Dossiê

Recepción: 28 Enero 2022
Aprobación: 01 Marzo 2022
DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.34.061.DS10
Resumo: Objetivo central deste artigo é apresentar e articular as categorias de biopolítica afirmativa e pensamento instituinte na filosofia de Roberto Esposito. Pretendemos sustentar a tese de que a biopolítica, uma vez relacionada com o pensamento, pode fazer emergir práticas éticas e políticas de proteção e de expansão da potência da vida. À medida que a biopolítica afirma a potência humana e o pensamento amplia esse imaginário simbólico, possibilita-se a instituição de práxis sociais e de agires políticos singulares e coletivos. Para sustentar e apresentar essas ideias, o artigo organiza-se em dois momentos: (i) inicialmente, buscamos reconstruir a reflexão de Esposito sobre a biopolítica e sobre a construção do paradigma imunitário. Assumiremos como pano de fundo a interlocução do pensador italiano com Michel Foucault, destacando os contrastes e tensões que levaram Esposito àquilo entendido por ele como a chave hermenêutica que completa a explicação da biopolítica; (ii) em seguida, objetivamos mostrar como a “caixa preta da biopolítica” pode deslocar o pêndulo imunitário afirmativo da vida e, junto à potência do pensamento, pode instituir imaginários e práxis sociais.
Palavras-chave: Biopolítica afirmativa, Esposito, Pensamento instituinte, Práxis, Vida.
Abstract: The main goal of this paper is present and articulate biopolitics affirmative and instituint thought categories in Roberto Esposito’s philosophy. We intend to support the thesis that biopolitics, once contrasted with thought, could open the scenery to emerge ethics and politics protection practices and expansion of human life power. At the time biopolitics affirms the human power and the though expands the symbolic imaginary, they enable the institutions of praxis and singular or collective actions. In viewing to support and present these ideas, this paper has the following structure: (i) firstly, we try rebuild the Esposito’s reflection on biopolitics and his understanding on immune paradigm. We will be taking as background the interlocution between Esposito and Foucault, highlighting the tensions and contrasts which led Esposito into a hermeneutics key that supplements biopolitics explanation. (ii) secondly, we aim to show how “black box of biopolitics” can shift the affirmative immune pendulum of life and, along with the thought, can institute imaginaries and social praxis.
Keywords: Affirmative biopolitics, Esposito, Instituint Though, Praxis, Life.
Como citar: COSTA, W. Vitam instituere: biopolítica afirmativa e pensamento instituinte em Roberto Esposito. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 198-220, jan./abr. 2022
Introdução
Roberto Esposito é um dos herdeiros mais reconhecidos da filosofia de Michel Foucault, tanto no sentido metodológico quanto no plano investigativo-crítico. Desde seus primeiros trabalhos (1980) até suas obras mais recentes (2021), o autor italiano mostra seu interesse em tomar Foucault como um interlocutor essencial ao seu projeto filosófico. Principalmente por causa da leitura biopolítica que o pensador francês realizou ao longo de sua vida, Esposito se propõe a investigar as fendas abertas deixadas nessa compreensão, como uma oportunidade hermenêutica de interpretar, genealogicamente e criticamente, o paradigma político Ocidental. Particularmente, a questão que o autor italiano se encarrega de analisar pauta-se naquilo que, para ele, escapou aos olhos de Foucault, quando este investigou as práticas de governamentalização da vida humana. Ao delinear a biopolítica como um conjunto de práticas, discursos, instituições, etc., destinado à gestão da condição biológica do ser vivo espécie (FOUCAULT, 1976, p. 183; 1999a, p. 131; 1977, p. 216; 1999b, p. 289), Esposito acredita que Foucault percebeu na relação entre política e vida uma forma na qual a primeira, para produzir subjetividade, teria de investir na vida. O obstáculo que o pensador italiano percebe nessa escolha reside no fato de que a biopolítica tenha uma aparência apenas constritiva sobre a vida humana. O poder governa a vida através de uma força externa a ela e a vida se submete ao poder porque não consegue ultrapassar a malha dessa força. Em outros termos, “ou a política é retida por uma vida que a prega ao seu inultrapassável limite natural; ou, pelo contrário, é a vida que fica presa, e é presa, de uma política que tende a aprisionar sua potência inovadora” (ESPOSITO, 2004, p. 34; 2010a, p. 55).
Para Esposito, quando Foucault definiu a biopolítica como um “um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc.” (FOUCAULT, 1977, p. 217; 1999, p. 291), ele não observou que essa tecnologia de poder não poderia ser externa à vida, como se ela apenas fosse um objeto manipulável pelos dispositivos do biopoder. A introdução do paradigma imunitário para responder a esse vazio semântico é a inovação proposta por Esposito, como uma forma de pensar a biopolítica dentro de um cruzamento incindível entre vida e política, bios e nomos, objeto e sujeito, negação e afirmação (ESPOSITO, 2004, p. 54; 2010a, p. 74). Diante dessa introdução, o problema norteador do artigo consiste em investigar como a biopolítica, uma vez relacionada com o pensamento, pode fazer emergir práticas de proteção e expansão da vida humana. Buscamos sustentar a hipótese de que, nesse paradigma, uma das faces da biopolítica — a afirmativa — não apenas conserva a vida humana, mas, também, a produz e institui imaginários singulares e coletivos, além de práxis sociais. Para demarcar nossa hipótese, (i) inicialmente, buscamos reconstruir a reflexão de Esposito sobre a biopolítica e sobre a construção do paradigma imunitário. Assumiremos como pano de fundo a interlocução do pensador italiano com Michel Foucault, destacando os contrastes e tensões que levaram Esposito àquilo entendido por ele como a chave hermenêutica que completa a explicação da biopolítica; (ii) em seguida, objetivamos mostrar como a “caixa preta da biopolítica” pode deslocar o pêndulo imunitário afirmativo da vida e, em conjunto com a potência do pensamento, pode instituir imaginários e práxis sociais.
