Dossiê

Políticas de vidas e dívidas: faces do poder pastoral e da constituição do sujeito de necessidades na Biopolítica contemporânea

Life and Debt policies: faces of pastoral power and constitution of the subject of needs in contemporary Biopolitics

Luis Celestino de França Júnior [a]
Universidade Federal do Cariri, Brasil
Regiane Lorenzetti Collares [b]
Universidade Federal do Cariri (UFCA), Brasil

Políticas de vidas e dívidas: faces do poder pastoral e da constituição do sujeito de necessidades na Biopolítica contemporânea

Revista de Filosofía Aurora, vol. 34, núm. 61, pp. 287-306, 2022

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recepción: 30 Enero 2022

Aprobación: 05 Marzo 2022

Resumo: Foucault no curso Segurança, Território e População, proferido entre janeiro e abril de 1978, dedica boa parte de suas aulas a fazer um exame do que identifica como poder pastoral. Em qual contexto surge esta problematização? De que maneira o poder pastoral se implicaria a estratégias de governamentalidade direcionadas por proposições econômicas? E, ampliando o horizonte de questionamento, cabe-nos examinar quais os vestígios do poder pastoral que poderíamos encontrar nas relações entre credores e devedores, em relações vinculadas à constituição de “sujeitos de necessidades” (sujet de besoins). A partir dessas questões, pretendemos examinar, dentre os múltiplos modos da biopolítica se infiltrar em nossas vidas, a preeminência de um poder pastoral comprometido com uma lógica de endividamento da existência.

Palavras-chave: Dívida, Poder Pastoral, Sujeito de Necessidades, Governamentalidade.

Abstract: Foucault in the course Security, Territory and Population, delivered between january and April 1978, devoes a good part of his classes to an examination of what he identifies as pastoral power. In what context does this problematization arise? How would pastoral power be involved in governamentality strategies guided by economic propositions? And, expanding the horizon of questioning, it is up to us to examine what vestiges of pastoral power we could find in the relationships between creditors and debtors, in relationships linked to the constitution of “subjects of needs” (sujet de besoins). From these questions, we intend to examine, among the multiple ways biopolitics infiltrate our lives, the preeminence of a pastoral power committed to a logic of indebtedness of existence.

Keywords: Debt, Subjects of need, Pastoral Power, Governamentality.

Como citar: JUNIOR-FRANÇA, L. C.; COLLARES, R. L. Políticas de vidas e dívidas: faces do poder pastoral e da constituição do sujeito de necessidades na Biopolítica contemporânea. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 287-306, jan./abr. 2022



Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou… Não sei por onde vou, Não sei para onde vou — Sei que não vou por aí!

Fuente: (José Régio – Cântigo Negro)

Introdução

É significativo observar que Squid game ou Round 6 (intitulada assim no Brasil) dirigida pelo sul-coreano Hwang Dong-hyuk e produzida pelo canal de streaming Netflix, seja uma das séries mais vistas e comentadas do ano de 2021. Trata-se da história de 456 pessoas desesperadas em decorrência de dívidas financeiras. Elas foram convidadas para uma misteriosa competição; confinadas em um espaço secreto onde são constantemente vigiadas, aceitam participar de jogos infantis com o propósito de ganharem uma grande soma em dinheiro, podendo assim liquidar suas dívidas.

No entanto, a entrada na brincadeira é radical aos perdedores, custando-lhes não apenas a eliminação do jogo, como a perda da própria vida. À medida que a competição avança produzindo mortos a cada rodada, um valor em dinheiro vai caindo na redoma de vidro posta estrategicamente em uma posição central à vista de todos. Os participantes das brincadeiras estão cientes de que a quantia depositada na bola de vidro corresponde a um jogador morto, de modo que o tão cobiçado prêmio vai crescendo em uma contabilidade macabra. Há a possibilidade de desistência, mas os sobreviventes querem continuar no jogo de vida ou morte.

Sendo assim, ante a chance de embolsarem o dinheiro e serem salvos das garras dos credores, os jogadores se dispõem a fazer qualquer coisa, pois, no final, o único vencedor receberá seu prêmio às custas da eliminação dos demais jogadores; não importa se os participantes desse estranho jogo se conhecem desde a infância, se são mães/pais que procuram com o prêmio criar ou reaver os filhos, se são profissionais falidos, se estão doentes, se são jovens ou velhos, se são imigrantes ou cidadãos do país, se acreditam em Deus ou ateus, todos os participantes entram no jogo na indistinção não apenas marcada pelos uniformes que usam, mas também pela obediência cega às regras de cada rodada de brincadeiras.

A série Round 6, não à toa, nos chama atenção justamente pela alusão às tramas de ordem financeira que se apresentam de forma tão marcante no contexto da biopolítica atual; políticas da vida e das dívidas passam assim a nos constituir, infiltrando-se em nossas necessidades, aspirações, levando-nos a obedecer às condições mais absurdas que se impõem a partir de relações econômicas.

Não deixa de ser relevante ressaltar que na Coreia do Sul, país natal do diretor da série, o endividamento tenha crescido acentuadamente no decorrer dos últimos anos - informação que inclusive é ressaltada no último episódio - refletindo na angústia dos jovens desempregados, na falta de moradia, na decisão de ter filhos ou não, na dificuldade de conseguir criá-los, nas chances de estudar etc. Em suma, é como se o fato de estar endividado proporcionasse uma alteração não apenas da percepção social, como também das necessidades, decisões, escolha de prioridades e atitudes.

