Dossiê
Corpos (in)dóceis: intersecções da vida artista no biopoder
(In)docile bodies: intersections of artistic life in biopower
Corpos (in)dóceis: intersecções da vida artista no biopoder
Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 61, pp. 137-152, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recepción: 26 Enero 2022
Aprobación: 13 Marzo 2022
Resumo: Neste artigo, pretendo refletir, partindo do entendimento do último Foucault sobre Baudelaire, de que o estilo de vida cínico, que o filósofo francês encontrou entre os gregos, é algo raro e singular entre os modernos e, por isso, a vida artista, como apresentada em Le courage de la vérité, torna-se essencial na medida em que ela seria o exemplo mais forte, na modernidade, de luta e de resistência. Mesmo assim, o que tentarei mostrar é que Foucault ainda parece dizer o quão pouco gregos nós, modernos, somos, e da nossa dificuldade em tornar nossa vida obra de arte e, portanto, resistir às tecnologias do biopoder.
Palavras-chave: Foucault, Baudelaire, Vida artista, Biopoder.
Abstract: In this article, I intend to reflect, based on the understanding that the last Foucault brings about Baudelaire's work, that the cynical lifestyle, which the French philosopher found among the Greeks, is something rare and singular among the moderns and, therefore, the artistic life, as presented in Le courage de la vérité becomes essential as it would be the strongest example, in modernity, of struggle and resistance. Even so, what I will try to show is that Foucault still seems to say how little Greek we moderns are, and our difficulty in making our lives a work of art and, in resisting to the technologies of biopower.
Keywords: Foucault, Baudelaire, Artistic life, Biopower.
Como citar: PAVINI, R. Corpos (in)dóceis: intersecções da vida artista no biopoder. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 137-152, jan./abr. 2022
Introdução
A ruptura do cínico com o mundo é radical. O que ele rejeita é o que os homens consideram as regras elementares, as condições indispensáveis da vida em sociedade, a propriedade, o governo, a política (HADOT, 1999, p. 162).
Uma das raras condecorações que o atual regime pode conceder, o senhor acaba de recebê-la. O que ele chama de sua justiça condenou o senhor em nome do que ele chama de sua moral; esta é uma coroa a mais. Eu vos aperto a mão, poeta (Carta de Hugo [apud BARONIAN, 2010, p. 116] a Baudelaire, a respeito da condenação de seis poemas de Les fleurs du mal).
Quando Foucault coloca o problema da estética da existência, recuando em nossa história para encontrar nos gregos e, de uma forma especial, nos cínicos, sua arte de viver, o filósofo não quer “imitar” suas práticas; diversamente, esse recuo tem o caráter de atualidade, de fazer uma filosofia do presente. Em um dos momentos em que se dirige à modernidade, Foucault encontra na vida artista do século XIX a reavivação dessa arte de viver ou, como o próprio Foucault (2009) explicita, é no domínio da arte moderna que se concentram as formas “mais intensas” do dizer-a-verdade corajoso — prática comum aos cínicos.
Interessante notar que, coexistindo com essa arte de viver, Foucault trabalha também uma ontologia do presente — ou seja, busca compreender que a missão da filosofia é estabelecer um modo de relação que concerne à atualidade —, e encontra em Kant um representante. Em 1984, ano de sua morte, Foucault publica sua conferência realizada nos Estados Unidos “Qu´est-ce que les lumières?”2 para mostrar como Kant inaugura aquilo que chamou de atitude moderna. O filósofo francês nos convida a revisitar o texto kantiano “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?” não só para compreendê-lo na dimensão das três críticas, como também para mostrar como esse texto reflete sobre o presente, não a partir de uma totalidade ou de uma realização futura, mas na busca de uma diferença. Qual seja? “A reflexão sobre ‘a atualidade’ como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular” (FOUCAULT, 2001b, 339, p. 1387).
Ao se referir ao texto de Kant, a modernidade defendida por Foucault não é vista como um mero período na história, e sim como uma atitude, isto é, “um modo de relação que diz respeito à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa” (FOUCAULT, 2001b, 339. p. 1387).