Biopolítica e paradigma imunitário
A introdução dos conceitos “biopolítica” e “biopoder” foi realizada por Foucault durante uma de suas conferências proferidas no Instituto de Medicina Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1974. Ainda bastante incipientes, esses neologismos pareciam desenhar uma tentativa crítica de mostrar como o poder, desde o século XVII e, sobretudo a partir do XVIII, passou a investir sobre a vida humana. Em boa medida, Foucault sistematizou suas ideias de maneira a explicar como essa nova ordem médico-social estava entrelaçada aos dispositivos de vigilância e controle dos sujeitos. A respeito disso, a genealogia e as teses do autor cruzam-se ao longo do último capítulo de História da sexualidade I: vontade de saber (1976) — intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida” —, reatando os passos abertos tanto nas conferências de 1974 quanto naqueles de Vigiar e punir (1975). No cruzamento de todos esses escritos, Foucault buscou mostrar como um poder anatômico se difundia sobre as sociedades modernas, como uma forma solvente do antigo modelo de soberania e como abertura inexorável a uma política sobre o corpo vivo — a biopolítica (FOUCAULT, 1975, p. 138; 1987, p. 126; 1977, p. 215; 1999b, 288). Através de uma nova física do poder, de uma física minuciosa e microcirculante, o pensador francês chegou à conclusão de que essa nova forma tensionou a aproximação política com a vida biológica, esquadrinhando uma superfície na qual o homem não é apenas um animal vivo capaz de existência política — como fora em Aristóteles e nos antigos —, mas, propriamente, um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão (FOUCAULT, 1976, p. 188; 1988, p. 134). Assim, do súdito ao corpo dócil e disciplinado e à vida controlada e regulamentada, o trabalho de Foucault consiste em mostrar o desenho dessa nova analítica do poder que entende a importância de produzir a vida ao longo de sua existência biológica. Ou seja, ao contrário de um regime constituído sobre o direito de produzir a morte, é preciso direcionar-se para o campo da vida como objeto político e da política como terreno produtivo desse elemento biológico (FOUCAULT, 1976, p. 178; 1988, 1999a, p. 128).
Para Foucault, essa espécie de tecnologia produtiva apareceu na época clássica não apenas como uma resposta ao modelo da soberania, mas, principalmente, como uma necessidade expansiva da própria política. O poder se direcionou a um objeto muito mais fértil, de maneira que vigiá-lo e controlá-lo seria bem mais viável à ótica econômica dos governos. Diferentemente da escravidão, que consistia numa relação de apropriação dos corpos, e também da domesticidade e da vassalagem, formas codificadas da relação de submissão, a preocupação dessa nova tecnologia de poder preconizou a ótica de que o corpo humano seria mais obediente quanto fosse mais útil, e inversamente (FOUCAULT, 1975, p. 139; 1987, p. 127). Por causa disso, treiná-lo, esquadrinhá-lo, fabricá-lo, etc., por instituições diversas seria o passo inicial para capturar sua energia e potência e fazer delas uma relação estrita de sujeição. Se o objetivo dessa nova forma política fosse extrair a máxima aptidão dos homens, não bastaria apenas investir sobre seus corpos individuais disciplinas institucionais, mas seria imprescindível se dirigir à multiplicidade dos indivíduos e aos processos inerentes às suas vidas: a natalidades, a morte, as doenças, a fome, a expectativa de vida, os partos (FOUCAULT, 1977, p. 216; 1999b, p. 289). Sobre o corpo e, principalmente, direcionada à vida em sua completude e complexidade, a tecnologia de poder voltada ao biológico — a biopolítica — surgiu com o escopo de trazer previsões e estatísticas, de constituir métricas globais e estabelecer mecanismos de regulação que fixam uma média de equilíbrio entre os extremos.
Na aula de 17 de março de 1976, de Em defesa da sociedade, Foucault articulou suas posições anteriores e explicitou que a sobreposição entre as tecnologias disciplinares e os mecanismos regulatórios fez com que uma organização agora muito mais aguda atravessasse o corpo e a vida a partir de mecanismos de normalização produzidos ora pelo conjunto orgânico-institucional, ora pelo Estado. No sentido empregado pelo autor, o processo de normalização tem como referência uma norma responsável por assegurar o funcionamento da sociedade dentro de parâmetros estatísticos e de métricas globais. A norma cria uma referência normalizadora das condutas e estas se reproduzem homogeneamente sobre os sujeitos e populações. Ao normalizar as condutas, pensamentos, comportamentos, desejos, a norma tende a disciplinar o indivíduo e a regulá-lo a partir de uma força que lhe arrebata por fora: enquanto a norma disciplinar torna o sujeito dócil e útil, porque compõe os indivíduos em função de objetos determinados, a norma reguladora o subjetiva dentro de padrões massivos e de limites seguros (FOUCAULT, 2004, p. 58; 2008, p. 75). A regulamentação através da norma faz com que a política não apenas esteja vinculada à vida, mas seja ela mesma sua fonte de produção. Nos termos da biopolítica, a preocupação com a vida humana tem por trás dela a necessidade do governo populacional dentro de padrões securitários. Tudo que a ameaça, no sentido de sua extensão produtiva, ameaça também a ordem social, e uma vez que ela é ameaçada, existe a iminência de uma reconfiguração fora das métricas governamentais.
O fio condutor que Foucault desenvolveu em seus estudos genealógicos a respeito da biopolítica despertou desde o início dos anos 90 o interesse do pensador italiano Roberto Esposito. Dentro de suas reflexões, Esposito reconhece a importância da tese foucaultiana, mas problematiza o fato de que o efeito da biopolítica tal qual empregado em História da Sexualidade I e Em defesa da sociedade tenha fechado o campo hermenêutico da discussão. Para o autor, embora Foucault tenha entendido com clareza que a biopolítica tinha como fundo e forma a relação divergente entre a subjetivação e a morte, ele delineou uma fina camada impossível de mediação entre essas duas categorias: “ou o poder nega a vida ou aumenta o seu desenvolvimento; ou a violenta e exclui ou a protege e reproduz; ou a objetiva ou a subjetiva — sem meio termo ou pontos de passagem” (ESPOSITO, 2004, p. 54; 2010a, p. 74). A noção de biopolítica parece não conseguir libertar-se dessa justaposição e, assim, parece operar constantemente como uma máquina que não pode girar para uma direção enquanto a outra está em movimento. Esposito percebe nessa divergência um “ponto cego” na biopolítica de Foucault, pois, para ele, as duas posições — a subjetivação e a morte — criam uma analítica do poder que faz com que ou a política seja retida por uma vida inultrapassável ao seu limite natural ou, pelo contrário, faz com que a vida fique presa e se torne a presa de uma política que tende a aprisionar a sua potência criativa (ESPOSITO, 2004, p. 34; 2010a, p. 55).