Aliás, vale salientar que esta ideia de uma reconfiguração das relações sociais e políticas a partir do endividamento financeiro é explorada por muitos pesquisadores, sociólogos, escritores e filósofos contemporâneos[3]. O pensador italiano Maurizio Lazzarato, por exemplo, chega a afirmar que “a verdadeira biopolítica é a política da dívida” e dedica o livro O governo do homem endividado (2014) para tratar do assunto. O autor considera em linhas gerais que as engrenagens da biopolítica contemporânea passariam a operar prioritariamente a partir do gerenciamento das relações de dívidas. Em entrevista realizada à época do lançamento deste livro no Brasil, em 2017, Lazzarato comenta o seguinte:

A política da dívida afeta diferentemente todas as camadas sociais e todas as dimensões da vida. Ela atinge o emprego, a aposentadoria, os cuidados médicos, a formação, o auxílio à moradia, todas as políticas sociais etc. A política da dívida é a “verdadeira” biopolítica, ou seja, a modalidade de governamentalidade da sociedade contemporânea em seu conjunto. (Revista On-line IHU, 12/10/2017)

Apesar de haver variadas leituras de como a dívida se implica à biopolítica e a proporção dessa interferência, das relações do Estado com a economia neoliberal, dos efeitos do neoliberalismo no modo como vivemos, não pretendemos enveredar no mérito dessas amplas questões neste momento, justamente por nos demandar um espaço e tempo maior de elaboração. Assim, o que nos propomos aqui é a partir das aulas realizadas por Foucault durante o curso Segurança, Território e População (1978) no Collège de France, irmos buscar na sua compreensão da “história da governamentalidade”, os vestígios de como a economia política passaria a compor o nosso modo de viver, especificamente, no que diz respeito à constituição do sujeito de necessidades e à proeminência do poder pastoral como estratégia de governo.

Sujeito de Necessidades e Poder Pastoral

Na aula de 1º de fevereiro de 1978, do curso Segurança, Território e População, Foucault apresenta suas peculiares “questões de método” na intenção de elaborar uma “história da governamentalidade”, ressaltando-se daí uma engrenagem triangular apoiada nos seguintes vértices: governo, população e economia política. Para dar cabo desse esboço tripartite de pesquisa, ele inicia pela tematização do governo sob o panorama dinâmico das relações de poder.

Faz-se oportuno observar que tal investigação apresentada no Collège de France teria seu percurso singular em desvio ao campo de problematizações advindas das teorias políticas clássicas. À época, o que parecia então ser prioritário a Foucault era explorar os modos de governo em suas correlações a um poder que se amplia e toma novas faces na medida em que passa a se imiscuir aos movimentos da população e da economia política.

Dessa forma, o pensador abre seu curso realizado em 1978 para trilhar sua própria versão de uma “história da governamentalidade”. O centro das preocupações foucaultianas, ao que o resumo do curso nos indica, teria se deslocado então para as dinâmicas do poder que envolveriam as estratégias de governo articuladas em rede, tecnologias dinâmicas de governamentalidade, que regulariam a vida da população. (FOUCAULT, 2008a, p.489)

Observando a população como “fim e instrumento do governo”, Foucault entende que qualquer intervenção de governo nos processos populacionais passaria pelo engendramento do “sujeito de necessidades” (sujet de besoins). Quem seria então o sujeito de necessidades? No contexto explorado nesse curso, tal sujeito se daria no diapasão do “interesse como consciência de cada um dos indivíduos que constitui a população e o interesse como interesse da população.” (Ibidem, p.140). Quer dizer, em acordo com a leitura foucaultiana, o governo da população estaria às expensas da constituição/produção de sujeitos de necessidades, de aspirações. Daí podemos encontrá-lo introdutoriamente mencionado na aula de 1º de fevereiro de 1978; “sujeito de necessidades, de aspirações, mas também objeto nas mãos do governo”, um sujeito que vai ser consciente, diante do governo, do que quer, e inconsciente do que o fazem fazer. (FOUCAULT, 2008a, p.140)

Em meio a essas artimanhas da governamentalidade, da produção de sujeitos de necessidades que são inconscientes do que o fazem fazer, podemos ver na esteira dessas problematizações um percurso de pesquisa também voltado para o poder pastoral. O poder pastoral torna-se assim tema central de três aulas seguidas proferidas no mês de fevereiro de 1978 (as aulas dos dias 8, 15 e 22), embora tal assunto não deixou de ser tocado durante todo o mês de março do mesmo ano.

A propósito da temática do pastorado ter amplo destaque na história da governamentalidade foucaultiana e, sobretudo, no que o relaciona ao governo da população como à condução da vida de cada indivíduo, surgem-nos algumas questões que a princípio compreendemos se enlaçar ao tratamento da biopolítica em nossa atualidade. São, portanto, as seguintes: de que modo alguns traços do poder pastoral se atualizariam hoje?; considerando o pastorado como uma tecnologia de governamentalidade, como se daria sua articulação ao sujeito de necessidades movido prioritariamente por proposições econômicas?; quais as faces do poder pastoral contemporâneo, seus disfarces e suas estratégias na conquista de confiança e de investimento de um amplo séquito?, e, por fim, será que o governo através da dívida financeira não reproduziria vínculos similares entre pastor-rebanho, só que no registro credor-devedor? Em síntese, são essas as questões que serão os fios-condutores da elaboração desse artigo.

