Resumo: O artigo pretende explorar, a partir de Michel Foucault, a ligação entre biopolítica, neoliberalismo e a chamada guerra às drogas, a fim de tentar esclarecer as motivações econômicas e políticas que fundamentam o tipo de combate às drogas que impera no mundo contemporâneo. O Brasil não está distante desse tipo de política que, apoiada em discursos legitimadores, tais como o discurso médico e mesmo o psicologizante, estabelecem não apenas a partilha entre os que devem viver e os que precisam morrer, como também as condições para justificar toda forma de exclusão e desqualificação das populações periféricas, justificativa que, em última instância, também repercute na formulação das leis.
Palavras-chave: Biopolítica, Neoliberalismo, Guerra às drogas, Direito.
Abstract: The article intends to explore, based on Michel Foucault, the link between biopolitics, neoliberalism and the so-called war on drugs, in order to try to clarify the economic and political motivations that underlie the type of drug fight that prevails in the contemporary world. Brazil is not far from this type of policy that, supported by legitimizing discourses, such as medical discourse and even psychoanalysis, establish not only the division between those who must live and those who need to die, but also the conditions to justify any form. of exclusion and disqualification of peripheral populations, a justification that, ultimately, also affects the formulation of laws.
Keywords: Biopolitics, Neoliberalism, War on drugs, Right.
Dossiê
Biopolítica, Neoliberalismo e a guerra às drogas
Biopolitics, neoliberalism and war on drugs

Recepción: 31 Enero 2022
Aprobación: 05 Marzo 2022
Como citar: CHAVES, E.; LIMA FILHO, E. N. Biopolítica, Neoliberalismo e a guerra às drogas. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 116-136, jan./abr. 2022
Ao longo de séculos as drogas e sua proibição foram e ainda são objeto de intensos debates envolvendo políticos, criminólogos, sociólogos, profissionais da saúde, líderes religiosos, dentre outros. A própria determinação do que deve ser considerado “droga”, bem como quais devem ser as consideradas lícitas e quais devem ser tratadas como ilícitas também está dentro do debate, com consideráveis alterações dependendo da época e do lugar do mundo sobre o qual recai o olhar do pesquisador. A título de exemplo, temos registros históricos de locais na Europa, a partir do século XVI, que proibiram o tabaco, o café e o chá, considerando os malefícios que essas substâncias causavam ou que se acreditava que causavam à moralidade, ao corpo e à mente dos indivíduos. Viu-se, no século XVIII, o ópio proibido na China e autorizado e amplamente utilizado na Europa. Como exemplo mais recente, tem-se a proibição de álcool nos EUA entre 1920 e 1933 (CARNEIRO, 2019). Essa história do proibicionismo e criminalização das drogas não pode ser devidamente estudada sem a análise da conjuntura social, econômica, política, religiosa e dos meios de produção de cada local e de cada época. Seguindo a perspectiva de Michel Foucault, deve-se ter em mente que:
[...] as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história (FOUCAULT, 2003, p. 08).
Assim, é possível relacionar as práticas sociais, as técnicas, os saberes e os processos de subjetivação que orientam a proibição e as políticas de combate às drogas com uma conjuntura determinada. O objetivo desse artigo será, justamente, o de tentar esclarecer a relação existente entre biopolítica, neoliberalismo e a assim chamada “guerra às drogas”, em cujo cenário o Brasil ocupa um papel proeminente.
Consideramos então que a droga corresponde a um dispositivo no sentido foucaultiano, isto é, composto por elementos discursivos e não discursivos (técnicas e instrumentos), sempre relacionados a uma estratégia, a qual pode se alterar com o passar do tempo sem que o dispositivo desapareça (FOUCAULT, 1979). A droga, tal qual a sexualidade, corresponde a um dispositivo no qual podemos ver a junção do poder disciplinar e da biopolítica, ou seja, é um dispositivo que permite o exercício do poder sobre o corpo individual (mecanismos disciplinares) e também sobre a população (mecanismos de segurança).
Primeiramente, é relevante expor, de forma mais geral, a noção da droga como um dispositivo no sentido foucaultiano. Em seguida, para melhor aclarar a noção da droga como dispositivo e para identificar a estratégia em que está situada no contexto neoliberal, inclusive no Brasil, buscando sempre identificar as técnicas e os discursos que orientaram o proibicionismo, inclusive no contexto de surgimento e consolidação do neoliberalismo, para, desta forma, chegar-se a compreender o papel ou os papéis estratégicos do dispositivo drogas em uma governamentalidade neoliberal. Não buscaremos, porém, uma origem da proibição e da criminalização das drogas, pois, como bem lembra Salo de Carvalho (2016, p. 46), “se o processo criminalizador é invariavelmente moralizador e normalizador, sua origem é fluida, volátil, impossível de ser adstrita e relegada a objeto de estudo controlável”, ou simplesmente, ainda de acordo com o autor, a origem da criminalização das drogas não pode ser encontrada, pois esta não existe.