Com o objetivo de preencher o vazio semântico que continua aberto no texto foucaultiano, Esposito encontrou no paradigma da imunização a chave hermenêutica responsável por articular as noções de vida e política a partir do que chamou de “caixa preta da biopolítica” (ESPOSITO, 2002, p. 139) ou de “enigma da biopolítica” (ESPOSITO, 2004, p. 38; 2010a, p. 55). Inicialmente, seu interesse consiste em explicitar que não existe um poder externo à vida, assim como a vida não se dá nunca fora do eixo das relações de poder. Dentro desse ponto de vista, a política não descobre a vida em certo momento — ainda que historicamente passe a controlá-la mais de perto a partir dos séculos XVII e XVIII —, posto que ela desde sempre se utiliza da política como instrumento de sua própria conservação. A partir dessa primeira tese, que intui todo o paradigma político Ocidental numa espécie de relação intrínseca com a política[2], Esposito retorna à bifurcação foucaultiana para contestar a possível justaposição ou sobreposição dos fatores. A novidade de sua tese é pensar a biopolítica como um enigma que articula as posições afirmativa e negativa como dois componentes de um único incindível. Ou seja, interpretar a biopolítica dentro de um prisma semântico segundo o qual a conservação e a destruição colidem dentro de uma articulação onde a vida se conserva através do poder, ainda que de modo negativo. A pergunta a se fazer diante disso gira em torno da possibilidade de entrecruzar essas duas faces antinômicas, afinal: como seria possível pensar uma relação biopolítica na qual a vida seria conservada e expandida através da negação?
Para responder a esse questionamento, Esposito reconduz as pesquisas de Foucault ao marco do paradigma imunitário. O paradigma imunitário[3] compreende o conjunto de processos políticos que conservam a vida através de tecnologias de negação protetivas que salvaguardam e afirmam a força vital dos seres humanos. À medida que as comunidades originárias (communitas) se constituíam em função de uma doação excessiva de si ao outro, os indivíduos aniquilavam suas subjetividades numa espécie de coletividade de doações infindáveis (munus). O propósito da imunização é intervir nesse processo para produzir relações nas quais os homens possam constituir suas singularidades sem a aniquilação de suas subjetividades. A imunização dispensa o sujeito da obrigação originária (munus) e o protege contra os riscos de sua destruição. A dispensa dos laços comunitários não é fácil, porém. Para dar conta de interromper esse ciclo que imprime força contra o sujeito, a estratégia imunitária precisa penetrar no nível mais profundo onde vida e política se correlacionam. Com relação a isso, nenhum momento histórico foi tão explícito quanto aquele da modernidade. Durante aquele período, o paradigma imunitário transformou-se em grande estratégia política: as categorias da soberania, da propriedade, da liberdade, dos direitos, foram senão criações ventiladas pelo aparato imunitário para proteger a vida humana. O conteúdo paradoxal disso é que todos os dispositivos de conservação emergem penetrados por doses de negação dos próprios recursos vitais. A soberania, por exemplo, não deriva de um espaço diferente do medo que acurrala a vida no estado natural. Durante o pacto contratual, cada indivíduo transfere ao Estado o direito legítimo de protegê-lo, mas, também, de violentá-lo. Para conter o estado natural da guerra de todos contra todos — o estado da pura negação da vida —, o Estado é constituído como um protetor legítimo que absorve o conflito porque protege os súditos através de seu poder coativo.
Para sustentar essa tese, o retorno à aula de 4 de fevereiro de 1976, de Em defesa da sociedade, parece ser crucial. Quando Foucault analisou a teoria hobbesiana, ele identificou que o princípio da soberania estava calcado na renúncia dos indivíduos aos riscos da vida: “a vontade de preferir a vida à morte: é isso que vai fundamentar a soberania” (FOUCAULT, 1977, p. 82; 1999b, p. 110). Essas palavras são importantes para Esposito, pois, para ele, é nesse instante que Foucault deixa escapar a chave interpretativa do paradigma imunitário. A força do soberano em conservar negando a vida dos súditos é também a garantia da afirmação da vida do súdito. Nos dois eixos, a tensão permanece acesa, uma vez que, por perspectivas distintas, está em questão uma política de conservatio vitae. A propriedade, a liberdade e os direitos também são categorias imunitárias. À medida que salvaguardam a vida humana e suas posses, elas introduzem mecanismos que negam sua expansão vital. Para conservá-las, os dispositivos imunitários inserem um terceiro elemento responsável por subtrair de cada sujeito a liberdade e o direito naturais. A garantia de cada uma dessas categorias está consignada à força de sua subtração, pois, em cada caso, só pode existir a proteção a partir de um limite negativo ou violento sobre eles mesmos. Assim, para garantir o direito, por exemplo, os sujeitos o transferem a uma pessoa fictícia, que, através do próprio direito, pode violentá-los ou limitar seus direitos. Trata-se de uma proteção negativa que “salva, assegura, conserva o organismo, individual ou coletivo, a que é inerente — mas não de maneira direta, frontal; submetendo-o, pelo contrário, a uma condição que ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a força expansiva” (ESPOSITO, 2004, p. 54; 2010a, p. 74).