As faces religiosa e política do poder pastoral e o surgimento do sujeito de necessidades

Uma das “novidades” da apreensão da governamentalidade por Foucault entendemos estar naquilo que a implica ao pastorado. Podemos observar que um dos aspectos mais marcantes do poder pastoral que aparece no curso Segurança, Território e População é justamente a explicitação das engrenagens estratégicas que visariam o governo tanto da alma como dos corpos. Todavia, Foucault pondera que governar não pode ser confundido com “reinar”, “comandar” ou mesmo “fazer a lei”, nem muito menos pode ser vista como uma atividade de professor, de general, de proprietário, de patrão, de presidente etc. (Ibidem, p. 155)

Antes de um significado propriamente político dado a partir do século XVI, a arte pastoral de governo teria configurado um campo semântico vastíssimo que se deu em variadas direções e propósitos, implicando-se tanto “ao deslocamento no espaço, ao movimento” como também à “subsistência material, da alimentação”, aos atos de cuidados e curas, e, concomitantemente, ao “exercício de um mando, de uma atividade prescritiva, ao mesmo tempo incessante, zelosa, ativa, e sempre benévola”. (FOUCAULT, 2008a, p.164)

Na medida em que o ato de governar, implicado ao pastorado, passa a se referir ao controle que se exerce sobre si mesmo ou sobre os outros, sobre o corpo ou sobre a alma, ou a um processo circular ou de troca entre os indivíduos, há algo que se destaca nisso tudo para o pensador: “Nunca se governa um Estado, nunca se governa um território, nunca se governa uma estrutura política. Quem é governado são sempre as pessoas” (Idem) Assim sendo, do exame do poder pastoral passa a se destacar um fio que liga as tecnologias de governo às pessoas.

Frente a isso, Foucault não deixa de esboçar um panorama de acontecimentos que supostamente teria composto o início de uma “história da governamentalidade” atrelada ao poder pastoral:

creio que se pode dizer que a ideia de um governo dos homens é uma ideia cuja origem deve ser buscada no Oriente, num Oriente pré-cristão primeiro, e no Oriente cristão depois. E isso sob duas formas: primeiro, sob a forma e a ideia da organização de um tipo de poder pastoral, depois sob a forma de direção de consciência, de direção das almas (Ibidem, p.166).

Por esse viés interpretativo, a ideia de que um rei, chefe ou deus viesse a conduzir homens tal qual um pastor leva seu rebanho, já poderia ser encontrada desde o antigo Oriente mediterrâneo. Por exemplo, no Egito, o faraó, na cerimônia de sua coroação, receberia um cajado; objeto emblemático que figuraria, portanto, a posição dianteira do pastor em conduzir o seu povo. Ou ainda, na monarquia babilônica, quando na posse do rei já se concedia a ele o título de “pastor dos homens”. No entanto, Foucault considera que foi somente na cultura hebraica que a questão do pastorado teria se impulsionado, sobretudo, devido ao direcionamento religioso do rebanho. É nessa circunstância que o “pastor” passaria a se vincular à figura divina. Por isso, “a relação pastoral, em sua forma plena e em sua forma positiva, é portanto, essencialmente, a relação entre Deus e os homens. É um poder do tipo religioso que tem seu princípio, seu fundamento, sua perfeição no poder que Deus exerce sobre o povo” (Idem)

Foucault ainda ressalta que essas relações de governo que se estabeleceram a partir do pastorado foram completamente distintas daquelas que se encontravam entre os gregos antigos. Por exemplo, os deuses gregos, por mais que “ajudassem” a construir as cidades, pronunciando oráculos ou dando conselhos, seus poderes se circunscreveriam apenas aos limites territoriais, visando assim resguardar seus lugares já privilegiados na cidade. Já com propósitos diferentes, o poder do pastor, em sua forma religiosa, não seria estabelecido no espaço intra muros, mas se daria na relação direta com o rebanho, “sobre o rebanho em seu deslocamento, no momento que o faz ir de um ponto a outro” (FOUCAULT, 2008a, p.168).

Outro caráter que se destacaria no poder pastoral, ainda vislumbrado na perspectiva religiosa, seria seu tom “benfazejo”, ou seja, do pastor se espera que faça sempre o bem, que seja um grande conquistador. O pastor é, portanto, aquele que é respeitado pelo poder ilimitado que possui, pelas riquezas, e, sobretudo, pela generosidade de cuidar do rebanho, pela capacidade de derrotar qualquer inimigo e guardar tanto a cada um como a todos.

Por conseguinte, em uma compreensão geral, o poder pastoral encontraria sua maior sedução frente ao rebanho justamente pela possibilidade de salvação de toda comunidade como de cada um. Por todas essas atitudes salvíficas e generosas, o pastor seria aquele que nos levaria ao bem e ao melhor. Dessa modulação de relações começaria já a se apresentar uma espécie de artimanha do poder pastoral, pois, em acordo com a leitura foucaultiana, “todas as dimensões de terror e de força ou de violência terrível, todos esses poderes inquietantes que fazem os homens tremer diante do poder dos reis e dos deuses, pois bem, tudo isso se apaga quando se trata de pastor” (Ibidem, p.172) É possível então observar no último passo da aula de 8 de fevereiro de 1978, ainda em relação ao pastorado, que haveria algumas características muito particulares do seu exercício, tal como uma disposição individualizante de se servir do poder e do aspecto sacrificial das relações éticas.

Sem querermos aqui remontar todos os deslocamentos no modo do poder pastoral ser exercido, faz-se importante sublinhar que tal poder como modelo ou como matriz de procedimentos só começaria de fato com o cristianismo (Ibidem, p.196). Dado isso, o que Foucault compreende por uma inflexão “cristã” do pastorado?