As drogas configuram um dispositivo que atua simultaneamente como dispositivo disciplinar e dispositivo de segurança, correspondendo a um conjunto de técnicas e discursos que possibilitam exercer tanto um poder sobre os corpos dos indivíduos, quanto sobre a população (FOUCAULT, 2017). Com o passar do tempo, os discursos e as técnicas acerca e em torno da droga se alteram, conforme a estratégia mais indicada e necessária em um determinado contexto de conflitos. O problema de repressão e de incitação à droga, tal como em relação aos prazeres sexuais, não existiu desde sempre, sendo uma invenção social relativamente recente. Conforme Vargas,
[...] mais do que se apropriar da experiência do consumo de drogas, o que as sociedades contemporâneas parecem ter feito foi criar literalmente o próprio fenômeno das drogas: mais remotamente, com a loucura das especiarias e, mais recentemente, com o duplo processo da invasão farmacêutica e da criminalização das drogas assim tornadas ilícitas. [...] certos consumos não medicamentosos de drogas se configuram não apenas como modalidades dissidentes ou excessivas com relação aos cuidados que os saberes e as práticas biomédicas recomendam que se deva tomar com a vida, mas também como efeitos perversos do próprio dispositivo das drogas: afinal, a maior parte das drogas cujo consumo é, atualmente, total ou parcialmente, considerado ilícito – como a morfina, a heroína, a cocaína, o éter, o clorofórmio, o ácido lisérgico, os barbitúricos e as anfetaminas – foi produzida, isolada e/ou sintetizada, em laboratórios químicos tendo em vista demandas biomédicas (VARGAS, 2008, p. 55-56).
Como sabemos, a noção de dispositivo está diretamente relacionada com as noções de saber, poder e estratégia. Partindo das três características do dispositivo enfatizadas por Foucault, podemos ver que a droga se adequa perfeitamente à essa noção, na medida em que está alicerçada em uma série de saberes (religiosos, científicos, médicos, etc.), que se desenvolvem e se alteram há séculos, sustentando um exercício de poder sobre diversos grupos, seja pela construção da subjetividade, seja pela ação sobre o campo de possibilidade de ações de determinados grupos e pessoas. As drogas, mais especificamente a ideia de guerra às drogas, engloba discursos, instituições, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas e morais. O dispositivo drogas possui elementos ditos e não ditos e corresponde àquilo que liga uma rede que pode ser estabelecida entre esses elementos. Nessa rede composta por elementos discursivos e não discursivos, existe um jogo de poder e o dispositivo drogas está ligado a algumas configurações de saber que nascem dele e simultaneamente o condicionam.
Tal quais os demais dispositivos, a função do dispositivo drogas se altera ao longo do tempo, buscando se situar estrategicamente em novas conjunturas ou em modificações nas relações de poder de um determinado momento, além do que dentre as diversas funções evidenciadas pelo referido dispositivo ao longo do tempo, há estratégias que se escondem por detrás de falsas estratégias justificadoras de sua existência, na medida em que seus objetivos estratégicos por vezes precisam ser mascarados para não colocar em risco as reais estratégias que, por determinados motivos, não podem ser publicizados. Ao longo do tempo, os elementos do dispositivo drogas se sobredeterminam na medida em que seus efeitos, desejados ou não, estabelecem relações de ressonância ou de contradição entre si, o que exige rearticulações e reajustamento desses elementos que vão surgindo dispersamente, bem como as funções dos elementos do dispositivo vão se transformando em razão das práticas e dos campos de saber relacionados ao dispositivo e dependendo da situação específica, essa renovação pode ser intencional, a partir de novos arranjos estratégicos, ou pode ser consequência de uma nova configuração de práticas estratégicas (DELUCHEY, 2016).
A noção de estratégia se evidencia em seus três sentidos: como estratégia de poder referente aos meios utilizados para fazer funcionar e para manter o dispositivo, como estratégias das relações de poder referentes aos modos de ação sobre a ação possível de determinados grupos, bem como a relação entre relações de poder e estratégias de confronto, ou seja, como estratégia de luta. Não se pode esquecer que toda estratégia de confronto almeja tornar-se relação de poder e toda relação de poder inclina-se a tornar-se estratégia vencedora. Toda estratégia está relacionada a uma necessidade, ou ainda, o objetivo existe e a estratégia se desenvolve com uma coerência cada vez maior.
Seguindo o caminho traçado por Michel Foucault, devemos nos ater ao fato de que para estudar como o poder se exerce, ou simplesmente o “como do poder”, é necessário apreender seus mecanismos entre dois pontos de referência. Por um lado, “as regras de direito que formalmente delimitam o poder, de outro lado, a outra extremidade, o outro limite, seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder conduz e que, por sua vez, reconduzem esse poder. Portanto, triângulo: poder, direito e verdade” (FOUCAULT, 2018, p. 21). Devemos nos perguntar quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade. Simultaneamente somos forçados a produzir a verdade pelo poder, que a exige e que necessita dela para funcionar, bem como somos submetidos à verdade, na medida em que ela é a norma e o discurso verdadeiro que decide, veicula e propulsiona efeitos de poder, “afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2018, p. 22). No que tange ao dispositivo drogas, fica evidente essa relação entre regras do direito, mecanismos de poder e efeitos de verdade, ou ainda a relação entre regras de poder e o poder dos discursos verdadeiros.
