Editorial

Como citar: PERUZZO, J. et al. Editorial. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 01-06, jan./abr. 2022
A Revista de Filosofia Aurora celebra, a partir do presente número, sua indexação na plataforma eletrônica Scielo (Scientific Electronic Library Online), principal biblioteca digital da América Latina. Marca-se, assim, a consolidação de um trabalho de aperfeiçoamento dos critérios editoriais e do alcance de suas publicações em nível internacional. Uma história que perpassa mais de três décadas de publicações, desde 1988, e que, agora, atinge o cenário de produção e divulgação do uso e impacto da Aurora na comunidade científica. Nesta nova etapa, portanto, encontram-se os desafios — e o convite — da publicação em língua inglesa e o estreitamento de vínculos com pesquisadores/as e Centros de Pesquisa filosófica de excelência, além do apoio já manifesto pelas Agências de Fomento, entre os quais está o CNPq — Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, através do Programa Editorial nº 15/2021.
Nesta primeira edição, o número dedicado ao tema da Biopolítica e seus desdobramentos, é organizado pelos professores César Candiotto (PUCPR, Brasil) e Philippe Sabot (Université de Lille, França). Nas palavras dos organizadores, “a biopolítica é uma noção popularizada pela genealogia de Michel Foucault em meados da década de 1970. Em suas análises genealógicas, o pensador francês enfatiza a articulação entre poder e saber como estratégia metodológica para problematizar diversos domínios, tais como os da criminalidade, da sexualidade, da doença e da loucura. Se inicialmente estes domínios constituíam objeto somente das técnicas de poder-saber disciplinares, logo em seguida, a anatomia política e disciplinar do homem como “máquina”, no sentido de corpo produtivo, é incorporada à biopolítica da espécie humana.
A vida é analisada arqueologicamente, pela primeira vez, em Les Mots et les choses (1966), indexada ao nascimento moderno do homem, como objeto de conhecimento da biologia. É novamente domínio de preocupação no livro Histoire de la sexualité, 1: La volonté de savoir (1976), quando a vida individual é inserida como parte da apreensão do ser humano como ser vivo ou como membro de uma população. Nestes textos, o radical “bios”, que constitui a biopolítica, é historicamente atravessado por uma relação específica entre poder-saber que encontramos somente na Modernidade. Assim é que a noção de vida será tratada no curso de 1976, no Collège de France, Il faut défendre la société; nas primeiras aulas do curso de 1978, Sécurité, territoire, population; e, de certa forma, ao longo do curso de 1979, intitulado Naissance de la biopolitique. Contudo, neste último caso, trata-se da inserção da vida na relação entre as técnicas de regulação neoliberais e sua articulação com o saber da economia política, da psicologia comportamental e da educação como capital humano. Em todos estes momentos, a biopolítica se afasta da conotação de poder vital, apresentada antes como uma produção histórica da relação entre poder e saber.
A biopolítica é uma noção polissêmica. Ela pode adquirir diversas características, a depender do conjunto histórico de relações em que se encontra envolvida. Apresenta-se como uma “ferramenta conceitual estratégica” que reúne perspectivas aparentemente heterogêneas. Dessa forma, é possível identificar uma dimensão “afirmativa” da biopolítica, devido ao modo como algumas práticas governamentais se preocupam com o aperfeiçoamento da vida e a saúde de uma população determinada. É o caso de pensadores como Roberto Esposito, o qual, Bíos: Biopolítica e filosofia (2004) contrasta conceitualmente biopolítica e biopoder para a sustentação de um caráter afirmativo da biopolítica. Se o biopoder denota a sujeição da vida ao poder, a biopolítica poderia ser pensada como uma espécie de potência da resistência àquela sujeição. De um lado, o poder sobre a vida, de outro, o poder da vida. Contudo, esta não é uma preocupação de Foucault, quando trata estes dois termos indistintamente, pelo viés da indissociabilidade entre o “fazer viver . o deixar morrer”. Foucault coloca no mesmo registro um poder que afirma algumas vidas, ao mesmo em que expõe e abandona outras. Trata-se do exercício do poder-saber cujo efeito é o estabelecimento de fraturas entre cidadãos a serem protegidos e populações a serem abandonadas ou excluídas.
A biopolítica é uma noção histórica. Ela designa a ênfase de certo exercício de poder-saber identificável em determinada época, e em nenhuma outra. No caso da delimitação de Foucault, o nascimento da biopolítica ocorre na Modernidade. Somente no limiar da Modernidade a vida se torna objeto de intervenção política e, fundamentalmente, preocupação do Estado. A “estatização do biológico” é o maior sinal da modernidade biopolítica. Consiste na utilização de saberes, tais como biologia, geografia, medicina social, economia política e estatística para legitimar uma racionalidade de poder exercida por meio de grandes estratégias de conjunto, de caráter regulador e normativo. Diante das diversas possibilidades de desdobramentos da biopolítica cuja emergência remonta o final do século XVIII — e amplamente discutidas neste dossiê —, sua perspectiva histórica se destaca como condição imprescindível para o estabelecimento das continuidades e descontinuidades em relação ao exercício soberano do poder-saber que a precede, durante a Idade Clássica, especialmente nos séculos XVII e XVIII.