Todavia, esta tarefa, mais ou menos como o êthos grego, que se constitui como uma forma de luta com as atitudes de “contramodernidade”, parece insuficiente em Kant, já que, em seu texto em questão, a atitude crítica kantiana irá operar através da indissociabilidade entre uso público e privado da razão, isto é, se por um lado, a atitude crítica exige ousadia ou coragem para pensar longe da tutelagem, por outro, como esclarece Candiotto (2020, p. 119), “essa coragem é realizada, no entender de Kant, à custa da obediência política ao governante esclarecido”, bem como se limita ao sujeito de conhecimento. Acreditamos que, em razão disso, Foucault encontra, de forma mais vivaz, em Baudelaire, e não em Kant, essa atitude crítica[3] e, só o faz, como veremos, porque Foucault alinha o poeta com suas preocupações sobre o cinismo. Como uma das consciências mais agudas de seu tempo, Baudelaire, para Foucault, apresenta quatro características principais que condizem com essa atitude.
A primeira, a vontade de heroificar o presente, não é a simples constatação de que “a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente” (BAUDELAIRE, 1938, p. 335), como também é de assumir certa atitude em relação a esse movimento que consiste em eternizar não o que está além nem por detrás do momento presente, mas nele; a segunda, é compreender que essa heroificação é irônica, isto é, não se trata de sacralizar o momento que passa para perpetuá-lo ou de tratá-lo como uma curiosidade fugidia e interessante (como o flanador), mas de transfigurar o real, não o destruindo, e sim colocando-o no difícil jogo entre sua verdade e o exercício da liberdade — “o alto valor do presente é indissociável da obstinação de imaginar, imaginá-lo diferentemente do que é, e transformá-lo não o destruindo, mas captando-o naquilo que ele é. A modernidade baudelairiana é um exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada à prática de uma liberdade que, simultaneamente, respeita esse real e o viola” (FOUCAULT, 2001b, 339, p. 1389); a terceira característica é a elaboração ascética de si, que compreende a modernidade não como uma simples forma de relação com o presente, bem como uma relação que se estabelece consigo mesmo, isto é, “ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momento que passam; é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura: o que Baudelaire chama, segundo o vocabulário da época, de ‘dandismo’” (FOUCAULT, 2001b, 339, p. 1389); e, em quarto lugar, essas três características listadas não ocorrem nem na sociedade e nem no corpo político, mas em um lugar específico: na própria arte.
Assim, a atitude da modernidade não é a fidelidade à uma doutrina, mas a reativação permanente desse ethos filosófico, dessa constante crítica ao nosso ser histórico. Partindo desses pressupostos e levando em consideração a importância de Baudelaire no pensamento do último Foucault, nosso objetivo é compreender, primeiramente, a noção de “vida artista” apresentada em Le courage de la vérité. Para isto, iremos retomar a diferença entre Baudelaire e Sade ao longo de pensamento de Foucault, tal como explorada por Ernani Chaves em seu livro Foucault e a verdade cínica. No segundo momento, inspirado na observação feita por Pedro Süssekind, ao comentar o livro de Chaves, de que Baudelaire apenas poderia ser compreendido como um cínico na dimensão de sua obra e não de sua biografia, trabalharemos em como a estética de existência, que pressupõe a indissociabilidade entre vida e obra, só pode ser compreendida na dimensão política, isto é, como resistência aos processos normalizadores. Por fim, nossa hipótese é de que o estilo de vida cínico, que Foucault encontrou entre os gregos, é algo raro e singular entre os modernos e, por isso, a vida artista torna-se importante na medida em que ela seria nosso exemplo mais forte, na modernidade, de luta contra as técnicas e formas de poder tanto totalizadores quanto individualizadoras que moldam os indivíduos, tornando-os dóceis. Em suma, só podemos conceber a vida artista na interconexão entre uma ontologia do presente e uma estética da existência.
Vida artista: retomando uma discussão
Ao afirmar, em sua aula de 29 de fevereiro de 1984, que o cinismo como doutrina desapareceu ao longo da história da Europa4, Foucault ressalta que ele ainda permaneceu como atitude e maneira de ser5. Distanciando-se da literatura alemã do começo do século XX6, que sugere o cinismo moderno como uma manifestação da individualidade, Foucault renova a leitura do cinismo antigo, compreendendo-o no relacionamento entre formas de existências e a manifestação da verdade para encontrar, em seu cerne, a forma de existência como escândalo vivo da verdade. Neste diapasão, o filósofo aponta que é possível localizar, em alguns momentos posteriores da história de nossa cultura, a revivificação desse cinismo: no ascetismo cristão praticado por algumas ordens religiosas ao longo da Idade Média; na figura do revolucionário político dos séculos XVIII e XIX (correntes anarquistas, militantes de esquerda etc); e, finalmente, no artista moderno, que nos deteremos agora.
