sentido positivo. Há, ainda em Rousseau, o que se pode chamar de liberdade “moral” ou “cívica”, cuja realização se dá pela obediência de cada indivíduo à vontade geral e que, por força da reciprocidade de igualdade entre os indivíduos, não se limita à liberdade discricionária; antes a facilita e amplifica, conforme previsto no Contrato Social (cf. DENT, 1996, e HOFFMANN, 2010), ainda que cercado de controvérsias interpretativas: “Aquele que se recusar a obedecer à vontade geral a isso será constrangido por todo o corpo, o que significa apenas que será forçado a ser livre” (ROUSSEAU, 1999, I, cap. 7, p. 25).

Outro modo de se considerar a questão da liberdade parece ser aquela formulada por Kant e sua teoria da autonomia. Se tomarmos por referência a Metafísica dos Costumes (MdS), vê-se que Kant se concentra na discussão da liberdade do arbítrio e do embate fatual, ou melhor, empírico, entre liberdades individuais. É neste contexto que ele define que:

A liberdade do arbítrio é a independência de sua determinação por impulsos sensíveis; este é o conceito negativo da mesma. O positivo é: a faculdade da razão pura de ser por si mesma prática. Especificamente aí, isto só é possível submetendo a máxima de cada ação às condições de aptidão para converter-se em lei universal (MdS, p. 213-2014).

O que primeiramente chama à atenção é como Kant resolve um problema sobre o estatuto de objetividade semântico-epistêmica, já identificado na antinomia da razão pura em KrV, notadamente a terceira, ao que ele mesmo reconheceu a impossibilidade de expor a realidade da liberdade ou demonstrar sua possibilidade (KrV A558; B586). Mas ao mesmo tempo a definição kantiana de liberdade do arbítrio também nega a tese rousseauísta de liberdade (ao menos a discricionária), ou ao menos a inverte a partir de sua definição positiva. Como é bem sabido, a ética kantiana exige a adoção formalista do estabelecimento da relação entre o agente moral e a máxima (“eu ajo de tal forma que...”) transformada em lei, cujo imperativo categórico obedece a fórmula impositiva já clássica “age de tal forma que...”. Daí a importância da autonomia, uma vez que é por meio dela que Kant buscou solucionar o problema entre liberdade e lei. Primeiramente, com a autonomia a razão estabelece por si mesma, e disso tem consciência, a lei que lhe rege para si mesma, no sentido do que Kant chamou de “fato (Faktum, Fakta) da razão”; ela estabelece para si a lei que a inspira e regula seus atos, podendo por isso se qualificarem como atos morais. “E é por ser determinada objetivamente pela lei moral e subjetivamente pelo sentimento (Gëfuhl) de respeito a ela que a vontade pode se qualificar como autônoma e, neste sentido, ser considerada moral” (NALLI, 2003). Mais: em sua autonomia, a razão livre é necessariamente autossoberana.

Em suma, e por generalização (ou como prefiro: por caricaturização), talvez possamos dizer que a Modernidade se caracteriza pela ambivalência entre as teses rousseauísta e kantiana da liberdade: para uma, ser livre é não estar sujeito ao jugo soberano de outrem; para a outra, ser livre é estar sujeitado à força soberana, diria até num sentido não pejorativo autocrático, de sua própria razão de estabelecer lei que, a despeito de sua pretensão de universalidade, é-lhe autoaplicável e que por ela mesma deve ser respeitada. De qualquer modo, obviamente em suas linhas gerais, a liberdade é o “direito de estar submetido unicamente à lei” (TORRES, 1989, p. 29). E aqui um ponto que nos pode ser interessante à medida em que Rousseau e Kant, refletem a conjunção de um longo debate de séculos em torno da noção de soberania, do poder soberano e que tem na lei um de seus elementos fulcrais — o que significa admitir que, talvez contra um kantismo hegemônico, a adesão argumentativa kantiana à tese da autonomia para fundamentar moralmente a liberdade só é possível às custas dos debates de ideias e das disputas políticas em torno da ideia política e legal de soberania, dos quais é um reflexo, em que o sujeito, tal como o rei, se erige “imperator in regno suo” (TORRES, 1989, p. 47; cf. também KRITSCH, 2002, p. 32).

*

De certa maneira o neoliberalismo não parece ter rompido com essa ambivalência à medida que ainda parece equacionar toda a discussão sobre liberdade em função do debate que se estabelece em sua relação com a noção de governo. Primeiro, num sentido negativo, herdando um preceito geral concebido já pelo menos desde o liberalismo clássico: a exigência de não ser governado ou de ao menos não ser tão governado assim. É a questão da busca de um ponto de equilíbrio em que o governo, inevitável, seja mínimo e eficiente, seja frugal:

[...] a partir do século XVIII, durante todo o XIX e, seguramente em nossos dias mais que nunca é a questão da frugalidade do governo e não a da constituição dos Estados que é o problema sem dúvida fundamental. [A] questão da frugalidade do governo é bem a questão do liberalismo (FOUCAULT, 2004a, p. 31; 2008a, p. 41).

Ao que, no resumo de Nascimento da biopolítica, ele elabora de modo ainda mais explícito:

O liberalismo, ele, é atravessado pelo princípio “sempre se governa demais”, ou pelo menos, sempre se deve suspeitar que se governa demais. [...] Ela não deve se interrogar apenas sobre os melhores meios de alcançar seus efeitos (ou os menos custosos), mas sobre a possibilidade e a própria legitimidade do seu projeto de alcançar efeitos. A desconfiança de que sempre se pode estar governando demais e habitada pela questão: por que então seria preciso governar? [...] Ou seja: o que é que torna necessário que haja um governo e que finalidades deve ele perseguir, em relação à sociedade, para justificar sua existência (FOUCAULT, 2004a, p 324; 2008a, p. 433).