A relação entre o poder soberano e a biopolítica assume diferentes formas entre outros pensadores, inspirados nas lições de Foucault. E, no entanto, são posições que geralmente trabalham a biopolítica a partir de perspectivas ontológicas de inspiração espinoziana e, em certa medida, deleuziana, como fazem Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro Empire (2000). De grande repercussão, tem sido a interpretação da relação entre biopolítica e soberania a partir de uma perspectiva que remete à metafísica da política ocidental e sua relação com a teologia e o direito. Em seu livro Homo sacer: Il potere sovrano e la nuda vita (1997), Giorgio Agamben inscreve a biopolítica como um dos desdobramentos da soberania, pautado na tese de uma co-originalidade entre ambas nos primórdios do pensamento grego e romano. Se levarmos em consideração esta perspectiva, é necessário admitir a continuidade originária entre soberania e biopolítica. A ubiquidade do poder soberano é, portanto, indissociável da admissão de que o paradigma da exceção do campo (de concentração) é o nomos da biopolítica contemporânea. Neste caso, o registro metafísico da biopolítica também tem relação com certa inscrição histórica, ainda que, neste caso, ela pareça ser somente um desdobramento daquele registro.
As continuidades e descontinuidades históricas entre poder soberano e biopolítica observáveis no pensamento de Foucault também se afastam da posição oposta, que vê a biopolítica como um “substituto” do poder soberano. O nascimento da biopolítica corresponderia ao fim do poder soberano e suas funções correspondentes. Essa leitura parece dificilmente defensável, se levarmos em conta que é justamente na era moderna da biopolítica que muitos Estados desempenham um papel assassino, caso notório do nazismo e sua tanatopolítica. Foucault, pelo contrário, não é um pensador das rupturas, mas das reconfigurações. Problematizar os diversos domínios e usos da noção de biopolítica envolve a tarefa de repensar as reconfigurações da função soberana do exercício estatal do poder-saber, sempre quando ele, além de deixar morrer, também é causador de morte.
Além da relação com a soberania, outro desdobramento da biopolítica consiste em sua articulação com o liberalismo e os neoliberalismos contemporâneos. Foucault considera o neoliberalismo a governamentalidade biopolítica de nossa época, sempre que a vida é entendida enquanto vida capitalizável, e o indivíduo, como alguém cujo comportamento pode ser governável para a obtenção de respostas sistemáticas. Esta compreensão não deixa de ser um elemento que fragiliza as resistências e as lutas, sempre que a preocupação com o comum cede lugar ao incremento de capital humano pela via da competitividade. A biopolítica neoliberal também tem muito a ver com a produção de certas populações, como “perigosas”. A percepção neoliberal do homo criminalis como um indivíduo que estabelece suas escolhas racionais a partir do cálculo utilitário dos custos e benefícios diante de recursos raros à sua disposição, faz parte da regulação neoliberal da periculosidade, especialmente da política de combate às drogas.
Outros desdobramentos da biopolítica estão relacionados à crise sanitária desencadeada pela pandemia do Covid-19. As escolhas políticas e econômicas que foram feitas durante 2020 e 2021 demonstraram a incidência intensa e explícita das práticas divisórias que atravessam as relações étnicas, as desigualdades de classe e as divisões do trabalho. As técnicas biopolíticas e os recursos sanitários que visam fazer viver e aperfeiçoar certas populações atuam de maneira extremamente seletiva; e, neste sentido, produzem no mesmo ato a mera sobrevivência de outras vidas ou, até mesmo, incitam sua morte. Práticas discursivas que expõem populações já fragilizadas à morte e ao abandono em nome da liberdade da vontade têm sido mais frequentes do que se imagina. Neste sentido, entender a racionalidade que anima o governo da vida em diferentes solos históricos é uma maneira de pensá-lo genealogicamente.
Os artigos que compõem este dossiê perpassam estes diferentes desdobramentos da biopolítica, além de apontarem novos horizontes e percorrerem outros pensadores preocupados com a temática. Neste sentido, dificilmente a breve apresentação de seus principais contornos seria suficiente para esgotar a riqueza inexaurível de todas as contribuições”.
Colaboram com este dossiê pensadores/as que compõem múltiplas redes de pesquisa nacionais e internacionais relacionadas ao tema: Philippe Sabot, Marcelo Raffin, Cesar Candiotto, Marcos Nalli, Iván Gabriel Dalmau, Ernani Chaves, Eduardo Neves Lima Filho, Renan Pavini, Daniel Verginelli Galantin, Thiago Fortes Ribas, Martin Bernales Odino, William Costa, Sebastián Botticelli, Daniel Toscano López, Pablo Pérez Navarro, Regiane Lorenzetti Collares, Luis Celestino de França Júnior.
A edição apresenta, por fim, uma entrevista com o filósofo Timothy Morton, professor da Rice University, realizada por Thiago Pinho (UFBA).
Às leitoras e aos leitores da Revista de Filosofia Aurora, desejamos uma excelente leitura!
Prof. Dr. Léo Peruzzo Júnior – PUCPR
Prof. Dr. Jelson Oliveira – PUCPR
Prof. Dr. Antonio Valverde – PUCSP
Editores
Prof. Dr. Cesar Candiotto – PUCPR
Prof. Dr. Philippe Sabot – Université de Lille
Organizadores do Dossiê
Notas de autor