Ao se voltarem para dentro da comunidade originária, os dispositivos imunitários liberam o munus constitutivo da relação comunal, pressupondo exatamente aquilo que nega — e exatamente por isso constitui o processo de im-munitas. O quadro imunitário dissolve o nexo comum entre os indivíduos e os põe sobre um terreno no qual a prática terapêutica e o ordenamento político se entrecruzam através de uma ótica de “cuidado” (ESPOSITO, 2002, p. 143). Mesmo que essa não seja uma espécie de “cuidado” no sentido estrito do termo, Esposito destaca que o interesse político sobre a vida foi gradativamente alcançado quando ele foi entrelaçado à ótica artificial das terapias imunitárias. Semelhante ao corpo doente que recebe fármacos que contêm efeitos colaterais capazes de matar, mas que ainda assim passa pela ótica do cuidado, o modelo político “cuida” no instante que é também um risco. A emergência do paradigma imunitário como chave hermenêutica para a biopolítica tem um de seus desfechos no momento em que estabelece uma inversão entre a negação do risco comunitário para o risco como proteção imunitária. Enquanto as comunidades originárias possuem o risco da aniquilação natural porque anulam a subjetividade, as sociedades imunizadas possuem o risco artificial como o instrumento de conservação e de “cuidado” dos sujeitos, ainda que possam hipertrofiar e isolar essas próprias subjetividades. Nessa forma de pensar, o “cuidado” é vinculado à subjetividade contra o ônus que lhes pesa, mas, para isso, precisa ativar a reação imunitária que garante a segurança do sujeito sob o preço de desnaturalizá-lo (BAZZICALUPO, 2017, p. 137).
Esposito acredita que Foucault enxergou elementos biopolíticos já na filosofia de Hobbes — ainda que fosse clara a regência do direito de produzir a morte por parte do soberano —, mas entende que ele não ultrapassou a barreira que limitava o poder em se conectar com os dispositivos imunitários. Todo o pano de fundo que segue daí em diante culmina com a reflexão foucaultiana de que uma sociedade guiada por dispositivos de segurança e por tecnologias disciplinares e de controle tornou-se o emblema do governo da vida humana. Como explicitado anteriormente, os dispositivos imunitários se revestem das prerrogativas do cuidado e isso justifica os padrões, instrumentos, instituições, políticas, etc., criadas para adestrar e controlar os corpos individuais e as massas populacionais. O ponto crítico dessa análise é que, para Esposito, essas tecnologias de poder podem assumir duas implicações diretas: a primeira delas no nível da subjetivação e a segunda no plano da extensão do poder. No que tange às subjetividades, o processo imunitário produz uma combinação que faz com que os sujeitos se submetam a elas para conservarem suas próprias vidas. A imunização não é externa ao processo de subjetivação, senão é propriamente parte constituinte de sua tensão mais íntima. As subjetividades se constituem dentro de uma ótica em que a imunização produz formas de assujeitamento para a salvaguarda da vida. O risco desse processo de subjetivação é que ele pode tanto aniquilar por completo a alteridade, já que dissolve a relação entre os homens e cria um elo identitário do qual não existe nada mais do que qualidades partilhadas (nacionalidade, cultura, língua), quanto pode se reduzir aos processos de subjetivação imunitários.
Com relação à instância do poder, o risco tende a ser ainda mais letal. O excesso de doses imunitárias “fecha, circunscreve, calcula para prevenir a dissolução das formas no fluxo vital, mas, agindo assim, mortifica a vida” (BAZZICALUPO, 2017, p. 139). Nesse trajeto, a biopolítica é consumida pelo impulso da morte, de maneira que seu propósito passa rapidamente da conservação da vida a partir da salvaguarda dos indivíduos para a conservação de um número de sujeitos em função da aniquilação de “ameaças humanas”. O poder de fazer viver se mantém estável à medida que se ocupa da morte daqueles que ameaçam o organismo político. Quando opera por essa via, o paradigma imunitário subtrai da biopolítica o axioma que vincula a existência da vida à sua produção. No lugar desta última, os dispositivos imunitários introduzem a morte como uma categoria central àquela. A morte passar a ser constitutiva da produção e da expansão da vida, como uma fórmula que traz o antigo direito de morte do soberano para dentro da biopolítica. Agora, a produção da vida é vinculada à da morte e a biopolítica é convertida em tanatopolítica. A tanatopolítica faz viver porque faz morrer, ela se utiliza da aniquilação[4] de sujeitos como ação imunitária essencial para a salvaguarda de outros. Em função de sua máxima proteção imunitária, a tanatopolítica sufoca o organismo político progressivamente até que ele definhe e, no mesmo caminho, enclausura a vida num circuito impossível de sair. Por um lado, enquanto o sistema político é levado à implosão interna pelo excesso de tecnologias jurídicas e pelo próprio esvaziamento da política, do outro, a imunização neutraliza a força expansiva da vida dos sujeitos e sufoca o próprio munus. Contra aquilo que é capaz de gerar novas potências vitais, a tanatopolítica suprime a vida não apenas pela morte direta, mas, também, pelas vias indiretas, tais como: a clausura do corpo, a supressão de nascimentos, a excessiva normatização da vida, a penalização, etc. Todo esse movimento degenerativo da bíos produz uma antinomia aguda no cerne político: trata-se de utilizar a negação como violência conservadora da política sobre a vida.
Para Esposito, o paradigma imunitário é paradoxal porque opera em vias antinômicas articuladas. O mesmo poder que afirma a vida pode ultrapassar a camada fina que a separa daquele e negá-la. Não há como subtrair da máquina política nenhuma das categorias imunitárias: afirmação e negação são constituintes dos organismos sociais. Isso indica que o pêndulo imunitário se move com o deslocamento das forças. Se os dispositivos imunitários excedem o limiar do “cuidado” da vida, então o risco da aniquilação hipertrófica é grande. Quando, por outro lado, os dispositivos imunitários protegem a subjetividade e abrem espaço para a alteridade e a exposição dos sujeitos, então os mecanismos de imunização trabalham como fronteiras abertas de constituição humana e de interação social. A tensão entre política sobre a vida (biocrasia) e potência da vida (biopotência) não desaparece dessa cena, o que significa dizer que a todo instante os organismos políticos são atacados e protegidos, recebem fármacos e venenos (ESPOSITO, 2003, p. 127). Esposito considera que o paradigma imunitário oferece essa inovação hermenêutica à biopolítica. O paradigma imunitário compila as antinomias como condutoras dos dispositivos de poder e, assim, realça a tensão que é constitutiva daquela. Os processos imunitários se utilizam da biopolítica como a técnica de penetração e ventilação dos fármacos no organismo social, e a biopolítica se utiliza dos processos imunitários como os instrumentos oportunos para controlar os indivíduos e populações a partir de sintagmas de “cuidado” e “segurança”.