Assim, ao estudarmos a política de combate às drogas, em especial a criminalização primária e secundária do comércio, uso ou outras condutas que giram em torna da droga, devemos ter em mente que o direito, entendido não apenas como a lei, mas também como o conjunto de aparelhos, instituições, regulamentos que efetivam o direito, veicula e aplica efeitos de poder e relações de dominação, estas últimas entendidas não apenas como a dominação global de um sobre todos ou de um grupo sobre outro, mas também e principalmente as relações de dominação recíprocas, as múltiplas formas de jogos estratégicos de poder e estados de dominação que podem ser exercidos no interior de uma sociedade, as múltiplas sujeições que ocorrem e funcionam no interior do corpo social. Seguindo ainda os passos de Foucault:
O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Logo, a questão para mim é curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania, e fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição (FOUCAULT, 2018, p. 24, grifo nosso).
O dispositivo drogas, entretanto, não se limita a técnicas de controle e vigilância dos corpos, mas também de controle sobre a população. Importante destacar que determinadas tecnologias podem agir simultaneamente sobre os corpos e sobre a população. Na verdade, os mecanismos se relacionam e se sustentam uns nos outros. As duas partes do biopoder (poder disciplinar e biopolítica) constituem dois polos em torno dos quais se desenvolveu e se desenvolve a organização do poder sobre a vida e que estão interligados por um feixe de relações (FOUCAULT, 2017). Desta forma, passaremos a analisar qual o papel estratégico do dispositivo drogas na governamentalidade neoliberal, em especial no Brasil, no que tange ao poder exercido sobre a população e sobre a vida considerada como vida da espécie.
As políticas de combate às substâncias ilícitas passam a ser consideradas fundamentais à proteção da vida desde o final do século XIX, a partir de um intenso processo de medicalização. Desde 1960, a guerra travada contra os produtores e comerciantes de drogas consideradas ilícitas é justificada pelo discurso de proteção da saúde pública, tal como previsto em convenções internacionais que identificam a droga como o mal em si. Até os dias de hoje, um dos argumentos centrais na guerra às drogas é a proteção da saúde e a necessidade de salvar vidas que serão perdidas pelo consumo causador de overdoses e doenças. O discurso de proteção à vida também se alicerça na necessidade de salvar a vida daqueles que podem ser vítimas de dependentes de drogas, os quais matam e cometem crimes patrimoniais para sustentar o vício, a partir do mito de que todo usuário de drogas é um dependente problemático, além da associação de drogas à pobreza, pois usuários de classe média e ricos não precisariam cometer crimes para sustentar o seu consumo.
Nesse contexto, o dispositivo drogas reativa a biopolítica, na medida em que sustenta uma determinada política de Estado pressupondo a proteção da vida. De fato, corresponde a uma guerra voltada ao fazer viver, a melhorar a saúde da população, mas que, entretanto, parte do princípio, segundo o qual quanto mais se fizer morrer aqueles que atentam contra a saúde da população, mais se viverá e melhor será a qualidade de vida da população em geral.
Esse discurso da guerra às drogas em nome da vida e da saúde pode ser visto cotidianamente no Judiciário brasileiro, que o utiliza para fundamentar rigorosas medidas, em especial prisões durante o processo. Juízes e tribunais atuam como verdadeiros combatentes contra o crime de tráfico em nome da saúde da população. Corriqueiramente, deparamo-nos com decisões determinando prisões cautelares em caso de tráfico baseadas na necessidade de proteção da saúde pública. Como exemplo, pode-se indicar decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que manteve a conversão do flagrante em prisão preventiva de indivíduo preso com 12,6 g de cocaína fundamentando na necessidade de garantia da ordem pública em decorrência da “magnitude concreta do injusto impondo riscos à paz social e à saúde coletiva” (TJSP, 0040464-32.2021.8.19.0000, Julgamento: 22/07/2021).
No mesmo sentido, veem-se decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), utilizando o argumento de danos à saúde pública para reprimir de forma mais intensa crimes de tráfico: um acusado foi preso com 32 petecas de maconha, o TJPA, reformando decisão de primeiro grau que havia considerado o acusado como usuário (art. 28, Lei 11.343/2006) e condenando-o pelo crime tráfico, com pena de 6 anos e 10 meses, argumentou na dosimetria da pena, que essa deveria ser fixada acima do mínimo pois a culpabilidade seria elevada, na medida em que se tratava “de crime de tráfico de drogas, que afeta a saúde pública, das pessoas que as consomem, além do mais, a droga é um mal maior da sociedade, tem se revelado como uma verdadeira praga devastadora da humanidade/sociedade” (TJPA, Apelação n. 0004765-68.2019.814.0006, julgamento em: 28/10/2020). Esses são apenas alguns exemplos do discurso de combate às drogas em nome da saúde da população, que pode ser evidenciado nos tribunais do Brasil.
Acreditamos que o dispositivo drogas na governamentalidade neoliberal corresponde justamente a esse elemento que permite justificar e intensificar determinadas práticas. Para melhor compreender essa intensificação, deve-se lembrar que a governamentalidade neoliberal atua por meio de uma política da sociedade (Gesellschaftspolitik) (FOUCAULT, 2008a), que se pode chamar também de política do ambiente, ou seja, para alcançar seus objetivos realiza-se um governo que almeja fazer com que o mercado seja possível, ao invés de intervir diretamente nele, tanto pela criação quanto pela ampliação dos mais variados mercados.
Juntamente com isso, deve-se lembrar que os mecanismos de segurança, desde suas primeiras manifestações, tiveram o problema da cidade no seu âmago, inclusive a temática da circulação na cidade. A cidade integrou-se aos mecanismos centrais de poder, tornando-se o problema primeiro, antes mesmo do problema do território. O problema da cidade, já desde o século XVII, girava em torno do problema da circulação, no sentido de saber como as coisas devem circular ou não circular (FOUCAULT, 2008b).