Foucault não fala de soberania, mas não há como negar que há aqui a apresentação da crítica liberal ao Estado e ao poder soberano, como formas e estratégias de governo. O esforço analítico de Foucault é, aí, pensar todo o debate em torno da lógica inerente das estratégias e práticas governamentais. Portanto, a discussão é em termos do dilema que se estabelece entre governo e liberdade, obedecendo à mesma estrutura dilemática já alinhavada pelos modelos rousseauísta e kantiano, que não deve ser entendida em termos de uma aversão ao Estado mais que uma afirmação da necessidade de se buscar uma “nova racionalidade política que tem na autoregulamentação econômica seu princípio de existência” (NALLI, 2020, p. 77). Não à toa, é Rousseau que assina o verbete “economia política” na Enciclopédia...

A novidade introduzida pelo neoliberalismo reside na releitura da noção de homo oeconomicus e a adoção da tese do capital humano, principalmente com Gary Becker e a Escola de Chicago durante os primeiros anos da década de 1970. Com a tese do capital humano se realça que as ações e escolhas humanas se dão dentro de um quadro de raridade e escassez de recursos de tal modo elas produzem consequências, benfazejas ou deletérias ao indivíduo como seu agente. Resulta disso que os indivíduos são considerados desde uma perspectiva econômica — daí a releitura daquela noção — pela qual se caracterizam como empreendedores de si mesmos cujo resultado pode ser equacionado a partir da produção da satisfação do que é consumido, isto é seu capital (FOUCAULT, 2004a, p. 232; 2008a, p. 311; cf. NALLI, 2020, p. 79).

Segundo Becker (apud FOUCAULT, 2004a, p. 274; 2008a, p. 369), o homo oeconomicus pode ser compreendido como o indivíduo caracterizado a partir de cifras ambientais, isto é, cujas ações podem ser entendidas como respostas não aleatórias às variáveis e modificações do meio. Ora, ainda segundo Becker, essas modificações são introduzidas artificialmente ao meio. E, portanto, como tal meio corresponde ao mercado-natureza, ele não aparece mais como a instância indelével e intocável, mas como a própria instância plástica e plasmável das ações e governos (Cf. NALLI, 2020). Vê-se aí uma adesão à natureza, mas esta, por sua vez, entendida como o locus e a matéria mesma de intervenção e modelagem artificial: a natureza como matéria-prima à artificialidade. Se outrora, no liberalismo, a natureza era o índice de verdade pelo qual se determinava a legalidade do governo soberano e se lhe exigia a máxima frugalidade, com o neoliberalismo, a razão política soberana não está mais em questão, não se trata mais de lhe buscar um ponto de justificação. No entanto a questão do governo ainda se coloca aos indivíduos. O indivíduo, sob o enquadramento da categoria de homo oeconomicus é justamente aquele que é por excelência governável, “como o correlato de uma governamentalidade que vai agir sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do meio” (FOUCAULT, 2004a, p. 274; 2008a, p. 369).

Ainda que o indivíduo seja sempre encarado como um átomo de liberdade, ele jamais é antecedente e refratário às formas variadas de governo desde uma perspectiva econômica: sua liberdade, mesmo que propalada como inviolável, é compreendida como a possibilidade de escolhas de ação a partir das variáveis dadas pelo meio, cuja natureza é artificialmente modelada, ainda que ele possa interagir com tais variáveis.

Antes, soberano era o rei que se fazia imperador de seu próprio reino e, por isso, isento de qualquer obrigação a outro poder terreno, portanto uma questão de determinação da jurisdição e de legislação. Com o liberalismo radicaliza-se a ideia de que o indivíduo é soberano de si mesmo, donde pensadores como Rousseau e Kant, e tantos outros como John Locke com seu conceito de propriedade privada, muito contribuíram para esta nova formulação. De modo que se o tema da frugalidade do governo pode ser colocado é porque se universaliza — não é algo que diz respeito apenas ao rei mas a qualquer um — ao mesmo tempo em que se individualiza o conceito de soberania — pois é-lhe inerente ao seu próprio corpo e a todo o seu ser — a cada sujeito, a partir de então encarado moralmente e não apenas em termos jurídico-políticos. Com o neoliberalismo, por sua vez esta ideia é radicalizada, não para conceber os indivíduos como sujeitos políticos livres e soberanos de si mesmos, mas, a partir dessa ideia propagandeada com fins econômicos e mercadológicos, garantir uma mais eficaz governamentalidade.