De modo geral, seguindo a esteira das considerações do historiador e de seu amigo Paul Veyne[4], Foucault compreende o cristianismo, na perspectiva do pastorado, como um campo religioso que, apesar de envolver realidades diferentes, configurou um processo no qual uma comunidade, que também se constitui como Igreja – como instituição que aspira o governo dos homens em sua vida cotidiana –, teria a missão de levar o seu séquito a um mundo melhor, à vida eterna, ao encontro da verdade. Isto é, o poder pastoral imiscuído a pressupostos cristãos tomou como missão a tarefa de conduzir um grupo, uma cidade ou um Estado, quiçá toda a humanidade em sua indefinição, para a salvação. A partir disso, Foucault afirma sobre a permanência do nosso vínculo ao pastorado até a atualidade:

Ele por certo foi deslocado, desmembrado, transformado, integrado a formas diversas, mas no fundo nunca foi verdadeiramente abolido. E, quando eu me coloco no século XVIII como sendo o fim da era pastoral, é provável que ainda me engane, porque de fato o poder pastoral em sua tipologia, em sua organização, em seu modo de funcionamento, o poder pastoral que se exerceu como poder é sem dúvida algo de que ainda não nos libertamos (FOUCAULT, 2008a, p.197)

Sendo assim, na aula do dia 15 de fevereiro de 1978 - ainda em Segurança, Território e População -, encontramos a remissão ao filósofo cristão Gregório de Nazianzo ou Gregório de Níssa (330-395 dC), o primeiro a definir o pastorado em sua arte de governar como “Tékhne tekhnôn, epistéme epistemôn” (arte das artes, ciência das ciências) (Ibidem, p.200). Com o pastorado visto como uma “arte das artes e ciência das ciências”, o que antes era da alçada exclusiva da filosofia, a tecnologia pastoral começou a se ocupar; “era aquela arte pela qual se ensinavam as pessoas a governar os outros, ou pela qual se ensinavam os outros a se deixar governar por alguns” (Idem).

Então, pelos desdobramentos religiosos e políticos do pastorado, Foucault teria uma hipótese muito forte de pesquisa: a presença marcante do poder pastoral, em sua face religiosa e, depois, com sentido mais político, como uma tecnologia da governamentalidade. Michel Senellart, em plena concordância interpretativa a Foucault quanto à configuração do pastorado como um modo de governo, comenta oportunamente sobre a peculiaridade do poder pastoral já empreendido pela Igreja cristã: “Inútil, portanto, submeter-se aos poderes exteriores. Face à tirania do império pagão, eles concebiam a igreja como uma nova sociedade de indivíduos autônomos, regrando sua vida por uma disciplina pessoal e não sob a coerção” (SENELLART, 2006, p. 74).

Nesse sentido, o poder pastoral serve-se oportunamente de uma alteração no modo de governar: governar não pela coerção, imposição – a exemplo do poder soberano –, e sim por um disciplinamento assumido por cada um pertencente ao rebanho. Quer dizer, tal inflexão dessa arte de governar sugere assim a troca do paradigma da punição pelos da vigilância, da disciplina e do controle da vontade. Embora o poder pastoral dado no cristianismo tenha permanecido por muito tempo distinto do poder político, encarregado de conduzir apenas as almas dos fiéis, no entanto, esta modulação religiosa/política traria uma maneira paradoxal de agir. Para Foucault, tal paradoxo consistiu em conduzir a alma dos indivíduos na medida em que também se infiltrava na vida cotidiana, na gestão dos bens, riquezas e coisas. (FOUCAULT, 2008a, p.204).

Foucault faz duas observações antes de acabar a aula do dia 15 de fevereiro de 1978 em relação ao poder pastoral, e que vale a pena aqui nos reportarmos a elas: primeira observação, apesar do poder pastoral da Igreja permanecer completamente indiferente a propósitos políticos pelo menos até o século XVIII, nunca deixou de haver entre o poder pastoral e o político – nas palavras de Foucault – ; “uma série de interferências, de apoios, de intermediações, toda uma série de conflitos” em que “o entrecruzamento do poder pastoral e do poder político será efetivamente uma realidade histórica no Ocidente” (Idem).

Segunda observação, mesmo havendo uma distinção entre a face religiosa e a política do pastorado, seria um grande enigma histórico saber sob que circunstâncias tais dimensões começaram a se entrelaçar até ao ponto de suas características particulares se confundirem, ou ainda, como as faces políticas e religiosas do poder pastoral puderam também conservar suas fisionomias próprias.

Desse modo, podemos dizer que o que se destacava a Foucault do poder pastoral no curso de 1978 foi a oportunidade de poder enveredar na pesquisa de seu entrelaçamento às esferas da condução política da população como um todo e de cada um individualmente. Ou seja, nessa implicação entre o poder pastoral e o poder político, Foucault pareceu encontrar um fio genealógico que o levou também à emergência do sujeito de necessidades; modo de subjetivação reconhecido na biopolítica, justamente porque nele se encontra a confluência do governo da população, por um lado, na sua ordenação territorial, moral, de segurança, e, por outro lado, no constante e dinâmico processo relacionado às demandas e interesses de cada indivíduo.

Artimanhas pastoris de governo

Na aula do dia 22 de fevereiro de 1978, Foucault viria então a remontar os principais traços de articulação do poder pastoral em suas engrenagens de captura e entranhamento na condução do rebanho, destacando-se para ele três aspectos fundamentais de sua constituição: a noção de salvação, o vínculo com a lei, e, por último, a relação com a verdade.