Afirmatividade e pensamento instituinte
Sem abdicar da condição que constitui o organismo social na forma de proteção negativa, o desafio de Esposito é pensar uma estrutura imunitária na qual a biopolítica não se converta em tanatopolítica, nem mesmo seja prisioneira dos dispositivos imunitários. Para sustentar sua tese, o autor precisa encontrar uma saída de dentro da “caixa preta da biopolítica” que não resulte na aniquilação total da vida humana por falta ou por excesso de mecanismos protetivos. A dificuldade de encontrar uma retirada dessa estrutura cai no velho paradoxo do paradigma imunitário: não há como existir afirmação sem existir negação. Ou seja, o levante de uma biopolítica afirmativa sempre terá em última instância uma propulsão também negativa que a puxa para baixo. Mas como resolver esse impasse? A primeira saída que Esposito ressalta sobre aqueles que procuram desviar do paradigma imunitário é a defesa do retorno à comunidade originária. Para esses, a comunidade protegeria os indivíduos dentro de uma bolha afirmativa que repeliria a negatividade. Essa via não parece muito coerente com a proposição de Esposito, já que, para ele, ela resultaria em um limite no qual a “caixa preta da biopolítica” implodiria o sistema imunitário e as subjetividades se dissolveriam por completo. A segunda saída e a hipótese escolhidas pelo autor giram em torno dos próprios processos imunitários, dentro de uma margem onde o poder imunitário é intuito para a expansão da potência humana. Para isto, o autor considera que os dispositivos imunitários traçam uma linha móvel que “inscreve na própria política a potência inovadora de uma vida repensada em toda a sua complexidade e articulação” (ESPOSITO, 2004, p. 172; 2010a, p. 224). Isto é, a conservação não é entregue à biopolítica como um dispositivo externo à vida, mas é repensada para encontrar nas singularidades a potência afirmativa das subjetividades e da alteridade. Nessa encruzilhada, a potência humana vitaliza a política regenerando-a sem ser engolida pelo efeito reativo do processo imunitário, de modo que estes são tensionados à amenização de suas funções (LEMKE, 2018, p. 128).
A torção afirmativa que a biopolítica revela nesse cenário é importante no projeto filosófico de Esposito. Mais uma vez, para demarcar distância do pensador francês, o autor italiano considera que a noção de afirmatividade não é explícita no léxico foucaultiano, embora esteja tracejada de modo transversal ao longo de suas reflexões. Para Esposito, mesmo que Foucault tenha encontrado na resistência uma chave para reconceber a vida no nível do enfrentamento do poder e na abertura de práticas éticas de existência, ele o fez subtraindo a biopolítica. Esse fato incomoda Esposito porque, em sua concepção, a realidade política que se dá nos corpos, através dos corpos, sobre os corpos, entra num horizonte onde o exercício de si parece não coincidir com a biopolítica. Mais uma vez, é como se a carga semântica negativa presente na biopolítica ressoasse mais alto e imprimisse força para sobrepor ou justapor a política sobre a vida. Crítico dessa leitura, Esposito coloca questões sutis em seus textos, fazendo referência ao fato de que o pensador francês, ainda que tenha dito sobre a condição produtiva do poder, não tenha considerado o papel da biopolítica no quesito da afirmatividade ética e política. Ora, se o poder é produtivo e se tal produção irrompe através da vida, a biopolítica não pode desaparecer da cena de discussão. Para Esposito, a questão nodal é que Foucault, por ter se utilizado poucas vezes da nomenclatura da biopolítica e, principalmente, por não a ter colocado em suas últimas obras, introduziu uma fenda entre vida e poder que afastou a possibilidade de levar adiante uma ética do cuidado de si no próprio nível afirmativo da biopolítica. Ao entender o caráter produtivo, móvel e circular do poder como inerente ao próprio poder, o pensador italiano acredita que Foucault concebeu sua analítica ao ponto de não poder ultrapassá-la, a não ser por um estágio posterior, ainda que não sequencial, da ética. Daí o prelúdio de que a estética da existência crie subjetividades nos poros do Estado e das instituições, como modos de vidas produtivos que articulam novas formas de poder a partir de contracondutas.
Conforme Esposito, as contracondutas reconduzem os sujeitos para o plano do poder, como uma parte que os leva àquele lugar porque os faz desarticular seus opositores. Nesse sentido, as contracondutas interrompem a extensão do poder estatal e institucional, mas não a partir do uso da força que escapa deles. As contracondutas criam outras formas de poder, como se fosse preciso esperar a fragilidade da grande política ou como se fosse apenas uma alternativa àquilo que poderia ser a norma de vida. Trata-se do problema de fundo levantado pelo pensador italiano: ou o poder captura a vida ou a resistência dilui o poder externo. Dessa leitura que faz de Foucault, Esposito objetiva apresentar a tese de que o poder sobre a vida e a potência da vida — seja na forma das resistências, seja com as contracondutas — se chocam incessantemente, abrindo e fechando vias. Essa dimensão conflitiva parece estar bem representada no paradigma imunitário e parece ser ela mesma o impulso necessário para a produção afirmativa da vida. Por mais que o pêndulo imunitário se locomova também para a direção negativa, sua possibilidade afirmativa não deixa de existir, sobretudo, no caminho da conservação humana e na afirmação da potência.