Por outro lado, isto significa o colapso e o fim da governamentalidade soberana em tempos neoliberais? Não parece ser realmente o caso. Senão, vejamos. Tomando como apoio a reflexão que André Yazbek (2019) faz sobre os nexos, na atualidade, entre soberania e biopolítica, no contexto do (neo)liberalismo — Yazbek (2019, p. 123, nota 2) deixa claro ao leitor de seu desinteresse em demarcar com precisão a diferença entre liberalismo e neoliberalismo — urge perceber, primeiro, que não se trata de considerar em termos de um corpo teórico e sim como um feixe prático e estratégico de governo donde, resgatando uma pergunta feita por Foucault na aula de 08 de março de 1978 do curso Segurança, território, população (FOUCAULT, 2004b, p. 253; 2008b, p. 331), coloca a questão do Estado sob a égide dos modos de governar (YAZBEK, 2019, p. 128). Vale realçar, com Kritsch (2002) que se as noções de soberania e de Estado por muitos séculos se deram como que numa dialética de aproximação ou distanciamento, com a Modernidade, a identificação se radicaliza (KRITSCH, 2002, p. 31). De qualquer modo, é bem sabido — Foucault não deixa qualquer dúvida neste sentido — que é no contexto de uma história da governamentalidade que ele tratou da questão do Estado, tomando-o como uma “peripécia do governo” e que ele se dispôs a considerar pelo menos nas três aulas seguintes, entre 15 e 29 de março de 1978. De qualquer modo é sugestivo como ele encerra aquela aula de 08 de março:

Haveria que dizer, nesse momento, que o Estado não é na história essa espécie de mostro frio que não parou de crescer e de se desenvolver como uma espécie de organismo ameaçador acima de uma sociedade civil. Tratar-se-ia de mostrar como uma sociedade civil, ou antes, simplesmente uma sociedade governamentalizada instituiu, a partir do século XVI, certa coisa, certa coisa ao mesmo tempo frágil e obcecante que se chama Estado. Mas o Estado nada mais é que uma peripécia do governo, e não o governo que é um instrumento do Estado. Ou, em todo caso, o Estado é uma peripécia da governamentalidade (FOUCAULT, 2004b, p. 253; 2008b, p. 33).

Aqui, o que me interessa é justamente a referência à sociedade civil e a ideia de que o Estado é uma peripécia de governo criada pela sociedade civil, ou ainda, seguindo a ressalva foucaultiana, criada por uma sociedade governamentalizada. A razão de meu interesse está no fato de que é sobre a sociedade civil que Foucault discorreu na última aula de Naissance de la biopolitique, aquela de 04 de abril de 1979 — de meu ponto de vista tensionando polemicamente a dissolução social que o neoliberalismo perpetra (cf. NALLI, 2020). É justamente nessas últimas páginas que Foucault recapitula o que já havia feito desde o ano anterior, a saber, de traçar uma história da governamentalidade segundo o princípio regulador do cálculo, pela racionalidade (e não pela verdade), caracterizando “as formas modernas de tecnologia governamental” (FOUCAULT, 2004a, p. 315; 2008a, p. 422), que assume ao menos esquematicamente duas formas, aquela do Estado ou racionalidade soberana, e a dos governados como sujeitos econômicos ou de um modo mais geral como sujeitos de interesse. Vale ressaltar que Foucault não coloca esses dois modelos de regulagem racional do governo em posições antitéticas, ou mesmo que a racionalidade governamental do Estado foi abandonada. Ao contrário, é um dentre outros modelos que se encontram em disputa, definindo assim, desde o século XIX o que é a política (FOUCAULT, 2004a, p. 317; 2008a, p. 424). Disputa essa que, no entanto, mais uma vez não se fixa num esquematismo pseudo-dialético na medida em que estanca as relações em polarizações e elimina qualquer ponto de interseccionalidade — aqui ainda acompanho o argumento de Yazbek (2019) — e sim que há de se atentar exatamente para a complexidade e ambivalência movediça de suas relações. É neste contexto que Yazbek pode ainda afirmar que

[...] a ambiguidade das relações entre o poder soberano e o biopoder nos Estados securitários contemporâneos revela sua natureza efetiva não sob a forma de uma alternativa estrita entre ambos, mas sim por meio de uma tarefa de governamento que implica em reinscrever incessantemente o racismo no político para manejar uma interseccionalidade que indica não uma subordinação do poder soberano ao biopoder, mas um entrelaçamento progressivo, e sempre a refazer-se, entre o exercício de soberania política do direito de morte e as estruturas modernas da biopolítica, ou seja, da política securitária das populações (YAZBEK, 2019, p. 137).

Talvez, se com o liberalismo e principalmente com o neoliberalismo se esforce por apagar o papel do poder soberano e do Estado é porque se estruturou por séculos uma estratégia de introjeção subjetivo-moral de uma ideia eminentemente política, a soberania, para formular a ideia moderna de liberdade, tão bem estampada por Rousseau ou Kant. Ao fim e ao cabo, a tese e exigência racional da frugalidade do governo só se fizeram viáveis, quase apagando a incidência do poder soberano materializado na instituição do Estado, à medida em que os indivíduos puderam ser identificados ao sujeito soberano, e suas vidas, seus corpos e seus “si mesmos”, ao espaço mesmo do exercício dessa soberania como absoluta, total e única.

*

Como pode-se ver, em toda a nossa modernidade até os tempos atuais, parece ter prevalecido um trabalho de se pensar a questão da liberdade sempre em sua relação de antípoda à soberania ou ao governo, que nos termos foucaultianos subjaz tanto ao poder soberano quanto ao liberalismo e neoliberalismo, como sua lógica inerente. Um elemento que parece fundamental aí é justamente as estratégias afirmativas de uma experiência de subjetividade que tem e deve se afirmar como livre, mesmo que, paradoxalmente, para vir a se descobrir que no fundo ela é moldável e governável, não por uma instância de externalidade outra, como nos casos de sua contraposição à soberania, mas a uma externalidade circundante que é seu meio ambiente econômico.

E se pudermos identificar na leitura foucaultiana dos Padres da Igreja nos primeiros séculos da era cristã os elementos formadores de uma outra e diferente experiência, de si e da subjetividade, diversa da que assistimos a partir da modernidade e que nos chegou até nosso presente? Uma outra experiência que não passa nem pela afirmação de si e nem pela afirmação da liberdade, mas sim pela dissolução em alguma medida da subjetividade, e da assunção da obediência. É isto que, talvez, se possa encontrar, ao menos na primeira parte das Confissões da carne.