Acreditamos que o problema da cidade e da circulação ainda está diretamente relacionado com os mecanismos de segurança. Na governamentalidade neoliberal e sua política da sociedade, a intervenção sobre a cidade se dá de forma a propiciar o desenvolvimento e criação de mercados. O controle da circulação das pessoas, que não se dá pela forma da proibição direta com a criação de leis, é um desses mecanismos utilizados pelo governo neoliberal, seja nos termos de expulsão de determinados grupos de determinadas áreas para a criação de ambientes propícios aos negócios, como bem explanado por David Harvey (2014), seja pelo zoneamento entre áreas seguras e áreas de risco associadas a populações perigosas, gerando a necessidade de novos mercados de segurança.
Para ilustrar os problemas relacionados com a circulação das cidades, pode-se utilizar pesquisa realizada na cidade de São Paulo, que constatou que o espaço público é visto pelas classes média e alta como um território onde reina a desordem, a sujeira, a degradação, o medo e a violência. Para fugir desses problemas, essas classes se encastelaram em fortificações, como condomínios fechados em bairros ricos, buscando segurança contra os riscos oriundos do contato com as classes pobres, estigmatizadas como perigosas e contaminadoras (CALDEIRA, 2011; DUNKER, 2015). A realidade de condomínios fechados não é exclusiva da cidade de São Paulo, sendo refúgio das referidas classes por todo o Brasil.
A relação das elites econômicas com o espaço público é profundamente ambígua, pois apesar dessa repulsa, as políticas de tolerância zero trazem consigo a vontade dessas elites de reconquistar esse espaço, a partir de uma perspectiva nostálgica e sob uma lógica militar, ao mesmo tempo que possuem uma aversão ao convívio plural, democrático e heterogêneo da rua moderna. Simultaneamente, oferecem resistência a se submeter a regras cívicas de conivência que afrontem seus privilégios de classe, o que permite concluir, de acordo com Caldeira (2011), que os investimentos em segurança privada são uma forma de se proteger tanto das camadas baixas da população, quanto da própria polícia.
O zoneamento da cidade e a associação de determinados grupos a indivíduos perigosos, correspondem a mecanismos de criação de gigantes mercados em torno da segurança. Porém, para que esses mercados se desenvolvam, o Estado atua de forma a reafirmar as associações entre áreas urbanas, risco, perigo e insegurança. O governo neoliberal, por sua vez, repassa os custos da segurança para o homem-empresa, que deve buscar por seus próprios meios garantir sua própria segurança, o que no caso em questão pode ser feito por meio de condomínios fechados, pela aquisição de armas de fogo, de câmeras de vigilância, pela contratação de sistemas de alarme e monitoramento, dentre outros, o que faz movimentar um mercado bilionário. Nesse sentido, de acordo com Verena Mendonça Alves (2019), no Brasil, o faturamento do mercado de segurança privada subiu de R$ 17.895 bilhões em 2010 para R$ 33.208 bilhões em 2014. Assim, os investimentos privados em segurança agem lado a lado ao Estado na gestão e controle do meio urbano, criando áreas de isolamento e excluindo grupos de determinadas zonas, seja de forma mais diretamente coercitiva, sejam por métodos mais “sutis” de deixar claro que aqueles indivíduos não são bem-vindos.
Um exemplo desse governo sobre a cidade por meio da política de combate às drogas, no qual se intersecionam o poder sobre os corpos e o poder sobre a população, é o caso das chamadas “cracolândias” encontradas em diversos municípios do Brasil. O crack foi eleito como uma das drogas mais problemáticas no Brasil, em boa medida pela desinformação gerada pela meios de comunicação, de forma a legitimar campanhas repressivas direcionadas ao usuário e aos comerciantes dessa droga. Como afirma Luciana Boiteux (2015):
No Brasil atualmente, assim como ocorreu nos EUA na década de 1990, o pânico moral em relação aos usuários de crack e o aumento da percepção social do uso dessa substância é marcante, assim como a ausência de evidências concretas de sua ocorrência nos patamares noticiados pela mídia (BOITEUX, 2015, p. 153).
De acordo com a autora, por meio de pesquisa de opinião pública, constatou-se que dos 47% dos entrevistados que disseram já ter tido contato com alguma droga ilícita, apenas 2% declararam já ter consumido crack, porém essa é a droga mais “conhecida” pelos entrevistados (55%), mais até do que a maconha (53%) e a cocaína (50%). “Ao serem perguntados sobre qual seria a droga mais consumida, 32% responderam que seria o crack. Nos grupos focais, afirma-se: ‘o crack está fora de controle’, alegam que seria uma ‘epidemia’, pois é isso que a televisão conta” (BOITEUX, 2015, p. 153). Em pesquisa realizada com usuários de crack, constatou-se que a população das capitais brasileiras que consomem crack e similares de forma regular é de aproximadamente 0,81%, enquanto a estimativa para o número de usuários de outras drogas ilícitas (com exceção da maconha) é de 2,28%. Os usuários de crack correspondem a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nas capitais. Ficou evidenciado também que:
[...] a maioria dos usuários de crack no Brasil é, na verdade, vulnerável, preto ou pardo, jovem (média de 30 anos), homem, solteiro (o que demonstra afrouxamento de laços familiares), com baixa escolaridade, poliusuário (mais de 80% dos usuários de crack também fazem uso de álcool e tabaco), que faz uso público da substância. Portanto, aquele que só se torna visível quando incomoda os demais nas vias públicas, ou quando a televisão mostra imagens de pessoas em situação de repugnância social, como aconteceu de forma reiterada na preparação para os grandes eventos esportivos no país (BOITEUX, 2015, p. 153).