Sumariamente, no que se refere à salvação, o que estaria em jogo no poder pastoral seria guiar cada um dos indivíduos para uma suposta condição melhor de existência. Foucault nos adverte que em sua forma mais geral seria um assunto comum, desde os gregos antigos à abordagem hebraica do rebanho, o vínculo estabelecido entre os chefes, guias/magistrados e a comunidade visando a salvação. Já com o pastorado cristão esta dimensão das aspirações de salvação toma feições mais complexas, muito mais elaboradas, pois, o que vem a se apresentar em seu exercício é uma espécie de relação “integral e paradoxalmente distributiva” (FOUCAULT, 2008a, p.224). O que isso significa? Para a interpretação foucaultiana, quer dizer que em tese o pastor deve assegurar a salvação de todos e de cada um. Ora, é justamente nesta salvação integral que se encontraria a paradoxalidade de seu caráter distributivo, pois, para salvar a ovelha que fosse rebelde e dissidente seria válido abandonar todo o rebanho.

Na tentativa de racionalizar essa paradoxal atitude do poder pastoral de sacrificar pelo abandono e salvar as ovelhas, segundo a interpretação foucaultiana, o cristianismo teria aplicado uma série de princípios que serviriam para justificar o cuidado ou o abandono dispensado pelo pastor a cada membro do rebanho. Daí, por exemplo, teríamos uma espécie de “responsabilidade analítica” (Idem), em que se tentaria dar conta da vida de todas as ovelhas por uma "transferência exaustiva e instantânea” (FOUCAULT, 2008a, p.225), isto é, o pastor, para obter melhor adesão e ganhar confiança, deveria experimentar como bom aquilo que acontecesse de bom a cada um e, por conseguinte, experimentar como mau àquilo que ocorresse de pior na vida do rebanho.

Outro aspecto que ainda contribuiria para o estreitamento dos laços entre o pastor e o rebanho e justificaria qualquer atitude tomada seria um “princípio de correspondência alternada”, em que o rebanho se ligaria ao pastor que, embora fosse limpo e impoluto, trouxesse suas marcas de imperfeição, não tentando ocultá-las de seus fiéis. (Ibidem, p.228) No final das contas, do pastor não se poderia exigir salvação (somente Deus é capaz de salvar), cabendo a ele apenas “administrar, sem certeza terminal, as trajetórias, os circuitos”, os caminhos que nos levariam ao mérito ou demérito das nossas ações.

Além da salvação, agora no que se refere à lei, o que aparece a Foucault como especificidade do pastorado cristão se daria em uma “instância de obediência pura” (Ibidem, p.230). Tal obediência se apresentaria como uma experiência de dependência integral, uma submissão às cegas, sem qualquer injunção racional, dada na relação de compromisso individual, em que a vida do fiel em todos os seus momentos se coloca nas mãos do pastor.

Vale salientar que em contraposição à experiência grega de obediência, em que se obedece visando obter um resultado (uma passagem de um ponto ao outro que nem sempre é agradável), na proposição cristã, Foucault considera que o que está em jogo é a obediência pela obediência, se obedece sem nenhum propósito secundário, se obedece apenas “para alcançar um estado de obediência” (FOUCAULT, 2008a, p.234), uma condição de humildade.

Diante disso, o pastor toma feições singulares; não compete a ele ser juiz, pois, tal como um médico, sua função é cuidar de cada um com o maior zelo possível. Nessa relação de cuidados, obviamente, surge uma dependência integral sem precedentes entre a ovelha e o pastor; a vida de cada indivíduo é colocada literalmente nas mãos de quem veste a carapuça de pastor servil e de boas intenções. Já, na relação do pastor para a ovelha, o vínculo seria de outra ordem; aquele executa sua função como um serviço, transformando-se no servidor das ovelhas, assumindo assim seu governo como um encargo, um officium (Ibidem, p.237)

No que diz respeito à verdade, o pastorado envolveria uma atividade peculiar de ensino: o ensino do verdadeiro a partir de orientações para a vida cotidiana e o exame constante realizado por cada um de sua própria consciência. O ensino pastoral de matriz cristã identificado por Foucault incidiria prioritariamente na experiência cotidiana, não se dando apenas na transmissão de princípios gerais, mas no funcionamento de uma série de procedimentos exaustivos cotidianos (observação, vigilância, direção da vontade etc) com o objetivo de pastorear a vida como um todo, as condutas das ovelhas do rebanho. Quanto ao exame da consciência, destacariam-se, além do seu caráter involuntário, a constância e constituição de relações de extrema dependência. Portanto, o ensino da verdade e o exame da consciência aconteceriam de modo permanente e com a adesão irrestrita de cada membro do rebanho.

De tudo isso do poder pastoral reportado nas aulas foucaultianas no Collège de France, se destacam para nós pelo menos dois traços fundamentais no que se refere às tecnologias de governamentalidade contemporâneas, quer sejam: a postulação de um quadro de orientações para a melhor forma de nos conduzirmos e o constante exame de consciência realizado por cada um de nós. Ou seja, tanto a obediência às recomendações pastoris, quanto a constante vigilância e exame de nossas ações, não teriam o propósito de assegurar o domínio de nós mesmos, ao contrário disso, tais disposições contribuiriam para o estreitamento dos elos de dependência entre os indivíduos e aqueles que exercem a função pastoral.