Obviamente, estou interessado em apenas uma pequena parte de todo o livro, haja vista que ali Foucault busca deslindar arqueo-genealogicamente toda a formação de uma nova experiência de si em torno da noção de carne, isto é, “como modo de conhecimento e transformação de si por si em função de uma certa relação entre anulação do mal e manifestação da verdade” (FOUCAULT, 2018, p. 50-51). E dela, uma genealogia do sujeito de desejo e do ato sexual, mediante a noção agostiniana da libido, ou seja, da forma sexual do desejo (FOUCAULT, 2018, p. 348). É, inclusive, por isso que Foucault pode afirmar que o desejo é um transcendental histórico. Exatamente no curso Subjetividade e verdade, na última aula — 01 de abril de 1981 — último parágrafo do livro que transcreve o curso, ele diz:

O desejo é mesmo efetivamente o que eu chamaria de o transcendental histórico a partir do qual podemos e devemos pensar a história da sexualidade. Portanto, emergência do desejo como princípio de subjetivação/objetivação dos atos sexuais. [...] é preciso, a partir de uma história das governamentalidades — governamentalidades de si e dos outros —, mostrar como o momento do desejo foi isolado e exaltado, e a partir daí se formou determinado tipo de relacionamento de si consigo que, por sua vez, sofreu algumas transformações, pois o vimos desenvolver-se, organizar-se, repartir-se num dispositivo que primeiramente foi o da carne, antes de, muito mais tardiamente, tornar-se o da sexualidade (FOUCAULT, 2014, p. 293; 2016, p. 260-261).

Nesta passagem, muito provavelmente escrita na mesma época em que Foucault trabalhava na redação das Confissões da carne, vê-se o lugar da carne, dessa vez tratada como dispositivo, na história do desejo como transcendental histórico à subjetividade, de modo a revelar a verdade não apenas de nosso sexo, mas consequente e principalmente de nós mesmos (LORENZINI, 2021, p. 64). Sua importância reside no ponto de descontinuidade — caracterizada como complicação ou desdobramento — que se estabeleceu entre a experiência grega em torno dos aphrodisia e a atenção cristã devotada ao desejo, no sentido de que, diante de uma economia teológica da queda e da purificação, há que se inquirir pelo desejo que move o sujeito em direção às práticas sexuais, isto é, há que se aceder à verdade desse sujeito que deseja, perscrutando o seu mais íntimo, ou seja, seu eu mesmo, o que lhe impõe uma relação entre desejo e verdade, a verdade do que esse sujeito de desejo é, pela qual e somente pela qual o sujeito poderá se purificar: “Ou seja, se o indivíduo quiser ter acesso à verdade e se, para poder ter acesso a essa verdade, quiser purificar-se, precisa, previamente e como procedimento indispensável para a purificação, estabelecer uma relação específica de verdade que é a relação específica de verdade com o que ele é. O sujeito precisa saber o que ele é” (FOUCAULT, 2014, p. 159; 2016, p. 142).

Obviamente, ainda não se tem nesse momento de nossa história um saber erigido à condição de scientia sexualis, mas já não é mais, também, a descrição e análise dos regimes de uma ars erotica: não está mais em causa como, com quem e sob que condições realizar as práticas afrodisíacas, mas saber quem se é e quais as condições de impureza em que se se encontra e que se fazem captar nos desejos que lançam o indivíduo aos atos libidinosos, donde se pode entender o lugar e importância do desejo na dimensão constitutiva da subjetividade ocidental (LORENZINI, p. 2021, p. 71).

Nesse intercurso entre a ars erotica grega e latina e a scientia sexualis que marcará nossa Modernidade com o intuito de tudo saber sobre o sujeito desde seus desejos sexuais, outros elementos concorrem para a formação da experiência da carne, e que não têm a ver diretamente com a experiência de si diante das práticas eróticas, embora lhe sejam valiosas: entre metade do século II e fins do século terceiro da era cristã instaurou-se a disciplina penitencial e a ascese monástica, interpretadas por Foucault como tecnologias do indivíduo que permitiram “aparecer as relações que se ligam entre a remissão do mal, a manifestação do verdadeiro e a ‘descoberta’ de si” (FOUCAULT, 2018, p. 51; 2020, p. 48).

Por um lado, tem-se a instauração do batismo, que exige uma preparação ao batismo mas que deve ser acompanhado de todo um labor de reconhecimento das faltas e da necessidade contínua e perpétua de renovar a purificação batismal, de modo a morrer ao pecado e assim perseverar na economia da salvação, de modo que o batismo “é uma matriz permanente para esta vida” (FOUCAULT, 2018, p. 75; 2020, p. 68); há, por outro, o empenho de reconhecer as faltas e a condição pecadora a que se deve buscar a remissão e assim retornar ao caminho da salvação pela penitência (FOUCAULT, 2018, p. 83; 2020, p. 75), o que se obtém mediante um contínuo escrutínio de si — confessio —, da verdade de sua condição pecadora (FOUCAULT, 2018, p. 88; 2020, p. 79) e que deve ser acompanhada da assunção pública, ritualizada e contrita, de que se é pecador diante da comunidade cristã e de que se se arrepende comprovadamente de suas faltas — exomologese — outro procedimento de dizer a verdade sobre si, pelo qual se obtém o perdão e se reinstaura a morte ante a condição de pecado e se se recoloca no caminho para a salvação. E neste contexto Foucault encerra com uma fórmula latina no mínimo provocativa para pensar a questão da constituição do sujeito durante a cristandade tardia: “Em sua forma primitiva, a penitência, ao mesmo tempo exercício e manifestação, mortificação e veridicção, é uma maneira de afirmar ego non sum ego. Os ritos de exomologese asseguram a ruptura de identidade” (FOUCAULT, 2018, p. 105; 2020, p. 92).