Dentro de sua genealogia, Esposito destaca três dimensões[5]explicitamente afirmativas: o corpo, a natalidade e a norma. Desde Nietzsche, o corpo é a realidade mais afirmativa e vital que existe no mundo. Nietzsche pensa o corpo como o ponto mutável da multiplicidade e da tensão das forças contrárias. Por entre ele e com ele, a vontade de potência afirma o ideal conservador da vida humana, no sentido mais próprio da vida política. Nisso está o desenho da perspectiva biopolítica: ainda que, em parte, muitos autores façam uma leitura passiva do corpo, com a qual se entende que tudo parte de seu controle e de sua manipulação externa, não há como deixar a outra face da biopolítica, a afirmativa, fora da contestação de que o mesmo corpo se investe de potência e age afirmando a si próprio. Para Esposito, a expressão potencial que vem do corpo desafia a lógica negativa ou tanatopolítica que se expressa sobre a vida. Mas sua importância não se reduz ao aspecto fisiológico: o corpo ocupa uma dimensão carnal no mundo, ou melhor, ele é a fonte de acesso da irredutibilidade da carne à vida natural. Na biopolítica afirmativa, o corpo permite o acesso a uma filosofia da carne[6], como um matiz que pensa a carne não como objeto, mas como a própria vida. A carne é a membrana do corpo que não é uma com ele, porque excede as suas fronteiras ou se subtrai à sua clausura (ESPOSITO, 2004, p. 187; 2010a, p. 226). A carne é a instância ontológica que constitui a multiplicidade da vida na forma ético-política do corpo.
O elemento produtivo da ontologia da carne, da ética e política do corpo se conecta com a afirmatividade da vida e do vivente na forma da natalidade. Seguindo principalmente os passos de Arendt, Esposito afirma que o nato apresenta uma diferença irredutível em relação a todos os que o precedeu. À medida que “nascemos iguais na absoluta diferença e distinção em relação aos outros” (ARENDT, 2009, p. 114), o nato inaugura a possibilidade do inesperado e do impensado, como se ele, ao acessar o mundo pela primeira vez, rompesse com a fração da morte e permitisse a afirmação da bíos carnal. A natalidade está ligada ao corpo, à sua condição biopolítica de existir enquanto ser humano e, principalmente, está ligada à política da carne, com a qual se insere num eixo afirmativo que assegura a diferença a partir da existência. A carne que liga mãe e nato é a mesma carne que dissipa o elo entre eles: como no processo gestacional, em que apenas por causa da diferença se produz uma relação imunitária, a carne que produz uma relação comum se justifica a partir das diferenças carnais de cada uma das vidas. A natalidade reforça isso e reforça porque cria um vínculo comum a partir das diferenças. Esse é o primeiro munus que o abre àquilo em que não se reconhece enquanto tal, mas que apenas conhece a carne do vivente como o emprego da vida a um mundo comum. Para Esposito, a natalidade é precisamente “o limiar — o lugar inlocalizável no espaço ou o momento inassimilável ao fluxo linear do tempo, no qual o bíos se põe à máxima distância do zoé ou no qual a vida se ‘forma’ numa modalidade drasticamente distante da sua nudez biológica” (ESPOSITO, 2004, p. 197-198; 2010a, p. 252).
Ora, mas se as políticas da carne e da natalidade podem afirmar a vida humana na esfera de sua ocupação espacial e espiritual, como pensar a potência biológica em contraste com a ontogênese e com o escopo imunitário existente? O terceiro elemento afirmativo que Esposito encontra e que responde a essa questão é a categoria de norma de vida. Sem abolir suas preocupações com a carga semântica negativa que a noção de norma carrega — sobretudo após a normatização excessiva da vida pelo nazismo — Esposito busca extrair do ponto oculto da norma uma condição que exceda todas as grandes filosofias jurídicas modernas (normativismo, jusnaturalismo, positivismo e decisionismo). Nesse ponto, nem Hobbes, nem Kant, nem Kelsen e Schmitt dão conta de operar um giro transversal na filosofia jurídica, para se ocuparem do sentido central da norma de vida. São Espinoza e, depois, Canguilhem aqueles que criam uma linha exterior a essa tradição, a ponto de produzir um nó de imanência recíproca entre norma e natureza, entre vida e direito. Aquilo que se coloca na linha imanente não é a exclusão: ou vida ou norma, já que o que está em pleno jogo é o permanente devir das antípodas. Fora do formalismo soberano e muito além do biologismo substancialista, Espinoza e Canguilhem apostam na norma produzida pela vida. A modalidade intrínseca que a vida assume na expressão da sua incontível potência de existir cria uma norma inerente à sua vivência. “Ao contrário de todas as filosofias imunitárias que deduzem a transcendência da norma da exigência de conservar a vida e que condicionam a conservação da vida à sujeição à norma, Espinoza faz desta última a regra imanente que a vida se dá a si própria para atingir o ponto máximo de sua expansão” (ESPOSITO, 2004, p. 215-216; 2010a, p. 261-262). Desse ponto de vista, a apresentação de Canguilhem parece ser fundamental nessa costura, pois, como sublinha Esposito, qualquer forma de existência, mesmo que desviante, tem a mesma legitimidade de viver segundo as suas possibilidades. “A norma constitui-se assim como o modo singular e plural que de vez em quando a natureza assume em toda a gama das suas expressões” (ESPOSITO, 2004, p. 215-216; 2010a, p. 261-262). O que constitui a norma é a pluralidade de normas produzidas na imanência prática, o que implica não na existência de uma norma fundamental, nem em um critério normativo único que submete a vida de cima para baixo. O processo de normatização é o resultado nunca definitivo do confronto entre a norma externa e a norma produzida pela própria vida, entre a normatização como processo de controle sobre a vida e a norma de vida como ação ético-política do vivente (ESPOSITO, 2004, p. 217; 2010a, p. 264).