De fato, as relações pastorais entraram nas nossas vidas. O que passa a ter importância na relação do tipo pastoral é que cada um possa prestar conta de si mesmo e dizer “o que fez, o que é, o que sentiu, as tentações a que foi submetido, os maus pensamentos que deixou em si” (FOUCAULT, 2008a, p.241). Nesse contexto, todo indivíduo vem a ser um co-formador de si e uma peça que realiza aquilo que o fazem fazer de modo inconsciente. Cada um passa a se empenhar ao máximo na tarefa de se constituir como sujeito bem-sucedido, trabalho que exige o exame constante da própria consciência, a elaboração de um discurso verdade que deve dizer sobre si mesmo e, também, a obediência irrestrita às recomendações pastoris.

Dado esses traços do pastorado resumidamente aqui apresentados, Foucault chega no final da aula do dia 22 de fevereiro de 1978 à conclusão de que não é a relação com a salvação, nem com a lei e, muito menos, com a verdade que caracterizaria o pastorado. Na interpretação dele, o que marca o pastorado é que sendo também um modo de exercício do poder, a partir do mote da salvação que liga o pastor ao rebanho, vai se “introduzir no interior dessa relação global toda uma economia, toda uma técnica de circulação, de transferência e de inversão dos méritos” (Ibidem, pp. 241-242).

Desse ponto das conclusões de Foucault não nos interessa neste momento enveredar numa investigação sobre a crise do pastorado cristão, no aprofundamento dos seus deslocamentos, do entrelaçamento com o governo civil e o poder político, do seu acoplamento ao modelo judicial, do ascetismo etc., assuntos tratados nas aulas de março de 1978. Assim, o que queremos extrair dessa trajetória de pesquisa foucaultiana sobre o poder pastoral e o surgimento do sujeito de necessidades é a chance de podermos ainda tematizar junto a esse pensador alguns de seus rastros nas configurações da biopolítica contemporânea, aspectos dados em um sedutor e perigoso jogo de governo. Por conseguinte, C. Candiotto também vem a considerar que o governo biopolítico de todos seria uma metáfora atualizada do próprio pastoreio. Vejamos:

É pela instauração de um tipo de poder baseado na relação entre pastor e rebanho que podemos identificar os primeiros traços de uma condução moral, mas também material, de uma população em deslocamento em busca de subsistência em um meio vital. Nesse “meio” aberto de circulação de uma pastagem a outra e de um campo a outro é que o pastoreio pode ser designado metaforicamente como o governo biopolítico de todos, mas também como o governo moral de cada um (CANDIOTTO, 2020, p. 327).

Os pastores atuais parecem então se alastrar por muitos campos e domínios; todos prometendo nos tornar bem-sucedidos ante as nossas aspirações; coachs, pastores-professores, pastores-profissionais da saúde, pastores-psicólogos, pastores-colegas de trabalho, pastores-personals, pastores-síndicos, pastores-gerentes de banco, pastores-pastores, pastores-padres, pastores-políticos, pastores-namorado(a)s, pastores- amigo(a)s, enfim, todos os que se comprometem a nos salvar, a nos ensinar o melhor caminho para alcançarmos a satisfação ou o sucesso, algo que não conseguiríamos se não fosse pelas suas boas intenções e intervenções especializadas e sábias. Vale salientar que, por vezes, os pastores contemporâneos também aparecem de modo não tão personalizado assim, apresentando-se difusamente nas instituições financeiras, nos aplicativos, nos algoritmos que orientam os sites de buscas etc.

Em suma, nessa proliferação do poder pastoral – na inflexão de relações personalizadas ou difusas –, uma das modulações mais sutis e, ao mesmo tempo, mais intrusivas na biopolítica contemporânea parece se dar na produção de sujeitos endividados. O modo de subjetivação “ser endividado” permite assim a intervenção pastoril em muitas esferas da existência; intervenção que se apresenta tanto na indicação da melhor forma de empréstimo para a realização dos sonhos ou mesmo do que é possível sonhar, como nas “boas” propostas de financiamentos, parcelamento, taxas de juros, para custearmos os estudos, bancarmos a conquista da casa própria, do carro ou, ainda, no crédito disponível para nos alimentarmos, nos tratarmos na emergência de uma doença, enfim, todo um arsenal de “boas propostas e intenções” acaba por nos endividar na esperança de conseguirmos viver sãos e salvos.

Em contrapartida ao fazer viver proporcionado pela dívida, o compromisso financeiro assumido por longos períodos e o dever de honrá-la acabam por despertar o sentimento de culpa, de fracasso, de vergonha quando não podemos cumprir aquilo que devemos – não à toa em alemão há a dupla acepção do termo Schuld, que significa ao mesmo tempo dívida e culpa.

Ora, dada a lente de aumento da genealogia foucaultiana voltada para o pastorado e a produção do sujeito de necessidades, cabe-nos indagar, sob a carapuça dos novos pastores da biopolítica contemporânea, quem ou o quê passa a se valer dessa função? Não seria pelas tramas das relações financeiras (crédito, dívida) que peremptoriamente nos colocaríamos em uma disposição irrestrita aos pastores que nos expropriam de nosso modo de viver e nos lançam como peões vulneráveis aos joguetes do destino regulados pelos imperativos econômicos?

Considerações finais

Mesmo que Maurizio Lazzarato em seu livro O governo do homem endividado tenha dedicado mais de 100 páginas para apontar algumas divergências em relação à compreensão foucaultiana das tecnologias de governamentalidade[5], e sem podermos nessas linhas finais examiná-las a contento, queremos reter a título de conclusão que desde os cursos realizados no Collège de France no final da década de 1970 que abordaram o nascimento da biopolítica e as questões da governamentalidade, passaram-se mais de 40 anos. Durante este tempo houve a guinada do neoliberalismo e uma subordinação sem precedentes da soberania política dos Estados às demandas do mercado financeiro. Novos axiomas do capitalismo se impuseram, reconfigurando nossas relações sociais e empreendendo outros modos de sujeição e também de subjetivação.