Este é um ponto importante à medida que introduz um corte no dizer — privada e publicamente — de si, mas que não é autoafirmativo; antes, é uma negação de uma forma de subjetividade, a pecadora, para assumir outra forma, nunca completa e acabada, mas sempre dependente das práticas diversas dentro da comunidade cristã em caminho à salvação. É neste contexto que se introduzem elementos capitais à vida ascética, notadamente o da direção de condutas, transformada em direção espiritual. Prática bem mais antiga que o Cristianismo, a direção de condutas ganha outros contornos a partir do monaquismo: a direção de conduta se transforma numa pedra angular e numa constante na vida monástica. Mais importante do que dirigir a vida de outrem, é sempre estar pronto para ser dirigido — “O santo não é aquele que ‘se dirige’ a si mesmo; é aquele que se deixa dirigir por Deus” (FOUCAULT, 2018, p. 120; 2020, p. 104) — pelo qual, quase que em um paradoxo, há uma vontade imperiosa de aceitar a vontade de outrem, de renunciar às vontades próprias em prol da submissão da vontade alheia. O elemento interessante aqui é que ocorre um fenômeno estruturalmente análogo à da exomologese na paenitentia que é o dessa experiência de si que não afirma, ou melhor, mais radicalmente que nega a própria subjetividade, mediante o exercício da obediência.

É importante notar, primeiramente, que a obediência asceta não é uma condição ou estado de submissão imposto externamente; ela não é como a docilidade corpórea submetida aos indivíduos pelo dispositivo disciplinar exaustivamente estudado por Foucault em Vigiar e punir; ela é o resultado sempre visado ao mesmo tempo que um exercício, cuja marca característica é a negação de si, a negação da própria vontade como marcador de sua própria subjetividade. O que não quer realmente dizer uma ausência de subjetividade. Ainda há um eu, um ego sum, mas cuja forma é a responsorial diante do chamado de Deus: adsum (eis-me aqui); uma outra experiência de subjetividade que não passa pela maestria e domínio de si; antes, que os recusa e evita. Quer dizer, um sujeito cuja existência e cuja marca busca não se afirmar soberanamente diante de si e dos outros (Deus incluso).

Em segundo lugar, cabe notar também que a obediência é condição inicial para a prática de direção, de modo que reclama esta última. Ela não é uma ausência de vontade, mas a realização de uma vontade que se renuncia, que se humilha e penitencia à vontade de Deus e, para ela, mediante a submissão ao mestre; é o sujeito obediente que exige a direção do mestre e não este que o subjuga, humilhando-o e o tornando obediente. Curioso paradoxo: a humildade é a vontade que renuncia a si mesma; que quer, mas cujo agente de vontade não é sua subjetividade mesma (a do monge que obedece) e sim Deus. Sua ação e sua vida nada mais são, a partir da condição virtuosa da humildade, senão reflexo e expressão da vontade divina: “o asceta só pode querer o que Deus quer [...] tendo renunciado a querer por si mesmo, não deve sua força senão a Deus, estando em sua presença” (FOUCAULT, 2018, p. 127; 2020, p. 110), como num exercício — sabemos que acompanhado do exame de consciência e da confissão pela exagoreusis ascética —, renúncia e mortificação de si mesmo (FOUCAULT, 2018, p. 145; 2020, p. 125). O que me leva a concordar com o argumento explanado por Candiotto (2012):

Na direção cristã é inaugurado um modelo de obediência individual, exaustivo, contínuo e permanente. Isso faz dela parte de um processo de individualização [...] ele é, antes, caracterizado pela rede de servidões de todos em relação a todos, ao mesmo tempo que o ego, o egoísmo como aspecto fundamental do sujeito, é anulado. A direção de consciência cristã é uma técnica de si cujo efeito é a constituição de um indivíduo obediente à vontade de Deus, sendo indispensável para isso a renúncia da própria vontade (CANDIOTTO, 2012, p. 104).

No entanto, enquanto Candiotto insiste em demarcar a diferença, ou melhor a descontinuidade, entre a direção de consciência estoica e a direção de consciência cristã, sem dúvida numa correta interpretação da análise foucaultiana (pois Foucault fez exatamente assim), para mim, importa interrogar sobre os seus índices críticos ao nosso tempo presente, em se perguntar se há aí a chance de identificar elementos para uma crítica de nossa atualidade.

*

Numa entrevista, “Não ao sexo rei”, de 1977, Foucault afirma:

O problema é de fato esse: como se fez que, em uma sociedade como a nossa, [...] como se fez que ela [a sexualidade] seja considerada como o lugar privilegiado onde se lê, onde se diz nossa verdade profunda? Pois isto é o essencial: após o cristianismo, o Ocidente não cessou de dizer: “Para saber o que tu és, saiba o que é teu sexo”. O sexo sempre foi este lugar em que se aloja, ao mesmo tempo que o devir de nossa espécie, nossa verdade de sujeito humano (FOUCAULT, 1994a, p. 256-257).