A visibilidade dessas pessoas se dá pela impossibilidade de privatizar seu consumo, não estando protegidos pelas paredes de suas propriedades, vindo a ocupar o espaço público e por vezes espaços nos centros das grandes cidades, gerando incomodo e repulsa da classe média. Esse é caso de diversas “cracolândias”, dentre elas o caso emblemático da situada na cidade de São Paulo, nas imediações do Bairro da Luz e do Bairro de Santa Ifigênia, região central da cidade. A área ficou conhecida pela presença de inúmeros usuários e vendedores de drogas, em especial o crack, porém estes não são os únicos presentes no espaço. De acordo com Rui (2012):
Inúmeros são também os atores sociais que circundam e constituem o local: moradores das imediações e das pensões; comerciantes e frequentadores do bairro; transeuntes; trabalhadores dos arredores; profissionais de imprensa; estudantes realizando os mais diversos trabalhos de conclusão de curso; membros de várias instituições religiosas; fiscais da prefeitura; associações civis de moradores e comerciantes; ONGs; grupos de artistas e suas intervenções; urbanistas; movimentos sociais de luta por moradia; defensores dos direitos humanos; serviços públicos de saúde e de assistência; PCC; interesses político-eleitoreiros; construtoras imobiliárias; e investidores internacionais (RUI, 2012, p. 337).
A concentração cada vez maior de compradores e vendedores nessa região, oriundos de outras áreas centrais da cidade ou da periferia para o centro intensificou o conflito destes com os indivíduos ditos gestores públicos. A situação de conflito se agravou na cidade de São Paulo com a eleição de João Dória como prefeito[c] nas eleições de 2016, iniciando seu mandato em janeiro de 2017. Doria, ao assumir a prefeitura, declarou publicamente “guerra à Cracolândia”, prometendo o fim destes espaços (G1, 2017) e adotando como uma de suas armas nesta guerra a chamada internação compulsória de usuários de crack, medida essa prevista na Lei 10.216/2001[d], que trata da proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. O então prefeito, buscou intensificar a utilização das internações, por meio de pedido judicial realizado em maio de 2017, o qual foi concedido pelo juiz de primeiro grau facilitando a internação dos usuários de crack. O magistrado autorizou de forma genérica que usuários de drogas fossem apreendidos para avaliação médica e no caso de confirmação de dependência química, seria realizado pedido judicial individualizado para internação compulsória. Posteriormente, essa decisão foi cassada liminarmente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Além dessas medidas, a presença de policiais militares e da guarda municipal é constante na “Cracolândia”. Os policiais militares, cotidianamente, realizam rondas com a cavalaria e em viaturas, guardas municipais estão presentes todos os dias vigiando os usuários (RUI, 2012), supostamente tentando diferenciá-los dos traficantes. Prédios da área foram demolidos (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017). Para impedir que sejam montados barracos ou estruturas fixas no local são realizadas limpezas diárias com jatos de água, retirando-se as pessoas do local durante o processo. Essas limpezas realizadas acabam por gerar conflitos com a polícia, acarretando na ampla utilização de gás lacrimogéneo, prisões e agressões (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018).
Nesse contexto, pode-se perceber que as medidas voltadas contra indivíduos em situação de rua, em especial contra aqueles identificados como usuários de crack, intensificam-se a cada dia na Cracolândia. Evidencia-se a adoção de medidas segregadoras, alienantes e violentas que atingem os ocupantes dessa área urbana, medidas que se confundem com verdadeiras práticas de higienização humana voltadas a proteção estética da cidade. A violência é exercida de forma indiscriminada aos ocupantes daquela área, sob a justificativa de combater o tráfico de drogas e de prender os supostos traficantes que atuam na região.
A questão da Cracolândia pode ser lida como uma disputa pelo espaço urbano. Corresponde a uma área ocupada por pobres, muitos em situação de rua, no centro da cidade, ou seja, em uma área que seria, em outras situações, ocupada pela classe média. A Cracolândia desvaloriza as propriedades ao seu redor e gera medo e insegurança naqueles que por ali passam. A guerra à Cracolândia se localiza na guerra às drogas e essa é a justificativa para a realização de uma higienização urbana, uma tentativa da classe média e rica de retomar os espaços que entendem como seus. Como bem destaca Alessandro De Giorgi (2013), as cidades têm seus fluxos de entrada e saída regulados e com o estabelecimento de:
[...] no-go-areas disseminadas pela metrópole e assinalam visualmente que existe uma diferença fundamental entre “aqueles que, na cidade pós-moderna, leem o aviso no-go-area como ‘eu não quero entrar’” e “aqueles para quem no go se traduz por ‘eu não posso sair’” [...] Redesenham-se aqui novos contornos do gueto urbano que, em ‘simbiose mortal’ com o dispositivo carcerário, coloca-se como garante das estratégias de fragmentação e separação hierárquica da força de trabalho, restabelecendo artificialmente a diferença e a distância social entre “incluídos” e “excluídos” (DE GIORGI, 2013, p. 104).