Para Foucault, a arte moderna — como um acontecimento raro e singularmente importante — estabelece o vínculo entre as formas de vida e a verdade. Vínculo, este, caracterizado de duas maneiras coextensivas: 1) com o aparecimento, no final de século XVIII, de algo singular na cultura europeia, a vida artista; 2) e com a ideia de que a arte, seja no registro da literatura, pintura ou música, deve estabelecer com o real uma relação que não é da ornamentação ou da μίμησις, mas do desmascaramento, do desnudamento, da escavação, da redução ao elementar da existência pela agressiva rejeição das normas instituídas.
A vida artista, como um acontecimento moderno, é o testemunho de que a arte é a sua verdade e, diante desta constatação, encontra-se dois importantes princípios: primeiro, a arte é capaz de dar à existência uma forma que rompa com as demais formas de vida, engendrando uma forma que é a da verdadeira vida, uma vida indócil e marginal; segundo, se a arte tem a forma da verdadeira vida, em contrapartida, a vida torna-se a própria garantia da obra de arte, enraíza-se nela, parte dela, e pertence, portanto, à sua dinastia e ao seu domínio.
A arte moderna é essa revivificação do cinismo justamente porque é uma ruptura escandalosa com a existência e, ao mesmo tempo, um estilo de vida outro às vidas ordinárias, através da indissociável relação entre vida e obra. Por isso, para Foucault, essa arte se apresenta como antiplatônica, já que ela não se remete ao real a partir da mera aparência, e sim da agressão, da recusa e da polêmica; antiaristotélica, pois, sendo marginal, afasta-se dos cânones estéticos e dos valores normativos da arte, como encontrados na Poética de Aristóteles. Uma arte que traz a recusa e a rejeição de toda a forma e de todo o conteúdo instituído e determinante — o que Foucault chamou de anticultural, coadunando com as lutas de “contramodernidade”, tal como exposto no seu texto “Qu´est-ce que les lumières?”.
Em seu livro Michel Foucault e a verdade cínica, Ernani Chaves (2013) utiliza-se da referência a Baudelaire para aprofundar a relação entre vida artista e cinismo em Foucault. Opõe, de forma muito satisfatória, Baudelaire a Sade, mostrando como ambos ganham interpretações distintas ao longo do pensamento do filósofo francês. Baudelaire, na época de Surveilleret punir, participa de “uma reescrita estética do crime”, que nada mais é do que uma “apropriação da criminalidade sob formas aceitáveis” (FOUCAULT, 1975, p. 72). E, por ocasião das discussões que sucederam Surveilleret punir, em entrevista a Magazine Littéraire, em 1975, Foucault afirma que Baudelaire foi ingênuo por “imaginar que a burguesia é tola e pudica”, quando deveria ser considerada “inteligente e cínica” (FOUCAULT, 2014, p. 225), pois o medo que a delinquência provoca na sociedade torna o controle policial tolerável aos olhos da população e, em vista disso, a burguesia nunca quis extirpar a delinquência como pensou o poeta, pois ela lhe era útil. Tanto esse Baudelaire ingênuo quanto essa menção ao cinismo da burguesia, utilizado em seu sentido moderno e pejorativo, são apreciações negativas, distantes do Baudelaire e do cinismo do último Foucault, em que assumem uma posição de destaque.
Ocorre o inverso com Sade. Se na década de sessenta Foucault concede um lugar especial ao Marquês, colocando-o, ao lado de Bataille, como um transgressor, nos anos setenta e oitenta, ele aparece como um disciplinador que deve ser superado. Vejamos alguns indícios desta mudança.
No artigo dedicado a Bataille, publicado em 1963 e intitulado “Préface à la transgression”, também encontramos uma tarefa filosófica a realizar: de levar o mais longe possível a experiência moderna dos limites e sua ultrapassagem. Em razão disso, Sade ocupa um lugar decisivo na cultura moderna, já que foi ele que conduziu a sexualidade e a sua linguagem a “uma profanação em um mundo que não reconhece mais sentido positivo no sagrado” (FOUCAULT, 2001a, 13, p. 262), isto é, a linguagem da sexualidade sadiana nos levou a uma experiência em um mundo em que Deus está ausente, e esta ausência desvela a finitude do ser e seu extravasamento, sua transgressão: “a morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desata na experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride” (FOUCAULT, 2001a, 13, p. 264). Aqui estamos diante de uma das principais teses desenvolvidas no “Préface à la transgression”: “que a transgressão é um gesto relativo ao limite”, ou seja, que entre a transgressão e o limite estabelece-se um jogo que os coloca sempre como provisórios, uma vez que a transgressão, ao ultrapassar a linha do limite, imediatamente se fecha num novo limite que irá novamente ultrapassar. Em outras palavras, as fronteiras, ao serem ultrapassadas, violam seus limites ao incorporá-los.