É interessante atentar como Foucault, à época da entrevista, já vislumbrava a importância do cristianismo na formação e emergência histórica de nossa experiência presente com “a verdade” de nós mesmos e o sexo, em que escrutinar o sexo é capital para revelar num só ponto os nós de nossa relação com a espécie humana — questão de uma biopolítica, ou de uma tecnologia de regulamentação, da população — assim como o ponto nevrálgico para revelarmo-nos o que enfim somos, a verdade sobre nosso ser enquanto sujeitos. No entanto, é preciso também notar o quanto Foucault se distanciou anos depois quando, de fato, para além da hipótese aventada na citação acima, se pôs a analisar os padres da Igreja na cristandade tardia. Se na entrevista Foucault parece conceber que toda a verdade do sujeito se dá mediante a identificação dessa subjetividade do e no sexo, em que ocorre a afirmação de um “Eu” no sentido pleno, na Confissões da carne, acabamos de verificar, essa averiguação da verdade no sexo tem como corolário a necessária mortificação, estranhamento — ego non sum — e anulação do eu como sujeito.

Essa afirmação do sujeito, após o cristianismo e principalmente desde a Modernidade, é fundamental para caracterizar a emergência e formação de política da verdade do sujeito, sobre ele, que passa pelo dispositivo confessional dos desejos, principalmente aqueles os mais recônditos à medida que permitem revelar, tal como um diagnóstico o mais íntimo, e por isso fundamental, de nosso ser como sujeito a nós mesmos e a quem nos analisa. A hermenêutica moderna de nossa subjetividade exige que a verdade sobre nós aflore sem nada esconder. E o que se revela de verdadeiro é o que somos. Esse é o modo novo de operar da confissão moderna que exige uma produção metódica e “científica” da verdade de nós mesmos.

A scientia sexualis, desenvolvida a partir do século XIX, paradoxalmente, guarda como núcleo o singular rito da confissão obrigatória e exaustiva, que constituiu, no Ocidente cristão, a primeira técnica para produzir a verdade do sexo. Desde o século XVI, esse rito fora, pouco a pouco desvinculado do sacramento da penitência e, por intermédio da condução das almas e da direção espiritual — ars atium — emigrou para a pedagogia, para as relações entre adultos e crianças, para as relações familiares, a medicina e a psiquiatria. Em todo caso, há quase cento e cinquenta anos, um complexo dispositivo foi instaurado para produzir discursos verdadeiros sobre o sexo: um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da confissão aos métodos da escuta clínica. E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo como a “sexualidade” enquanto verdade do sexo e de seus prazeres (FOUCAULT, 1994b, p. 91; 1988, p. 66-67).

No entanto, ao se considerar por contraste com a confissão como se dava na experiência monástica da carne, é possível perceber a distância que separa as duas práticas quanto a seus objetivos e resultados, bem como suas consequências numa dinâmica constitutiva de um cuidado de si, cujo resultado último é um tipo peculiar de subjetividade.

Na Modernidade a confissão produz um sujeito que, uma vez interpelado, fala de si e de sua mais íntima verdade — eu sou — e que pode assumir outras tantas formas reveladoras das joias indiscretas — a expressão é de Foucault (1994b, p. 101; 1988, p. 75) —, mediante uma literatura erótica, ou por meio de autobiografias, ou ainda pelas centenas de fantasias reveladas no divã e arquivadas, estudadas e analisadas, mencionadas nos discursos psicanalíticos, e também na genética e na biologia. Neste sentido, Foucault observava em 1976, ainda em A vontade de saber que a grande novidade, moderna, na história do Ocidente foi de “sobretudo colocar-nos inteiros — nós, nosso corpo, nossa alma, nossa individualidade, nossa história — sob o signo de uma lógica da concupiscência e do desejo. Uma vez que se trate de saber quem somos nós, é ela, doravante, que nos serve de chave universal” (FOUCAULT, 1994b, p. 103; 1988, p. 76).

A prática da confissão nos primeiros séculos da era cristã não estava, ao contrário, totalmente orientada para o sexo e a verdade de si que dele se busca extrair; o que se busca encontrar é o ponto de ação diabólica na vida, origem de todo o mal e de todo o pecado que constantemente leva o sujeito a se desviar do caminho de sua salvação e, mediante sua verbalização confessional, restitui-se a retidão e cumpre-se a virtus confessionis: ela liberta o indivíduo (FOUCAULT, 2018, p. 142; 2020, p. 123). E, mais importante, a libertação propiciada pela confissão — perdão dos pecados e restabelecimento da busca pela santidade — revela-se e se constitui outra modalidade de subjetividade, sempre atrelada ao embate entre a queda e a salvação, pelo qual a disputa é ganha pela mortificação e renúncia da subjetividade: “Paradoxo essencial a essas práticas da espiritualidade cristã: a veridicção de si mesmo está ligada fundamentalmente à renúncia de si. O trabalho indefinido para ver e dizer a verdade de si mesmo é um exercício de mortificação [...] a busca da verdade de si deve constituir uma certa maneira de morrer para si mesmo” (FOUCAULT, 2018, p. 145; 2020, p. 125).