Contudo, é bastante plausível ver nas bases do arrebanhamento pela dívida a articulação do poder pastoral às estratégias de constituição do sujeito de necessidades. A contração de dívidas e os jogos financeiros que nos envolvem tornaram-se, portanto, uma eficiente tecnologia de governamentalidade conciliada com a alta volatilidade do capital; a questão do prolongamento da dívida por toda a vida e o financiamento de nossas necessidades e sonhos, nos indicam uma biopolítica ainda afinada com as prerrogativas do poder pastoral, tanto pela constituição de uma rede de servidão, como, ao mesmo tempo, por nos fazermos como sujeitos de decisões e intenções.

Apesar das ponderações de Lazzarato ao entendimento de governamentalidade dada em Foucault, por este vislumbrá-la como sendo fundamentalmente uma tecnologia de Estado[6] em seus cursos de 1978-1879 (Segurança, Território e População e O nascimento da Biopolítica), o autor italiano não deixa de reconhecer o seu caráter “pioneiro” (LAZZARATO, 2017, p. 167) e um “avanço considerável” no que diz respeito “à análise de modalidades de controle e de governo da população” (Ibidem, p.89). O avanço da leitura foucaultiana em relação à governamentalidade, ainda segundo Lazzarato, estaria portanto no fato de ele ter percebido corretamente como a economia política acabou se integrando às relações de poder, e como também seria uma participante ativa de nossa constituição como sujeitos.

Sem querermos simplesmente desconsiderar as reconfigurações do mercado financeiro mundial, afinal, não podemos negar os avanços da economia sobre a soberania dos Estados, as constantes variações financeiras e a imposição de novos ritmos ao governo da população, sem descartar também seus efeitos deletérios no “fazer viver”, o que queremos destacar é que nesse quadro de análises foucaultianas sobre a biopolítica, apresentado ainda na década de 70 do último século, talvez os seus aspectos mais fundamentais, tenham até hoje permanecido inalterados, a saber, a articulação do poder pastoral à constituição do sujeito de necessidades.

Podemos então reconhecer nas modulações contemporâneas da biopolítica o poder pastoral na forma como as relações de dívida nos capturam desde muito cedo e continuamente ao logo da nossa existência; passamos de uma dívida a outra, constantemente, em protelação ilimitada. Sobre isso, Lazzarato comenta o seguinte: “onde se está endividado de maneira contínua, a dívida não é jamais (e não deve ser jamais) honrada, pois o crédito não é concedido para ser reembolsado, mas para estar em variação contínua”. (Ibidem, p.84)

Com a dimensão de uma dívida prolongada ao infinito, o mercado financeiro, de um modo geral, vai também constituindo novas modalidades de pastores que o servem como a um Deus; vários tipos de pastores/credores, geralmente ligados às instituições financeiras, continuam a manter seu tom benfazejo na hora de nos conceder crédito ao passo que a face de lobo se revela à medida que não conseguimos cumprir o pagamento do que devemos, impondo-nos altos juros como modo de penitenciar nossa culpa de devedores.

Outro aspecto relevante em nossas considerações finais é que constantemente também nos assumimos como pastores de nós mesmos, nos cobrando e comprometendo de corpo e alma com as dívidas/faltas contraídas, sendo compelidos a desempenhar não apenas o papel de administradores de nossas finanças, como também escolher a forma mais “responsável” de levarmos a vida, de traçarmos os projetos de futuro, de mudarmos de planos ou simplesmente desistirmos deles.

Em suma, nessa espécie de inflexão pastoral dada pelas relações de dívida, de culpa, talvez ainda nos caiba também produzir outras apreciações de valores, colocar os valores vigentes ao menos em questão. Nietzsche nos apresenta na “segunda dissertação” da sua desconcertante Genealogia da Moral, que se queremos olhar de modo diferente para as dívidas contraídas e para o peso do sentimento de culpa que nos solapa a reboque, não podemos deixar de lembrar que tudo isso teve origem em “um grau de civilização muito baixo” dado a partir de vulgares relações entre comprador-vendedor, credor-devedor. (NIETZSCHE, GM/II, §7, p. 59)

O olho posicionado nesta perspectiva à la Nietzsche nos mostra também que as relações de troca, de contrato, de culpa, de obrigação, foram aos poucos transpostas “para os mais toscos e incipientes complexos sociais”, conduzindo-nos à generalização de que “cada coisa tem seu preço; que tudo pode ser pago”. Segundo Nietzsche, este seria o mais velho cânon de toda “boa vontade” que existe sobre a terra. (NIETZSCHE, GM/II, §8, p.60).

Nesse sentido, para podermos não comprometer inteiramente nossas vidas com as pesadas e austeras honras das dívidas, seria preciso também darmos de ombros para as boas vontades e as aquisições que supostamente podem nos salvar. Talvez seja ainda preciso passarmos pela metamorfose de sermos crianças, tal qual Zaratustra, personagem nietzschiano que se encarna como o antípoda do pastor cristão, assim falou: criança em inocência e esquecimento, portanto não culpada, que se permite um “novo começo, um jogo, uma roda a girar por si mesma” (NIETZSCHE, ZA, Os Discursos de Zaratustra, pp 28-29). Ou, em acordo com a dramaturgia atual, poder participar da brincadeira em múltiplas rodadas, fazer o jogo poder sempre recomeçar. Talvez a grande estratégia de sobrevivência diante das configurações da biopolítica contemporânea esteja justamente em sabotar as regras dos jogos de salvação, do tudo ou nada, de modo que ninguém perca definitivamente, e que as rodadas para viver/brincar possam assim continuar para todes.