A Cracolândia corresponde a uma inversão desses espaços, na medida em que seus ocupantes tomam uma área na qual não seriam bem-vindos, transformando esse espaço em uma no-go-area para as classes média e rica. A resistência ao zoneamento urbano, que divide pobres e ricos, é respondida por meio de violência e vigilância, justificada pela guerra às drogas e com objetivo, não declarado, de controlar o fluxo dos corpos pela cidade e criar um ambiente propício aos negócios.
Nesse contexto, o saber médico exerce um papel auxiliar nessa higienização do espaço urbano. Sob a lógica de proteção da saúde e da vida dos usuários de drogas, intensifica-se a utilização de internações não consentidas para fins de desintoxicação, primeiramente se valendo da mencionada Lei nº 10.216/2001 e mais recentemente pelas alterações realizadas na própria Lei de Drogas. Essas internações não tem como alvos jovens e adultos de classe média e ricos usuários de substâncias ilícitas, mas sim indivíduos pobres em situação de rua e que ocupam as áreas centrais das cidades, com objetivo de limpar os indesejados dessas zonas. Esse saber médico utilizado contra os usuários de drogas, apesar de alegadamente em seu favor, contraria por vezes a maioria das vozes dessa mesma ciência sobre qual se ampara. Como destacou Vera Malaguti Batista em entrevista, a internação compulsória realizada no Rio de Janeiro contrariava o próprio Conselho Regional de Psicologia e o Conselho Regional de Assistência Social (GRANJA, 2015). No mesmo sentido, vale transcrever as palavras de Maria Lucia Karam (2014):
A ilegítima e violenta prática de internação compulsória de adolescentes e adultos em situação de rua alegadamente dependentes de crack, que vem se desenvolvendo no Brasil, especialmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, viola o que dispõe a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência. Em tal ilegítima prática sustenta-se que dependentes de crack não estariam em condições de tomar decisões e que a internação compulsória se destinaria a “salvar” suas vidas. Tal discurso se filia à notória doutrina que, durante séculos, alimentou os manicômios, já banidos da legislação brasileira, mas ressurgindo sob o manto da danosa política proibicionista que vem restabelecer o lombrosiano preconceito de que o “louco” (e, como este, o dependente das drogas tornadas ilícitas) não seria capaz de se autodeterminar, agiria como um autômato, inconsciente, totalmente privado do livre arbítrio, “regredido”, equiparado a um animal, tornando-se um sujeito mais elementar, mas decifrável, mais previsível – enfim, mais “perigoso”. Assim, perdendo sua qualidade de pessoa, poderia ser manipulado, contido, “tratado” compulsoriamente – enfim, recolhido a uma instituição em tudo semelhante a uma prisão (KARAM, 2014, p. 170-171).
A situação se agrava com as alterações realizadas em 2019, na Lei nº 11.343/2006, durante o governo Bolsonaro. Por essas alterações, criou-se a internação involuntário[e], voltada diretamente para os considerados dependentes químicos, deixando-se de exigir autorização judicial, como estabelecido na internação compulsória da Lei nº 10.216/2001, bastando a formalização da decisão por um médico[f], o que facilita consideravelmente a internação de um usuário de drogas sem o seu consentimento.
Ainda no que tange à repressão penal e ao encarceramento, a prisão não perdeu sua razão de ser, nem mesmo enfraqueceu. De fato, os mecanismos de controle e vigilância extramuros se multiplicaram e assumiram novas formas sem, contudo, que a prisão deixasse de ser utilizada. Na verdade, a prisão se tornou parte integrante do modelo do governo neoliberal de insegurança social, fazendo par com a crise do Estado social, ou seja, “à medida que a regulação social da pobreza pelos métodos welfare recuou, desenvolveu-se uma gestão penal das zonas inferiores e marginais da sociedade. O workfare normalizador se consolidou paralelamente ao prisionfare disciplinar” (LAVAL, 2020, p. 141). Ainda nesse sentido, entendemos relevante transcrever as reflexões de Laval (2020) sobre o punitivismo neoliberal e o que Foucault acreditava que ocorreria com a governamentalidade dos pobres:
Estamos, portanto, muito longe de uma governamentalidade soft dos pobres por meio de incitações positivas do tipo “imposto negativo”, destacadas por Foucault. O que mais se desenvolveu não foi a instituição da assistência a um exército de reserva – sempre pronto para jogar o jogo do mercado –, nem o alistamento em massa em programas de formação individual e tampouco o aumento de um psicanalismo de vocação ortopédica, mas, sobretudo, um tratamento policial e carcerário massivo da população economicamente excedente e socialmente perigosa [acrescentaríamos precarizada]; não para adaptá-la ao sistema de mercado, mas para relegá-la ao confinamento e mantê-la em observação pela dissuasão. Isso é tão contrário à lógica neoliberal do “governo pelo meio”? (LAVAL, 2020, p. 141).