Como se pode notar, é essa experiência de dessubjetivação que se perde com a Modernidade e a necessidade cada vez mais premente de se afirmar um sujeito, seja como objeto de conhecimento e poder, seja como soberano e senhor de si mesmo. Ademais, a experiência de mortificação de si, de experiência pela qual o sujeito se dá pela renúncia de si mesmo, cuja prática capital é a renúncia da própria vontade pela vontade de Deus e do mestre, isto é, a obediência, também se esvanece, muito provavelmente a partir do argumento teológico de Agostinho sobre a inoboedientia reciproca (FOUCAULT, 2018, p. 334 et seq.). Segundo Foucault, Agostinho argumenta que a desobediência recíproca é a consequência da desobediência ou revolta contra Deus que se volta — notável pela movimentação involuntária do falo — contra o próprio homem levando-o à queda e à vergonha, e que lhe permite a introdução do tema da libido como a forma involuntária do movimento; quer dizer a introdução do involuntário no voluntário, a impossibilidade de total controle e maestria de si, uma vontade que tudo quer e que, paradoxalmente, nem tudo controla e domina. Sua punição é a vergonha constante de ser lembrado disso, pelos movimentos involuntários do falo ou por sua impotência diante da iminência do ato sexual. Os movimentos involuntários do falo, ou sua ausência, são como que os estigmas, marcas a sempre lembrar da presença desse elemento estranho à subjetividade concebida desde a vontade e o querer.

No entanto, a inquirição arguta da presença da libido já não pode mais se confundir com aqueles exercícios de obediência cuja finalidade é o apagamento da vontade subjetiva em prol da vontade divina ou da comunidade. Com Agostinho, a busca confessional da libido é já uma confissão de si, que busca identificar esse elemento estranho e perturbador — como uma bizarra condição causal ao mesmo tempo que marca da falta — interno e inerente, ou melhor íntimo, ao sujeito, cuja constituição “não admite alteridade” (COLOMBO, 2020, p. 196). É a revelação da intimidade subjetiva que acabará por formatar — tanto no sentido de formar como ponto de emergência histórica, e também no sentido de dar forma, modelar — a matriz da confissão e da hermenêutica moderna do sujeito, propiciando uma governamentalidade do sujeito considerado desde si e sempre a partir de si que reverberou nos filósofos modernos, pelos menos desde Descartes — os argumentos em torno das influências agostinianas em seu pensamento não são novidades, pelos menos desde os trabalhos de Étienne Gilson (1975) — passando pela filosofia de John Locke e sua tese da propriedade, ou pelas respectivas teorias da liberdade de Rousseau e Kant e que se faz notar na governamentalidade biopolítica marcantemente neoliberal, principalmente em torno da releitura do homo oeconomicus de Gary Becker.

*

Como é suficientemente conhecido, o modo como Foucault expôs o paradoxo da biopolítica foi fundamental para a formação de toda uma comunidade de pesquisadores, nas mais diferentes áreas do saber, sobre o tema. É importante lembrar aqui como Foucault concebe naquela emblemática aula de 17 de março de 1976, com a qual termina seu curso Em defesa da sociedade, o que se deve entender por morte e, por conseguinte, tirar a vida: “por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 1997, p. 228; 1999, p. 306).

Dessa ressalva foucaultiana, encontramos com outros pensadores, como Roberto Esposito, a formulação do paradoxo da biopolítica — “Por que a biopolítica ameaça continuamente de se reverter em tanatopolítica?” (ESPOSITO, 2004, p. 34; 2010, p. 65) — nos termos de que a biopolítica tanto mata quanto dessubjetiva. Ou, segundo as palavras de Esposito,

Qual o efeito da biopolítica? Chegado a este ponto a resposta do autor [isto é, Foucault] parece bifurcar-se em direções divergentes que levam em conta outras duas noções, desde o início implicadas no conceito de bios, mas situada nos extremos de sua extensão semântica: aquela de subjetivação e aquela de morte. Ambas — no que diz respeito à vida — constituem mais do que duas possibilidades. São ao mesmo tempo sua forma e seu fundo, sua origem e seu destino. Mas em cada caso, segundo uma divergência que parece não admitir mediação: ou uma ou outra. Ou a biopolítica produz subjetividade ou produz morte. Ou torna sujeito o próprio objeto ou o objetiva definitivamente. Ou é política da vida ou sobre a vida (ESPOSITO, 2004, p. 25; 2010, p. 54-55).

Se a biopolítica é capaz, apesar de sua condição paradoxal e antinômica, de produzir subjetividade, há que se perguntar qual subjetividade. E tendo por conta as análises foucaultianas sobre o neoliberalismo, entendido como o “quadro geral da biopolítica” (FOUCAULT, 2004a, p. 24; 2008a, p. 30), há que se admitir alguma relação entre subjetividade e liberdade e, consequentemente lançar a pergunta sobre de que liberdade se trata, no sentido de que o neoliberalismo produz um éthos pelo qual os indivíduos se experimentam como sujeitos livres e, por isso, ainda que pareça um tanto paradoxal, governáveis (NALLI, 2020). A afirmação de que o indivíduo é empreendedor de si mesmo reverbera, termo a termo, a concepção moderna de liberdade em sua relação ao conceito de soberania, como já mostrei antes neste artigo. Com o neoliberalismo da Escola de Chicago e, emblematicamente, com a teoria de Gary Becker, o indivíduo é um sujeito de desejos e interesses cuja satisfação passa pelo intercurso do que é oferecido ou negado em seu meio ambiente, cujo controle de disponibilidade, de oferta e de não-oferta permite a modelagem comportamental daquele indivíduo (FOUCAULT, 2004a, p. 274;2008a, p. 369; cf. CANDIOTTO, 2016, p. 391; e NALLI, 2020, p. 85).