Para o Foucault da arqueologia, a literatura seria o que melhor expressaria esse jogo, essa violação dos limites, do excesso, presentes nos escritos de Sade e Bataille, em que a relação entre sexualidade e linguagem são indissociáveis.
Diversamente, nos últimos textos de Foucault, Sade não aparece como um modelo de transgressão, já que esta assume aspectos políticos. A entrevista de 1976, “Sade, sergent du sexe”, é um exemplo representativo dessa mudança, uma vez que Foucault pensa o erotismo em Sade como disciplinar, meticuloso, ritualístico, com tempos cuidadosamente distribuídos e bundas rigorosamente contadas e, por isso, salienta que é preciso distanciar-se desse erotismo. Nesse sentido, o Marquês não mais opera, em sua linguagem, uma transgressão, já que os mecanismos descritos em suas obras visam disciplinar os corpos em vez de romper com a tecnologia do poder.
Nesta linha de raciocínio, Chaves (2013, p. 77) escreve que “o recurso a Baudelaire nos últimos textos de Foucault e em especial em Coragem da verdade, faz-nos pensar que o poeta das Flores do mal é apresentado como uma espécie de antípoda do autor de Filosofia na alcova”. Isso se sustenta na medida em que o tema do sexo nos textos sadianos, para Foucault, encontra-se agora preso aos procedimentos disciplinares, “à patologização das condutas” e à ideia da sexualidade como causa das doenças, dos desvios, que ultrapassa a esfera do indivíduo e atinge a população. Por outro lado, Baudelaire seria aquele que — levando em consideração a análise foucaultiana do cinismo — apresentou a possibilidade de uma vida verdadeira, de uma estética de existência na modernidade.
Pedro Süssekind (2012, p. 41), ao comentar o livro de Ernani Chaves, nos traz uma importante problematização, a qual cito:
a meu ver a questão a ser debatida é o quanto o “cinismo” do artista moderno se expressa mais na própria arte do que na prática de vida. Leio no final do texto [de Chaves]: “Transgressora, imbuída de revolta e embebida pelo vinho da conspiração, a vida artista, que se expressa necessariamente na obra, formando assim uma única coisa, se constitui ainda como uma componente fundamental de uma espécie de última barricada, de última trincheira em relação à ordem dominante.” Proponho aprofundar a discussão sobre esse “que se expressa necessariamente na obra”. Pois, se Baudelaire é uma encarnação moderna do cinismo antigo, essa encarnação se dá mais nos poemas de As flores do mal do que propriamente na biografia de seu autor.
Diante desta problematização, buscaremos, agora, compreender a estética da existência como resistência, para tentarmos, por fim, responder se a referência ao cinismo em Baudelaire, tal como pensando por Foucault, remete-se exclusivamente à sua obra, ou se também integra sua vida.
Vida artista como resistência ao biopoder
Foucault afirma, em entrevista a Dreyfus e Rabinow, realizada em 1983, que nossa sociedade se encontra distante de uma arte de viver. Segundo argumenta, nosso entendimento atual de obra restringe-se ao objeto (como um livro ou um quadro) e, por isso, temos a ideia de que a obra de arte é aquilo que escapa à mortalidade de seu criador. Ideia completamente diferente dos antigos, que tomavam a própria vida, em sua dimensão mortal e passageira, como uma obra. Este seria um dos motivos do desassossego de Foucault para com sua atualidade:
O que me surpreende é que, em nossa sociedade, a arte esteja apenas relacionada aos objetos, e não aos indivíduos ou à vida; e, também, que a arte seja um domínio especializado, o domínio dos experts que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que um quadro ou uma casa são objetos de arte, mas não nossa vida? (FOUCAULT, 2001b, 344, p. 1436)7.