Concordamos em boa medida com as colocações de Laval. Como tentamos mostrar, a gestão da pobreza na governamentalidade neoliberal corresponde a um governo pelo meio ambiente, resultando em zoneamentos, áreas de exclusão e cercamento, bem como na criação e fortalecimentos de mercados que levam a transferência de renda dos pobres para os ricos. O ideário neoliberal e o psicanalismo, quando direcionados àqueles que ocupam a base da pirâmide econômica, buscam fazer com eles aceitem sua condição e se vejam como culpados pela sua própria situação, não oferecendo grandes resistências. A desigualdade é naturalizada e vista como inevitável. Busca-se incutir ideias como: “menos direitos trabalhistas leva a maiores salários”, “menos direitos trabalhistas gera mais empregos”, “o Estado é ineficiente e a iniciativa privada é eficiente”, “privatizações melhoram e barateiam os serviços”, “você é responsável pelo seu sucesso e pelo seu fracasso”, dentre muitas outras. Para aqueles que não absorvem essa ideologia, resta a repressão penal, cada vez mais intensa, na medida em que a desigualdade e a precarização são cada vez mais intensas.
Efetivamente, ocorre uma intensificação da gestão da pobreza por meio da violência nos governos neoliberais. Essas medidas, apesar de não buscarem adaptar, no sentido mais estrito da palavra, os pobres ao sistema de mercado, visam integrá-los ao sistema, contudo de uma forma bem específica. Seria uma forma de integração pela exclusão. Não se trata apenas de dissuasão de delitos por meio de vigilância e repressão, mas também de transformar essa massa em algo de útil, seja pela marginalização de uma mão-de-obra excedente, o que a transforma em mão-de-obra barata tanto por ser excedente quanto por ser marginalizada e, na medida em que é marginalizada, muitos se encontram dispostos a aceitar trabalhos precários pela dificuldade de conseguir melhores trabalhos. Essa é a situação emblemática do pobre egresso do sistema prisional, que dificilmente conseguirá um trabalho que lhe garanta sua subsistência com um mínimo de dignidade.
Desta forma, a cidade ainda é, em grande medida, o território sobre qual se precisa intervir para encorajar ou dissuadir determinadas condutas, facilitar ou impedir determinados fenômenos e, nesse contexto, a delinquência corresponde a uma dessas estratégias de intervenção no meio. O governamentalidade neoliberal não é um governo da não intervenção, mas sim um governo da sociedade, pelo qual a intervenção na sociedade buscará alcançar determinados objetivos, em especial econômicos, na medida em que a realidade se confunde com um mercado, como bem destaca Laval (2020).
O Estado neoliberal é o grande responsável pela escalada das desordens urbanas e utiliza a repressão penal como meio de “conter o fluxo crescente de famílias deserdadas, marginais das ruas, jovens desempregados e alienados, desesperança e a violência que se intensificam e se acumulam nos bairros segregados das grandes cidades” (WACQUANT, 2007, p. 110). Na medida em que essa situação se agrava pelo desfazimento da rede de segurança do Estado caritativo, a malha do Estado punitivo se expande em substituição, recaindo sobre regiões inferiores do espaço social e excluído os marginalizados de outras regiões. Ocorre uma verdadeira “política estatal de criminalização das consequências da pobreza patrocinada pelo Estado” (WACQUANT, 2007, p. 111, destaque do autor).
Ainda de acordo com Wacquant (2007), a escalada penal responde não à escalada da criminalidade, mas aos deslocamentos sociais provocados pela dessocialização do trabalho assalariado e pela redução dos gastos do Estado de bem-estar social tendendo a se tornar a sua própria justificativa, na medida em que seus efeitos criminógenos contribuem decisivamente para a insegurança e a violência que, em tese, deveriam remediar. Como já exposto, a ponta de lança da política de repressão penal é a guerra às drogas, que, como destaca Alexander (2017), corresponde menos à prevenção e punição às drogas e muito mais à gestão e controle dos despossuídos, correspondendo a um verdadeiro sistema de controle de grupos inteiros da população. Ainda nesse sentido, para Valois (2020) a guerra às drogas é igual, ou pelo menos muito similar, em todo o mundo porque, além de ter sido declarada a partir de um modelo internacional patrocinado pelos Estado Unidos, é uma guerra contra os despossuídos, contra pessoas desprotegidas, sem propriedade onde possam usar ou usufruir do dinheiro oriundo do comércio das drogas com tranquilidade.
O estado de guerra em que a política de drogas colocou a sociedade, transformando todos em inimigos ou vítimas em potencial, faz da polícia o único símbolo de ordem e muitas vezes é a polícia realmente a única representante do Estado em determinadas localidades onde faltam hospitais, escolas e saneamento básico (VALOIS, 2020, p. 408)
As intervenções militarizadas em favelas e periferias expõe os moradores dessas áreas a riscos que não possuem condições de mitigar por conta própria. A expansão da lógica de mercado e da concorrência baseada nas desigualdades também está diretamente relacionada à desigualdade de acesso e desfrute de segurança. De forma geral, a dinâmica de mercantilização e de privatização cria as condições para quebrar a ideia de igualdade de oportunidade no acesso à segurança e para estabelecer uma discriminação por motivos econômicos, que prejudica os setores desfavorecidos, justamente aqueles que mais sofrem com a vitimização (GARCÍA, 2014).