Corpo/carne, natalidade e norma de vida são exemplos de como a biopolítica pode se mover em direção à afirmatividade. Para Esposito, essas categorias são pontos de tensão, pois ameaçam muitas lógicas imunitárias. Os nazistas alemães, por exemplo, captaram bem essa posição no instante em que, para conservar o povo alemão, aprisionaram o corpo dos outros povos, impediram os nascimentos e desenvolveram teias jurídicas excessivamente normatizadoras sobre a vida deles. Nesse caso, a negação da afirmação da vida, isto é, do corpo, da natalidade e da forma de vida dos povos, correspondeu à salvaguarda da vida do povo alemão. Como apontado anteriormente, essa antinomia biopolítica força o limite do poder para o campo tanatopolítico, de maneira que a marca da afirmatividade é totalmente engolida pela negatividade pura. A tensão afirmativa não desaparece, porém. A multiplicidade de corpos, a natalidade e as normas criadas pelos sujeitos em suas vivências continuam existindo como rupturas éticas, políticas e ontológicas. Embora o nazismo tenha dizimado milhões de pessoas, suas práticas atrozes não conseguiram impedir a continuidade da afirmação do ser humano, seja isso traduzido na forma da memória como potência histórica, seja isso traduzido como resistência ético-política para o presente e o futuro.
Esses deslocamentos são importantes para interpretar a antinomia biopolítica, mas no caso da forma afirmativa, resta ainda uma necessidade prática de articular suas categorias no plano da imanência, a saber: a proposição de práxis instituintes. Para Esposito, a biopolítica afirmativa cria espaços ético-políticos de expansão da vida humana no momento em que institui novas práxis sociais. Através do pensamento, a instituição surge como um movimento que, primeiro, cria um imaginário simbólico capaz de constituir novas formas de vida e, em seguida, mobiliza as forças políticas afirmativas para instituir novas práxis sociais. Nesse sentido, o pensamento instituinte cria e é o resultado da afirmação biopolítica. Na forma do imaginário simbólico, ele coloca em tensão a potência de instituir novas formas de imaginários, de instituições, de práticas singularidades e coletivas, de subjetividades. O pensamento instituinte constitui uma imagem real ou possível e essa imagem é transformada, pelas lutas sociais, em inúmeros movimentos instituintes. De cada uma dessas imagens segue uma linha de discurso instituinte e é tal discurso que faz com que o social se abra para e na dimensão do político. O pensamento cria simbolicamente a instituição e a ação põe em movimento esse simbólico social na forma inacabada do instituinte. Seguindo os passos de Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, Esposito explicita que o pensamento instituinte produz um labirinto simbólico no qual emerge a autonomia tanto das singularidades quanto das redes, dos coletivos, das comunidades. A autonomia é o princípio filosófico que libera os sujeitos para instituir práxis sociais. Ela transforma a liberdade imunitária — sempre entendida em relação a algo: liberdade de, para, que — em uma categoria própria dos sujeitos, de suas imaginações, criações. Por meio dela, as singularidades e as multiplicidades podem criar, renovar e destituir imaginários e práxis sociais. A autonomia não é uma categoria determinada exteriormente por princípios políticos ou jurídicos, mas é propriamente uma tensão agonística criada pelo e no próprio humano em seu imaginário e vida sociais.
Com esse ponto de vista, Esposito sublinha que o pensamento transforma o sujeito e o constitui em agente singular e múltiplo da práxis. O pensamento possui um terreno não ocupável exclusivamente por ninguém, o que significa dizer que ele pode instituir singulares e múltiplos a um mesmo instante (ESPOSITO, 2013b, p. 162-163; 2019, p. 189). Uma vez que articula razão e imaginação, o pensamento desencadeia uma série de operações que ativam o agir humano. A ação humana institui uma práxis ou várias práxis interligadas pela potência instituinte do pensamento. A práxis, “na sua expressão criativa, não remete a um sujeito exterior ao seu movimento. Torna-o, aliás, exterior a si mesmo, como um vetor móvel que, para produzir a realidade, deve extravasar os próprios confins” (ESPOSITO, 2010b, p. 170; 2013a, p. 209). A práxis instituinte remete a um processo de subjetivação a partir do próprio ato instituinte. Ao instituir algo, o sujeito forma e transforma os espaços e a si mesmo em relação à sua maneira e estado anteriores. A práxis que emerge daí é “criação, ao mesmo tempo social, jurídica e política, de novos processos instituintes, através de associações, organizações, redes, destinadas a alargarem, em todos os âmbitos, o círculo de inclusão social” (ESPOSITO, 2021b, p. 36). Conforme se comporta como “coletivo, multíplice, plural — impessoal, irredutível à personalidade única do Estado soberano” (ESPOSITO, 2021a, p. 102-103), a práxis instituinte afirma a potência humana e esta, no tocante à sua constituição ontológica, institui ética e politicamente a si mesma.
No centro do paradigma imunitário, a relação entre biopolítica e pensamento instituinte mobiliza a afirmação da potência humana. Por meio do pensamento, a emergência de novas práxis significa a interação entre razão e ação, imaginação e real, poder e potência. Para Esposito, a dimensão instituinte realça o ponto afirmativo da biopolítica no pleno movimento imunitário. Neste, sobre uma linha tênue que evita o retorno à comunidade originária e à hipertrofia tanatopolítica, a biopolítica afirmativa salvaguarda a vida humana e a leva a uma nova abertura social e política. O contraste entre política e vida passa a se estruturar como forma de instituir modos de vida dentro da própria imersão antinômica da biopolítica. Conforme Esposito, a afirmação não prescinde da negação para existir, ou seja, ela não espera o enfraquecimento do poder constituído para emergir. A afirmação vital surge como a abertura possível no centro dessa esquadrinha do poder, como uma insurgência da própria vida no uso da potência que a atravessa. No tocante a isso, os dispositivos imunitários são atenuados a ponto de se abrirem para a relação entre subjetividade e alteridade. Na práxis social, as subjetividades se constituem não na aniquilação de si no outro, mas radicalmente na relação entre as singularidades e as multiplicidades. O projeto de uma imunização comum, ou seja, de uma imunização na qual a comunidade não se abole na aniquilação da subjetividade, ergue-se em torno de uma ética e de uma política em que a biopolítica afirmativa e o pensamento instituinte convergem no entendimento de que a vida detém uma potência inesgotável de instituir-se e de instituir formas, espaços, coisas, subjetividades (ESPOSITO, 2022, p. 161). A imunização comum diz respeito a essa condição, diz respeito à Vitam instituere (ESPOSITO, 2021a, p. 19).