Admitir que a biopolítica pode, num sentido ampliado da semântica da morte e do tirar a vida, realizar uma dessubjetivação desde o quadro geral do neoliberalismo pode ser entendido não nos termos de uma antinomia radical como pensa Esposito, mas numa ambivalência paradoxal em que a dessubjetivação política se realiza conformando o indivíduo a uma subjetividade restritivamente econômica de oferta e consumo dos meios dados para a realização empresarial de si. Neste sentido, há uma estratégia de subjetivação neoliberal pela qual se lhe introduz uma concepção de liberdade, donde o indivíduo é empresário de si mesmo, e que o torna indiferente e refratário a toda a relação com outrem. O outro não conta a não ser como recurso dado no mercado para a realização dos interesses e desejos do indivíduo. Há uma radicalização de sua autonomia e de sua condição de átomo de liberdade, de modo que cabe a pergunta-resposta de Foucault:

Será que o homo oeconomicus é um átomo de liberdade diante de todas as condições, de todas as empresas, de todas as legislações, de todas as proibições de um governo possível, ou será que o homo oeconomicus já não era um certo tipo de sujeito que permitia justamente que uma arte de governar se regulasse de acordo com o princípio da economia — a economia em ambos os sentidos da palavra: economia no sentido da economia política e economia no sentido da restrição, autolimitação, frugalidade do governo? Não é preciso lhes dizer que meu modo de colocar essa questão já lhes dá a resposta (FOUCAULT, 2004a, p. 275: 2008a, p. 369-370).

Não será o caso de, por contraste, inverter os termos da relação, ao menos no que tange o problema da liberdade, e ante a estratégia de articular a noção de liberdade com a de soberania? E por isso, não é importante resgar, ainda que sob o risco de alguma anacronia (cf. sobre esse ponto meu artigo, NALLI, 2020), o exercício da obediência, esse exercício de uma vontade que se nega, de um querer não querer, como operador crítico à governamentalidade liberal? Assim como Foucault, acredito que é possível vislumbrar qual a minha resposta.

Material suplementario
Referências
AGAMBEN, G. Homo sacer: Le pouvoir souverain et la vie nue. Paris: Seuil, 1997.
CANDIOTTO, C. A prática da direção de consciência em Foucault: da vida filosófica à vida monástica cristã. In: CANDIOTTO, C.; SOUZA, P. de (orgs.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 93-110.
CANDIOTTO, C. A regulação da vida pela biopolítica: a leitura foucaultiana da teoria do capital humano de Gary Becker. In: CANDIOTTO, C; OLIVEIRA, J (orgs.). Vida e liberdade: entre a ética e a política. Curitiba: PUCPRESS, 2016. p. 381-401.
COLOMBO, A. Michel Foucault e a obediência da carne cristã. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 32, n. 55, p. 181-202, jan./abr. 2020.
DENT, N. J. H. Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1996.
ESPOSITO, R. Bíos: biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004.
ESPOSITO, R. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.
FOUCAULT, M. Non au sexe roi. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits. III: 1976-1979. Paris: Gallimard, 1994a. p. 256-269.
FOUCAULT, M. Il faut défendre la société: Cours au Collège de France (1975-1976). Paris: Gallimard; Seuil, 1997.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité 4: Les aveux de la chair. Paris: Gallimard, 2018.
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1994b.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 4: As confissões da carne. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France, 1978-1979. Paris: Gallimard; Seuil, 2004a.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
FOUCAULT, M. Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France. 1977-1978. Paris: Gallimard; Seuil, 2004b.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população: Curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
FOUCAULT, M. Subjectivité et vérité: Cours su Collège de France. 1980-1981. Paris: EHESS; Gallimard; Seuil, 2014.
FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade: Curso no Collège de France (1980-1981). São Paulo: Martins Fontes, 2016.
GILSON, É. Études su le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien. Paris: Vrin, 1975.
GROS, F. Advertência. In: FOUCAULT, M. História da sexualidade 4: As confissões da carne. São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 6-12.
GROS, F. Avertissement. In: FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité 4: Les aveux de la chair. Paris: Gallimard, 2018. p. I-XI.
HOFFMANN, S. The Social Contract, or the mirage of the general will. In: McDONALD, C.; HOFFMANN, S. Rousseau and freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 113-141.
HUET, M.-H. On the uses of negative freedom. In: McDONALD, C.; HOFFMANN, S. Rousseau and freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 257-273
KANT, I. La metafísica de las costumbres. (MdS). Madrid: Tecnos, 1994.
KANT, I. Crítica da razão pura. (KrV). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
KRITSCH, R. Soberania: A construção de um conceito. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP; Imprensa Oficial do Estado, 2002.
LORENZINI, D. O desejo como ‘transcendental histórico’ da história da sexualidade. Revista Ideação, n. 44, p. 63-73, jul./dez. 2021.
NALLI, M. A doutrina do direito de Kant: um esboço de interpretação semântica. Ética & Filosofia Política, v. 5, n.2, mar. 2003.
NALLI, M. Uma liberdade que se governa. Dorsal. Revista de Estudios Foucaultianos, n. 8, p. 73-92, jun. 2020. https://doi.org/10.5281/zenodo.3901040.
ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: DIFEL, 1979.
ROUSSEAU, J.-J. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
TORRES, J. C. B. Figuras do Estado moderno: Representação política no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1989.
YAZBEK, A. C. Soberania e biopolítica: dos nexos entre poder soberano e biopoder no pensamento político de Michel Foucault e de seus usos na atualidade. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 31, n. 52, p. 118-140, jan./abr. 2019.
Notas
Notas de autor
[a] Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil.

MC – Doutor em Filosofia, e-mail: marcosnalli@yahoo.com

marcosnalli@yahoo.com

Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por Redalyc