Esta surpresa de Foucault revela-se retórica, uma vez que um dos empreendimentos de seu pensamento foi, grosso modo, evidenciar uma história de diferentes modos de sujeição, tanto através da “operacionalidade das disciplinas na fabricação do corpo útil e da alma dócil nas diferentes instâncias institucionais constituintes da ortopedia moral burguesa europeia”, quanto pela “tecnologia de poder que se ocupa em regular. gerir a multiplicidade dos homens” (CANDIOTTO, 2013, p. 82), em suma, uma tecnologia que tem como “alvo algo que não era considerado nem pelo direito nem pela disciplina; seu alvo é a população” (NALLI, 2014, p. 124). Em uma sociedade do biopoder, não há incentivo a formas de vidas indóceis; ao contrário, fomenta-se corpos dóceis, adestrados, controláveis. Ou, como afirma Peter Pál Pelbart (2015, p. 20), “o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou em todas as esferas da existência e as mobilizou e as pôs para trabalhar em proveito próprio”. Assaltada, a vida foi colonizada em seu corpo, em sua sensibilidade, em sua inteligência e, até mesmo, em sua criatividade.
Por isso, uma estética da existência, como uma resposta teórico-prática de dar, a si mesmo, uma forma de sua própria vida, ainda permanece marginal e, simultaneamente, política. Marginal, pois a sociedade moderna foi constituída a partir da disciplina, da normalização, da coerção etc., que implica, por parte do sujeito, de um exercício intenso para conseguir dar à vida a plasticidade evocada por Foucault nos cínicos; política, pois o ato de dar a si mesmo uma forma de vida outra do que aquela imposta aos indivíduos, já é marca de resistência.
Ao afirmar que o poder se exerce sobre a vida cotidiana imediata que transforma os indivíduos em sujeitos, Foucault (2001b, 306, p. 1046) concebe dois sentidos para a palavra sujeito nesse contexto: “sujeito submisso ao outro pelo controle e pela dependência, e sujeito ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si. Nos dois casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete”. Frente a essa dupla constatação, basta saber se os indivíduos estão submetidos as formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas), formas de exploração (que separam o indivíduo do que ele produz), e/ou formas de sujeição ou submissão da subjetividade (que ligam o indivíduo a sua identidade e garante sua submissão aos outros).
Por isso, para Foucault, a atitude moderna pode ser caracterizada como essa luta que marca a diferença ao se impor por atitudes de “contramodernidade”. Essas atitudes de “contramodernidade”, ou “contraculturais”, como escreve a respeito da vida artista, permitem ao filósofo não só compreender as relações de poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, como também compreendê-la por meio do enfrentamento de estratégias, isto é, para entender em que essas relações consistem, é necessário analisar as formas de resistências e os esforços despendidos para tentar dissociar essas relações. Foucault observa que as características mais originais dessas lutas giram em torno da questão do estatuto do indivíduo, que trazem dois objetivos complementares: primeiro, “elas afirmam o direito à diferença e evidencia tudo o que pode tomar os indivíduos verdadeiramente individuais” e, segundo, “elas atacam tudo o que pode isolar o indivíduo, separá-los dos outros, cindir a vida comunitária, coagindo o indivíduo a dobrar-se sobre si e amarrá-lo à sua própria identidade (FOUCAULT, 2001b, 306, p. 1045-1046). O que Foucault sugere é que a luta pelo direito à diferença, isto é, a luta pela autonomia, não conduz ao individualismo, ao contrário, essa luta pela diferença tem como objetivo a superação do individualismo, no sentido em que esse indivíduo se liga a outras formas de vida, à vida comunitária. Por essa razão, Guilherme Castelo Branco (2017, p.116) escreve que “toda luta pela autonomia consiste num processo iniciado na subjetividade, mas que não termina na esfera subjetiva [...] pois a resistência iniciada na subjetividade prolonga‑se no mundo social”, para, enfim, complementar:
A recusa das formas de subjetividade que nos foram impostas converte‑se, assim, numa questão política de real densidade: temos que procurar elaborar formas de vida livres e autônomas dentro de sistemas sócio‑políticos que trabalham incessantemente para submeter as pessoas a práticas divisórias, disciplinares, individualizantes, normalizadoras, com o auxílio de técnicas e de conhecimentos científicos, e com o apoio de um conjunto de técnicas de controle. A estética da existência não poderia ser um modo de vida marcado pela arte e numa vocação subjetiva e individual, como se fosse resultado de um talento e genialidade do qual o artista é portador iluminado, como se a arte fosse vocação pessoal de certos indivíduos raros e especiais (CASTELO BRANCO, 2017, p. 117).