A política de guerra às drogas, juntamente com o discurso de que essas substâncias são uma grande mazela para a saúde pública, de que os traficantes são os principais inimigos da sociedade, causando mortes pelo fornecimento de drogas ou por suas formas violentas de resolver conflitos e estabelecer sua posição, bem como de que os usuários em geral comentem crimes para sustentar seu vício, são fortes mecanismos para difundir amplamente o sentimento de insegurança e de medo. Essa percepção se materializa no sistema penal em uma clara tendência de expansão da repressão que é incapaz de afastar a sensação social de insegurança. Diretamente relacionado a isso e seguindo as reflexões de García (2014), o Estado neoliberal corresponde a um Estado sujeito a limitação de recursos, derivada de uma ortodoxia econômica que defende a autocontenção dos gastos públicos — em que pese o elevado aumento dos investimentos em políticas de repressão penal, em especial às drogas — como medida para garantir um suposto desenvolvimento econômico. Essa mesma lógica econômica recomenda maximizar as oportunidades de negócio e a ampliação de mercados relacionados as mais diferentes áreas da realidade social. Dessa forma, no campo da insegurança social e dos riscos referentes a criminalidade não poderia ser diferente, correspondendo a um espaço sempre aberto a procura de novos âmbitos de lucro. Ainda nesse sentido:
...] a privatização da gestão da segurança, e do próprio sistema penal, é uma tendência evidente, que caracteriza de forma muito relevante a evolução destas áreas da vida coletiva, ainda que a sua intensidade passe a ser inferior do que a que se manifesta em âmbitos da intervenção pública próprias da lógica keynesiana (GARCÍA, 2014, p. 163).
Como já mencionado, desenvolveu-se uma grande indústria de segurança privada, que utiliza de dispositivos tecnológicos e recursos humanos para a garantia da ordem e o controle do delito. A emergência do valor segurança como interesse fundamental da vida coletiva cria demandas de provisão desse bem que o Estado não tem condições de garantir e, justamente nesse contexto, emerge a dinâmica de procura de espaços de negócio pela iniciativa privada.
Acreditamos, porém, que essa relação entre segurança proveniente da iniciativa privada e incapacidade de o Estado suprir esse desejo por segurança é na verdade bem mais complexa. Em boa medida, a percepção de insegurança é ampliada pelo próprio Estado, quando elege determinados grupos e uma determinada espécie de delinquência como inimiga da sociedade, gerando o alarde e a sensação de perigo constante que, por muitas vezes, nem mesmo existia até aquele momento. Lembremos que quando Nixon e Reagan declararam a guerra às drogas, apontando que estas seriam o mais grave problema enfrentado pelos EUA naquele momento, apenas um pequeno percentual da população americana compartilhava dessa opinião. Após intensas campanhas promovidas pelo Governo, tanto no âmbito nacional quanto internacional, auxiliado fortemente pelos meios de comunicação, a percepção popular sobre as drogas e seus perigos mudou drasticamente. Para todo produto, é necessária uma campanha de marketing e para o mercado da segurança pública e privada não é diferente. Ao mesmo tempo em que, por um lado, constrói-se uma delinquência ao redor da droga, atrativa por seu elevado valor e que não corresponde a uma ameaça política ou a uma ameaça significativa ao patrimônio das elites, por outro lado constitui-se um inimigo silencioso que está em todos os cantos e em todos os lugares, ameaçando a juventude branca de classe média, personificado na figura do traficante. Esse inimigo e essa delinquência, ao mesmo tempo em que permite a determinados grupos canalizar elevados lucros do mercado ilícito de drogas, proporciona um sentimento de insegurança e uma percepção de riscos que gera uma maior demanda para os mercados privados de segurança e consequentemente maiores lucros, bem como permite a atuação repressiva das agências policiais sobre certos grupos populacionais e o direcionamento de uma intensa vigilância e contenção desses grupos, seja em determinadas áreas da cidade, seja nos presídios.
Essa inversão de investimentos em políticas públicas pode ser vista no Brasil dentro da própria política de combate às drogas. Em teoria, as políticas públicas sobre drogas não deveriam se dar apenas pela repressão penal, mas também por medidas relacionadas à prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas[g]. Contudo, desde 2018, verifica-se uma diminuição considerável nos gastos do Ministério da Saúde com a política de drogas e o aumento dos gastos do Ministério da Justiça no mesmo setor. Em 2017, os gastos do Ministério da Saúde eram de R$ 1.545.871.871, passando para R$ 34.368.533 em 2018 e R$ 22.683.341 em 2019. Já os gastos do Ministério da Justiça, nos mesmos anos, foram de R$ 317.822.393, R$ 412.860.397 e R$ 421.230.765, respectivamente (CUNHA; et al., 2021).
Desta forma, a defesa da sociedade e a luta contra a criminalidade, tendo a política de drogas como carro chefe, movimentam montantes expressivos dos orçamentos públicos e privados. No contexto neoliberal, “extrair o lucro político e econômico do crime e da criminalidade é o imperativo do governo da emergência e da produção ativa de ambientes seguros pela regulação e gestão do extermínio calculado” (REIS, 2020, p. 291).
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
[...]
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
[...]
Art. 9º A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.
§ 3º São considerados 2 (dois) tipos de internação: (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do dependente de drogas; (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
II - internação involuntária: aquela que se dá, sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida. (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
§ 5º A internação involuntária: (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
I - deve ser realizada após a formalização da decisão por médico responsável; (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
II - será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde; (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
III - perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável; (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019)
IV - a família ou o representante legal poderá, a qualquer tempo, requerer ao médico a interrupção do tratamento (Incluído pela Lei nº 13.840, de 2019).