Referências

CANDIOTTO, M. “Sujeição, subjetivação e migração: reconfigurações da governamentalidade biopolítica” Revista Kriterium, Belo Horizonte, n. 146, p. 319-338, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/kriterion/article/view/25745. Acesso em: 03 fev. 2022.

FOUCAULT, M. Segurança, Território e População. Trad: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008

FOUCAULT, M. Sécurité, Territoire, Population. Seuil/Gallimard, 2004.

FOUCAULT, M. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008

LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: N-1, 2017

LAZZARATO, M. “A política da vida é a verdadeira biopolítica”. Entrevista. Revista IHU on-line, em 12/10/2017. Obtido de: https://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572574-a-politica-de-guerra-da-divida-entrevista-especial-com-maurizio-lazzarato. Acesso em: 03 fev. 2022.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

SENELLART, M. As artes de governar. São Paulo: Editora 34, 2006

TEMPLE, G.C. “Regime de Verdade e Manifestação da Verdade: das práticas de governo à direção da conduta do homem em Foucault”. In: Revista Sol Nascente 9 (2), 3-25. Obtido de https://revista.ispsn.org/index.php/rsn/article/view/22

Notas

[3] Vale salientar os trabalhos de Michel A. Peters, David Graeber (falecido em 2020), Margaret Atwood, Mauricio Lazzarato, Michael Hudson, dentre outros, que tratam dos impactos das relações de dívidas na sociedade.
[4] Segundo a pesquisa de M. Senellart, que cuidou da edição do curso, Foucault para tratar do pastorado cristão faria referência tanto ao texto de Veyne intitulado “La famille et l’amour sous le Haut-Empire romain” (Annales ESC, 1, 1978), mais tarde republicado no livro “La Société romaine” (Paris, Le Seuil, 1991), como na palestra sobre o amor em Roma, realizada em 1977, no seminário de Georges Duby no Collège de France. (Cf. SENELLART in FOUCAULT, Nota n° 40, 2008, p. 212)
[5] Lazzarato dedica três capítulos de seu livro O governo do Homem Endividado para criticar/ampliar a noção de governamentalidade em Foucault. São os seguintes: 1 - No capítulo 3 “Crítica da governamentalidade I: a governamentalidade liberal alguma vez existiu?”, o autor se dedica a apontar as deficiências da apreensão foucaultiana da relação que “o capital e sua lógica (para utilizar seus próprios termos) entretêm com o Estado e esse último com o liberalismo” (Cf. pp 89-121); 2 - No capítulo 4 “Crítica da Governamentalidade II: o capital e o capitalismo dos fluxos”, Foucault é criticado, em contraponto à compreensão de Deleuze, pelo fato de inferir que o capital, em sua lógica própria e com um modo de acumulação específico, seria redutível apenas ao mercado, à concorrência e à empresa. Para Deleuze, nas linhas gerais de sua obra Anti-Édipo, o capital como fluxo agiria através de alianças, como aparelho de captura e controle que ultrapassa a dimensão do Estado, garantindo também o investimento subjetivo do desejo. (Cf. pp. 125-162). 3 - Por fim, no capítulo 5, “Crítica da Governamentalidade III; quem governa quem, o que e como?”, Lazzarato se propõe a ampliar o trabalho foucaultiano sobre a governamentalidade a partir da crise da dívida, valendo-se para isso da noção de máquina; “no capitalismo contemporâneo, governam-se máquinas sociais (a axiomática) e subjetividades compatíveis com essas máquinas (a realização da axiomática). A constituição da “economia política” é inseparável de uma “genealogia da moral”, que produz e governa uma força de trabalho no sentido amplo do termo, pois ela compreende agora uma subjetividade para o consumo, para a comunicação e para os serviços” (Cf. p. 167-197).
[6] Vale salientar que Foucault vem a tomar as técnicas do liberalismo econômico em oposição ou como alternativa às estratégias de Estado. Como comenta Giovana Temple em seu artigo “Regime de verdade e manifestação da verdade: das práticas de governo à direção da conduta do homem em Foucault”: “A racionalidade liberal se opõe à razão de Estado na medida em que, para a razão de Estado, “nunca se governa demais”, e a intervenção pública é contínua na gestão do Estado para que nada escape ao domínio do Estado e este possa alcançar o máximo de sua força(...) A questão para Foucault é analisar como, a partir do século XVIII, a prática governamental será marcada pelo princípio de autolimitação por meio de uma coerência refletida que conecta as práticas de governo aos seus efeitos, os quais poderão ser julgados como bons ou ruins, não em função de uma lei moral ou natural, ou de uma razão do Estado que buscava equacionar a prática governamental ao seu dever ser, mas de uma economia política que impõe uma limitação interna à racionalidade governamental. É o regime de verdade e o princípio de autolimitação da razão governamental no liberalismo que Foucault analisa neste curso de 1978-1979” (TEMPLE, 2020, pp.8-9)

Notas de autor

[a] LCFJ – Doutor em comunicação
[b] RLC – Doutora em Filosofia
HTML generado a partir de XML-JATS4R por