Castelo Branco tem razão quando afirma que a estética da existência não poderia ser um modo de vida exclusivo marcado por essa figura individual do artista genial, raro em sua existência e iluminado em sua atividade. Mesmo assim, temos que levar a existência do artista — tal como ele se configurou durante o século XIX — como uma das grandes formas de resistência e, devido a sua radicalidade, compreender a importância que a vida artista adquire no pensamento do último Foucault.
Talvez um possível caminho para desmistificar o artista, para lhe tirar a aureola — e, portanto, aproximá-lo dos homens comuns —, seja retornar à problematização deixada em aberto por Süssekind, qual seja, a de que Baudelaire seria uma reencarnação do cinismo antigo apenas em sua obra e não, propriamente, em sua biografia. De fato, para superar essa problemática, temos que ter em mente uma posição já exposta por Foucault, em sua aula em que apresenta a vida artista: de que a “vida é a caução de que toda obra, que se enraíza nela e a partir dela, pertence à dinastia e ao domínio da arte” (FOUCAULT, 2009, p. 173).
Pensamos que, diante desta passagem, não se trata, simplesmente, de pensar a obra ou o logos que ela expressa, distante da vida, mas sim a inseparabilidade entre bíos e logos, isto é, de como a obra de arte já é a própria vida, na sua prática, na sua imanência, antes de ser objeto-obra. Nesse sentido, Les fleurs du mal é tácita à vida escandalosa que Baudelaire se impôs. Essa associação entre a vida e a obra certamente conduz a obras de arte que trazem, como características, a ousadia do dizer verdadeiro que se transforma em intolerável insolência e, só a partir desta associação que podemos compreender, em algum sentido, o cinismo como estilo de vida presente na modernidade, uma vez que estabelecer essa separação poderia levar a caracterizar a vida artista como uma estética da existência, mas não teria sentido compreendê-la na dimensão do cinismo antigo.
Neste diapasão, podemos acrescentar as seguintes palavras de Foucault (2009, p. 174): “E se não é simplesmente na arte, é na arte, sobretudo, que se concentram, no mundo moderno, em nosso próprio mundo, as formas mais intensas de um dizer verdadeiro que tem a coragem de assumir o risco de se ferir”. Essa passagem aponta para duas questões importantes e esclarecedoras sobre a modernidade: primeira, que não é exclusividade da arte o estilo de vida cínico e, segunda, que decorre da primeira, que é na arte que encontramos a forte marca do dizer verdadeiro como coragem de assumir o risco de vida.
Considerações finais
Em uma sociedade em que a vida foi assaltada, em suas formas não só macro, como micro, é necessário, para encontrar uma verdadeira vida, não mimetizar, mas resistir a partir desta atitude, desta escolha, feita pelo sujeito, de se recolocar, constantemente, de forma crítica diante do nosso ser histórico (ontologia do presente)[8] e, ao mesmo tempo, transformar a vida eticamente, como uma obra de arte. Nesse sentido, a importância da vida artista dentro do horizonte do século XIX se torna necessária — talvez, como o cinismo o foi diante da filosofia tradicional para Foucault —, já que ela seria nosso exemplo mais forte, na modernidade, de uma genuína experiência de luta a partir de uma estética da existência não só contra os cânones estéticos, bem como das técnicas e formas de poder específicas que moldam os indivíduos, tornando-os dóceis.
Certamente, Foucault previu a imensa dificuldade que a modernidade apresenta para com uma estética da existência. Não à toa, basta lembrar como o texto de Kant, “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?” — texto utilizado por Foucault para explorar essa luta com as atitudes de contramodernidade — desenvolve como o sujeito moderno ainda se encontra na menoridade, tutelado — ou, num vocabulário foucaultiano, sujeitado às tecnologias do biopoder —, devendo-se impor para si mesmo a coragem de buscar a autonomia e a liberdade da razão. Certamente, Foucault deu a Kant uma posição de destaque, mas não sem deixar de mostrar suas limitações. Em Le gouvernement de soi et des autres (1983), Foucault mostra como Kant apostou que quanto mais nossos governantes permitem a nossa indignação crítica em um fechado círculo de intelectuais, mais estaremos dispostos a obedecer e, também, que a condição crítica pertence somente ao sujeito transcendental, ao sujeito epistêmico.