Considerações finais
Na investigação de Esposito, o paradigma imunitário contém como espinha dorsal a biopolítica. À medida que constitui e opera junto à vida, a biopolítica se mostra como uma chave interpretativa fecunda sobre o paradigma político Ocidental. Àquilo que observou ter escapado dos olhos de Foucault, Esposito respondeu com a fonte hermenêutica do paradigma imunitário e dos processos de imunização. Sob a forma de proteção negativa, esses processos imunitários interrompem a aniquilação da subjetividade e oportunizam espaços para que elas se instituam não através da perda de si no outro, mas, sim, através da relação entre as singularidades e seus múltiplos processos de subjetivação. Os sujeitos se constituem e se relacionam protegidos por capas imunitárias flexíveis que ora permitem maior contaminação, ora os blinda por completo. Em todo caso, a proteção imunitária reflete o axioma da produção da vida, de sua expansão subjetiva, do “fazer viver”, que não é determinado a priori porque é produto da própria contingência prática. Isso significa que as medidas imunitárias são latentes nos processos de constituição dos sujeitos e se desdobram a partir da própria ação destes. Toda a construção de um paradigma imunitário realça a dimensão antinômica inerente à biopolítica sobre um terreno no qual não há um vencedor determinado previamente, nem mesmo um único polo passivo e ativo do poder. Vida e política se entrecruzam e são mutualmente produtivas de poder e de potência.
Esse duplo sentido de um único incindível mantém a proteção negativa como um recurso interno à operação do paradigma imunitário. O ponto intrigante dessa tese é que ela parte do pressuposto que o conflito é essencialmente constitutivo da própria política e que ela não o prescinde em suas operações. Para existir política, é preciso existir conflito, posto que ele a tensiona para dentro de um jogo de forças instituintes de práxis sociais. Como sublinhamos, a biopolítica funciona entre os polos antinômicos: ora afirma e produz, ora nega e subtrai; ora é biocracia, ora é biopotência. Com essa ambiguidade, ela nunca é um ponto fixo no paradigma imunitário, mas é sempre um composto de práticas flexíveis, móveis, circulares. Essa não é uma novidade nos debates sobre a biopolítica, haja vista que o próprio Foucault já havia a problematizado. A sutileza do olhar de Esposito está no fato de perceber os desdobramentos das práticas biopolíticas tanto no plano das estruturas político-sociais quanto no terreno criativo das singularidades e das multiplicidades. Nesse ponto, seu objetivo maior consiste em pensar um quiasma no qual a realidade biopolítica cruza-se com a ontologia e com a ética ao instante de fazer emergir relações de subjetividade que amenizam as teias imunitárias.
Posto isso, é possível delinear alguns pontos a respeito do fio condutor que percorremos e da tese que tentamos apresentar. Uma vez tomado o paradigma imunitário como a chave hermenêutica para interpretar a biopolítica, sobretudo a partir da modernidade de Hobbes, e para justificar a importância dos aparatos imunitários para a proteção da vida humana, Esposito nos conduz ao eixo crítico assentado sobre as práticas políticas moderno-contemporâneas: embora os dispositivos imunitários nos leve a uma imagem extremamente individualizante dos sujeitos, o autor se mantém reticente em relação a isso. Afastando-se dessa visão, que o autor demarca como própria do liberalismo político, mas nem por isso afiliando-se à tradição comunitarista, a quem as categorias conceituais partem de noções divisíveis de um todo (cultura, identidade, por exemplo), Esposito busca um ponto limiar sutil que permita o desanuviamento tributário do dom (munus), sem, porém, fomentar uma espécie de individualismo hiperimunitário. Para sair dessa malha, entendemos que Esposito precisa articular a noção de biopolítica afirmativa àquela do pensamento instituinte. Enquanto a biopolítica opera com um conjunto de práticas que afirmam a potência conservadora e expansiva da vida humana, o pensamento institui formas possíveis de práxis sociais.
À medida que o pensamento institui práxis sociais, ele realça a potência afirmativa das diferenças. Estas, na forma das singularidades e das multiplicidades, se afastam das noções do indivíduo irrepartível em si ou partível num todo maior, abrindo espaço para a relação entre subjetividades e alteridades. Por meio da afirmação de sua subjetividade e da subjetividade de outrem, as singularidades não se aprisionam na armadura imunitária, daí a amenização que fazem dos mecanismos de proteção através de suas próprias deliberações práticas. Enquanto o pensamento institui imaginários simbólicos responsáveis por levar as singularidades ao reconhecimento das diferenças, alteridades e multiplicidades, as práxis se abrem como um passo concomitante a esse reconhecimento ontológico e ético. Entrecruzadas pelo político e pelo social, as práxis são instituídas pela deliberação ativa dos sujeitos. Por meio da ação política, o terreno social emerge como uma zona comum de tensões, conflitos, instituições inacabadas. A práxis não está fechada ao instituído, ela é sempre potência instituinte, potência inacabada ao movimento de instituir. Isso significa que, nela, a biopolítica afirma a vida humana a partir da própria condição instituinte que essa tem em si, com o outro e com o mundo.
Vitam instituere significa essa potência ativa e relacional. Significa também a condição irredutível da qual ela possui para não ser nem objeto externo ao poder, nem objeto do poder. A vida instituinte é aquela que institui a si mesma em relação ao outro como expressão de sua potência expansiva. Ela se afirma na linha tênue que constitui o munus como um elo de relação entre a imunização e a comunidade ou, como prefere Esposito, de uma imunidade comum (ESPOSITO, 2022). A vida instituinte detém a potência ativa de criar outras subjetividades, espaços de resistências, modos de vida, normas de existência, etc., porque possui consigo uma força expansiva inesgotável. Nesse sentido, ela é sempre uma realidade biopolítica, é sempre uma zona de tensão que mobiliza e que é mobilizada por um choque de forças entre o poder sobre ela e o poder dela, entre biocracia e biopotência.
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Notas
Notas de autor