Por isso, não nos espanta que Foucault (2001b, 344, p. 1430) tenha pronunciado em Berkeley, em 1983, que na ética dos Gregos “as pessoas estavam preocupadas com a sua conduta moral, sua ética, suas relações consigo mesmas e com os outros” e essa “ética não se relacionava a nenhum sistema social institucional — nem sequer nenhum aspecto legal”, ao contrário, os gregos tinham como preocupação, justamente, “construir um tipo de ética que fosse uma estética da existência”; diante disso, Foucault parece dizer o quão pouco gregos nós, modernos, somos, e da nossa dificuldade em tornar nossa vida obra de arte e, portanto, resistir. Por isso, a distância dos gregos não significa, para o filósofo, que devemos retornar a eles, mas, ao tomarmos conhecimento que, em um determinado momento da nossa história, uma ética como estética da existência foi possível, isto deve ser útil para desmembrarmos a analiticidade que existe entre nossa ética pessoal, nossa vida e as grandes estruturas políticas, sociais e econômicas, que nos fazem acreditar que nada podemos fazer para mudarmos.
Daí também a importância da radicalidade da vida artista como um exemplo próximo, intenso, dessa coragem de dizer a verdade, desse estilo de vida que articulou a teoria e a prática, o discurso e a ação, o saber e a resistência, o logos e a bíos. Compreender a arte neste registro não significa restringi-la à obra, e sim tomar a vida e a obra como uma e mesma coisa. É nesse sentido que temos que entender a afirmação de Ernani Chaves, quando diz que a “vida artista se expressa necessariamente em obra”, já que obra e vida são indissociáveis nesse contexto. A dificuldade que Süssekind levanta é a dificuldade que temos em compreender que, agora, Foucault não trabalha mais a obra na dimensão do espaço literário9. E, em razão disso, nada soa tão estranho ao último Foucault — que está a pensar esse estilo de vida cínico como arte — que a afirmação de Bataille (1979, p. 182) de que a literatura, por ser inorgânica, “é irresponsável”, já que “nada se apoia nela. Ela pode tudo”.
Se é correto afirmar que vivemos em tempos em que nem a nossa subjetividade escapa às questões do poder, torna-se necessário ativar a vida para além das sujeições impostas, trata-se de fazer o corpo indócil, a vida inquieta. Redução ao elementar da existência, isto é, uma redução da vida nela mesma, em sua nudez, destituída dos mecanismos sociais que moldam, coagem, criam e determinam o indivíduo ou, como escreveu Gros (2004, p. 164), “trata-se de uma transgressão dos valores estabelecidos, mas a partir de um movimento interno de exageração e de caricatura dos sentidos de verdade”. Uma vida verdadeira em razão da sua insolência e do escândalo, um alterar o valor da moeda.
Em razão disso, Baudelaire é um importante exemplo para Foucault, dentro do campo artístico, de uma vida insolente, inquieta e indócil. O poeta fez da sua vida obra, a partir de uma dimensão política atuante e contestadora, que não se deixou apreender inteiramente pelos mecanismos do biopoder: viveu uma vida excêntrica, de dívidas, de inconstâncias, de amores ingratos, de rompimentos familiares, de incompreensão, posicionou-se, contestou, foi dândi, foi condenado por seus poemas, recusou a forma como se fazia arte em seu tempo, isto é, Baudelaire moldou seu estilo de vida próprio, resistindo tanto aos mecanismos sociais quanto aos limites literários que nos mantém reféns de nossa própria época. Não submeteu sua vida a uma política externa que a determinasse, a um partido, mas realizou uma politização da vida, no sentido de dentro para fora. Assim, a arte moderna, contemporânea à biopolítica, replica a política, invertendo-a. Mas não no sentido normativo de coerção, disciplina, docilidade, ao contrário, de dar-se a si mesmo a condução da própria vida como uma vida verdadeira, isto é, a vida artista é cínica porque é uma vida combativa que se desdobra no inverso à soberania política. Nesse sentido, vida artista também é esse acontecimento que nos permite pensar nesse objetivo, ainda atual, que Foucault (2001b, 306, p. 1051) nos colocou: “Sem dúvida, o objetivo principal hoje não é de descobrir, mas de recusar o que somos. Precisamos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos desse ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea individualização e totalização das estruturas do poder moderno”.
Referências
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Notas
Notas de autor